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A explicação mais ampla desta questão é dada por Marx na “Crítica do Programa de Gotha” (carta a Wilhelm Bracke, de 5 de Maio de 1875, publicada apenas em 1891 na “Neue Zeit”, vol. lX, fasc. 1, e de que apareceu uma edição russa). A parte polémica dessa obra notável, que contém a crítica do lassallianismo, obscureceu a parte positiva, ou seja, a análise da relação entre o desenvolvimento do comunismo e o desvanecimento do Estado.
1. A Abordagem por Marx desta Questão
Comparando superficialmente a carta de Marx a Bracke, de 5 de Maio de 1875, com a carta de Engels a Bebel, de 28 de Março do mesmo ano, anteriormente examinada, poderia parecer que Marx era muito mais "estatista" que Engels e que a diferença de ideias entre os dois sobre o Estado seria muito importante.
Engels sugere a Bebel que deixe de tagarelar a respeito do Estado e que bana completamente do programa a palavra "Estado", para substituí-la pela palavra "Comuna"; Engels chega a dizer que a Comuna já não é um Estado no sentido próprio da palavra. Ao contrário, Marx fala do "Estado na sociedade comunista futura" parecendo admitir assim a necessidade do Estado, mesmo sob o comunismo.
Mas esta visão é um erro profundo. Um estudo mais atento mostra que as ideias de Marx e de Engels a respeito do Estado e do seu desvanecimento são absolutamente idênticas, e que Marx, nessa expressão, se refere precisamente a um Estado em desvanecimento.
Não se trata, evidentemente, de marcar um prazo para a conclusão futura desse "desvanecimento" tanto mais que constitui um processo de longa duração. A divergência aparente entre Marx e Engels explica-se pela diferença dos assuntos tratados e dos objectivos em mira. Engels propõe-se demonstrar a Bebel, de modo palpável e incisivo, em traços largos, todo o absurdo dos preconceitos correntes (partilhados em elevado grau por Lassalle) a respeito do Estado. Marx apenas toca de passagem nessa questão e interessa-se por outro assunto: o desenvolvimento da sociedade comunista.
Toda a teoria de Marx é a teoria da evolução – na sua forma mais lógica, mais completa, mais reflectida e mais substancial – aplicada ao capitalismo contemporâneo. Assim Marx tinha de considerar a aplicação dessa teoria tanto à falência iminente do capitalismo como ao futuro desenvolvimento do comunismo futuro.
Em que facto pode basear-se a colocação da problema do futuro desenvolvimento do comunismo futuro?
No facto de que o comunismo nasce do capitalismo por via do desenvolvimento histórico, de que é obra de uma força social engendrada pelo capitalismo. Marx não se deixa seduzir pela utopia, não procura inutilmente adivinhar o que não se pode saber. Põe a questão do comunismo como um naturalista poria a do desenvolvimento de uma nova espécie biológica, uma vez conhecidas a sua origem e a linha específica do seu desenvolvimento.
Marx começa por desfazer a confusão trazida pelo programa de Gotha na questão das relações entre o Estado e a sociedade.
…“A sociedade actual" – escreve ele – “é a sociedade capitalista, que existe em todos os países civilizados, mais ou menos expurgada de elementos medievais, mais ou menos modificada pela evolução histórica particular a cada país, mais ou menos desenvolvida. O ‘Estado actual’, pelo contrário, muda com cada fronteira. No império prusso-alemão, é diverso do que é na Suíça, e na Inglaterra, diverso do que é nos Estados Unidos. O "Estado actual" é, pois, uma ficção.
No entanto, a despeito da diversidade de formas, os diferentes Estados dos diferentes países civilizados têm todos, em comum, o facto de repousarem no campo da moderna sociedade burguesa, diferenciando-se apenas pelo seu maior ou menor desenvolvimento, do ponto de vista capitalista. Certos traços essenciais são-lhes por isso comuns. É nesse sentido que se pode falar em ‘Estado actual’ em contraste com o futuro, no qual a sociedade burguesa, que, actualmente, lhe serve de raiz, cessa de existir.
Vem em seguida a questão de saber que transformação sofrerá o Estado numa sociedade comunista. Por outras palavras: que funções sociais se manterão análogas às funções do Estado? Essa questão só pode ser resolvida pela ciência, e não é associando de mil maneiras diferentes a palavra ‘povo’ com a palavra ‘Estado’ que se fará avançar o problema uma polegada que seja”…
Ridicularizando, assim, toda a conversa sobre o "Estado popular", Marx precisa a questão e, de algum modo, previne que não é possível resolvê-la cientificamente senão sobre evidências científicas solidamente estabelecidas.
