de Marx, Engels, Lenine, Estaline, Mao Tsé-tung e outros autores
Sábado, 19 de Janeiro de 2013
A catástrofe iminente e os meios de a conjurar - 1

A FOME APROXIMA-SE

Uma catástrofe inevitável começa a abater-se sobre a Rússia. Os transportes ferroviários encontram-se num estado de incrível desorganização, que cresce sem cessar. Os caminhos-de-ferro acabarão por paralisar. A afluência de matérias-primas e de carvão às fábricas interromper-se-á. Cessará o fornecimento de trigo. Os capitalistas sabotam (deterioram, suspendem, sapam, entravam) deliberada e tenazmente a produção, na esperança de que uma catástrofe inaudita determine a bancarrota da república e da democracia, dos Sovietes e, em geral, das associações operárias e camponesas, facilitando desse modo o retorno à monarquia e à restauração da omnipotência da burguesia e dos latifundiários.

Uma catástrofe de proporções sem precedentes e a fome ameaçam-nos inexoravelmente. Já todos os periódicos se debruçaram sobre esta questão uma infinidade de vezes. Os partidos e os Sovietes de deputados operários, soldados e camponeses votaram um número infinito de resoluções nas quais se reconhece que a catástrofe é inevitável, que está iminente, que se deve manter contra ela uma luta desesperada, que é necessário que o povo faça «esforços heróicos» para conjurar o desastre, etc.

Toda a gente o diz. Toda a gente o reconhece. Toda a gente o constata.

Mas não se toma nenhuma medida.

Levamos meio ano de revolução. A catástrofe está hoje mais próxima do que nunca. O desemprego em massa abate-se sobre nós. Imaginem: no país não há mercadorias, o país perece por falta de víveres, por falta de mão-de-obra, existindo trigo e matérias-primas em quantidades suficientes: e num país que se encontra nestas condições, num momento tão crítico, vemos as grandes massas no desemprego forçado! Quer-se melhor prova do que este meio ano de revolução (que alguns classificam de grande revolução, mas que, por agora, seria mais justo chamar de revolução apodrecida), com uma república democrática, com uma grande profusão de associações, organismos e instituições que se intitulam orgulhosamente de «democráticas e revolucionárias», no qual não se fez na realidade nada de sério, absolutamente nada, contra a catástrofe, contra a fome? Aproximamo-nos a passos largos do desastre, pois a guerra não dá tréguas e a desorganização originada por ela em todos os domínios da vida do povo se torna cada vez mais profunda.

Contudo, basta um mínimo de reflexão para nos convencermos de que existem meios necessários para combater a catástrofe e a fome, de que as medidas a tomar são perfeitamente claras e simples, perfeitamente realizáveis, plenamente acessíveis às forças do povo, e que se estas medidas não se tomam é única e exclusivamente porque a sua concretização lesaria os lucros fabulosos de um punhado de latifundiários parasitas.

É um facto. Pode assegurar-se que não encontrareis um único discurso ou um único artigo, seja qual for a tendência do periódico, uma única resolução, seja qual for a assembleia ou a instituição em que tenha sido votada, onde não se exponha de um modo claro e concreto a medida fundamental para lutar contra a catástrofe e contra a fome e evitá-las. Essa medida é o controlo, a vigilância, a contabilidade, o recenseamento, a regulamentação pelo Estado, uma distribuição racional da mão-de-obra na produção e distribuição dos produtos, a economia das forças populares, a eliminação de todos os gastos supérfluos de energia e sua economia. Controlo, vigilância, recenseamento: eis as medidas principais na luta contra a catástrofe e contra a fome. Isto é algo indiscutível e admitido por toda a gente. Mas é isto precisamente que ninguém faz com medo de atentar contra a omnipotência dos latifundiários e capitalistas, contra os seus lucros desmedidos e inauditos, escandalosos, obtidos pelo aproveitamento da carestia de vida e pelos fornecimentos ao exército (e hoje, directa ou indirectamente, quase todos «trabalham» para a guerra) lucros que toda a gente conhece, que toda a gente observa e a propósito dos quais todos se lamentam e escandalizam.

Contudo, o Estado nada fez de sério, absolutamente nada, para implantar o controlo, a vigilância e o recenseamento.

INACÇÃO TOTAL DO GOVERNO

Por todo o lado se assiste a uma sabotagem sistemática, inflexível a todo o controlo, a toda a vigilância e a todo o recenseamento, perante qualquer tentativa de organização por parte do Estado. É necessário ser incrivelmente ingénuo para não compreender – ou profundamente hipócrita para dizer que não compreende – de onde parte essa sabotagem e de que meios se serve. Porque essa sabotagem exercida pelos banqueiros e capitalistas, essa torpedagem por eles exercida sobre todo o controlo, vigilância e recenseamento, adapta-se às formas estatais da república democrática, à existência das instituições «democráticas e revolucionárias». Os senhores capitalistas assimilaram perfeitamente essa verdade que todos os partidários de socialismo científico reconhecem nas palavras, mas que os mencheviques e os socialistas-revolucionários procuram esquecer tão depressa como os seus amigos ocupam as cómodas poltronas dos ministérios, os subsecretariados, etc.. Essa verdade diz que a essência económica da exploração capitalista não varia, no mínimo, com a substituição das formas monárquicas de governo pelas democrático-republicanas, e que, por conseguinte basta alterar a forma de luta pela intangibilidade e santidade dos lucros capitalistas para salvaguardá-los sob a república democrática com a mesma eficácia do que sob a monarquia absoluta.

A sabotagem económica, novíssima, democrática-republicana de todo o controlo, vigilância e recenseamento, consiste no facto dos capitalistas reconhecerem verbalmente «de todo o coração» o «princípio» do controlo e da necessidade (como o fazem também, por certo, todos os mencheviques e socialistas-revolucionários), mas porfiarem para que se implante «paulatinamente», de um modo regular, segundo uma «regulamentação estabelecida pelo Estado». Na realidade, por trás destas belas palavras oculta-se o torpedeamento do controlo, a sua redução a nada, uma ficção; oculta-se a comédia do controlo, o adiamento de todas as medidas eficazes e de verdadeira importância prática, a criação de organismos de controlo inexplicavelmente complicados, pesados, inertes e burocráticos, controlados todos eles pelos capitalistas e que não fazem nem podem fazer absolutamente nada.

Para não fazer afirmações gratuitas invocaremos o testemunho dos mencheviques e socialistas-revolucionários, quer dizer, desses mesmos elementos que nos primeiros seis meses de revolução tiveram a maioria nos Sovietes, desses mesmos elementos que participaram no «governo de coligação» e que, por isso mesmo, são politicamente responsáveis perante os operários e camponeses russos da sua conivência com os capitalistas e de que todo o controlo tenha sido iludido por estes.

O órgão oficial mais credenciado de entre os chamados «autorizados» (não se riam!) da democracia «revolucionária» - a Izvestia do CEC (quer dizer, do Comité Executivo Central do Congresso dos Sovietes de deputados operários, soldados e camponeses de toda a Rússia), publica no seu número 164 de 7 de Setembro de 1917, uma deliberação emanada de um organismo especial criado com fins de controlo por esses mencheviques e socialistas-revolucionários e que se encontra inteiramente nas suas mãos. Esse organismo especial é a «Secção de Economia» do Comité Central. Nessa deliberação reconhece-se oficialmente como um facto «a absoluta passividade dos organismos centrais adjuntos ao governo em regulamentar a vida económica».

Existirá testemunho mais eloquente da bancarrota política dos mencheviques e dos socialistas-revolucionários que este, subscrito pelos próprios mencheviques e socialistas-revolucionários?

A necessidade de regulamentar a vida económica foi já reconhecida sob o czarismo, tendo-se criado vários organismos para esse fim. Mesmo sob o czarismo a desorganização económica fazia progressos cada vez maiores, chegando a alcançar proporções monstruosas. Logo se reconheceu que era missão do governo republicano, do governo revolucionário, adoptar medidas sérias e decididas para acabar com a desorganização. O governo de «coligação» ao ser formado com o concurso dos mencheviques e socialistas-revolucionários prometeu ao povo, na sua soleníssima declaração de 6 de Maio, que se estabeleceria o controlo e a regulamentação estatal. Os Tsereteli e os Tchernov, e com eles todos os líderes mencheviques e socialistas-revolucionários, juraram e tornaram a jurar que eles eram não só responsáveis pela gestão do governo, como também os «órgãos com plenos poderes da democracia revolucionária», por eles dirigidos, vigiariam e fiscalizariam praticamente a actividade do governo.

Desde 6 de Maio que se passaram quatro meses, quatro longos meses nos quais a Rússia sacrificou centenas de milhares de soldados na absurda «ofensiva» imperialista e em que a desorganização e a catástrofe se aproximaram a passos largos, apesar do Verão oferecer possibilidades extraordinárias para fazer muita coisa, tanto nos transportes fluviais, como na agricultura, nas explorações geológicas, etc., etc., e ao cabo destes quatro meses, os mencheviques e os socialistas-revolucionários vêem-se obrigados a confessar oficialmente a «absoluta passividade» dos organismos de controlo adjuntos ao governo!

E hoje (escrevemos estas linhas precisamente em vésperas da abertura da Conferência Democrática convocada para 12 de Setembro), estes mesmos mencheviques e socialistas-revolucionários declamam com um ar sério de homens de Estado, que ainda se pode remediar a situação, substituindo a coligação com os cadetes por uma coligação com os figurões da indústria e do comércio, com os Kit Kitich, com os Riabushinski, os Bublikov, Tereschenko e C.ª!

