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A questão das relações do Estado e da revolução social preocupou muito pouco os teóricos e os publicistas da II Internacional (1889-1914), como de resto a questão da revolução em geral. Mas, o que há de mais característico no processo de crescimento do oportunismo, que redundou na falência da II Internacional em 1914, é que, mesmo quando esta questão se impunha directamente, tudo fez para a contornar ou ignorar.
Em geral, pode-se dizer que as evasivas sobre a questão da relação entre a revolução proletária e o Estado – um subterfúgio em proveito do oportunismo e que o alimentou – resultaram na deformação do marxismo e no seu rebaixamento completo.
Para caracterizar rapidamente esse lamentável processo, vejamos os teóricos mais em evidência do marxismo: Plekhanov e Kautsky.
1.Polémica de Plekhanov com os Anarquistas
Plekhanov consagrou à questão das relações entre o anarquismo e o socialismo uma brochura especial: “Anarquismo e Socialismo”, publicada em alemão em1894.
Plekhanov conseguiu tratar desse tema, evitando completamente a questão mais actual, mais acesa e, politicamente, mais essencial na luta contra o anarquismo, ou seja, a relação da revolução com o Estado, e a questão do Estado em geral! Essa brochura compreende duas partes: uma parte histórico-literária, contendo materiais preciosos sobre a história das ideias de Stirner, Proudhon, etc.; a outra, uma dissertação filisteia sobre a impossibilidade de se distinguir um anarquista de um bandido.
A combinação destes temas é extremamente curiosa e característica da actividade de Plekhanov, nas vésperas da revolução e durante todo o período revolucionário na Rússia: foi assim que Plekhanov se mostrou de 1905 a1917: semi-doutrinário, semi-filisteu, arrastando-se politicamente a reboque da burguesia.
Já vimos como Marx e Engels, em polémica com os anarquistas, puseram em relevo, com o maior cuidado, as suas ideias sobre a revolução e o Estado. Publicando, em 1891, na “Crítica do Programa de Gotha”, de Marx, Engels escrevia: ”nós (isto é, Engels e Marx) encontrávamo-nos, nesse momento, apenas dois anos após o Congresso de Haia da I Internacional, em plena luta com Bakunine e os anarquistas.”
Os anarquistas empenharam-se em apropriar-se da Comuna de Paris, vendo nela uma confirmação da "sua" doutrina, mas nada compreenderam das lições da Comuna, nem da análise que Marx fez delas. Sobre estas duas questões de política concreta: é preciso demolir a velha máquina do Estado? E o que deve substituí-la? – o anarquismo nada trouxe nem se aproximou de dar qualquer resposta.
Mas, estudar o "anarquismo e o socialismo", descurando completamente a questão do Estado, sem perceber o desenvolvimento do marxismo antes e depois da Comuna, é escorregar inevitavelmente para o oportunismo. O oportunismo só tem a ganhar se essas duas questões nunca forem apresentadas. Para ele, isso é já uma vitória.
2. Polémica de Kautsky com os Oportunistas
A literatura russa possui, sem dúvida alguma, infinitamente mais traduções de Kautsky que qualquer outra no mundo. Não é por acaso que certos social-democratas alemães dizem, troçando, que Kautsky é muito mais lido na Rússia que na Alemanha. (Diga-se, entre parênteses, que há nesta piada um fundamento histórico muito mais profundo do que suspeitam aqueles que a fizeram: em 1905, houve, entre os operários russos, uma procura extraordinária, incrível, das melhores obras da melhor literatura social-democrata do mundo bem como traduções e edições numa quantidade inusitada noutros países, transplantando, por assim dizer, para o solo jovem do nosso movimento proletário, a experiência enorme num país vizinho mais adiantado).
Além da sua exposição popular do marxismo, Kautsky é conhecido, entre nós, principalmente pela sua polémica com os oportunistas, Bernstein à cabeça. Mas, há um facto quase ignorado e que não se pode evitar, querendo investigar como foi que Kautsky perdeu tão vergonhosamente a cabeça, a ponto de se tornar o advogado do social-chauvinismo durante a grande crise de 1914-1915. Esse facto consiste em que, antes de sua campanha contra os representantes do oportunismo em França (Millerand e Jaurès) e na Alemanha (Bernstein), Kautsky manifestara grandes hesitações. A revista marxista “Zaria”, publicada em 1901-1902 em Estugarda, e que defendia as ideias proletárias revolucionárias, teve que travar polémica com Kautsky, classificando de resolução de “borracha" a sua resolução mitigada, fugidia, conciliante com os oportunistas, do congresso internacional socialista de Paris em 1900. Publicaram-se em alemão cartas de Kautsky, atestando as mesmas hesitações antes de entrar na sua campanha contra Bernstein.