O primeiro ponto solidamente estabelecido pela teoria da evolução e, mais geralmente, pela ciência – ponto esquecido pelos utópicos e, nos nossos dias, pelos oportunistas que a revolução socialista amedronta – é que, entre o capitalismo e o comunismo, deverá intercalar-se, necessariamente, um período de transição histórica.
2. A Transição do Capitalismo para o Comunismo
…”Entre a sociedade capitalista e a sociedade comunista” – continua Marx – “situa-se o período de transformação revolucionária da primeira na segunda. Este período corresponde a um período de transição política, em que o Estado não pode ser outra coisa senão a ditadura revolucionária do proletariado”...
Essa conclusão de Marx repousa sobre a análise do papel desempenhado pelo proletariado na sociedade capitalista, dos dados sobre a evolução dessa sociedade e da incompatibilidade de interesses entre o proletariado e a burguesia.
Antigamente, a questão era posta assim: para conseguir emancipar-se, o proletariado deve derrubar a burguesia, apoderar-se do poder político e estabelecer a sua ditadura revolucionária.
Agora, a questão põe-se de modo um pouco diferente: a passagem da sociedade capitalista para a sociedade comunista é impossível sem um "período de transição política" em que o Estado não pode ser outra coisa senão a ditadura revolucionária do proletariado.
Quais as relações dessa ditadura com a democracia? Já vimos que o “Manifesto do Partido Comunista” põe apenas lado a lado os conceitos, "organização do proletariado em classe dominante" e "conquista da democracia". Inspirando-nos em tudo o que precede, podemos determinar de forma mais precisa as transformações da democracia durante a transição do capitalismo para o comunismo.
Numa sociedade capitalista, no caso mais favorável do seu desenvolvimento, temos uma democracia mais ou menos completa na República democrática. Mas, essa democracia está sempre confinada aos estreitos limites da exploração capitalista e, consequentemente, ela nunca passa de uma democracia para uma minoria, para as classes possuidoras, para os ricos. A liberdade na sociedade capitalista permanece o que sempre foi desde as Repúblicas da Grécia antiga: a liberdade dos senhores de escravos. Os escravos assalariados de hoje, em consequência da exploração capitalista, vivem por tal forma esmagados pelas necessidades e pela miséria, que “não têm interesse na democracia" e “na política" e, no curso normal e pacífico das coisas, a maioria da população é excluída da vida política e social.
O exemplo da Alemanha confirma-o com rara evidência. Com efeito, a legalidade constitucional manteve-se com uma constância e uma duração surpreendentes durante perto de meio século (1871/1914), e a social-democracia, durante esse período, soube, muito mais que em qualquer outro lugar "tirar proveito dessa legalidade” e organizar em partido politico um número de trabalhadores muito mais considerável que em qualquer outra parte do mundo.
E qual é, nesse país, a proporção de escravos assalariados politicamente conscientes e activos, proporção que é a mais elevada numa sociedade capitalista? De quinze milhões de operários assalariados só um milhão pertence ao Partido social-democrata! De quinze milhões só três milhões são sindicalizados!
A democracia para uma ínfima minoria, a democracia para os ricos – tal é a democracia da sociedade capitalista. Se observarmos mais de perto o seu mecanismo, veremos em toda parte e nos "menores", aparentemente menores, detalhes da legislação eleitoral (censo domiciliário, exclusão das mulheres, etc.), assim como no funcionamento das assembleias representativas, nos obstáculos reais ao direito de reunião (os edifícios públicos não são para os "maltrapilhos"), na estrutura puramente capitalista da imprensa diária, etc., etc., restrições à democracia. Estas restrições, excepções, exclusões e obstáculos para os pobres, parecem insignificantes, principalmente para aqueles que nunca conheceram a necessidade e que nunca conviveram com as classes oprimidas nem conheceram de perto a sua vida (e neste caso estão nove décimos, senão noventa e nove centésimos dos publicistas e dos políticos burgueses); mas, totalizadas, essas restrições eliminam os pobres da política e da participação activa na democracia.
Marx captou magnificamente este traço essencial da democracia capitalista, ao dizer, na sua análise da experiência da Comuna: os oprimidos são autorizados, a decidir, uma vez a cada poucos anos, qual, entre os membros da classe dominante, será o que, no parlamento, os representará e esmagará!
