1. O Estado é um Produto do Antagonismo Inconciliável entre Classes
Dá-se com a doutrina de Marx, neste momento, aquilo que, muitas vezes, através da História, tem acontecido com as doutrinas dos pensadores revolucionários e dos dirigentes do movimento libertador das classes oprimidas. Os grandes revolucionários foram sempre perseguidos durante a vida; a sua doutrina foi sempre alvo do ódio mais feroz, das mais furiosas campanhas de mentiras e difamação por parte das classes dominantes. Mas, depois da sua morte, tenta-se convertê-los em ídolos inofensivos, canonizá-los, por assim dizer cercar o seu nome de uma auréola de glória, para "consolo" das classes oprimidas e para as enganar, enquanto se castra a substância dos seus ensinamentos revolucionários, embotando-lhes o gume e aviltando-os. É para um tal "tratamento" do marxismo que, presentemente, a burguesia e os oportunistas dentro do movimento operário se unem. Esquece-se, esbate-se, desvirtua-se o lado revolucionário, a essência revolucionária da doutrina, a sua alma revolucionária. Exalta-se e coloca-se em primeiro plano o que é ou parece aceitável para a burguesia. Todos os social-chauvinistas (não riam!) são, agora, "marxistas". Os sábios burgueses, que ainda ontem, na Alemanha, se especializavam em refutar o marxismo, falam cada vez mais de um Marx "nacional-alemão", que, a dar-lhes ouvidos, teria educado os sindicatos operários, tão magnificamente organizados, para executarem a guerra de rapina!
Em tais circunstâncias, e perante tão ampla divulgação de deformações do marxismo, a nossa missão é, antes de mais nada, restabelecer a verdadeira doutrina de Marx sobre o Estado. Para isso, teremos de fazer longas citações das obras de Marx e de Engels. Essas longas citações tornarão pesada e exposição e não contribuirão para torná-la popular; mas, é absolutamente impossível dispensá-las. Todas as passagens de Marx e Engels, pelo menos as passagens essenciais que tratam do Estado, devem ser reproduzidas sob a forma mais completa possível, para que o leitor possa fazer uma ideia pessoal do conjunto e do desenvolvimento das concepções dos fundadores do socialismo científico. Assim, apoiados em provas, demonstraremos, à evidência, que o "kautskysmo", hoje predominante, as deturpou.
Comecemos pela mais vulgarizada das obras de Engels: “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”, cuja sexta edição foi publicada em Estugarda, em 1894. Traduziremos os nossos extractos do original em alemão, porque as traduções russas, embora numerosas, são, na sua maioria, incompletas ou muito defeituosas.
"O Estado – diz Engels, concluindo da sua análise histórica – não é, de forma alguma, uma força imposta, a partir do exterior, à sociedade. Muito menos é "a realidade da ideia moral", "a imagem e a realidade da razão” como afirma Hegel. O Estado é, antes, um produto da sociedade num determinado estádio do seu desenvolvimento; é a confissão de que essa sociedade se enredou numa insolúvel contradição interna, se dividiu em antagonismos inconciliáveis dos quais é impotente para desenvencilhar-se. Mas, para que os antagonistas, as classes com interesses económicos opostos, não se consumam a si próprios e à sociedade numa luta estéril, torna-se necessário um poder, colocado aparentemente acima da sociedade, a fim de enevoar o conflito, de contê-lo nos limites da "ordem". Esse poder, nascido da sociedade, mas que se coloca acima dela e da qual se torna cada vez mais estranho, é o Estado".
Eis, expressa com toda a clareza, a ideia fundamental do marxismo no que concerne ao papel histórico e à significação do Estado. O Estado é o produto e a manifestação do facto de as contradições de classes serem inconciliáveis. O Estado aparece onde, no momento e na medida em que as contradições de classes não podem objectivamente ser conciliadas. E, reciprocamente, a existência do Estado prova que as contradições de classes são inconciliáveis.
É precisamente sobre esse ponto essencial e capital que começa a deformação do marxismo, seguindo duas linhas principais.