Como explicar – perguntamos – esta assombrosa cegueira dos mencheviques e socialistas-revolucionários? Teremos de considerar que, como estadistas, são meninos de mama, que pela sua extrema candura e grande desatino não sabem o que fazem e erram de boa-fé? Ou será que as abundantes poltronas de ministros, subsecretários, governadores-gerais, comissários, etc., etc., têm a virtude de produzir uma cegueira especial, a cegueira «política»?

AS MEDIDAS DE CONTROLO SÃO DE TODOS CONHECIDAS E FACILMENTE APLICÁVEIS

Pode-se perguntar: os meios e as medidas de controlo não serão algo extraordinariamente complicado, difícil, nunca experimentado e até desconhecido? Não serão as dilações devidas, mau grado o esforço até mais não poder a investigar, a estudar e a descobrir as medidas e os meios de controlo que já leva meio ano aos estadistas do Partido Democrata Constitucional, da classe dos industriais e comerciantes, e dos partidos socialista-revolucionário e menchevique e sem que tenham podido chegar a uma resolução do problema, à sua extraordinária dificuldade?

De modo algum! O que se pretende é «colocar uma venda nos olhos» e apresentar as coisas dessa forma ao mujique inculto, ignorante e intimidado e ao bom burguês que em tudo acredita e nada aprofunda. A realidade é que até o czarismo, até o «velho regime», ao criar os comités da indústria de guerra conhecia a medida fundamental, o meio principal e a via para exercer o controlo: agrupar a população segundo as suas profissões, segundo o objectivo e o ramo da sua actividade, etc.. Mas o czarismo temia a associação de população, e por isso recorria a todos os meios para limitar e entravar artificialmente essa via e esse meio de controlo, tão universalmente conhecido e tão fácil de aplicar.

Todos os Estados beligerantes, que sofrem o peso extraordinário e as calamidades de guerra, que sofrem, em maior ou menor grau, da confusão e da fome, traçaram, fixaram, aplicaram e experimentaram já há muito toda uma série de medidas de controlo, que se reduzem quase todas elas a agrupar a população, a criar ou fomentar associações de toda a espécie vigiadas pelo Estado, nas quais participam os seus representantes, etc.. Estas medidas de controlo são conhecidas de todos, e já se falou e escreveu muito sobre elas; as leis respeitantes ao controlo ditadas pelas potências beligerantes mais adiantadas têm sido traduzidas em russo ou expostas detalhadamente na imprensa do nosso país.

Se se quisesse realmente aplicar o controlo de um modo sério e efectivo, se os seus organismos não se tivessem condenado a si próprios à «passividade» absoluta, com o seu servilismo perante os capitalistas, bastaria ao nosso Estado pegar com unhas e dentes – pois que se possui uma reserva abundante – nas medidas de controlo já conhecidas e aplicadas. O único obstáculo que se levanta nesse caminho, o obstáculo que os democratas constitucionalistas, os socialistas-revolucionários e os mencheviques ocultam ao povo, era e continua a ser o facto de que o controlo colocaria a descoberto os lucros fabulosos dos capitalistas e reduzi-los-ia.

Para esclarecer melhor esta questão importantíssima (que no fundo acaba por ser a questão de todo o governo revolucionário que queira salvar a Rússia da guerra e da fome), enumeraremos e examinaremos separadamente as mais importantes medidas de controlo.

Veremos que a um governo, não intitulado democrático e revolucionário senão por brincadeira, lhe bastaria decretar (ordenar, prescrever), logo na primeira semana da sua gestão, a aplicação das principais medidas de controlo, impor castigos sérios não irrisórios aos capitalistas que pretendessem burlar fraudulentamente essas medidas e convidar a população a vigiar ela própria os capitalistas, a vigiar se eles cumpriam ou não honradamente as disposições acerca do controlo, para que este tivesse sido implantado na Rússia já há muito tempo.

Eis aqui as medidas mais importantes:

1.º -            Fusão de todos os bancos num banco único e o controlo das suas operações pelo Estado, ou a nacionalização dos bancos.

2.º -            Nacionalização dos consórcios capitalistas, quer dizer, das associações monopolistas mais importantes dos capitalistas (consórcios do açúcar, petróleo, carvão, metalurgia, etc.).

3.º -            Abolição do sigilo comercial.

4.º -            Cartelização obrigatória (quer dizer, associação obrigatória) dos industriais, comerciantes e patrões em geral.

5.º -            Organização obrigatória da população em cooperativas de consumo ou fomento e fiscalização dessas organizações

Vejamos agora que importância teria cada uma destas medidas, sempre e quando se implantarem por via democrática e revolucionária.

A NACIONALIZAÇÃO DOS BANCOS

Os bancos constituem, como é sabido, centros da vida económica moderna, os centros nervosos mais importantes de todo o sistema de economia capitalista. Falar de uma «regulamentação da vida económica» e iludir o problema da nacionalização dos bancos significa fazer gala de uma ignorância crassa e enganar a «plebe» com frases pomposas e promessas altissonantes, que de antemão se resolveu não cumprir.

É um absurdo querer controlar a regular o fornecimento de trigo ou, em geral, a produção e a distribuição de produtos, se a par disso não se controlam e regulam as operações bancárias. É algo como lançar-se à caça de uns problemáticos «copekes» e fechar os olhos a milhões. Os bancos modernos estão estreitamente e indissoluvelmente fundidos com o comércio (com o de cereais e com todo o comércio em geral) e com a indústria, que sem «lançar a mão» sobre eles não se pode fazer absolutamente nada de sério, nada «democrático e revolucionário».

Mas será, por ventura, uma operação difícil e complicada esse «lançar a mão» do Estado sobre os bancos? As coisas pintam-se assim habitualmente – pintam-no assim, claro está, os capitalistas e os seus advogados, que são os que saem beneficiados – para assustar os filisteus.

Na realidade, a nacionalização dos bancos, que não priva de um único copek qualquer «proprietário», não representa nenhuma dificuldade, nem de ordem técnica nem de ordem cultural, e se essa medida demora é devido exclusivamente à sórdida cupidez de um insignificante punhado de ricaços. Se se confunde com tanta frequência a nacionalização dos bancos com a confiscação de bens privados, a culpa é da imprensa burguesa que propaga essa confusão para enganar o público.

A propriedade sobre os capitais com que operam os bancos e que se encontram neles, é acreditada por meio de certificados impressos ou manuscritos, aos quais se dá o nome de acções, obrigações, letras de câmbio, recibos, etc.. Com a nacionalização dos bancos, quer dizer, com a fusão de todos os bancos num único banco do Estado, não se anularia nem se modificaria nenhum desses certificados. Quem tivesse quinze rublos na sua caderneta de caixa económica continuaria possuindo os mesmos quinze rublos após a implantação da nacionalização dos bancos, e quem tivesse quinze milhões, continuaria possuindo-os, mesmo depois de tomada essa medida, em forma de acções, obrigações, letras de câmbio, warrants, etc..

Qual é pois a importância da nacionalização dos bancos?

O facto de ser impossível exercer um verdadeiro controlo sobre bancos diferentes e sobre as suas operações (ainda que supondo que se suprimia o sigilo comercial, etc.), pois não se pode vigiar a complexa e astuta destreza a que se recorre ao fazer os balanços, fundar empresas e sucursais fictícias, fazer intervir testas de ferro, etc., etc.. Só a fusão de todos os bancos num banco único, sem que isso implique a mínima modificação nas relações de propriedade, sem que, repita-se, se retire um único copeck a alguém, oferece a possibilidade de implantar um controlo efectivo, desde que, é claro, se implante a par de todas as medidas acima mencionadas. Só nacionalizando-se os bancos se pode conseguir que o Estado saiba onde e como, de onde e quando se deslocaram milhões e milhões. E só este controlo sobre os bancos – centro, eixo principal e mecanismo básico da circulação capitalista – permitiria levar a cabo de facto, e não só em palavras, o controlo de toda a vida económica, da produção e da distribuição dos produtos mais importantes, a «regulamentação da vida económica», que de outro modo será inevitavelmente condenada a ser um lugar comum ministerial para enganar os incautos. Só o controlo das operações bancárias, com a condição de que se concentrem num só banco pertencente ao Estado, permitirá levar a cabo, com a prévia aplicação de outras medidas facilmente aplicáveis, a cobrança do imposto sobre rendimentos sem que haja ocultação de bens e rendimentos, já que, hoje em dia, o imposto sobre rendimentos continua a ser, em grande parte, uma ficção.

Bastaria unicamente decretar a nacionalização dos bancos; de realizá-la encarregar-se-iam os seus próprios directores e empregados. Para tal não é necessário nenhum aparato especial, nem se requerem providências preparatórias especiais por parte do Estado; essa medida pode ser implantada com um simples decreto «de um só golpe», já que o próprio capitalismo, no seu desenvolvimento chegou a criar as letras de câmbio, as acções, as obrigações, etc., encarregando-se de criar a possibilidade económica desta medida. Feito isto, não restaria mais do que unificar a contabilidade; e se o Estado democrático e revolucionário ordenasse que em cada cidade se convocassem imediatamente, por telégrafo, assembleias e, nas províncias, por todo o país, congressos de directores e empregados da banca, com o objectivo de levar a cabo sem demora a fusão de todos os bancos num só Banco do Estado, essa reforma seria realizada no espaço de umas semanas. É evidente que seriam precisamente os directores e os altos empregados que oporiam resistência, que tentariam iludir o Estado, demorar ao máximo as coisas, etc., pois esses cavalheiros, e aqui reside a questão, perderiam posições muito rentáveis e a possibilidade de operar em fraudes muito lucrativas. Mas não existe a menor dificuldade técnica para a fusão dos bancos, se o Poder de estado fosse revolucionário não só em palavras (quer dizer, se não temesse romper com a inércia e com a rotina), se fosse democrático não só em palavras (quer dizer, se trabalhasse no interesse da maioria do povo e não de um punhado de ricaços), bastaria decretar a confiscação dos bens e o encarceramento dos directores, dos conselheiros e dos grandes accionistas como castigo pela menor dilação e por tentativa de ocultar saldos de contas e outros documentos; bastaria, por exemplo, organizar à parte os empregados pobres e premiá-los por todas as fraudes e dilações dos empregados ricos que descobrissem, para que a nacionalização dos bancos avançasse sem choques nem sobressaltos, em menos de nada.