Mas, a evolução progressiva desta democracia capitalista, – inevitavelmente mesquinha, sorrateira na exclusão dos pobres e, portanto, intrinsecamente hipócrita e enganosa, – não leva, de forma simples, directa e tranquila "a uma democracia cada vez mais perfeita", como nos querem fazer crer os professores liberais e os oportunistas pequeno-burgueses. Não; o progresso, isto é, a evolução para o comunismo, opera-se através da ditadura do proletariado, e não pode ser de outro modo, pois não há outro meio senão a ditadura, outro agente senão o proletariado para quebrar a resistência dos capitalistas exploradores.
Mas a ditadura do proletariado, isto é, a organização de vanguarda dos oprimidos em classe dominante para o esmagamento dos opressores, não pode limitar-se, pura e simplesmente, a um alargamento da democracia. Ao mesmo tempo que produz uma considerável ampliação da democracia, que se torna pela primeira vez a democracia dos pobres e do povo, e não apenas para os ricos, a ditadura do proletariado traz uma série de restrições à liberdade dos opressores, dos exploradores, dos capitalistas. A sua actividade deve ser reprimida para libertar a humanidade da escravidão assalariada e a sua resistência deve ser quebrada pela força; ora, é claro que onde há repressão e onde há violência, não há liberdade nem democracia.
Engels disse-o perfeitamente, na sua carta a Bebel, ao escrever, como o leitor se recorda: "o proletariado usa o Estado, não no interesse da liberdade, mas sim para triunfar sobre o adversário, momento em que se poderá falar em liberdade, pois o Estado como tal deixará de existir.”
Democracia para a imensa maioria do povo e repressão pela força da actividade dos exploradores, dos opressores do povo, por outras palavras, a sua exclusão da democracia – eis a mudança da democracia durante a transição do capitalismo ao comunismo.
Só na sociedade comunista, quando a resistência dos capitalistas estiver perfeitamente quebrada, quando os capitalistas tiverem desaparecido e já não houver classes, (isto é, quando não houver mais distinções entre os membros da sociedade em relação aos meios sociais de produção), só então é que "o Estado deixará de existir e se poderá falar de liberdade". Só então se tornará possível e será realizada uma democracia verdadeiramente completa sem qualquer excepção. Só então a democracia começará a desvanecer pela simples circunstância de que, desembaraçados da escravidão capitalista, dos horrores, da selvajaria, da insânia, da ignomínia sem nome da exploração capitalista, os indivíduos se habituarão pouco a pouco a observar as regras elementares da vida social, de todos conhecidas, repetidas e há milénios reproduzidas, sem violência, sem constrangimento, sem subordinação, sem esse aparelho especial de coação que se chama Estado.
A expressão "o Estado desvanece" é muito feliz por que exprime ao mesmo tempo a lentidão do processo e a sua espontaneidade. Só a força do hábito pode produzir tal efeito, e sem dúvida há-de produzi-lo, como é provado pelos milhões de vezes que se pode observar a facilidade com que os homens se habituam a cumprir as regras indispensáveis da vida social, quando não há exploração, nem o que desperte indignação, evoque o protesto e a revolta, e crie a necessidade de repressão.
Em resumo: a sociedade capitalista não nos oferece senão uma democracia mutilada, miserável, falsificada, uma democracia só para os ricos, para a minoria. A ditadura do proletariado, o período de transição para o comunismo, instituirá pela primeira vez uma democracia para o povo, para a maioria, esmagando ao mesmo tempo, impiedosamente, a minoria de exploradores. Só o comunismo está em condições de realizar uma democracia realmente perfeita, e, quanto mais perfeita for, mais depressa se tornará supérflua e por si mesma definhará.
Por outras palavras: no capitalismo, temos o Estado no sentido próprio da palavra, isto é, uma máquina especialmente destinada ao esmagamento de uma classe por outra, da maioria pela minoria. É claro que tal só é possível com uma repressão sistemática, de crueldade e ferocidade extremas, da maioria de explorados por uma minoria de exploradores, o que exige o mar de sangue que a humanidade atravessa no seu caminhar em estado de escravidão, servidão e salariado.
Seguidamente, na transição do capitalismo para o comunismo, a repressão é ainda necessária, mas da minoria de exploradores pela maioria de explorados. Um aparelho especial de repressão, um "Estado", é ainda necessário, mas um Estado transitório, já não um Estado propriamente dito, visto que o esmagamento da minoria de exploradores pela maioria dos escravos assalariados de ontem é comparativamente tão fácil, simples e natural, que custará à humanidade muito menos sangue do que a repressão das revoltas de escravos, de servos e de operários assalariados. E é compatível com a expansão da democracia à maioria esmagadora da população que comece a desaparecer a necessidade de um aparelho especial de coação. Os exploradores não estão, naturalmente, em condições de oprimir o povo sem disporem de um aparelho especial, muito complexo, mas o povo pode coagir os exploradores sem “aparelho especial”, apenas com organizações de massas armadas (tais como os Sovietes de deputados operários e soldados – diremos nós, antecipando).