De um lado, os ideólogos burgueses e, sobretudo, pequeno-burgueses obrigados, sob a pressão de factos históricos incontestáveis, a reconhecer que o Estado não existe senão onde existem as contradições de classes e a luta de classes, "corrigem" Marx de maneira que o Estado aparece como um órgão de conciliação das classes. Para Marx, o Estado não poderia surgir nem subsistir se a conciliação das classes fosse possível. Para os professores e publicistas pequeno-burgueses e filisteus – que citam abundante e condescendentemente Marx – o Estado tem por papel, exactamente, a conciliação das classes. Para Marx, o Estado é um órgão de dominação de classe, um órgão de opressão de uma classe por outra; é a criação de uma "ordem" que legaliza e consolida essa opressão, contendo os conflitos entre classes. Para os políticos pequeno-burgueses, ao contrário, a ordem é precisamente a conciliação das classes e não a opressão de uma classe por outra; para eles conter os conflitos é conciliar, não é arrancar os meios e processos de combate às classes oprimidas em luta para derrubar os opressores.
Assim, na revolução de 1917, quando a questão do significado do papel do Estado foi posta em toda a sua magnitude na prática, como uma questão de acção imediata, ainda mais, de acção das massas, todos os socialistas-revolucionários e todos os mencheviques, sem excepção, caíram, imediata e completamente, na teoria pequeno-burguesa da "conciliação" das classes pelo "Estado". Inúmeras resoluções e artigos de políticos desses dois partidos estão profundamente impregnados dessa teoria pequeno-burguesa e oportunista da "conciliação". Que o Estado seja o órgão de dominação de uma dada classe que não pode conciliar-se com a sua antípoda (a classe adversa), é o que a democracia pequeno-burguesa é incapaz de compreender. A posição perante o Estado é uma das provas mais evidentes de que os nossos socialistas-revolucionários e os nossos mencheviques não são socialistas, como nós, os bolcheviques, sempre demonstramos, mas democratas pequeno-burgueses com fraseologia pseudo-socialista.
Já em Kautsky, a deformação do marxismo é muito mais subtil. "Teoricamente", não nega que o Estado seja o órgão de dominação de classe, nem que as contradições de classe sejam inconciliáveis. Mas, omite ou obscurece o seguinte: se o Estado é o produto da inconciliabilidade das contradições de classe, se é um poder colocado acima da sociedade e “da qual se torna cada vez mais estranho", é claro que a libertação da classe oprimida é impossível sem uma revolução violenta e sem a supressão do aparelho de poder do Estado, criado pela classe dominante e no qual se materializa o seu carácter de "estranheza". Esta conclusão teoricamente clara por si mesma, tirou-a Marx, com inteira precisão, como adiante veremos, da análise histórica concreta das tarefas da revolução. E é precisamente esta conclusão que Kautsky "esqueceu" e desvirtuou, como demonstraremos detalhadamente no decurso da nossa exposição.
2. Destacamentos especiais de homens armados, prisões, etc.
...“Em contraposição à ancestral organização em clãs – continua Engels – o Estado difere, em primeiro lugar, pelos termos em que os cidadãos são organizados por territórios”...
Esta organização parece-nos "natural", mas precisou de uma luta de grande fôlego contra a antiga organização em clãs ou tribal.
..."O segundo traço característico do Estado é a instituição de um poder público que já não corresponde directamente à população e que se organiza como força armada. Esse poder público separado é indispensável, porque a organização espontânea da população em armas se tornou impossível desde que a sociedade se dividiu em classes... Esse poder público existe em todos os Estados. Compreende não só homens armados, como também elementos materiais, prisões e instituições coercivas de toda espécie, que a sociedade patriarcal (clã) não conheceu".
Engels desenvolve a noção dessa "força" que se chama Estado, força proveniente da sociedade, mas superior a ela e que dela se afasta cada vez mais. Em que consiste, principalmente, essa força? Em destacamentos de homens armados que dispõem de prisões, etc.
Temos o direito de falar em destacamentos de homens armados, porque o poder público próprio a cada Estado "já não corresponde directamente" à população armada, isto é, à sua "organização espontânea em armas".