A nacionalização dos bancos traria enormes vantagens a todo o povo, e não aos operários particularmente (pois que os operários pouco têm a ver com os bancos) mas sim à massa camponesa e pequenos industriais. O desenvolvimento do trabalho que isso representaria seria gigantesco, e suponho que o Estado conservasse o mesmo número de empregados da banca que até aqui, ter-se-ia dado um grande passo no sentido de universalizar o uso dos bancos, multiplicar as suas sucursais, tornar acessíveis as suas operações, etc., etc. Seriam precisamente os pequenos proprietários, os camponeses, quem poderiam obter créditos em condições muitíssimo mais fáceis e acessíveis. E o Estado teria pela primeira vez a possibilidade de conhecer, sem que nada pudesse ocultá-las, as operações financeiras mais importantes, logo, possibilidade de controlá-las, a possibilidade de regular a vida económica e, finalmente, a de obter milhões e milhões para as operações do Estado, sem necessidade de abonar «comissões» fabulosas pelos seus «serviços» aos senhores capitalistas. Por isso, e somente por isso, se aprontam a lutar com toda a fúria e por todos os meios contra a nacionalização dos bancos, inventando mil objecções contra esta medida facílima e de grande urgência, todos os capitalistas, todos os professores burgueses, toda a burguesia e todos osmPlekanov, Potressov e C.ª ao seu serviço, apesar de se tratar de uma medida que mesmo do ponto de vista da «defesa nacional», quer dizer, do ponto de vista militar, significaria uma enorme vantagem e reforçaria extraordinariamente a «potência militar» do país.

Poderão objectar-nos: por que motivo, então, países mais avançados como a Alemanha e os Estados Unidos praticam uma excelente «regulamentação da vida económica» sem pensarem sequer na nacionalização dos bancos?

Porque estes dois Estados – respondemos nós –, ainda que um monárquico e outro uma república são ambos Estados não só capitalistas mas também imperialistas. E como tal, levam à prática as reformas de que necessitam por via burocrática reacionária. Mas nós falamos aqui da via democrática e revolucionária.

Esta «pequena diferença» tem uma importância substancial. «Não é costume», geralmente, pensar-se nela. No nosso país (e principalmente entre os socialistas-revolucionários e os mencheviques), as palavras «democracia revolucionária» quase que se converteram num chavão, algo parecido com a expressão «graças a Deus», empregada também por muita gente que não é tão ignorante ao ponto de acreditar em Deus, ou como a de «respeitável cidadão», que se emprega por vezes designando pessoas, inclusive, como os colaboradores de Dien ou de Edinsvo, embora toda a gente saiba que estes periódicos foram fundados e são mantidos pelos capitalistas para defender os interesses dos capitalistas e que, portanto, a colaboração neles daqueles que se chamam socialistas tem muito pouco de «respeitável».

Para quem não empregue as palavras «democracia revolucionária» como uma pomposa frase estereotipada, como uma designação convencional, e queira pensar no que significa ser democrata, ser democrata é ter presente na prática os interesses da maioria e não da minoria do povo; e ser revolucionário significa demolir do modo mais resoluto e implacável tudo o que é nocivo e caduco.

Na América do Norte e na Alemanha, nem os governos nem as classes governantes pretendem ostentar, que se saiba, o título de «democracia revolucionária», que reivindicam para si (e prostituem) os nossos socialistas-revolucionários e mencheviques.

Na Alemanha são quatro, no total, os grandes bancos privados que possuem uma importância nacional; nos Estados Unidos, somente dois. Para os reis financeiros destes bancos é mais fácil, mais cómodo, mais vantajoso associar-se privadamente, secretamente, reacionariamente, e não por meios revolucionários; burocraticamente e não por meios democráticos; subornando funcionários do Estado (pois isto constitui norma geral, tanto nos Estados Unidos como na Alemanha) e mantendo o carácter privado dos bancos justamente para manter o segredo das operações; para poderem continuar a sugar a esse mesmo Estado milhões e milhões de «super-lucros»; para assegurarem o êxito de manipulações financeiras fraudulentas.

Tanto os Estados Unidos como a Alemanha «regulamentam a vida económica» fazendo tudo para criar aos operários (e em parte também aos camponeses) um presídio militar e para os banqueiros um paraíso. Toda a sua regulamentação consiste em «entalar» os operários levando-os até à fome, enquanto que aos capitalistas se lhes garante (secretamente, por via reacionária, burocrática) lucros superiores aos de antes da guerra.

Também para a Rússia imperialista republicana é possível seguir esse caminho, evidentemente que não é outro o abraçado, não só pelos Miliukov e Shingariov, mas também por Kerenski de mãos dadas com Tereschenko, Negrassov, Bernatski, Prokopovistch e C.ª, que também protegem, de um modo burocrático reaccionário, a «intangibilidade» dos bancos e o seu direito sagrado aos lucros fabulosos. Mas falemos a sério, na Rússia republicana regulamentar-se-ia de boa vontade a vida económica através de processos burocráticos e reaccionários, se não fosse tropeçarem «amiúde» com dificuldades derivadas da existência dos «Sovietes», esses Sovietes que o Kornilov número um não conseguiu desbaratar, o que se encarregará de fazer um Kornilov número dois…

Eis a verdade. E esta simples verdade, ainda que amarga, contribuirá ainda mais para esclarecer o povo que as mentiras açucaradas sobre a «nossa» «grande» democracia revolucionária…

 

*   *   *

A nacionalização dos bancos facilitará extraordinariamente a nacionalização simultânea dos seguros, quer dizer, a fusão de todas as companhias de seguros, quer dizer, a fusão de todas as companhias de seguros numa só, a centralização das suas actividades, o seu controlo pelo Estado. Os congressos dos empregados dessas companhias encarregar-se-iam também neste caso de realizar a fusão imediatamente, logo que o Estado democrático e revolucionário a decretasse e ordenasse aos directores dos conselhos de administração e aos grandes accionistas que levassem a cabo essa fusão sem a menor demora e sob a sua inteira responsabilidade pessoal. Os capitalistas investiram nos seguros centenas de milhões. Todo o trabalho é aí efectuado pelos empregados. A fusão das companhias de seguros faria baixar os prémios de seguro, traria enormes vantagens e facilidades para todos os segurados e permitiria aumentar a esfera de actividade destes com o mesmo dispêndio de meios e energias. Não fosse a inércia, a rotina e o egoísmo de um punhado de pessoas colocadas em postos lucrativos, e não haveria absolutamente nada que se opusesse a esta reforma que, aliás, viria reforçar a «capacidade de defesa» do país economizando o trabalho do povo e abrindo, não em palavras mas na prática, sérias possibilidades de «regulamentação da vida económica».

A NACIONALIZAÇÃO DOS CONSÓRCIOS CAPITALISTAS

O capitalismo distingue-se dos antigos sistemas económicos pré-capitalistas por ter criado a mais íntima ligação e a mais estreita interdependência entre os distintos ramos da economia nacional. Se não fosse assim, seria tecnicamente impossível – diga-se de passagem – o mínimo avanço no sentido do socialismo. Com o predomínio dos bancos sobre a produção, o capitalismo moderno elevou ao mais alto grau essa interdependência entre os distintos ramos da economia nacional. Os bancos encontram-se indissoluvelmente interligados com os ramos mais importantes da indústria e do comércio. Isso quer dizer, por um lado, que não é possível nacionalizar só os Bancos sem tomar medidas destinadas a implantar o monopólio do Estado sobre os consórcios comerciais e industriais (o do açúcar, o do carvão, o do ferro, o do petróleo, etc.) sem nacionalizar estes consórcios. Isto quer dizer, por outro lado, que a regulamentação da vida económica, se se leva a cabo seriamente, exige ao mesmo tempo a nacionalização dos bancos e dos consórcios.

Tomemos, por exemplo, o consórcio do açúcar. Este consórcio criou-se já no tempo do czarismo e deu origem a um grande agrupamento capitalista de fábricas magnificamente montadas, e esta associação, penetrada, como é lógico, do espírito mais reacionário e burocrático, garantia aos capitalistas lucros escandalosos, enquanto que isso para os operários e empregados significava a privação absoluta de direitos e um regime de humilhação e de escravidão. Nessa altura o Estado controlava e regulamentava a produção no interesse dos magnates e dos grandes ricaços.

Neste caso bastaria transformar a regulamentação burocrática e reaccionária em revolucionária e democrática através de simples decretos que convocassem um congresso de empregados, engenheiros, directores e accionistas, que implantassem um sistema único de contabilidade, o controlo pelos sindicatos operários, etc.. Isto é a mais simples das coisas e que apesar de tudo não se faz! A república democrática continua respeitando de facto a regulamentação burocrática e reacionária da indústria do açúcar, e tudo continua como dantes! Desperdício do trabalho do povo, estagnação e rotina, enriquecimento dos Bobrinsk e dos Tereschenko. Apelar à iniciativa para a democracia e não para a burocracia dos operários e dos empregados e não dos «reis do açúcar»: eis o que poderia e deveria ter sido feito em alguns dias, de uma só vez, se os socialistas-revolucionários e os mencheviques não tivessem obscurecido a consciência do povo com os seus planos de «coligação» com esses mesmos reis do açúcar, coligação com os ricaços por cuja causa e em virtude da qual a «passividade completa» do governo em relação à regulamentação da vida económica é completamente inevitável.