Finalmente, só o comunismo torna o Estado inteiramente supérfluo, porque não há ninguém a ser coagido – “ninguém” no sentido de classe, no sentido de luta sistemática contra uma certa parte da população. Não somos utópicos e não negamos a possibilidade e a fatalidade de excessos individuais, como não negamos a necessidade de reprimir esses excessos. Mas para isso, por um lado, não há necessidade de um aparelho especial de repressão; o povo armado, por si mesmo, se encarregará dessa tarefa, tão simplesmente, tão facilmente, como uma multidão civilizada, mesmo na sociedade actual, aparta uma briga ou evita um estupro. E por outro, sabemos que a principal causa dos excessos que constituem as infracções às regras da vida social é a exploração das massas, condenadas à miséria e às privações. Uma vez suprimida essa causa principal, os excessos começarão infalivelmente a "desvanecer". Não sabemos com que presteza, nem com que gradação, mas sabemos que irão desvanecer. E o Estado desvanecerá com eles.
Marx, sem cair na utopia, indicou mais detalhadamente o que, agora, é possível definir sobre esse futuro: a diferença entre as fases (níveis, etapas), uma inferior e outra superior, da sociedade comunista.
3. A Primeira Fase da Sociedade Comunista
Na “Crítica do Programa de Gotha”, Marx refuta detalhadamente a ideia de Lassalle, segundo a qual o operário, sob o regime socialista, receberá o produto "intacto", o "produto integral" do seu trabalho. Marx demonstra que, da totalidade do produto social, é preciso deduzir um fundo de reserva, financiar a ampliação da produção, compensar o “desgaste” das máquinas, etc., e, ainda, de um fundo de bens para os custos de administração, das escolas, dos hospitais, dos lares de velhos, etc.
Em lugar da fórmula imprecisa, obscura e geral de Lassalle ("dar ao operário o produto integral do seu trabalho"), Marx faz o cálculo sóbrio do que uma sociedade socialista terá exactamente de gerir. Ele faz a análise concreta das condições de vida numa sociedade liberta do capitalismo, e expressa-se assim:
“Do que se trata aqui” (quando se analisa o programa do Partido dos Trabalhadores) “ não é de uma sociedade comunista desenvolvida na base que lhe é própria, mas, ao contrário, da sociedade tal como surge da sociedade capitalista e que, por conseguinte, em todos os aspectos, económico, moral e intelectual, está ainda marcada pela antiga sociedade de cujo ventre emerge.”
É esta sociedade comunista, que acaba de nascer do ventre do capitalismo, marcada por todos os estigmas da velha sociedade, que constitui para Marx a "primeira" fase, a fase inferior do comunismo.
Os meios de produção deixam de ser, nesse momento, propriedade privada de indivíduos. Passam a pertencer à sociedade inteira. Cada membro da sociedade executa uma certa parte do trabalho socialmente necessário e recebe um certificado constatando que efectuou essa certa quantidade de trabalho. Com esse certificado, ele recebe, nos armazéns públicos, a quantidade correspondente de produtos. Feito o desconto da quantidade de trabalho destinada ao fundo social, cada operário recebe da sociedade tanto quanto lhe deu.
Reina uma "igualdade" aparente.
Mas, quando Lassalle se refere a esta ordem social (habitualmente chamada socialismo e que Marx chama de primeira fase do comunismo), e diz que há nela uma "justa distribuição" porque existe um "direito igual aos produtos do trabalho", ele engana-se e Marx explica porquê.
“Direito igual" – dizia Marx – é o que, realmente, temos aqui, mas é ainda um "direito burguês", o qual, como todo o direito, pressupõe desigualdade. O direito consiste na aplicação de uma regra única a diferentes pessoas, que, de facto, não são idênticas nem iguais e, por consequência, o "direito igual" equivale a uma violação da igualdade e a uma injustiça. Com efeito, cada um recebe, por uma parte igual de trabalho social, uma parte igual da produção social (fora as deduções acima mencionadas).
Ora, os indivíduos não são iguais: um é mais forte, outro mais fraco; um é casado, outro não; um tem mais filhos, outro menos, etc.