Como todos os grandes pensadores revolucionários, Engels esforça-se por atrair a atenção dos trabalhadores conscientes para o que a medíocre pequena burguesia dominante considera menos digno de atenção, mais banal, consagrado por preconceitos não apenas resistentes, mas, pode-se dizer, petrificados. O exército permanente e a polícia são os principais instrumentos do poder governamental. Mas, poderia ser de outra forma?
Para a grande maioria dos europeus do fim do século XIX, aos quais Engels se dirige e que não viveram nem observaram de perto nenhuma grande revolução, não poderia ser de outra forma. Para eles era completamente incompreensível o que fosse uma "organização espontânea da população em armas". À questão de saber de onde vem a necessidade de corpos especiais de homens armados (polícia, exército permanente), separados da sociedade e superiores a ela, os filisteus da Europa ocidental e da Rússia respondem, muito naturalmente, a essa pergunta, com uma ou duas frases colhidas em Spencer ou em Mikhailovsky, sobre a complexidade crescente da vida social, a diferenciação das funções sociais, etc.
Essas alegações parecem "científicas" e tranquilizam admiravelmente o bom público, obscurecendo o principal, o essencial: a cisão da sociedade em classes irreconciliavelmente inimigas.
Se essa cisão não existisse, a "organização espontânea da população em armas" distinguir-se-ia, certamente, pela complexidade, pela elevada técnica, etc., da organização primitiva de um bando de macacos armados de cacetes, da dos homens primitivos ou da dos homens associados em clãs, mas seria possível.
É, porém, impossível, porque a sociedade civilizada está dividida em classes hostis e irreconciliáveis cujo armamento "espontâneo" provocaria a luta armada. Forma-se o Estado; cria-se uma força especial, criam-se corpos armados, e cada revolução, destruindo o aparelho governamental, põe em evidência como a classe dominante se empenha em reconstituir, ao seu serviço, corpos de homens armados, e como a classe oprimida se empenha em criar uma nova organização do mesmo género, para pô-la ao serviço, não dos exploradores, mas dos explorados.
Na passagem citada, Engels coloca teoricamente a questão que, na prática, qualquer grande revolução põe diante de nós concretamente e na escala da acção de massas, ou seja a questão das relações entre os destacamentos "especiais" de homens armados e a "organização espontânea da população em armas". Veremos como esta questão é ilustrada concretamente pelas experiências das revoluções europeias e russas.
Mas, voltemos à exposição de Engels.
Ele mostra que, por vezes, o poder público enfraquece, por exemplo, em certas regiões da América do Norte (trata-se – excepção bem rara na sociedade capitalista – das regiões da América do Norte nas quais, antes do período imperialista, predominava o colono livre) mas, em geral, o poder público aumenta: …”Este poder público reforça-se na medida em que se agravam internamente os antagonismos de classe e os Estados contíguos se tornam mais fortes e mais populosos. Basta considerar a Europa actual, onde a luta de classes e a competição por conquistas têm aumentado o poder público a um tal grau que este ameaça absorver toda a sociedade e até o próprio Estado”.
Essas linhas foram escritas, quando muito, pouco depois de 1890. O último prefácio de Engels tem a data de 16 de Junho de 1891. A evolução para o imperialismo, caracterizada pela dominação absoluta dos trusts, pela omnipotência dos grandes bancos, pela política colonial em grande escala, etc., mal começava na França e era ainda mais fraca na América e na Alemanha. Desde então, a "competição por conquistas" deu um passo gigantesco, a ponto de o globo terrestre, mais ou menos em 1910, achar-se definitivamente partilhado entre os "conquistadores rivais", isto é, entre as grandes potências espoliadoras. Os armamentos terrestres e marítimos aumentaram em enormes proporções e a guerra de rapina de 1914-1917, que devia acarretar a hegemonia universal da Inglaterra ou da Alemanha, para repartir o despojo, levou ao limiar da catástrofe devido à "absorção" de todas as forças sociais pela voracidade do poder Estatal.
Engels soube, já em 1891, denunciar a "competição por conquistas" como um dos principais traços, características da política externa das grandes potências, ao passo que os malandrins do social-chauvinismo, em 1914-1917, depois dessa rivalidade ter centuplicado e gerado a guerra imperialista, disfarçam a defesa dos interesses espoliadores da "sua" burguesia com frases sobre a "defesa nacional", a "defesa da República e da Revolução", etc.!