Uma circunstância muito mais grave é que, até na sua polémica com os oportunistas, constatamos agora, ao estudar a história da recente traição de Kautsky ao marxismo, uma tendência sistemática para o oportunismo, precisamente na questão do Estado.
Tomemos a primeira obra capital de Kautsky contra o oportunismo, seu livro sobre “Bernstein e o Programa Social-Democrata”, em que ele refuta minuciosamente Bernstein. E eis aqui o que é característico.
Nas suas “Premissas do Socialismo”, que lhe proporcionaram uma celebridade à maneira de Eróstrato, Bernstein acusa o marxismo de "blanquismo" (acusação mil vezes repetida, desde então, pelos oportunistas e burgueses liberais da Rússia, contra os bolcheviques, os marxistas revolucionários). A esse respeito, Bernstein detém-se, particularmente, em “A Guerra Civil em França” de Marx, e tenta – muito mal, como já vimos – identificar o ponto de vista de Marx sobre as lições da Comuna, com o de Proudhon. Bernstein salienta, sobretudo, a conclusão que Marx reproduz no prefácio de 1872 ao “Manifesto do Partido Comunista” e que diz que a "classe operária não pode contentar-se com tomar tal qual a máquina estatal e fazê-la funcionar por sua própria conta".
Esta frase "agradou" tanto a Bernstein que ele repete-a nada menos do que três vezes no seu livro, comentando-a no sentido mais oportunista e mais desnaturado.
Como vimos, Marx quer dizer que a classe operária deve quebrar, demolir, fazer explodir (Sprengung, explosão, a expressão é de Engels) toda a máquina do Estado. Ora, segundo Bernstein, Marx teria, com isso, pretendido pôr a classe operária de sobreaviso contra uma actividade demasiado revolucionária, por ocasião da tomada do poder.
Não se pode imaginar falsificação mais grosseira e mais monstruosa do pensamento de Marx.
Mas como procedeu Kautsky, na sua minuciosa refutação do bernstei-nismo?
Ele evitou analisar a falsificação profunda do marxismo pelos oportunistas sobre esse ponto. Reproduz a passagem, acima citada, do prefácio de Engels à Guerra Civil de Marx, dizendo que, segundo Marx, não basta que a classe operária se apodere simplesmente da máquina do Estado tal como ela é, mas que, de um modo geral ela pode apoderar-se dela, e é tudo. Que Bernstein atribua a Marx justamente o oposto ao seu verdadeiro pensamento, e que Marx tenha, desde 1852, atribuído à revolução proletária a função de “quebrar” a máquina do Estado, de tudo isto, Kautsky não diz uma palavra.
Em suma, aquilo que constitui a distinção essencial entre o marxismo e o oportunismo sobre as tarefas da revolução proletária é cuidadosamente oculto por Kautsky!
“Podemos, com toda a tranquilidade” – escreve Kautsky "contra" Bernstein – “deixar para o futuro a solução do problema da ditadura do proletariado. (pág 172, edição alemã).
Isto não é uma polémica contra Bernstein mas, no fundo, uma concessão a Bernstein, uma capitulação diante do oportunismo, pois o oportunismo não quer outra coisa senão "deixar para o futuro, com toda a tranquilidade” todas as questões capitais sobre as tarefas da revolução proletária.
De 1852 a 1891, durante quarenta anos, Marx e Engels ensinaram ao proletariado que deve quebrar a máquina do Estado. Ora, Kautsky, em 1899, em presença da traição dos oportunistas ao marxismo neste ponto, escamoteia a questão de saber se é preciso destruir essa máquina, substituindo-a pela questão de quais as formas concretas dessa destruição e abrigando-se atrás da verdade filisteia, “incontestável” (e estéril) de que não podemos conhecer antecipadamente essas formas concretas!!
Entre Marx e Kautsky, há um abismo na concepção do papel do partido proletário na preparação da classe operária para a revolução.