…”Com um desempenho igual no trabalho” – conclui Marx – “e, por consequência, com igualdade na repartição do fundo social de consumo, um recebe, efectivamente, mais do que os outros, um será mais rico do que os outros, etc. Para evitar todas essas dificuldades o direito deveria ser, não igual, mas desigual”…
A primeira fase do comunismo ainda não pode, pois, realizar a justiça e a igualdade: subsistem as diferenças de riqueza, diferenças injustas; mas, o que não será possível subsistir é a exploração do homem pelo homem, porque será impossível alguém apoderar-se dos meios de produção, das fábricas, das máquinas, da terra, ou outros, como propriedade privada. Destruindo a fórmula confusa e pequeno-burguesa de Lassalle, sobre a "igualdade" e a "justiça" em geral, Marx mostra o curso do desenvolvimento da sociedade comunista, forçada, no início, a destruir apenas a "injustiça" da apropriação privada dos meios de produção, mas incapaz de destruir, ao mesmo tempo, a injustiça que consiste na distribuição dos “bens de consumo conforme o trabalho” (e não conforme as necessidades).
Os economistas vulgares, e entre eles os professores burgueses, inclusive o "nosso" Tugan, acusam continuamente os socialistas de se esquecerem da desigualdade dos homens e "sonharem" com a supressão dessa desigualdade. Mas essas censuras, como se vê, só mostram a extrema ignorância dos ideólogos burgueses.
Não só Marx leva em conta, escrupulosamente, essa desigualdade inevitável, como ainda tem em conta o facto de a conversão dos meios de produção em propriedade comum da sociedade (o "socialismo", no sentido tradicional da palavra) não suprime, por si só, os vícios de distribuição e de desigualdade do "direito burguês", que continua a predominar enquanto os produtos forem distribuidos "conforme o trabalho".
…”Mas estes defeitos – continua Marx – são inevitáveis na primeira fase da sociedade comunista, tal como sai, depois de um longo e doloroso parto, da sociedade capitalista. O direito não pode nunca estar num nível mais elevado do que a estrutura económica e o associado desenvolvimento cultural da sociedade”...
Assim, na primeira fase da sociedade comunista (normalmente chamada socialismo), o "direito burguês" não é totalmente abolido, só o é parcialmente na medida em que a revolução económica foi realizada, isto é, apenas no que respeita aos meios de produção. O "direito burguês" reconhece a propriedade privada dos indivíduos. O socialismo faz dela propriedade comum. É nesta medida – e somente nesta medida – que o "direito burguês" é abolido.
No entanto, ele subsiste na outra sua função, subsiste como um regulador (determinante) da distribuição dos bens e do trabalho entre os membros da sociedade. "Quem não trabalha, não come", este princípio socialista já está realizado; "para soma igual de trabalho, soma igual de produtos" – também este princípio socialista já está realizado. Mas este ainda não é o comunismo que, ao contrário do "direito burguês", a pessoas desiguais e em troca de quantidades desiguais (realmente desiguais) de trabalho, atribui quantidades iguais de produtos.
Este é um "defeito", diz Marx, mas é inevitável na primeira fase do comunismo, pois, a não ser que se caia na utopia, não se pode pensar que, mal o capitalismo seja derrubado, os homens fiquem, de um dia para o outro, a saber trabalhar para a sociedade sem quaisquer normas jurídicas. A abolição do capitalismo não cria, imediatamente, as premissas económicas para tal mudança.
Ora, não há outras normas senão as do "direito burguês". É por isso que subsiste a necessidade de um Estado que, embora salvaguardando a propriedade comum dos meios de produção, conserva a igualdade do trabalho e a igualdade da distribuição de bens.
O Estado morre na medida em que não há mais capitalistas, em que não há classes e em que, por conseguinte, não há qualquer classe a reprimir.
Mas, o Estado ainda não sucumbiu, pois ainda resta o "direito burguês" que consagra a desigualdade de facto. Para que o Estado desvaneça completamente, é necessário o advento do comunismo completo.
4. A Fase Superior da Sociedade Comunista
Marx continua:
.,,”Numa fase superior da sociedade comunista, quando tiver desaparecido a escravizante subordinação dos indivíduos à divisão do trabalho; e, com ela, tiverem desaparecido os antagonismos entre o trabalho manual e o trabalho intelectual; quando o trabalho se tiver tornado não só um meio de vida, mas também a primeira necessidade da existência; quando, com o desenvolvimento dos indivíduos em todos os sentidos, as forças produtivas forem crescendo, e todas as fontes da riqueza pública jorrarem abundantemente, só então, o estreito horizonte do direito burguês será completamente ultrapassado e a sociedade poderá inscrever na sua bandeira: «De cada um conforme as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades» ”.