3. O Estado, Instrumento de Exploração da Classe Oprimida
Para manter um poder público particular colocado acima da sociedade, são necessários impostos e dívida pública.
“Investidos do poder público e do direito de cobrança dos impostos – escreve Engels – os funcionários, considerados como órgãos da sociedade, são colocados acima da sociedade. O respeito livre, voluntário, de que eram cercados os órgãos da sociedade patriarcal (do clã) já não lhes bastaria, mesmo que pudessem adquiri-lo”... Fazem-se leis sobre a "santidade" e "inviolabilidade" dos funcionários. "O mais insignificante agente de polícia" tem mais "autoridade" que os representantes do clã; mas em contrapartida o chefe militar de um país civilizado só pode invejar o mais velho do clã pelo “respeito voluntário” que o cercava na sociedade patriarcal.
Surge, assim colocada, a questão da situação privilegiada dos funcionários como órgãos do poder do Estado. O ponto essencial é este: o que é que os coloca acima da sociedade? Veremos como esta questão teórica foi resolvida praticamente pela Comuna de Paris em 1871, e obscurecida por Kautsky, em 1912, de um ponto de vista reaccionário.
“Como o Estado nasceu da necessidade de refrear os antagonismos de classes, resulta, em princípio, que, no próprio conflito, o Estado é sempre o Estado da classe mais poderosa e que, de classe economicamente dominante, se torna, também graças a ele, na classe politicamente dominante e adquire, desse modo, novos meios de oprimir e explorar a classe dominada…”
Não só o Estado antigo e o Estado feudal foram órgãos de exploração dos escravos e dos servos: também …”o Estado representativo moderno é um instrumento de exploração do trabalho assalariado pelo capital. Há, no entanto, períodos excepcionais em que as classes em luta atingem tal equilíbrio de forças, que o poder público adquire momentaneamente certa independência em relação às mesmas e se torna uma espécie de árbitro entre elas…”
Tais foram a monarquia absoluta dos séculos XVII e XVIII, o bonapartismo do primeiro e do segundo Império na França, e Bismarck na Alemanha.
Tal é, acrescentamos nós, o governo de Kerensky na Rússia republicana, após iniciar a perseguição ao proletariado revolucionário, no momento em que, devido à liderança dos democratas pequeno-burgueses, os Sovietes tornaram-se já impotentes enquanto a burguesia ainda não é suficientemente forte para os dissolver sem cerimónia.
"Na República democrática" – continua Engels – "a riqueza exerce o poder indirectamente, mas com maior segurança", primeiro pela "corrupção pura e simples dos funcionários" (América), depois pela "aliança entre o Governo e a Bolsa" (França e América).
Actualmente, o imperialismo e a dominância dos Bancos têm "desenvolvido", com uma arte requintada, em todas as repúblicas democráticas, esses dois meios de manter e exercer a omnipotência da riqueza. Se, por exemplo, nos primeiros meses da República democrática na Rússia, em plena lua-de-mel, por assim dizer, do casamento dos socialistas – socialistas-revolucionários e mencheviques – com a burguesia dentro do governo de coligação, o sr. Paltchinski sabotou todas as medidas propostas para parar os capitalistas e para restringir os seus abusos, na sua fixação na pilhagem do tesouro público através dos fornecimentos militares; se, em seguida, o sr. Paltchinski, saído do ministério (e substituído, naturalmente, por outro Paltchinski igualzinho a si), se vê "gratificado" pelos capitalistas com uma boa sinecura rendendo cento e vinte mil rublos por ano, que significa isso? Corrupção directa ou indirecta? Aliança do governo com os sindicatos patronais ou "apenas" relações de amizade? Qual é o papel desempenhado pelos Tchernov, Tseretelli, Avksentiev e Skobelev? São aliados "directos" ou apenas indirectos dos milionários dilapidadores dos dinheiros públicos?