Debrucemo-nos sobre a indústria do petróleo. Esta indústria encontra-se já «socializada» a uma escala gigantesca pelo desenvolvimento anterior do capitalismo. Dois reis do petróleo manejam milhões e centenas de milhões, dedicando-se a passar recibos e a embolsar lucros fabulosos num «negócio» que está hoje, de facto, técnica e socialmente, organizado à escala nacional e é dirigido por centenas e milhares de empregados, engenheiros, etc.. A nacionalização da indústria do petróleo pode efectivar-se imediatamente e é, além do mais, uma medida obrigatória para um Estado democrático e revolucionário, sobretudo se esse Estado atravessa uma crise gravíssima, durante a qual urge poupar a todo o transe o trabalho do povo e aumentar a produção de combustível. Falta referir que um controlo burocrático de nada serviria e nada alteraria, pois os Tereschenko e os Kerenski, os Avxentiev e os Skobelev, seriam vencidos pelos «reis do petróleo» com a mesma facilidade com que os venceriam os ministros czaristas; e fá-lo-ão primeiro com demoras, com desculpas e promessas e logo de imediato utilizando o suborno directo e indirecto da imprensa burguesa (a chamada «opinião pública» que «tão tida em conta» é pelos Kerenski e pelos Avxentiev) e dos funcionários públicos (aos quais os Kerenski e os Avxentiev deixam tranquilos nos seus antigos postos do aparelho estatal, até agora intacto, do velho regime).

Para fazer algo de sério, há que passar da burocracia à democracia e há que passar por procedimentos verdadeiramente revolucionários, quer dizer, declarando a guerra aos reis do petróleo e aos accionistas, decretando a confiscação de bens e o encarceramento de todo aquele que levante obstáculos à nacionalização da indústria do petróleo, oculte os rendimentos ou falsifique os balanços, sabote a produção ou não adopte as medidas conducentes a elevá-la. Há que apelar para a iniciativa dos operários e dos empregados, convocá-los imediatamente para conferências e congressos e colocar nas suas mãos uma determinada parte dos lucros, com a condição de se encarregarem do controlo em todos os seus aspectos e velarem pelo aumento da produção. Se estes passos democráticos e revolucionários tivessem sido dados sem demora, imediatamente, em Abril de 1917, a Rússia, um dos países mais ricos do mundo pelas suas reservas de combustível líquido, teria podido fazer muita coisa, durante o Verão, para abastecer por via aquática o povo do combustível necessário.

Nem o governo burguês, nem o governo de coligação dos socialistas-revolucionários, dos mencheviques e dos cadetes fizeram algo; limitaram-se a brincar burocraticamente às reformas. Não se atreveram a dar um só passo democrático e revolucionário. Tudo continua como sob o czarismo; os mesmos reis do petróleo, o mesmo monopólio, o mesmo ódio dos operários e dos empregados contra os exploradores, fruto obrigatório de tudo isto, o mesmo desperdício do trabalho do povo; a única coisa que mudou foi o timbre dos papéis em movimento nos ministérios «republicanos»!

Na indústria do carvão, não menos «preparada», pelo seu nível técnico e cultural, para a nacionalização e administrada com o mesmo descaramento pelos saqueadores do povo, pelos reis do carvão, podemos registar numerosos e evidentes actos de sabotagem descarada, de franca deterioração e paralisação da produção pelos industriais. Inclusive um órgão ministerial, a Rabotchaia Gazeta dos mencheviques, foi obrigado a confessar esse caos. E o que se fez? Não se fez absolutamente nada; não se fez mais do que reunir os antigos comités «paritários» burocráticos e reaccionários, formados, em partes iguais, por representantes dos operários e dos bandidos do consórcio hulhífero! Não se deu um único passo democrático e revolucionário; não houve um assomo de tentativa para implantar o único controlo real, o controlo a partir de baixo, através dos sindicatos dos empregados, através dos operários, atemorizando esses industriais da hulha, que levam o país à ruína e paralisam a produção. Mas como se pode fazer isso? «Todos» somos partidários da «coligação», senão com os cadetes, pelo menos com os círculos comerciais e industriais, e a coligação significa precisamente deixar o Poder nas mãos dos capitalistas, deixá-los manobrar impunemente, deixá-los boicotar, deixá-los lançar as culpas sobre os operários, agudizar a desordem e preparar deste modo uma nova Kornilovada!

ABOLIÇÃO DO SIGILO COMERCIAL

Sem a abolição do sigilo comercial, o controlo da produção e da distribuição ou bem que não irá mais longe do que uma vaga promessa, somente útil para que os cadetes enganem os socialistas-revolucionários e os mencheviques e estes, por sua vez, as classes trabalhadoras, ou então somente serão levados a cabo medidas e procedimentos burocráticos e reaccionários. E apesar disto ser evidente para qualquer pessoa desprevenida, apesar da tenacidade com que o Pravda tem vindo a preconizar a necessidade de abolir o sigilo comercial (campanha que foi, por certo, uma das que mais contribuiu para que o governo de Kerenski, tão submisso ao capital, suspendesse o periódico), nem o nosso governo republicano, nem os «organismos competentes da democracia revolucionária» se detiveram pelo menos em pensamento nesta exigência fundamental de todo o verdadeiro controlo.

Nisto reside precisamente, a chave de todo o controlo; este é, precisamente, o ponto mais sensível do capital, que saqueia o povo e sabota a produção. É precisamente por esta razão que os socialistas-revolucionários e os mencheviques não se atrevem a tocar neste ponto.

O argumento usual dos capitalistas, que a pequena burguesia repete sem quedar-se a reflectir, consiste em dizer que a economia capitalista não admite de modo nenhum a abolição do sigilo comercial porque a propriedade privada sobre os meios de produção e a sujeição das distintas empresas ao mercado impõe a «sacrossanta intangibilidade» dos livros de operações comerciais, incluindo, naturalmente, as operações bancárias.

Tudo o que repita, de uma ou outra maneira, este argumento ou outro semelhante, engana-se a si mesmo e engana o povo, fechando os olhos perante os factos fundamentais, importantíssimos e universalmente conhecidos, da vida económica actual. O primeiro facto é o grande capitalismo, quer dizer, as peculiaridades económicas dos bancos, dos consórcios capitalistas, das grandes empresas, etc.. O segundo é a guerra.

É precisamente o grande capitalismo moderno, que por toda a parte se está a converter em capitalismo monopolista, o que tira qualquer vestígio de razão ao sigilo comercial e o converte numa hipocrisia, num instrumento manejado exclusivamente para ocultar as trapaças financeiras e os lucros inauditos do grande capital. A grande empresa capitalista é, pelo seu próprio carácter técnico, uma empresa socializada, quer dizer que trabalha para milhões de homens e que associa com as suas operações, directa e indirectamente, centenas, milhares e dezenas de milhares de famílias. É algo muito diferente do pequeno artesão ou do camponês médio que, em geral, não utilizam nenhum género de livros comerciais e aos quais, portanto, não afecta em nada a abolição do sigilo comercial!

Na grande empresa, as operações realizadas são de qualquer modo do conhecimento de centenas e centenas de pessoas. Aqui a lei que garante o sigilo comercial não se destina a proteger as necessidades da produção ou de troca, mas sim a especulação e o lucro na sua forma mais brutal, a fraude descarada, que, como se sabe, está particularmente difundida nas sociedades anónimas e se oculta com muita habilidade nos relatórios de contas e nos balanços, elaborados cuidadosamente para enganar o público.

Se na pequena propriedade mercantil, quer dizer, entre os pequenos camponeses  e os artesãos, onde a produção não está socializada, mas sim atomizada, dispersa, o sigilo comercial é inevitável, pelo contrário, nas grandes empresas capitalistas, proteger esse sigilo comercial é proteger os privilégios e os lucros de um punhado, sim de um punhado, de indivíduos contra todo o povo. Isto é Já reconhecido pelas leis, já que prescrevem a publicação dos balanços das sociedades anónimas. Mas este controlo, implantado em todos os países avançados e que reina também na Rússia, é precisamente um controlo burocrático e reaccionário, que não abre os olhos ao povo nem lhe permite saber toda a verdade acerca das operações dessas sociedades.

Para proceder como democratas revolucionários haveria que publicar sem demora uma lei de carácter distinto, abolindo o sigilo comercial, obrigando as grandes empresas e os ricos a prestar contas com todo o detalhe e autorizando qualquer grupo de cidadãos suficientemente numeroso para considerá-lo democrático (digamos uns mil ou dez mil eleitores) a verificar os documentos de qualquer grande empresa. Esta medida é possível e facilmente aplicável através de um simples decreto; e só ela abriria as potas à iniciativa popular do controlo através dos sindicatos de empregados, dos sindicatos operários, através de todos os partidos políticos; só ela permitiria que o controlo fosse eficaz e democrático.

A isto vem juntar-se a guerra. A imensa maioria das empresas comerciais e industriais não trabalham hoje para o «mercado livre», mas para o Estado, para a guerra. Por isso tive de dizer no Pravda àqueles que pretendem atalhar-nos com o argumento de que não é possível implantar o socialismo que mentem e mentem triplamente, pois que não se trata de implantar o socialismo agora, acto contínuo, da noite para o dia, mas sim revelar a delapidação do Tesouro.