Agora é que podemos apreciar toda a justeza das observações de Engels quando cobre de impiedosos sarcasmos o absurdo emparelhamento das palavras "liberdade" e "Estado". Enquanto existir Estado, não há liberdade; quando reinar a liberdade, não haverá Estado.
A condição económica da extinção completa do Estado é o comunismo elevado a tal grau de desenvolvimento que toda oposição entre o trabalho intelectual e o trabalho físico desaparece, desaparecendo, portanto, uma das principais fontes de desigualdade social contemporânea, fonte que a simples conversão dos meios de produção em propriedade social, a simples expropriação dos capitalistas é incapaz de eliminar imediatamente.
Esta expropriação tornará possível um enorme desenvolvimento das forças produtivas. Vendo, desde já, quanto o capitalismo entrava esse desenvolvimento, e o progresso que se poderia alcançar com base nas tecnologias modernas já conhecidas, podemos dizer, com plena confiança, que a expropriação dos capitalistas originará inevitavelmente um prodigioso impulso às forças produtivas da sociedade humana. Mas, qual será o ritmo desse movimento, em que momento romperá ele com a divisão do trabalho, abolirá a oposição entre o trabalho intelectual e o trabalho físico e fará do trabalho "a primeira necessidade da existência", não sabemos nem podemos saber.
Assim, não temos o direito de falar senão da inevitabilidade do desvanecimento do Estado, acentuando que a duração desse processo depende do ritmo do desenvolvimento da fase superior do comunismo, deixando em aberto a questão do momento e das formas específicas desse desvanecimento pois não temos dados que nos permitam resolvê-la.
O Estado poderá desaparecer completamente quando a sociedade tiver realizado o princípio: "de cada um conforme as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades", isto é, quando se estiver tão habituado a observar as regras primordiais da vida social e o trabalho se tiver tornado tão produtivo, que toda a gente trabalhará voluntariamente, de acordo com as suas capacidades. "O estreito horizonte do direito burguês” com os seus cálculos à Shylock – "por acaso, não terei trabalhado mais meia hora que o meu vizinho? O meu vizinho não terá recebido salário maior do que o meu?" – esse estreito horizonte será então ultrapassado. Na distribuição dos produtos não será necessário que a sociedade regule a parte que cabe a cada um; cada um tomará livremente "de acordo com as suas necessidades ".
Do ponto de vista burguês, é fácil chamar de "pura utopia" a um tal regime social e escarnecer malignamente dos socialistas que prometem a cada um o direito de receber da sociedade, sem qualquer controlo do seu trabalho, tanto quanto quiser de trufas, de automóveis, de pianos, etc. É com ironias desta espécie que ainda hoje sai de apuros a maioria dos "sábios" burgueses que, com isso, só demonstram a sua ignorância e a sua defesa interesseira do capitalismo.
A sua ignorância, sim, pois que nem um só socialista se lembrou de "profetizar" o advento da fase superior do comunismo e quando os grandes teóricos do comunismo a prevêem, supõem uma produtividade do trabalho muito diferente da de hoje, assim como um homem muito diferente do que hoje é capaz de – como os seminaristas de Pornialovski – “apenas por diversão”, desperdiçar a riqueza pública e exigir o impossível.
Até essa fase "superior" do comunismo, os socialistas reclamam, da sociedade e do Estado, o controlo rigoroso do trabalho fornecido e do consumo; mas, esse controlo deve começar pela expropriação dos capitalistas e ser exercido por um Estado de operários armados e não por um Estado de burocratas.
A defesa interesseira do capitalismo pelos ideólogos burgueses (e sua camarilha, género Tseretelli, Tchernov & Cia.) consiste precisamente em substituir, por discussões e frases sobre um futuro longínquo, a questão essencial da política de hoje: a expropriação dos capitalistas, a transformação de todos os cidadãos em trabalhadores, empregados de um grande "sindicato", ou seja, o Estado, e a inteira subordinação de todo o trabalho desse sindicato a um Estado verdadeiramente democrático, o Estado dos Sovietes de Deputados Operários e Soldados.
No fundo, quando um sábio professor, e atrás dele um filisteu, e com eles Tchernov e Tseretelli, denunciam as insensatas utopias e as promessas demagógicas dos bolcheviques, e declaram impossível a "instauração" do socialismo, o que eles têm em vista é precisamente essa fase superior do comunismo, “coisa” que ninguém nunca prometeu, nem sequer alguém sonhou em "instaurar", pela razão de que isso é impossível.