Outra razão pela qual a omnipotência da "riqueza" é melhor assegurada numa república democrática, é, nesse regime, não depender de defeitos dos mecanismos políticos ou de invólucros políticos defeituosos do capitalismo. A república democrática é a melhor forma política possível do capitalismo e, por conseguinte, uma vez apreendida essa forma ideal (através dos Paltchinski, Tchernov, Tseretelli e C.ª), consolida o poder de maneira tão sólida, tão segura, que nenhuma mudança de pessoas, instituições ou partidos, na república democrática burguesa, é susceptível de abalar esse poder.
É preciso notar ainda, que Engels chama ao sufrágio universal arma de dominação da burguesia. O sufrágio universal, diz ele, considerando, manifestamente, a longa experiência da social-democracia alemã, é: ”…o índice que permite medir a maturidade da classe operária. Não pode ser e não será mais que isso no Estado actual.”
Os democratas pequeno-burgueses, do género dos nossos socialistas-revolucionários e mencheviques, e os seus irmãos, os social-chauvinistas e oportunistas da Europa ocidental, esperam, precisamente, "mais alguma coisa" do sufrágio universal. Partilham e fazem o povo partilhar da falsa concepção de que o sufrágio universal, "no Estado actual", é capaz de manifestar verdadeiramente a vontade da maioria dos trabalhadores e garantir-lhe a concretização.
Não podemos senão notar aqui essa falsa concepção e salientar que a declaração clara, precisa e concreta de Engels é desvirtuada a cada passo na propaganda e na agitação dos partidos socialistas "oficiais", isto é, oportunistas. Demonstraremos mais amplamente toda a falsidade da ideia que Engels aqui repudia, desenvolvendo mais adiante as teorias de Marx e Engels sobre o Estado "actual".
Na sua obra mais popular, Engels resume nestes termos a sua teoria:
"O Estado, por conseguinte, não existiu sempre. Houve sociedades que passaram sem ele e que não tinham a menor noção do Estado nem do poder do Estado. Num certo grau do desenvolvimento económico, ligado necessariamente à divisão da sociedade em classes, essa divisão fez do Estado uma necessidade. Presentemente, marchamos a passos largos para um tal desenvolvimento da produção, que a existência dessas classes não só deixa de ser uma necessidade, como se toma mesmo um obstáculo à produção. As classes desaparecerão tão inelutavelmente como apareceram. Ao mesmo tempo que as classes desaparecerem, desaparecerá, inevitavelmente, o Estado. A sociedade reorganizando a produção sobre a base da associação livre e igual de todos os produtores, enviará a máquina do Estado para o lugar que lhe convém: o museu de antiguidades, ao lado da roda de fiar e do machado de bronze".
Não se encontra, com frequência, esta citação na literatura de propaganda da social-democracia contemporânea. E quando alguém reproduz este trecho, fá-lo, em geral, como quem se curva diante de um ídolo, como quem faz um acto de veneração oficial a Engels, sem a menor intenção de reflectir sobre o amplo e profundo significado revolucionário de "enviar a máquina do Estado para o museu de antiguidades". A maior parte das vezes, parece que nem sequer se compreende o que Engels entende por máquina do Estado.
4. O "Desvanecimento" do Estado e a Revolução Violenta
As palavras de Engels sobre o "desvanecimento" do Estado gozam de tal celebridade, são tão frequentemente citadas, põem tão bem em relevo o fundo da falsificação oportunista do marxismo, que é necessário examiná-las detalhadamente. Citaremos toda a passagem de onde são extraídas:
“O proletariado apodera-se da força do Estado e começa por converter os meios de produção em propriedade do Estado. Mas, por esse meio, ele próprio se destrói como proletariado, abole todas as distinções e antagonismos de classes e, simultaneamente, também o Estado, enquanto tal. A antiga sociedade, que se movia através dos antagonismos de classe, tinha necessidade do Estado, isto é, de uma organização da classe exploradora, em cada época, para manter as condições exteriores de produção e, principalmente, para manter pela força a classe explorada nas condições de opressão exigidas pelo modo de produção existente (escravidão, servidão, trabalho assalariado). O Estado era o representante oficial de toda a sociedade, a sua síntese num corpo visível, mas só o era como Estado da própria classe que representava, em cada época, toda a sociedade: Estado dos cidadãos proprietários de escravos, na antiguidade; Estado da nobreza feudal, na Idade Média; e Estado da burguesia, nos nossos dias. Mas, quando o Estado se torna, finalmente, representante efectivo da sociedade inteira, torna-se supérfluo. Uma vez que não haja nenhuma classe social a oprimir; uma vez que desapareçam, juntamente com a dominação de classe e com a luta pela existência individual, engendradas pela actual anarquia da produção, as colisões e os excessos que daí resultam, não haverá mais nada a reprimir, e uma força especial de repressão, um Estado, deixa de ser necessária.