Tomemos a obra seguinte, mais amadurecida, de Kautsky, consagrada também, em grande parte, à refutação dos erros do oportunismo: “A Revolução Social”. O autor toma, aqui, como assunto, a "revolução proletária" e o "regime proletário". Ele traz muitas ideias de facto preciosas, mas é precisamente a questão do Estado que é ignorada. A brochura diz que basta conquistar o poder do Estado e mais nada, ou seja, formula a questão de forma a fazer uma concessão aos oportunistas, na medida em que admite a conquista do poder, sem a destruição da máquina do Estado. O que em 1872 Marx declarava "envelhecido" no programa do “Manifesto do Partido Comunista”, Kautsky ressuscita-o em 1902.
A brochura consagra um capítulo às "formas e meios da revolução social". Trata, aí, da greve política de massas, da guerra civil e dos "meios de dominação do grande Estado moderno, tais como a burocracia e o exército"; mas, sobre os ensinamentos da Comuna aos trabalhadores, nem uma palavra. Evidentemente, não foi sem razão que Engels alertou, principalmente os socialistas alemães, contra a "veneração supersticiosa" do Estado.
Kautsky expõe a questão assim: o proletariado vitorioso "realizará o programa democrático" e apresenta os artigos desse programa. Sobre o que de novo trouxe o ano de 1871 no que concerne à substituição da democracia burguesa pela democracia proletária, nem uma palavra. Kautsky sai-se da dificuldade com banalidades “sólidas", do género destas:
“É claro que não chegaremos ao poder nas condições de hoje. A própria revolução pressupõe lutas longas e profundas que, por si sós, já modificarão a nossa estrutura política e social actual.”
Isto "é claro" do mesmo modo que os cavalos comem a aveia e o Volga se lança no Mar Cáspio. Só é de lastimar que, com uma frase vazia e sonora sobre lutas "profundas", se evite a questão de importância vital para o proletariado revolucionário, de saber em que é que se traduz a "profundidade" da sua revolução em relação ao Estado, rumo à democracia, por oposição às revoluções não-proletárias.
Contornando esta questão capital, Kautsky faz, na prática, uma concessão ao oportunismo, ao qual ele declara uma temível guerra de palavras, acentuando a importância das "ideias de revolução" (mas que valor podem ter essas "ideias", quando se tem medo de espalhar entre os operários as lições concretas da revolução?), dizendo que "o idealismo revolucionário deve estar acima de tudo", ou declarando que os operários ingleses "pouco mais são que uns pequeno-burgueses"
“Na sociedade socialista – escreve Kautsky – podem existir lado a lado... as formas mais variadas de empresas: burocráticas (??), sindicais, cooperativistas, individuais...Há, por exemplo, explorações que não podem dispensar uma organização burocrática (??) – os caminhos de ferro. Eis aqui, nesse caso, qual poderá ser a organização democrática: os operários elegerão delegados que constituirão uma espécie de Parlamento que estabelecerá as normas e fiscalizará a gestão do aparelho burocrático. Outras explorações podem ser confiadas aos sindicatos; outras, enfim, podem ser organizadas numa base de cooperação.”
Este argumento erróneo e marca um recuo em relação às lições que Marx e Engels tiravam, nos anos 70, da experiência da Comuna.
A propósito da organização "burocrática" pseudo-necessária, os caminhos de ferro em nada se distinguem de qualquer empresa da grande indústria mecânica, qualquer fábrica, qualquer grande armazém ou grande empresa agrícola capitalista. Em todas essas empresas, a técnica prescreve a disciplina mais rigorosa, a maior pontualidade no cumprimento da parte de trabalho fixada a cada um, sob pena de fazer parar toda a empresa, de ruptura do mecanismo, ou de deterioração da mercadoria. Evidentemente, em todas essas empresas, os operários "elegerão delegados que constituirão uma espécie de Parlamento".
Mas, aqui é que está o ponto importante: essa "espécie de Parlamento" não será um Parlamento no sentido burguês da palavra. O ponto principal é que essa "espécie de Parlamento" não se contentará em "estabelecer as normas e fiscalizar a gestão do aparelho burocrático", como o imagina Kautsky, pensamento que não vai além dos limites do parlamentarismo burguês. Na sociedade socialista, uma "espécie de Parlamento" de deputados operários, evidentemente, “estabelecerá as normas e fiscalizará a gestão” do "aparelho", mas esse aparelho não será "burocrático". Os operários, senhores do poder político, quebrarão o velho aparelho burocrático, demoli-lo-ão de alto a baixo, sem deixar pedra sobre pedra, substituindo-o por um novo aparelho, composto pelos operários e empregados e, para impedir que estes se tornem burocratas, tomarão imediatamente as medidas propostas por Marx e Engels: 1) elegibilidade, e também amovibilidade em qualquer tempo; 2) salário igual ao de um operário; 3) participação de todos no controlo e na fiscalização, de forma que todos sejam temporariamente "burocratas", mas que ninguém possa tornar-se "burocrata".