A empresa capitalista «ao serviço da guerra» (quer dizer, directa ou indirectamente relacionada com os fornecimentos de guerra) é a delapidação do Tesouro sistemática e legalizada, e os senhores cadetes, e com eles os mencheviques e os socialistas-revolucionários, que se opõem à abolição do sigilo comercial, não são mais do que cúmplices e encobridores da delapidação do Tesouro.

A guerra custa hoje à Rússia 50 milhões de rublos diários. A maior parte desses 50 milhões vai parar às mãos dos fornecedores do exército. Destes 50 milhões, 5 milhões diários, pelo menos, provavelmente até 10 milhões ou ainda mais, constituem os «lucros lícitos» dos capitalistas e dos funcionários que, de um modo ou de outro, estão confabulados com eles. São sobretudo as grandes companhias e os bancos que adiantam o dinheiro para as operações de fornecimento de guerra, embolsando deste modo lucros inauditos, e fazem-no precisamente delapidando o Tesouro, pois não pode dar-se outro nome às suas manobras para enganar e esgotar o povo «à custa» das calamidades da guerra, «à custa» da morte de milhares e milhares de homens.

«Toda a gente» sabe desses lucros escandalosos com os fornecimentos da guerra, «toda a gente» sabe das «letras de garantia» ocultas pelos bancos, «toda a gente» sabe quem são os que enriquecem à custa da carestia, cada vez mais agravada; na «alta roda» fala-se disso com um sorriso irónico nos lábios, e até a imprensa burguesa, que geralmente silencia os factos «desagradáveis» e ilude os problemas «delicados» contém, não poucas, alusões concretas a estes assuntos. Toda a gente o sabe e toda a gente o silencia, toda a gente transige com o governo, que fala eloquentemente acerca do «controlo» e da «regulamentação»!!

Os democratas revolucionários, se fossem evolucionários e democratas a sério, decretariam imediatamente uma lei suprimindo o sigilo comercial, obrigando os fornecedores e os negociantes a prestar contas, proibindo-os de mudar de actividade sem autorização das entidades competentes; uma lei que decretasse a confiscação de bens e a pena de morte como castigo pelas ocultações e as fraudes contra o povo e organizasse o controlo e a fiscalização a partir de baixo, de um modo democrático pelo próprio povo, pelos sindicatos de operários, pelas associações de consumidores, etc..

Os nossos socialistas-revolucionários e mencheviques bem merecem o nome de democratas atemorizados, pois que, sobre esta questão, mais não fazem que repetir o que dizem todos os pequeno-burgueses atemorizados: que os capitalistas «fugiriam» se se aplicassem medidas «demasiado rigorosas»; que «nós» não poderíamos avançar sem os capitalistas; que, provavelmente, essas medidas «ofenderiam» também os milionários anglo-franceses, os quais, como é sabido, nos «apoiam», etc., etc.. Poder-se-ia crer que os bolcheviques propõem uma coisa nunca vista na história da humanidade, jamais experimentada, «utópica», quando, na realidade, há já 125 anos, em França, homens que eram verdadeiros «democratas e revolucionários», realmente convencidos do carácter justo e defensivo da guerra que faziam, homens que se apoiavam realmente nas massas populares, também sinceramente disso convencidos, souberam implantar um controlo revolucionário sobre os ricos e obter resultados que deixaram admirado o mundo inteiro. E nos 125 anos que transcorreram desde então, o desenvolvimento do capitalismo, com a criação de bancos, cartéis, caminhos de ferro, etc., etc., tornou cem vezes mais fácil e simples as medidas de aplicação de um controlo verdadeiramente democrático dos operários e camponeses sobre os exploradores, sobre os latifundiários e os capitalistas.

No fundo, todo o problema do controlo se reduz em saber quem é que controla e quem é controlado, quer dizer, qual a classe que controla e qual a controlada. Até hoje no nosso país, na Rússia republicana, com a cooperação dos «organismos competentes» de uma pretensa democracia revolucionária, continua-se a reconhecer e a deixar nas mãos dos latifundiários e dos capitalistas o papel de controladores. Consequências inevitáveis disso são a banditagem dos capitalistas e a indignação geral do povo, e a desorganização económica, artificialmente mantida pelos mesmos capitalistas. É preciso passar resoluta e definitivamente, sem medo de destruir o velho, sem temer construir decididamente o novo, ao controlo exercido pelos operários e camponeses sobre os latifundiários e capitalistas. Mas os nossos socialistas-revolucionários e os nossos mencheviques temem-no mais que ao fogo.

(a seguir)



publicado por portopctp às 18:40
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Sexta-feira, 11 de Janeiro de 2013
MENSAGEM DO COMITÉ CENTRAL À LIGA DOS COMUNISTAS – Março de 1850

O Comité Central à Liga:

 

Irmãos,

No decurso dos dois anos revolucionários de 1848-1849 a Liga afirmou-se duplamente. Por um lado, devido ao facto de os seus membros terem em toda a parte participado energicamente no movimento, quer na imprensa, quer nas barricadas e nos campos de batalha estiveram na primeira fila do proletariado, a única classe verdadeiramente revolucionária. A Liga afirmou-se ainda na medida em que a sua concepção do movimento, tal como era exposta nas circulares dos congressos e do Comité Central de 1847, bem como no Manifesto Comunista, apareceu como a única verdadeira; porque as esperanças formuladas nesses documentos se verificaram inteiramente, e o seu ponto de vista sob a situação actual, que a Liga só propagava em segredo, está agora na boca de todos e é anunciado em praça pública. Ao mesmo tempo, a antiga e sólida organização da Liga enfraqueceu sensivelmente. Um grande número de membros, participando directamente no movimento revolucionário, pensou que o tempo das sociedades secretas tinha passado e que bastava a acção pública. Alguns círculos e comunas deixaram as suas relações com o Comité Central enfraquecer e relaxar-se pouco a pouco. Enquanto o Partido democrático, o partido da pequena burguesia, se organizava cada vez mais na Alemanha, o partido operário perdia o seu único apoio sólido; no máximo conservava, em algumas localidades, a sua organização com finalidades locais; e foi assim que, no movimento geral, caiu por completo sob o domínio e a direcção dos democratas pequeno-burgueses. É preciso pôr fim a um tal estado de coisas; a independência dos operários deve ser restabelecida. O Comité Central compreendeu essa necessidade, e foi por isso que, no inerno de 1848-1849, enviou à Alemanha um emissário, Joseph Moll, a fim de reorganizar a Liga. A missão de Moll não teve contudo um efeito duradouro, fosse porque os operários alemães não tivessem ainda adquirido na época bastante experiência, fosse por a actividade de Moll ter sido interrompida pela insurreição de Maio passado. Moll pegou ele próprio na espingarda, entrou no exército do Bade-Palestinado e caiu a 29 de Julho no combate de Mung. Com ele, a Liga perdia um dos seus membros mais antigos, mais activos e mais firmes, que tinha tomado parte activa em todos os congressos e Comités Centrais e tinha já anteriormente cumprido com grande sucesso uma série de viagens-missões. Depois da derrota dos partidos revolucionários da Alemanha e da França em Julho de 1849, quase todos os membros do Comité Central se reencontraram em Londres, completaram as suas fileiras com novas forças revolucionárias e prosseguiram com renovado ardor a reorganização da Liga.

A reorganização só se pode operar através de um emissário, e o Comité Central julga ser imensamente importante que o emissário parta precisamente nesta altura em que uma nova revolução está iminente, para a qual o partido operário se deve apresentar com o máximo de organização, o máximo de unidade e o máximo de independência possível, se não quiser de novo, como em 1848, ir a reboque da burguesia e ser por ela explorado.

Irmãos! Já vos avisámos, em 1848, que os burgueses liberais alemães iam subir ao poder e voltariam rapidamente a sua recentemente adquirida contra os operários. Vistes como a coisa se passou. Foram, com efeito, os burgueses que, depois do movimento de Março de 1848, ocuparam imediatamente o poder de Estado e serviram-se logo a seguir dele para repelir os operários, seus aliados da véspera no combate, para a sua antiga situação de oprimidos. Se a burguesia não pôde atingir este objectivo sem se aliar com o partido feudal absolutista, assegurou pelo menos as condições que, devido aos embaraços financeiros do governo, acabaram por pôr todo o poder nas suas mãos e garantir-lhe todos os seus interesses, se o movimento revolucionário estiver em condições de, desde agora, se lançar numa evolução dita pacífica. A burguesia não precisará, mesmo para assegurar a sua dominação, de se tornar odiosa com medidas violentas dirigidas contra o povo, visto todas essas medidas violentas já terem sido executadas pela contra-revolução feudal. Mas a evolução não seguirá essa via pacífica. A revolução que deve precipitá-la está, pelo contrário, iminente, quer seja provocada pelo levantamento autónomo do proletariado francês, ou pela invasão da Babel moderna revolucionária, pela Santa Aliança.

E o papel que os burgueses liberais alemães desempenharam, em 1848, em relação ao povo, esse papel tão pérfido, será, na próxima revolução, assumido pelos pequeno-burgueses democratas, que ocupam actualmente na oposição que os burgueses liberais antes de 1848. Esse partido, o partido democrático, bem mais perigoso para os operários que o antigo partido liberal, compõe-se de três elementos:

1.º   – As fracções mais avançadas da grande burguesia que têm como finalidade a subversão imediata e total do feudalismo e do absolutismo. Esta tendência tem como representantes os conciliadores de Berlim que preconizavam antigamente a recusa do imposto.