O primeiro acto pelo qual o Estado se manifesta realmente como representante de toda a sociedade – a posse dos meios de produção em nome da sociedade – é, ao mesmo tempo, o último acto próprio do Estado. A intervenção do Estado nas relações sociais vai-se tornando supérflua domínio a domínio e entra em letargia. O governo das pessoas é substituído pela administração das coisas e pela direcção do processo de produção. O Estado não é "abolido”, desvanece. É desse ponto de vista que se deve apreciar a palavra de ordem de "Estado livre do povo", tanto no seu interesse passageiro para a agitação, como na sua definitiva insuficiência científica; é, igualmente, desse ponto de vista que se deve apreciar a reivindicação dos chamados anarquistas, pretendendo que o Estado seja abolido de um dia para o outro.” (Anti-Düring, A Subversão da Ciência do Senhor Eugen Düring, pp 301-03, 3.ª ed. alemã)
Sem receio de erro, pode-se dizer que, de todo esse raciocínio de Engels de uma notável riqueza de pensamento, só resta, nos partidos socialistas de hoje, como verdadeira aquisição do pensamento socialista a tese de que o Estado, segundo Marx, "desvanece", contrariamente à doutrina anarquista da "abolição" do Estado. Amputar assim o marxismo é reduzi-lo ao oportunismo, pois que, depois de uma tal "interpretação" não fica senão a concepção de uma transformação lenta, equilibrada, progressiva, sem sobressalto nem tempestade, sem revolução. Falar de "desvanecimento" do Estado desta forma, na concepção corrente, vulgarizada no seio das massas, equivale, indubitavelmente, a obscurecer, senão mesmo a repudiar, a revolução.
No entanto, tal "interpretação" não passa da mais grosseira deformação do marxismo em proveito exclusivo da burguesia, deformação baseada teoricamente na omissão das principais circunstâncias e considerações indicadas, nas conclusões de Engels, que acabámos de citar por inteiro.
1.º Logo no início do seu raciocínio, Engels diz que, ao tomar o poder, o proletariado, "por esse meio, abole o Estado, enquanto tal". "Não se costuma" aprofundar o que isso significa. Em geral, despreza-se inteiramente esse pensamento ou vê-se nele uma espécie de "fraqueza hegeliana" de Engels. Na realidade, essas palavras significam, em síntese, a experiência de uma das maiores revoluções proletárias, a experiência da Comuna de Paris de 1871, de que falaremos mais detalhadamente no lugar que lhe compete. De facto, Engels fala da "abolição" do Estado burguês pela revolução proletária, ao passo que as suas palavras sobre o "desvanecimento" até à extinção do Estado se referem aos vestígios do Estado proletário que subsistem depois da revolução socialista. Segundo Engels, o Estado burguês não "desvanece"; é "aniquilado" pelo proletariado na revolução. O que se vai extinguindo, depois dessa revolução, é o Estado proletário ou semi-Estado.
2.º O Estado é "uma força especial de repressão". Esta notável e profunda definição de Engels é de absoluta clareza. Dela resulta que essa "força especial de repressão" do proletariado pela burguesia, de milhões de trabalhadores por um punhado de ricos, deve ser substituída por uma "força especial de repressão" da burguesia pelo proletariado (a ditadura do proletariado). É nisso que consiste a "abolição do Estado, enquanto tal". É nisso que consiste o "acto" de posse dos meios de produção em nome da sociedade. Consequentemente, essa substituição de uma "força especial" (a da burguesia) por outra "força especial" (a do proletariado) não pode equivaler a um "desvanecimento" da primeira.