Kautsky não reflecte, nos seus escritos, as palavras de Marx: “A Comuna devia ser, não uma corporação parlamentar, mais sim uma corporação laboriosa, ao mesmo tempo legislativa e executiva”.
Kautsky não compreendeu, em absoluto, a diferença entre o parlamentarismo burguês, que une a democracia (não para o povo) à burocracia (contra o povo), e a democracia proletária, que tomará imediatamente medidas para extirpar a burocracia e terá força bastante para executá-las até ao fim, até à completa extirpação da burocracia, até ao estabelecimento de uma democracia completa para o povo.
Kautsky mostra aqui tanta "veneração supersticiosa" pelo Estado como "crença supersticiosa" na burocracia.
Passemos à última e melhor obra de Kautsky contra os oportunistas, o seu panfleto “O Caminho para o Poder” (não traduzido em russo, segundo parece, pois apareceu no auge da reacção czarista, em 1909). Essa obra marca um grande progresso, quando trata, não do programa revolucionário em geral, como a obra de 1899 contra Bernstein, não do papel da revolução social independentemente da época em que esta explodirá, como “A Revolução Social”, de 1902, mas das condições concretas que nos obrigam a reconhecer que "a era das revoluções" se inaugura.
O autor indica nitidamente que o agravamento das contradições de classe em geral e do imperialismo, desempenha um papel considerável a esse respeito. Depois do "período revolucionário de 1789-1871" na Europa ocidental, o ano de 1905 inaugura um período análogo no Oriente. A Guerra Mundial aproxima-se com uma rapidez perigosa. “O proletariado já não poderá falar de uma revolução prematura”. “Entramos num período revolucio-nário”. “A era revolucionária começa”.
Estas declarações são muito claras. Esta brochura de Kautsky permite- -nos comparar o que prometia ser a social-democracia alemã antes da guerra imperialista e até onde caiu (e Kautsky com ela) no momento da guerra. “A situação actual – escrevia Kautsky nessa brochura – encerra o perigo de podermos facilmente ser tomados (nós, social-democratas alemães) por mais moderados do que na realidade somos”. Os factos demonstraram que o partido social-democrata alemão foi incomparavelmente mais moderado e mais oportunista do que parecia!
É tanto mais característico que, depois de ter tão categoricamente declarado aberta a era das revoluções, Kautsky, numa obra consagrada, segundo a sua própria expressão, à análise da "revolução política", deixa de novo completamente de parte a questão do Estado.
De todas estas omissões, de todos estes silêncios, de todas estas reticências, só podia resultar, no fim de contas, uma passagem completa para o oportunismo que discutiremos a seguir.
A social-democracia alemã, encarnada por Kautsky, parecia proclamar: conservo as minhas ideias revolucionárias (1889). Reconheço a inelutabilidade da revolução social do proletariado (1902), Reconheço uma nova era de revoluções (1909). Mas apesar disso, recuo em relação ao que Marx, já em 1852, tinha dito, assim que se põe a questão das tarefas da revolução proletária em relação ao Estado (1912).
Foi assim, desta forma acentuada, que se pôs a questão na polémica de Kaustky com Pannekoek.
3.Polémica de Kaustky com Pannekoek
Pannekoek representava contra Kautsky a tendência da “esquerda radical”, que contava nas suas fileiras com Rosa Luxemburgo, Karl Radek e outros, os quais, preconizando a táctica revolucionária, partilhavam a convicção de que Kautsky se dirigia para o "centro", oscilando, sem princípios, entre o marxismo e o oportunismo. A justeza dessa apreciação foi demonstrada na guerra, durante a qual a política do "centro" (falsamente chamada marxista) ou do "kautskysmo" se revelou com toda a sua repugnante indigência.