2.º   – Os pequeno-burgueses democratas- constitucionais que procuraram, sobretudo durante o último movimento, o estabelecimento de um Estado federal mais ou menos democrático, tal como o queriam os seus representantes, a esquerda da Assembleia de Francoforte e, mais tarde, o parlamento de Estugarda, bem como eles próprios na sua campanha a favor de uma constituição de império.

3.º   – Os pequenos burgueses republicanos cujo ideal é uma república federativa alemã no género da Suíça, e que se autodenominam hoje vermelhos e social-democratas, porque se iludem com a doce ilusão de suprimir a opressão do pequeno capital pelo grande capital, do pequeno burguês pelo grande burguês. Os representantes desta fracção foram membros dos congressos e dos comités democráticos, dirigentes das associações democráticas, redactores dos jornais democráticos.

Agora, depois da sua derrota, todas estas facções se intitulam republicanas e vermelhas, tal como em França os pequenos burgueses republicanos se denominam hoje socialistas. Onde, como no Wurtemberg, na Baviera, etc., ainda têm a possibilidade de tentar alcançar os seus fins pela via constitucional, aproveitam a ocasião para se agarrar à sua antiga fraseologia e demonstrar na prática que não mudaram por pouco que seja. É evidente que a mudança de nome desse partido não modifica de modo nenhum a sua atitude em relação aos operários, mas prova simplesmente que se vê actualmente obrigado a enfrentar a burguesia aliada ao absolutismo e a apoiar-se no proletariado.

O partido pequeno-burguês democrático é muito poderoso na Alemanha, abarcando não só a grande maioria dos habitantes burgueses das cidades, dos pequenos comerciantes e indústrias e dos mestres-artesãos, mas contando ainda entre os seus aderentes os camponeses e o proletariado rural, na medida em que este último ainda não encontrou apoio no proletariado autónomo das cidades.

A atitude do partido operário revolucionário em relação à democracia pequeno-burguesa é a seguinte: marcha com ela contra a fracção cuja queda esta pretende; combate-a em todos os pontos que ela pretender utilizar para se estabelecer solidamente.

Os pequeno-burgueses democráticos, longe de querer modificar toda a sociedade a favor dos operários revolucionários, tendem a modificar a ordem social de modo a tornar a sociedade existente tão suportável e tão cómoda para eles quanto possível. Reclamam assim, acima de tudo, que se reduza as despesas públicas limitando a burocracia e mandando as principais imposições para os latifundiários e para os burgueses. Reclamam em seguida que a pressão exercida pelo grande capital sobre o pequeno seja abolida pela fundação de estabelecimentos de crédito públicos e de leis contra a usura, o que lhes permitiria, a eles e aos camponeses, obter, em condições favoráveis, empréstimos do Estado, em vez de os obter dos capitalistas. Reclamam finalmente que, pela supressão completa do sistema feudal, o regime de propriedade burguesa seja introduzido em toda a parte nos campos. Para realizar tudo isto, precisam de uma forma de governo democrática, seja constitucional ou republicana, que lhes assegure a maioria, a eles e aos seus aliados, os camponeses, e uma autonomia administrativa, que ponha nas suas mãos o controlo directo da propriedade comunal e uma série de funções actualmente exercidas por burocratas.

Quanto à dominação e ao crescimento rápido do capital, procurar-se-ia dificulta-lo, seja limitando o direito de sucessão, seja entregando ao Estado tantos trabalhos quanto possível. Quanto aos operários, é acima de tudo bem especificado que permanecerão, como anteriormente, salariados; mas o que os pequeno-burgueses democráticos desejam aos operários é um melhor salário e uma existência mais segura; esperam conseguir isso quer através da ocupação dos operários pelo Estado, quer por actos de beneficência; em resumo, esperam corromper os operários com esmolas mais ou menos disfarçadas e quebrar a sua força revolucionária tornando a sua situação momentaneamente suportável. As reivindicações aqui resumidas não são defendidas ao mesmo tempo por todas as fracções da democracia pequeno-burguesa, e raras são aquelas para quem elas aparecem, no seu conjunto, como objectivos bem definidos. Quanto mais longe forem os indivíduos e as fracções, mais farão suas uma grande parte destas reivindicações; e as raras pessoas que vêem, no precedente o seu próprio programa, julgam ter assim estabelecido o máximo que se pode reclamar da revolução. Estas reivindicações, contudo, não podem de modo nenhum ser suficientes para o partido do proletariado. Enquanto que os pequenos-burgueses democráticos querem terminar a revolução o mais depressa possível depois de terem no máximo realizado estas reivindicações, é nosso interesse e nosso dever tornar a revolução permanente, até que todas as classes mais ou menos possuidoras tenham sido afastadas do poder, que o proletariado tenha conquistado o poder e que não só num país, mas em todos os países do mundo a associação dos proletários tenha feito os progressos necessários para fazer cessar nesses países a concorrência dos proletários e concentrar nas suas mãos pelo menos as forças produtivas decisivas. Para nós, não se trata de transformar a propriedade privada, mas sim de a destruir; nem de mascarar os antagonismos de classes, mas sim de abolir as classes; nem de melhorar a sociedade existente, mas sim de fundar uma nova. Não há qualquer dúvida que a democracia pequeno-burguesa, à medida que se desenvolve incessantemente a revolução, exercerá por algum tempo uma influência preponderante na Alemanha. Trata-se pois de saber qual será, a seu respeito, a posição do proletariado e especialmente da Liga:

  1. Enquanto durar a actual situação em que os democratas pequeno-burgueses também são oprimidos;
  2. Na próxima luta revolucionária que lhes dará a preponderância;
  3. Depois dessa luta, enquanto durar essa preponderância dos democratas pequeno-burgueses sobre as classes destronadas e o proletariado.

1 – Neste momento em que os pequeno-burgueses democráticos estão em toda a parte oprimidos, pregam em geral ao proletariado a união e a reconciliação; estendem-lhe a mão e esforçam-se por erguer um grande partido da oposição, que abarque todas as tendências do partido democrático; por outras palavras, esforçam-se por apanhar os operários na armadilha de uma organização de partido onde predomina a fraseologia social-democrata geral, que serve de cobertura para os seus interesses particulares e onde, para não perturbar o bom entendimento, as reivindicações particulares do proletariado não devem ser formuladas. Uma tal opinião só aproveitaria os pequeno-burgueses democráticos e só traria desvantagens ao proletariado. O proletariado perderia por completo a sua posição independente, conquistada com tantos sacrifícios, e tornaria a ser um simples apêndice da democracia burguesa oficial. Essa união deve pois ser recusada da maneira mais categórica. Em vez de se rebaixarem de novo a servir de claque aos democratas burgueses, os operários, e sobretudo a Liga, devem trabalhar para constituir, ao lado dos democratas oficiais, uma organização distinta, secreta e pública do partido operário, e fazer de cada comunidade o centro e o núcleo de agrupamentos operários em que a posição e os interesses do proletariado sejam discutidos independentemente das influências burguesas. Os democratas de Breslau demonstram quão pouco os democratas burgueses levam a sério a aliança em que os operários tenham o mesmo poder e os mesmos direitos que eles, quando no seu órgão, a Neue Oder Zeitung, atacam furiosamente os operários que apelidam de socialistas, agrupados em organizações distintas. Se se trata de combater um adversário comum, não é necessário uma união especial. Desde que seja preciso combater directamente um tal adversário, os interesses dos dois partidos coincidem momentaneamente; e no futuro, como até agora, essa aliança momentânea estabelecer-se-á por si própria. É evidente que, nos conflitos sangrentos iminentes, são sobretudo os operários que deverão conseguir como antigamente, a vitória, pela sua coragem, a sua resolução e o seu espírito de sacrifício. Tal como antigamente, nessa luta, os pequeno-burgueses mostrar-se-ão em massa, e durante tanto tempo quanto possível, hesitantes, indecisos e inactivos. Mas desde que se tenha conseguido a vitória, agarrá-la-ão, convidarão os operários a manter a clama, a voltar para casa e a pegar de novo no trabalho; evitarão os pretensos excessos e retirarão ao proletariado os frutos da vitória. Os operários não podem impedir os democratas pequeno-burgueses de agirem assim; mas podem tornar difícil essa ascensão dos democratas face ao proletariado em armas, e ditar-lhe condições tais que a dominação dos democratas burgueses contenha, desde o início, o gérmen do seu fim e que a sua substituição ulterior pela dominação do proletariado se encontre singularmente facilitada. Importa sobretudo que os operários, durante o conflito e imediatamente depois do combate, reajam tanto quanto possível contra a acalmia preconizada pelos burgueses e forcem os democratas a executarem as suas actuais frases terroristas. Os seus esforços devem tender para que a efervescência revolucionária directa não seja de novo reprimida logo após a vitória. É preciso, pelo contrário, que a mantenham durante o máximo de tempo. Longe de se opor aos pretensos excessos, aos exemplos de vingança popular contra os indivíduos odiados ou contra os edifícios públicos aos quais só se ligam recordações odiosas, é preciso não só tolerar esses exemplos, mas ainda assumir a sua direcção. Durante e depois da luta, os operários devem em todas as ocasiões formular as suas próprias reivindicações lado a lado com as dos democratas burgueses. Devem exigir garantias para os operários, a partir do momento em que os burgueses democráticos se disponham a tomar conta do governo. É preciso, em caso de necessidade, que obtenham essas garantias lutando e procurem, em suma, obrigar os novos governantes a todas as concessões e promessas possíveis; é o meio mais seguro de os comprometer. É preciso que se esforcem, por todos os meios e tanto quanto possível, por conter o júbilo suscitado pelo novo estado de coisas e o estado de embriaguez, posterior a qualquer vitória conseguida numa batalha de rua, analisando com calma e sangue frio a situação e mostrando em relação ao novo governo uma desconfiança não disfarçada. É preciso que ao lado dos novos governos oficiais sejam estabelecidos imediatamente os governos operários revolucionários, seja sob a forma de autonomias administrativas locais ou de concelhos municipais, seja sob a forma de clubes ou comités operários, de modo que os governos democrático-burgueses não só percam imediatamente o apoio dos operários, mas se vejam, desde o início, vigiados e ameaçados por autoridades que têm atrás de si toda a massa de operários. Numa palavra, assim que a vitória seja alcançada, a desconfiança do proletariado não se deve voltar mais contra o partido reaccionário vencido, mas contra os seus antigos aliados, contra o partido que quer explorar sozinho a vitória comum.