3.º Esse "desvanecimento" ou, para empregar a expressão com mais relevo e cor, essa "letargia", coloca-a Engels, claramente, no período posterior ao "acto de posse dos meios de produção pelo Estado, em nome da sociedade", posterior, portanto, à revolução socialista. Todos nós sabemos que a forma política do "Estado" é, então, a plena democracia. Mas, nenhum dos oportunistas, que impudentemente desvirtuam o marxismo, concebe que Engels se refira à "letargia" e ao " desvanecimento " da democracia. À primeira vista, parece estranho; mas, só é incompreensível para quem não reflecte que a democracia é também Estado e, por conseguinte, desaparecerá quando o Estado desaparecer. Só a Revolução pode "abolir" o Estado burguês. O Estado em geral, isto é, a plena democracia, só pode "desvanecer".
4.º Ao enunciar a sua famosa tese: "O Estado desvanece", Engels apressou-se a precisar que essa fórmula é dirigida contra os oportunistas e contra os anarquistas. E coloca em primeiro plano o corolário que atinge os oportunistas.
Pode-se apostar que, em dez mil pessoas que leram essas linhas ou ouviram falar do "desvanecimento" do Estado, nove mil e novecentos e noventa ignoram absolutamente ou esquecem que Engels não dirigia as conclusões da sua tese apenas contra os anarquistas. E, nas dez restantes, há seguramente nove que não sabem o que é o "Estado livre do povo" e a razão porque, atacando-o, Engels ataca os oportunistas. É assim que se escreve a história! É assim que se acomoda paulatinamente a grande doutrina revolucionária ao filistinismo reinante. A conclusão contra os anarquistas foi mil vezes repetida, vulgarizada e inculcada nos cérebros da forma mais simplificada, adquirindo a tenacidade de um preconceito. Mas a conclusão contra os oportunistas foi deixada na sombra e "esquecida"!
O "Estado livre do povo" foi uma exigência do programa e uma palavra de ordem corrente dos social-democratas alemães nos anos setenta. Essa palavra de ordem não tem qualquer conteúdo político, excepto descrever de forma pomposa e filistina o conceito de democracia. Para Engels "justificava-se momentaneamente" o seu emprego na agitação, na medida em que essa palavra de ordem aludia de forma legalmente admissível à república democrática. Mas era uma palavra de ordem oportunista, pois não só embelezava a democracia burguesa, como também levava à incompreensão da crítica socialista ao Estado em geral. Nós somos partidários de que a república democrática é a melhor forma de governo para o proletariado sob o regime capitalista, mas andaríamos mal esquecendo que a escravidão assalariada é o quinhão do povo mesmo na república burguesa mais democrática.
Além do mais qualquer Estado é uma "força especial de repressão" da classe oprimida. Consequentemente um Estado, seja ele qual for, não poderá ser nem livre nem do povo. Marx e Engels explicaram isso repetidamente aos seus camaradas de partido nos anos setenta.
5.º A mesma obra de Engels, cujo raciocínio sobre o desvanecimento do Estado todos recordam, contém também um outro sobre a importância da revolução violenta. A apreciação do seu papel histórico torna-se, na obra de Engels, uma verdadeira apologia da revolução violenta. Disso ninguém "se lembra". É moda, nos partidos socialistas contemporâneos, não falar nem pensar nunca no assunto; na propaganda e na agitação quotidianas entre as massas, essa ideia não desempenha qualquer papel. E, no entanto, está indissoluvelmente ligada à ideia do "desvanecimento" do Estado, com a qual forma um todo harmonioso.
Eis a argumentação de Engels:
"…que a violência desempenha ainda outro papel na história [diferente de ser uma fonte do mal], um papel revolucionário; que é, segundo Marx, a parteira de toda velha sociedade, grávida de uma sociedade nova; que é a arma com a qual as forças do movimento social quebram as formas políticas petrificadas e mortas – sobre isso nem uma palavra do sr. Dühring.
Que só no meio de suspiros e gemidos admite ser possível a necessidade da violência para inverter o regime económico da exploração – infelizmente! Pois a violência, diz ele, desmoraliza os que a ela recorrem!
E isso, a despeito do grande surto moral e intelectual que nasce de qualquer revolução vitoriosa!