Num artigo sobre a questão do Estado: “A Acção de Massa e a Revolução” (Neue Zeit, 1912, XXX, 2), Pannekoek caracteriza a posição de Kautsky como um "radicalismo passivo", uma "teoria da espera inactiva". "Kautsky não quer ver o processo da revolução"(pág. 616). Pondo assim a questão, Pannekoek abordava o assunto que nos interessa sobre as tarefas da revolução proletária em relação ao Estado.
“A luta do proletariado – escrevia ele – não é simplesmente uma luta contra a burguesia pelo poder do Estado, é também uma luta contra o poder do Estado... O conteúdo desta revolução é a destruição e dissolução do poder do Estado (literalmente: dissolver, Auflösung) pelas forças do proletariado... A luta só terá fim uma vez atingido o resultado, uma vez que a organização do Estado esteja completamente destruída. A organização da maioria atesta a sua superioridade aniquilando a organização da minoria dominante.” (pág. 548);
A formulação que Pannekoek empresta à sua ideia padece de defeitos graves. Mas ainda que o significado não seja claro, é interessante ver como Kautsky procura refutá-lo.
“Até aqui – diz ele – a diferença entre os social-democratas e os anarquistas consistia em que os primeiros queriam conquistar o poder estatal e os segundos destruí-lo. Pannekoek quer as duas coisas” (pág. 724)
Se à exposição de Pannekoek faltam clareza e carácter concreto (sem falar dos outros defeitos do seu artigo, que não se relacionam com o nosso assunto), Kautsky apreende bem o cerne da questão essencial em Pannekoek e, nessa questão fundamental de princípio, renuncia inteiramente ao marxismo, para atirar-se em cheio no oportunismo. A distinção que estabelece entre social-democratas e anarquistas está completamente errada, e desnatura e empobrece completamente o marxismo.
A distinção entre os marxistas e os anarquistas é a seguinte, 1.º) os primeiros, visando a destruição completa do Estado, reconhecem que tal só é realizável após a destruição das classes pela revolução socialista, como resultado do advento do socialismo, e do consequente enfraquecimento do Estado; os segundos querem a supressão completa do Estado, de um dia para o outro, sem compreender as condições que a tornam possível. 2.º) os primeiros proclamam a necessidade de o proletariado se apoderar do poder político, destruir totalmente a velha máquina do Estado e substitui-la por uma nova, consistindo na organização dos operários armados, segundo o tipo da Comuna; os segundos, reclamando a destruição da máquina do Estado, não sabem claramente por que coisa o proletariado a substituirá nem como usará o poder revolucionário; os anarquistas repudiam mesmo qualquer uso do poder do Estado pelo proletariado revolucionário e negam a sua ditadura revolucionária; 3.º) os primeiros querem o proletariado a preparar-se para a revolução utilizando o Estado moderno; os anarquistas repelem essa maneira de agir.
Nesta disputa, não é Kautsky, mas Pannekoek que representa o marxismo, pois foi Marx que ensinou que o proletariado não pode apoderar-se do poder pura e simplesmente no sentido de uma transição para novas mãos do velho aparelho do Estado, mas que deve quebrar, demolir esse aparelho e substituí-lo por um novo.
Kautsky abandona o marxismo pelo oportunismo; de facto, para ele não se trata de destruir a máquina do Estado, coisa completamente inadmissível para os oportunistas, mas de abrir-lhes uma brecha que permita interpretar a "conquista" do poder como uma simples aquisição da maioria.
Para dissimular essa deformação do marxismo, Kautsky, como bom escolástico, faz uma citação de Marx. Em 1850, Marx falava da necessidade de uma "forte centralização do poder nas mãos do Estado". E Kautsky triunfante pergunta: não quer Pannekoek destruir a "centralização"?
Eis o passe de mágica similar à identificação do marxismo ao proudhonismo feita por Bernstein, a propósito do federalismo e do centralismo.
A "citação" de Kautsky vem como um cabelo na sopa. A centralização é possível tanto com a velha como com a nova máquina de Estado. Se os operários unirem, voluntariamente, as suas forças armadas, isto será centralismo, mas assentando sobre a "destruição completa" do Estado centralista, do seu exército permanente, da polícia, da burocracia. Kautsky procede, na verdade, desonestamente, ignorando os argumentos bem conhecidos de Marx e de Engels sobre a Comuna, para ir buscar uma citação que nada tem a ver com a questão.