E aqui chegamos à questão da distinção científica entre o socialismo e o comunismo, questão tocada por Engels na passagem precedentemente citada sobre a incorrecção do nome de "social-democrata". Politicamente, a diferença entre a primeira e a segunda fase do comunismo tornar-se-á, com o tempo, sem dúvida, considerável, mas, actualmente, em regime capitalista, seria ridículo fazer caso dela, e só alguns anarquistas o fazem (se é que ainda existem, entre os anarquistas, pessoas a quem nada ensinou a metamorfose, "Plekhanoviana", dos Kropotkine, dos Grave, dos Cornelissen e outras “estrelas” do anarquismo em social-chauvinistas ou em anarco-trincheiristas, conforme os chamou Gue, um dos poucos anarquistas que conservaram a honra e a consciência).
Mas a distinção científica entre o socialismo e o comunismo é clara. Ao que se costuma chamar socialismo, Marx chamou a "primeira" fase ou fase inferior da sociedade comunista. Na medida em que os meios de produção se tornam propriedade comum, pode aplicar-se a palavra "comunismo", não esquecendo que não é um comunismo completo. O grande mérito da exposição de Marx está na fidelidade que mantém à dialéctica materialista, à teoria da evolução, considerando que o comunismo se desenvolve a partir do capitalismo. Em lugar de escolástica, “inventora” de definições e de estéreis questões de palavras (o que é o socialismo? o que é o comunismo?), Marx traz-nos a análise do que se poderia chamar graus da maturidade económica do comunismo. Na sua primeira fase, no seu primeiro estágio, o comunismo não pode estar maduro economicamente, completamente livre das tradições ou dos vestígios do capitalismo. Daí, o facto interessante de o comunismo, na sua primeira fase, manter o "estreito horizonte do direito burguês". É claro, o direito burguês, no que concerne à distribuição de bens de consumo, pressupõe, evidentemente, um Estado burguês, pois o direito não é nada sem um aparelho capaz de impor a observação de suas leis.
Acontece que, durante um certo tempo sob o comunismo, não só o direito burguês subsiste, como também subsiste o Estado burguês – sem burguesia!
Isto pode parecer um paradoxo ou, simplesmente, um enigma dialéctico, de que o marxismo é frequentemente acusado por pessoas que nunca se deram ao trabalho de estudar, por pouco que fosse, a sua substância extraordinariamente profunda.
Mas, a vida mostra a cada passo, na natureza e na sociedade, que os vestígios do velho subsistem no novo. Não foi arbitrariamente que Marx introduziu um pouco de "direito burguês" no comunismo; ele não fez mais do que constatar o que, económica e politicamente, é inevitável numa sociedade saída do ventre do capitalismo.
A democracia tem uma enorme importância na luta da classe operária pela sua emancipação. Mas a democracia não é o limite que não pode ser ultrapassado, e sim um passo no caminho do feudalismo ao capitalismo e do capitalismo ao comunismo.
Democracia significa igualdade. A grande importância da luta do proletariado pela igualdade e da igualdade como um lema, é evidente se interpretada no sentido da abolição das classes. Mas, democracia quer dizer apenas igualdade formal. E, logo após a realização da igualdade de todos os membros da sociedade em relação à propriedade dos meios de produção, isto é, a igualdade do trabalho e dos salários, erguer-se-á, fatalmente, perante a humanidade, o problema da passagem da igualdade formal à igualdade real baseada no princípio: "de cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades". Quais as etapas, quais as medidas concretas pelas quais a humanidade atingirá esse objectivo supremo, não sabemos nem podemos saber. Mas, o que importa é perceber a imensa mentira contida na ideia burguesa de que o socialismo é alguma coisa sem vida, rígida, estabelecida de uma vez por todas, quando, na realidade, só o socialismo porá em marcha, em ritmo acelerado, primeiro a maioria, e depois, a população inteira, em todos os domínios da vida colectiva e da vida privada.
A democracia é uma das formas, uma das variantes do Estado. E, portanto, como todos os Estados, usa de forma organizada e sistemática a coação sobre os homens. Isto, por um lado. Mas, por outro, significa o reconhecimento formal da igualdade entre os cidadãos, do direito igual de todos de determinar a forma do Estado e de administrá-lo. Disto resulta que, em certa fase do desenvolvimento da democracia, a unidade da classe primeiramente obtida na luta pelo salário se transporta para a luta revolucionária contra o capitalismo – o que permite ao proletariado e lhe fornece os meios para quebrar, reduzir a migalhas, aniquilar a máquina burguesa do Estado, mesmo a máquina republicano-burguesa, o exército permanente, a polícia, o funcionalismo, e de a substituir por uma máquina mais democrática, mas que nem por isso é menos uma máquina de Estado, constituída pelas massas operárias armadas, preparando a organização de todo o povo em milícias.