E isso na Alemanha, onde o choque violento, ao qual o povo poderia ser constrangido, teria, ao menos, a vantagem de destruir o servilismo que penetrou na consciência nacional na sequência das humilhações da Guerra dos Trinta Anos!
E é essa mentalidade de pregador, sem arrojo, sem sabor e sem força, que pretendia impor ao partido mais revolucionário que a história conhece!".(Anti-Dühring , p. 193 da 3.ª edição. alemã, fim do cap. IV, 2ª parte.)
Como conciliar na mesma doutrina esta apologia da revolução violenta, insistentemente repetida por Engels aos social-democratas alemães de 1878 a 1895, isto é, até à sua morte, com a teoria do "desvanecimento" do Estado?
Normalmente as duas são conciliadas ecleticamente por processos empíricos ou sofísticos, tomando arbitrariamente (ou para agradar aos poderosos do dia) ora a ideia da revolução violenta, ora a do desvanecimento; e em noventa e nove por cento das vezes, senão mais, é colocada em primeiro plano justamente esta última. A dialéctica cede lugar ao ecletismo: com relação ao marxismo, é a coisa mais frequente e mais espalhada na literatura social-democrata oficial dos nossos dias. Não é uma novidade, certamente, pois o ecletismo já substituiu a dialéctica na história da filosofia clássica grega. Na falsificação oportunista do marxismo, a falsificação eclética da dialéctica engana as massas com mais facilidade, dá-lhes aparente satisfação, parecendo ter em conta todas as faces do processo, todas as formas de desenvolvimento, todas as influências contraditórias, etc., quando, de facto, não tem qualquer ideia coerente e revolucionária do desenvolvimento da sociedade.
Já dissemos acima, e demonstraremos mais detalhadamente a seguir, que a doutrina de Marx e Engels sobre o carácter inevitável da revolução violenta se refere ao Estado burguês. Este só pode, em geral, ceder lugar ao Estado proletário (ditadura do proletariado) por meio de uma revolução violenta e não por meio de um "desvanecimento". A apologia que Engels faz da revolução violenta está plenamente de acordo com as numerosas declarações de Marx (lembremo-nos da conclusão de’”A Miséria da Filosofia” e do “Manifesto do Partido Comunista” proclamando orgulhosamente e abertamente, que a revolução violenta é inelutável; lembremo-nos da crítica ao programa de Gotha de 1875, quase trinta anos mais tarde, em que Marx flagela desapiedadamente o oportunismo desse programa). Esta apologia não tem nada de "entusiasmo", nada de declamatório, nem é um movimento de espírito polémico. A essência de toda a doutrina de Marx e de Engels está na necessidade de inocular sistematicamente as massas com esta ideia de revolução violenta. É a omissão dessa propaganda, dessa agitação, que marca com mais relevo a traição doutrinária das tendências social-chauvinistas e kautskistas hoje predominantes.
A substituição do Estado burguês pelo Estado proletário não é possível sem revolução violenta. A eliminação do Estado proletário, isto é, a eliminação de todo e qualquer Estado, só é possível pelo "desvanecimento".
Marx e Engels desenvolveram estas ideias de forma detalhada e concreta, estudando separadamente cada situação revolucionária e analisando as lições fornecidas pela experiência de cada revolução em particular. É esta parte da sua doutrina, evidentemente, a parte mais importante, que passamos a analisar.
"esquerdismo" - a doença infantil do com
a catastrofe iminente e os meios de a co
a classe operária e o neo-malthusianismo
as possibilidades de êxito da guerra
as tarefas dos destacamentos do exército
carta ao comité de combate junto do comi
chile: lição para os revolucionários de
discurso radiodifundido em 3 de julho de
do socialismo utópico ao socialismo cien
editorial do bandeira vermelha nº1
imperialismo - estádio supremo do capita
jornadas sangrentas em moscovo
karl marx (breve esboço biográfico...
manifesto do partido comunista
mensagem do comité central à liga dos co
o exército revolucionário e o governo re
o materialismo dialéctico e o materialis
os ensinamentos da insurreição de moscov
para uma linha política revolucionária
pensar agir e viver como revolucionários
reorganizar o partido revolucionário do
sobre o que aconteceu com o rei de portu