…”Será que ele quer suprimir as funções governamentais dos funcionários? – continua Kautsky – Mas nós não dispensamos os funcionários nem no partido, nem nos sindicatos, sem falar das administrações. O nosso programa reclama, não a supressão dos funcionários de Estado, mas a sua eleição pelo povo”...”Trata-se agora, entre nós, não de saber que forma tomará o aparelho administrativo do "Estado futuro", mas de saber se a nossa luta política destruirá (literalmente dissolver – auflöst) o poder do Estado antes de o conquistarmos (salientado por Kaustky). Qual o ministério que, com os seus funcionários, poderia ser destruído?” Ele enumera os ministérios da Educação, da Justiça, das Finanças, da Guerra. “Não, nenhum desses ministérios será suprimido pela nossa luta política contra o governo... Repito, para evitar mal entendidos: não se trata, de saber que forma dará ao "Estado futuro" a social-democracia vitoriosa, mas de saber como a nossa oposição transformará o Estado actual”. (Pág. 725)
É um truque óbvio. Pannekoek tratava da revolução. O título do artigo e as passagens citadas diziam-no claramente. Ao saltar para a questão da "oposição", Kautsky substitui o ponto de vista revolucionário pelo ponto de vista oportunista. O seu raciocínio reduz-se a isto: agora somos oposição, o que seremos depois da conquista do poder, logo falaremos. A revolução desaparece! E isto é exactamente o que precisavam os oportunistas.
Não se trata nem de oposição nem de luta política em geral, mas da revolução. A revolução consiste em que o proletariado destrói o "aparelho administrativo" e todo o aparelho de Estado, para substituí-lo por um novo, isto é, pelos operários armados. Kautsky demonstra uma "veneração supersticiosa" pelos "ministérios", mas por que razão não poderiam ser substituídos, por exemplo, por comissões de especialistas junto aos Sovietes soberanos e omnipotentes de deputados operários e soldados?
O essencial não é que os "ministérios" subsistam, ou que sejam substituídos por "comissões de especialistas" ou de qualquer outro modo, pois isso é irrelevante. A questão essencial é saber se a velha máquina estatal (ligada à burguesia por milhares de fios, emperrada e rotineira) será conservada ou será destruída e substituída por uma nova. A revolução não consiste na nova classe dominante governar com a velha máquina de Estado, mas no facto de, após quebrar essa máquina, comandar e governar com uma nova máquina – eis a ideia básica do marxismo que Kautsky insulta ou que não compreendeu em absoluto.
A sua objecção a respeito dos funcionários prova, claramente, que não compreendeu nem as lições da Comuna nem a doutrina de Marx. "Nós não dispensamos os funcionários nem no partido, nem nos sindicatos”...
Nós não dispensamos os funcionários em regime capitalista, sob a dominação da burguesia. O proletariado vive oprimido e as massas trabalhadoras são escravizadas pelo capitalismo. Sob o capitalismo a democracia é acanhada, truncada, desfigurada pelas condições de pobreza, pela escravidão assalariada e pela miséria das massas. Eis a única razão por que, nas nossas organizações políticas e sindicais, os funcionários são corrompidos (ou, mais precisamente, têm tendência a sê-lo) pelo meio capitalista e tendem a transformar-se em burocratas, isto é, em privilegiados separados do povo e colocando-se acima dele.
Eis a essência da burocratismo, e, enquanto os capitalistas não forem expropriados, enquanto a burguesia não for derrubada, será inevitável uma certa "burocratização" dos próprios funcionários do proletariado.
Segundo Kautsky, uma vez que funcionários eleitos permanecerão sob o socialismo, portanto, haverão funcionários, logo a burocracia subsistirá! Nada mais falso. Pelo exemplo da Comuna, Marx mostrou que, no regime socialista, os detentores de funções públicas deixam de ser "burocratas", "funcionários", e isto à medida que se estabelece, além da eleição, a sua amovibilidade em qualquer momento, à medida que se reduzem os seus vencimentos ao nível do salário médio de um operário e até mesmo que se substitui a instituição parlamentar por uma instituição “laboriosa, ao mesmo tempo legislativa e executiva ".