Aqui, "a quantidade transforma-se em qualidade": chegada a tal grau, a democracia sai dos quadros da sociedade burguesa e começa a evoluir para o socialismo. Se todos os homens tomarem realmente parte na gestão do Estado, o capitalismo não poderá manter-se. Ora, o desenvolvimento do capitalismo cria as condições para que "todos” possam, de facto, tomar parte na gestão do Estado. Essas condições são, entre outras, a alfabetização universal, já realizada na maior parte dos países capitalistas avançados, e depois, "a educação e a disciplina" de milhões de operários pelo imenso aparelho, complexo e já socializado, dos correios, dos transportes ferroviários, das grandes fábricas, do grande comércio, dos bancos, etc., etc.
Nestas condições económicas, é perfeitamente possível, após derrubar os capitalistas e os funcionários, substituí-los, de um dia para o outro – no controlo da produção e da distribuição, na contabilização do trabalho e dos produtos – pelos operários armados, pelo povo inteiro em armas. (É preciso não confundir a questão do controlo e da contabilização com a questão do pessoal técnico, engenheiros, agrónomos, etc.: esses senhores trabalham, hoje, sob as ordens dos capitalistas; irão trabalhar melhor ainda, amanhã, sob as ordens dos operários armados).
Contabilização e controlo, eis o que é essencialmente necessário ao funcionamento “adequado” da sociedade comunista na sua primeira fase. Todos os cidadãos se transformam em empregados assalariados do Estado, que por sua vez, é os operários armados. Todos os cidadãos se tornam empregados e operários de um só “truste” estatal do país. A questão é que todos trabalhem e recebam igualmente. Essas operações de contabilização e controlo foram antecipadamente simplificadas ao extremo pelo capitalismo, que as reduziu a formalidades de fiscalização e registo, a operações de aritmética e à emissão de recibos, tudo tarefas acessíveis a quem saiba ler e escrever.
Quando a maioria do povo efectuar, por si só e em toda a parte, essa contabilização e esse controlo sobre os capitalistas (transformados então em empregados) e sobre a nobreza intelectual que conservar os seus hábitos capitalistas, esse controlo tornar-se-á verdadeiramente universal, geral, popular, e ninguém saberá "onde meter-se", para lhe escapar.
A sociedade inteira terá que se tornar um serviço único e uma única grande fábrica, com igualdade de trabalho e de remuneração.
Mas essa disciplina de "oficina", que, uma vez vencidos os capitalistas e derrubados os exploradores, o proletariado estenderá a toda a sociedade, não é, de forma alguma, o nosso ideal ou o nosso objectivo final, mas apenas uma etapa necessária para limpar radicalmente a sociedade das vilanias e das abominações da exploração capitalista e permitir-lhe o ulterior progresso.
A partir do momento em que todos os membros da sociedade, ou, pelo menos, a sua imensa maioria, se tenham educado na administração do Estado, tomado a direcção das coisas e organizado o controlo, tanto sobre a ínfima minoria de capitalistas como sobre os pequenos senhores desejosos de conservar os seus ares de capitalistas e trabalhadores corrompidos pelo capitalismo, a partir desse momento, começa a desaparecer a necessidade de qualquer administração. Quanto mais perfeita for a democracia, tanto mais próximo estará o dia em que se tornará supérflua. Quanto mais democrático for o “Estado”, constituído por operários armados e deixando, por isso mesmo, de ser "o Estado no sentido próprio da palavra", tanto mais rápido será também o desvanecimento de qualquer forma de Estado.
Quando todos já tiverem aprendido a administrar e administrar realmente, directamente, a produção social, quando todos procederem à contabilização e executarem o controlo sobre os parasitas, os filhos de ricos, os malandros e outros "guardiães das tradições capitalistas", será incrivelmente difícil, para não dizer impossível, escapar a essa contabilização e a esse controlo, e qualquer tentativa nesse sentido provocará, provavelmente, um castigo tão pronto e tão exemplar (pois os operários armados são gente prática e não intelectuais sentimentais, e não gostam que se brinque com eles), que a necessidade de observar as regras simples e fundamentais da sociedade humana se tornará, rapidamente, um hábito.
Então a porta se abrirá, de par em par, para a fase superior da sociedade comunista e, por conseguinte, para o desvanecimento completo do Estado.
(Cap. VI)
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