2 – Mas para poder enfrentar de um modo enérgico e ameaçador esse partido cuja traição para com os operários começará com as primeiras horas da vitória, é preciso que os operários estejam armados e bem organizados. Importa fazer imediatamente o necessário para que todo o proletariado tenha espingardas, carabinas, canhões e munições e é preciso opor-se ao restabelecimento da antiga guarda nacional dirigida contra os operários. Onde esse restabelecimento não puder ser impedido os operários devem procurar organizar-se eles próprios em guarda proletária, com chefes da sua escolha, o seu próprio estado-maior e sob as ordens, não das autoridades públicas, mas sim de conselhos municipais revolucionários formados pelos operários. Onde os operários estejam empregados por conta do Estado é preciso que estejam armados e organizados num corpo especial com chefes eleitos ou num destacamento da guarda proletária. Não se deve, sob qualquer pretexto, entregar as armas e munições, e qualquer tentativa de desarmamento deve ser repelida, em caso de necessidade, pela força. Aniquilar a influência dos democratas burgueses sobre os operários, proceder imediatamente à organização própria dos operários e ao seu armamento e opor a dominação, de momento inevitável, da democracia burguesa às condições mais duras e mais comprometedoras: tais são os pontos principais que o proletariado e logo a Liga não devem perder de vista durante e depois da insurreição iminente.

3 – Desde que os novos governantes se tenham minimamente consolidado, iniciarão imediatamente a sua luta contra os operários. Para poder então enfrentar com força os pequeno-burgueses democráticos, é preciso, antes do mais, que os operários estejam organizados e centralizados nos seus próprios clubes. Depois da queda dos governantes existentes, o Comité Central irá, assim que for possível, para a Alemanha, convocará sem demora um congresso ao qual submeterá as propostas indispensáveis para centralizar os clubes operários sob uma direcção estabelecida na sede do movimento. A rápida organização, pelo menos de uma federação provincial dos clubes operários, é um dos pontos mais importantes para reforçar e desenvolver o partido operário. A subversão dos governos existentes terá como consequência imediata a eleição de um representante nacional. Neste ponto o proletariado deve procurar:

1.º -  Que um número importante de operários não sejam sob qualquer pretexto afastados do voto devido a intrigas das autoridades locais ou dos comissários do governo.

2.º -  Que em toda a parte, ao lado dos candidatos democrático-burgueses, sejam propostos candidatos operários, escolhidos tanto quanto possível entre os membros da Liga, sendo preciso, para assegurar a sua eleição, utilizar todos os meios possíveis. Mesmo onde não houver a menor hipótese de vitória, os operários devem apresentar os seus próprios candidatos, para salvaguardar a sua independência, fazer um balanço das suas forças e dar a conhecer publicamente a sua posição revolucionária e os pontos de vista do seu partido. Não devem nessas alturas deixar-se seduzir pela fraseologia dos democratas, pretendendo, por exemplo, que assim se corre o risco de dividir o partido democrático e de oferecer à reacção a possibilidade da vitória. Todas estas frases só têm um objectivo: mistificar o proletariado. Os progressos que o partido revolucionário deve conseguir com uma tal atitude independente são infinitamente mais importantes que o prejuízo que trará a presença de alguns reaccionários na representação popular. Se, desde o início, a democracia tomar uma atitude decidida e terrorista em relação à reacção, a influência desta nas eleições estará à partida reduzida a nada.

O primeiro ponto sobre o qual os democratas burgueses entrarão em conflito com os operários será a abolição do regime feudal. Como na primeira revolução francesa, os pequeno-burgueses entregarão aos camponeses as terras feudais a título de livre propriedade; por outras palavras, quererão deixar subsistir o proletariado rural e formar uma classe camponesa pequeno-burguesa, que deverá percorrer o mesmo ciclo de empobrecimento e de endividamento crescente, em que o camponês francês se encontra actualmente.

No interesse do proletariado rural e no seu próprio interesse, os operários devem contrariar este plano. Devem exigir que as propriedades feudais confiscadas permaneçam propriedade do Estado e sejam transformadas em colónias operárias que o proletariado rural, agrupado em associações explorará com todas as vantagens da grande cultura. Assim, no quadro das relações desequilibradas da propriedade burguesa, o princípio da propriedade comum vai adquirir imediatamente uma base sólida. Do mesmo modo que os democratas fazem aliança com os agricultores, os operários devem aliar-se ao proletariado rural. Em seguida, os democratas procurarão directamente ou instaurar a república federativa, ou, se não puderem evitar a república una e indivisível, paralisar pelo menos o governo central dando às comunas e às províncias o máximo de autonomia e independência. Ao contrário deste plano, os operários devem não só procurar o estabelecimento da República alemã una e indivisível, mas ainda procurar realizar nesta república a centralização mais absoluta do poder entre as mãos do Estado. Não se devem deixar induzir em erro pelo que os democratas lhes digam sobre a liberdade das comunas, a autonomia administrativa, etc.. Num país como a Alemanha, onde ainda falta fazer desaparecer numerosos vestígios da Idade Média e quebrar imensos particularismos locais e provinciais, não se pode em qualquer circunstancia tolerar que cada vila, cidade, cada província, oponha um novo obstáculo à actividade revolucionária, de que todo o poder só pode emanar do centro. Não se pode tolerar que se renove o estado de coisas actual que faz com que os alemães se vejam obrigados a travar uma batalha particular em cada cidade e em cada província para conseguir um único e mesmo progresso. Não se pode tolerar sobretudo que uma forma de propriedade, que se situa ainda atrás da propriedade privada moderna com a qual, necessariamente, acaba por se confundir, quer dizer, a propriedade comunal com as suas inevitáveis querelas entre comunas ricas e comunas pobres, bem como o direito do cidadão da comuna com as suas particularidades, se perpetue prejudicando os operários, com uma regulamentação comunal pretensamente livre. Tal como a França em 1793, a realização da centralização mais rigorosa é hoje na Alemanha a tarefa do partido verdadeiramente revolucionário[1].

Vimos como os democratas subirão ao poder aquando do próximo movimento e como serão obrigados a propor medidas mais ou menos socialistas. A questão está em saber que medidas os operários lhes oporão. É evidente que no começo do movimento os operários não podem ainda propor medidas directamente comunistas. Mas podem:

  1. Forçar os democratas a intervir, em todos os pontos possíveis, na organização social existente, perturbar a sua marcha regular, comprometerem-se eles próprios a concentrar nas mãos do Estado o maior número possível de forças produtivas, de meios de transporte, de fábricas, de caminhos-de-ferro, etc.
  2. Devem pressionar até ao extremo as propostas dos democratas que, em qualquer caso, não se mostraram revolucionários, mas simplesmente reformistas, e transformar as suas propostas em ataques directos contra a propriedade privada. Se, por exemplo, os pequeno-burgueses propõem comprara os caminhos-de-ferro e as fábricas, os operários devem exigir que os caminhos-de-ferro e as fábricas sejam simplesmente confiscados sem indemnização pelo Estado enquanto propriedade de reaccionários. Se os democratas propõem o imposto proporcional, os operários reclamam o imposto progressivo. Se os democratas propõem por si sós um imposto progressivo moderado, os operários exigem um imposto cujos escalões subam suficientemente depressa para que o grande capital se encontre comprometido. Se os democratas reclamam a regularização da dívida pública, os operários reclamam a falência do Estado. As reivindicações dos operários devem assim regular-se em toda a parte pelas concessões e as medidas dos democratas.

Se os operários alemães não conseguem conquistar o poder e fazer triunfar os seus interesses de classe sem cumprir por completo uma evolução revolucionária bastante longa, têm desta vez, pelo menos, a certeza que o primeiro acto desse drama revolucionário iminente coincide com a vitória directa da sua própria classe na França e encontra-se acelerado.

Mas contribuirão para a vitória definitiva de uma maneira ainda maior se tomarem consciência das seus interesses de classe, organizarem-se assim que for possível em partido independente e não se deixarem afastar por um instante que seja – pelas frases hipócritas dos pequeno-burgueses democráticos – da organização autónoma do partido do proletariado. O seu grito de guerra deve ser: Revolução permanente!

Londres, Março de 1850

Difundido sob a forma de panfleto em 1890. Publicado por F. Engels como suplemento do livro: K. Marx, «Enthullugen uber den Kommunisten – Prozeb zu Koln», Hottingen – Zurique 1885



[1] É preciso lembrar hoje que esta passagem se baseia num mal entendido. Nessa altura era admitido – graças aos falsificadores bonapartistas e liberais da História – que a máquina administrativa centralizada francesa tinha sido introduzida pela grande revolução e manejada, nomeadamente pela convenção, como uma arma indispensável e decisiva para vencer a reacção realista e federalista e o inimigo exterior. Mas é actualmente um facto conhecido que durante toda a revolução, até ao 18 de Brumário, a administração geral dos departamentos, municípios e comunas se compunha de autoridades eleitas pelos próprios administrados que, no quadro das leis gerais do Estado, gozavam de uma liberdade completa; esta auto-administração provincial e local, semelhante à existente na América, tornou-se precisamente a mais poderosa alavanca da revolução, e isso a tal ponto que Napoleão, imediatamente após o seu golpe de Estado de 18 de Brumário, apressou-se a substituí-la pelo regime prefeitural ainda em vigor nos nossos dias, e que foi desde o início um instrumento da reacção. Mas a auto administração local e provincial está tão pouco em contradição com a centralização política nacional, está tão pouco ligada necessariamente a esse egoísmo limitado cantonal ou comunal que nos choca de tal modo na Suíça e que em 1849 todos os republicanos federativos da Alemanha do Sul queriam estabelecer como regra na Alemanha. (Nota de Engels para a edição de 1885).