No fundo, toda a argumentação de Kautsky contra Pannekoek, e particularmente o seu admirável argumento sobre a necessidade de funcionários nas organizações sindicais e no Partido, se reduz a uma repetição dos velhos "argumentos" de Bernstein contra o marxismo. No seu livro renegado “As Premissas do Socialismo”, Bernstein declara guerra à ideia de democracia "primitiva", que ele chama de "democratismo doutrinário": mandatos imperativos, funcionários não remunerados, impotência da representação central, etc.. Para provar a inconsistência do democratismo "primitivo", Bernstein invoca a experiência das trade-unions inglesas, interpretada pelo casal Webb. Setenta anos de desenvolvimento com "plena liberdade", diz ele (pág. 137, edição alemã), convenceram as trade-unions da ineficácia do democratismo primitivo e substituíram-no pelo usual, ou seja, pelo parlamentarismo combinado com a burocracia.
Na realidade, as trade-unions não se desenvolveram “em plena liberdade", mas em plena escravidão capitalista sob a qual, evidentemente, “nada se pode fazer” sem fazer uma série de concessões ao mal prevalecente, à violência, à injustiça, à exclusão dos pobres da gestão “superior” dos assuntos. Sob o socialismo, muitos aspectos da democracia "primitiva" hão-de necessariamente reviver, pois que, pela primeira vez na história das sociedades civilizadas, a massa da população elevar-se-á até à participação independente, não só nos votos e nas eleições, mas também na administração quotidiana. Sob o socialismo, todos governarão por sua vez, e prontamente se habituarão a que ninguém governe.
Com o seu génio crítico e analítico, Marx viu, nas resoluções práticas da Comuna, a revolução que os oportunistas, por cobardia, tanto temem e se recusam a aceitar, porque lhes repugna romper definitivamente com a burguesia, e que os anarquistas se negam igualmente a ver, seja porque se apressam demais, seja porque não compreendem as condições das grandes mudanças sociais em geral. "Não se deve nem sonhar em demolir a velha máquina do Estado pois não se pode prescindir nem ministérios nem de funcionários" – eis como raciocina o oportunista, penetrado de espírito filisteu e que, longe de crer na revolução e no seu génio criador, tem dela um medo mortal (como os nossos mencheviques e socialistas-revolucionários).
"Só se deve pensar em destruir a velha máquina de Estado, é inútil querer sondar as lições concretas das revoluções proletárias passadas e analisar por quê e como substituir o que cai em ruínas" – assim raciocina o anarquista (claro, o melhor dos anarquistas, não um seguidor da burguesia partidário de Kropotkine & Cia.); consequentemente o anarquista chega à táctica do desespero em vez de chegar ao trabalho revolucionário concreto, ambicioso e inexorável, que tem em conta as condições práticas do movimento de massas.
Marx ensina-nos a evitar esses dois erros, ensina-nos a destruir ousadamente toda a velha máquina do Estado e, ao mesmo tempo, a colocar a questão concreta: em poucas semanas, a Comuna iniciou a construção da nova máquina de Estado proletária de uma forma tal que as medidas tomadas realizaram uma democracia mais perfeita e suprimiram a burocracia. Aprendamos, pois, com os comunardos, a audácia revolucionária, vejamos nas suas medidas práticas um esboço das medidas realmente urgentes e imediatamente realizáveis, e, seguindo esse caminho, chegaremos à destruição completa da burocracia.
A possibilidade de tal destruição é assegurada pelo facto de que o socialismo reduzirá o dia de trabalho, elevará as massas a uma nova vida e elevará a maioria da população para condições que permitem que todos, sem excepção, desempenhem a "função pública", o que dará como resultado a extinção completa do Estado em geral.
…”O papel da greve geral – continua Kautsky – não pode consistir em destruir o poder do Estado, mas unicamente em levar o governo a concessões sobre uma determinada questão ou em substituir um governo hostil ao proletariado por outro disposto a fazer-lhe concessões (entgegenkommende)... Mas nunca, em caso algum, isso” (ou seja, a vitória do proletariado sobre um governo hostil) “pode levar à destruição do poder do Estado; mas apenas resultar num certo deslocamento (Verscbiebung) das relações de poder no interior do poder do Estado... O nosso objectivo continua a ser, como no passado, a conquista do poder do Estado, ganhando uma maioria no parlamento e fazendo do parlamento o dono do governo” (pág. 726, 727, 732).
Eis o oportunismo mais puro e mais vulgar, a renúncia de facto à revolução embora aceitando-a em palavras. O pensamento de Kautsky não vai além de um "governo disposto a fazer concessões ao proletariado" – um grande passo atrás comparativamente a 1847, quando o “Manifesto do Partido Comunista” proclamava "a elevação do proletariado a classe dominante ".
Kautsky só vai atingir a sua amada "unidade" com os Scheidemann, os Plekhanov, os Vandervelde, todos unânimes em lutar por um governo “disposto a fazer concessões ao proletariado"
Quanto a nós, romperemos com esses traidores ao socialismo e lutaremos pela destruição do velho aparelho de Estado, a fim de que o proletariado armado se torne, ele próprio, governo. Isto são “duas coisas muito distintas”.
Kautsky ficará na amável companhia de Legien e David, Plekhanov, Potressov, Tseretelli e Tchernov, todos partidários da "mudança das relações de poder no interior do Estado", e de "ganhar uma maioria no parlamento e fazer do parlamento o dono do governo",– nobre ideal perfeitamente aceitável para oportunistas que se mantenham inteiramente no quadro da república parlamentar burguesa.
Quanto a nós, romperemos com os oportunistas; e o proletariado consciente estará totalmente connosco na luta pela "mudança das relações de poder", mas pelo derrube da burguesia, pela destruição do parlamentarismo burguês, para uma república democrática do tipo da Comuna ou da República dos Sovietes de deputados, operários e soldados, para uma ditadura revolucionária do proletariado.
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O socialismo internacional contém correntes que se situam ainda mais à direita que a de Kautsky, como o “Mensário Socialista” alemão (Legien, David, Kolb e outros, incluindo os escandinavos Stauning e Branting), os jaurèsistas e Vandervelde na França e na Bélgica, Turati, Treves e os outros representantes da direita do Partido Socialista italiano, os fabianos e os “independentes” (o “Independent Labour Party”, que, na realidade, sempre dependeu dos liberais) na Inglaterra, etc. Estes cavalheiros, que desempenham um papel considerável e muitas vezes preponderante na acção parlamentar e na imprensa de partido, rejeitam abertamente a ditadura do proletariado e não disfarçam o seu oportunismo. Para esses senhores, a “ditadura” do proletariado é o "contrário" de democracia!! Na essência, em nada de sério se distinguem dos democratas pequeno-burgueses.
Tendo isto em conta, podemos concluir que a II Internacional, na imensa maioria de seus representantes oficiais, caiu completamente no oportunismo. Não só esqueceu a experiência da Comuna como a deturpou. Longe de sugerir às massas operárias que se aproxima o momento em que elas deverão quebrar a velha máquina do Estado, substituí-la por uma nova e fazer da sua dominação política a base da transformação socialista da sociedade, sugerem-lhe precisamente o contrário, e a "conquista do poder" têm-na apresentado de forma que mil brechas fiquem abertas ao oportunismo.
A deformação e o silenciamento da questão da atitude da revolução proletária em relação ao Estado não poderia deixar de desempenhar um papel significativo, quando os Estados, fortalecendo o aparelho militar em resultado da rivalidade imperialista, se tornam monstros belicosos que exterminam milhões de homens para decidir, entre a Inglaterra e a Alemanha, qual o capital financeiro que dominará o mundo.[1]
Epílogo da Primeira Edição
Esta brochura foi escrita em Agosto e Setembro de 1917. Eu traçara, também, o plano de um capítulo VII: "A experiência das revoluções russas de 1905 e 1917". Mas, para além do título, não tive tempo para escrever nem mais uma linha: fiquei "impedido" pela crise política que precipitou a revolução de Outubro de 1917. Só temos que nos alegrar com um "impedimento" desta espécie. Mas a redacção da segunda parte deste opúsculo ("a experiência das revoluções russas de 1905 e 1917") provavelmente terá de ser adiada por muito tempo: é mais útil e mais agradável passar pela "experiência da revolução" do que escrever sobre ela.
O Autor.
Petrogrado, 30 de Novembro de 1917
[1] O manuscrito prossegue assim:</span>
“CAPÍTULO VII
A EXPERIÊNCIA DAS REVOLUÇÕES RUSSAS DE 1905 E 1917
O tema indicado no título deste capítulo é tão vasto que se poderia e deveria escrever vários volumes sobre ele. Neste opúsculo ir-nos-emos limitar, evidentemente, a extrair as mais importantes lições da experiência do proletariado no que respeita directamente às tarefas, durante a Revolução, contra o poder do Estado”. (Aqui, o manuscrito interrompe-se).
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