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Quarta-feira, 9 de Janeiro de 2013
Miséria da Filosofia, resposta à "Filosofia da Miséria" do Sr. Proudhon - 3

(Anterior)

O preço dos alimentos tem subido quase continuamente, enquanto o preço de bens manufacturados e de luxo tem quase continuamente caído. Observe-se o sector agrícola: os produtos mais indispensáveis, como a carne, o trigo, etc., aumentaram de preço, enquanto os preços do algodão, do açúcar, do café, etc. estão em queda numa proporção surpreendente. E mesmo entre os comestíveis, são os de luxo, como as alcachofras, os espargos, etc., que hoje são relativamente mais baratos do que os de primeira necessidade. Actualmente, o supérfluo é mais fácil de produzir do que o necessário. Finalmente, nas diferentes épocas históricos, as relações recíprocas de preços são não só diferentes, mas também opostas. Em toda a Idade Média, os produtos agrícolas foram relativamente mais baratos do que os produtos manufacturados mas, nos tempos modernos, eles estão na razão inversa. Isto significa que a utilidade dos produtos agrícolas tem diminuído desde a Idade Média?

A utilização de produtos é determinada pelas condições sociais em que os consumidores se encontram colocados, e essas condições baseiam-se no antagonismo entre classes.

O algodão, a batata e a aguardente são produtos do uso mais comum. As batatas geraram a escrófula; o algodão tem, em grande medida, expulsado o linho e a lã, embora a lã e o linho sejam, em muitos casos, de maior utilidade, ainda que apenas do ponto de vista da higiene; e, finalmente, a aguardente têm ganho vantagem sobre a cerveja e o vinho, embora o seu uso alimentar seja geralmente reconhecido como venenoso. Durante um século inteiro, os governos lutaram em vão contra o ópio europeu; a economia prevaleceu, e ditou as suas ordens ao consumo.

Por que são, então, o algodão, a batata e a aguardente eixos da sociedade burguesa? Porque é necessária menos quantidade de trabalho para produzi-los e, consequentemente, são mais baratos. Por que o preço mínimo determina o consumo máximo? Acaso é por causa da utilidade absoluta desses produtos, da sua utilidade intrínseca, que correspondem, da maneira mais útil, às necessidades do operário como homem, e não do homem como operário? Não: é porque, numa sociedade fundada na miséria, os produtos mais miseráveis têm a prerrogativa fatal de servirem ao uso da grande maioria.

Dizer que as coisas mais baratas têm maior utilidade porque são as mais usadas, é o mesmo que dizer que o amplo uso da aguardente, por causa de seu baixo custo de produção, é a prova mais conclusiva da sua utilidade; significa dizer ao proletário que a batata é mais saudável que a carne; significa aceitar o presente estado de coisas; é, em suma, glorificar, como o Sr. Proudhon, uma sociedade sem compreendê-la.

Numa sociedade futura, na qual o antagonismo entre classes tenha cessado, onde não existam sequer classes, o uso deixará de ser determinado pelo tempo de produção que é o mínimo, mas o tempo dedicado à produção de cada artigo será determinada pelo grau de sua utilidade social.

Voltando à tese do Sr. Proudhon: no momento em que o tempo de trabalho necessário para a produção de um artigo deixa de ser a expressão do seu grau de utilidade, o seu valor de troca, determinado de antemão pelo tempo de trabalho incorporado no mesmo, torna-se bastante útil para regular a verdadeira relação entre a oferta e a procura, isto é, a relação de proporcionalidade, no sentido que o Sr. Proudhon agora lhe atribui.

Não é a venda de um determinado produto ao preço do custo de produção que constitui a "relação de proporcionalidade" entre a oferta e a procura ou a parte proporcional do produto relativa ao total da produção; são as variações na oferta e na procura que mostram ao produtor que quantidade de uma determinada mercadoria deve produzir para receber em troca, pelo menos, o custo de produção. E como estas variações são contínuas, ocorrem também movimentos contínuos de retirada e aplicação de capital nos diferentes ramos da indústria.

"É apenas em consequência de tais variações que o capital é aplicado, precisamente na proporção necessária e não mais, na produção dos diferentes produtos que têm procura. Com a alta e a baixa de preços, os lucros sobem acima e descem abaixo do seu nível geral, e o capital ou é incentivado a entrar, ou é avisado para se afastar do emprego específico em que a variação tenha ocorrido. Quando se olha para os mercados de uma grande cidade, e se observa como são fornecidos regularmente de mercadorias, tanto nacionais como estrangeiras, na quantidade requerida, em todas as circunstâncias de variação da procura, decorrentes quer do capricho do gosto quer de uma alteração na quantidade de população, sem produzir com frequência quer efeitos de excesso por fonte muito abundante, quer preços muito altos por fornecimento pequeno em relação à procura, tem que se reconhecer que o princípio que reparte o capital por cada ramo da indústria na proporção exacta necessária, é mais activo do que geralmente se supõe.” (Ricardo, Vol.I, pp.105 e 108)

Se o Sr. Proudhon admite que o valor dos produtos é determinado pelo tempo de trabalho, então deve igualmente admitir que é apenas o movimento oscilatório que, na sociedade fundada em trocas individuais, faz do trabalho a medida do valor. Não há "relação de proporcionalidade" pronta a usar, constituída, mas apenas um movimento constituinte.

Acabámos de ver em que sentido é correcto falar de "proporcionalidade" como consequência de um valor determinado pelo tempo de trabalho. Veremos agora como esta medida pelo tempo, chamada pelo Sr. Proudhon  "lei de proporcionalidade", se transforma em lei de desproporcionalidade.

Cada nova invenção, que permita a produção numa hora daquilo que antes era produzido em duas, deprecia todos os produtos semelhantes no mercado. A concorrência força o produtor a vender o produto de duas horas tão barato quanto o produto de uma hora. A concorrência realiza a lei segundo a qual o valor relativo de um produto é determinado pelo tempo de trabalho necessário para produzi-lo. O tempo de trabalho que serve como medida do valor venal torna-se desta forma na lei da depreciação contínua do trabalho. Diremos mais: haverá depreciação não só das mercadorias introduzidas no mercado, mas também dos instrumentos de produção e de toda a fábrica. Este facto foi já apontado por Ricardo quando disse:

"Ao aumentar constantemente a facilidade de produção, diminuímos constantemente o valor de alguns dos produtos antes produzidos." (Vol.II, p.59)

Sismondi vai mais longe: vê, neste "valor constituído" pelo tempo de trabalho, a fonte de todas as contradições da indústria e do comércio modernos.

"O valor mercantil", diz ele, "é sempre determinado a longo prazo, pela quantidade de trabalho necessário para obter a coisa avaliada: não o que realmente custa, mas o que talvez custaria com meios, a partir de hoje, mais aperfeiçoados, e esta quantidade, embora difícil de avaliar, é sempre fielmente estabelecida pela competição.... É nesta base que são calculadas tanto a procura pelo vendedor, como a oferta pelo comprador. O primeiro declara, talvez, que a coisa lhe custou 10 dias de trabalho, mas se o outro percebe que pode passar a ser produzida em oito dias de trabalho e a concorrência provar isso às duas partes contratantes, o valor será reduzido e o preço de mercado fixado em apenas oito dias. Claro que cada uma das partes acredita que a coisa é útil, que é desejada e que sem desejo não haveria venda, mas a fixação do preço nada tem a ver com a utilidade". (Etudes, etc. , Vol.II, p.267)

É importante salientar este ponto: o que determina o valor não é o tempo necessário para produzir uma coisa, mas o tempo mínimo em que poderia ser produzida, e este mínimo é determinado pela concorrência. Suponhamos, por um momento, que deixa de haver concorrência e, consequentemente, deixa de haver um meio para determinar o mínimo de trabalho necessário para a produção de uma mercadoria; o que acontecerá? Bastará aplicar seis horas de trabalho na produção de um objecto para, de acordo com o Sr. Proudhon, poder exigir em troca seis vezes mais do que quem aplicou apenas uma hora na produção do mesmo objecto.

Em vez de uma "relação de proporcionalidade", temos uma relação de desproporcionalidade, se insistirmos em entrar em relações, boas ou más.

A depreciação contínua do trabalho é apenas um aspecto, uma das consequências da avaliação das mercadorias pelo tempo de trabalho. O aumento excessivo de preços, a superprodução e muitos outros expedientes da anarquia industrial têm a explicação neste modo de avaliação.

Mas o tempo de trabalho usado como medida do valor dá, pelo menos, origem à variedade proporcional de produtos que tanto deleita o Sr. Proudhon?

Muito pelo contrário: o monopólio, com a sua monotonia, segue na sua esteira e invade o mundo dos produtos, assim como invadiu, à vista de todos, o mundo dos instrumentos de produção. É apenas em alguns ramos da indústria, como a indústria do algodão, que se pode fazer um progresso muito rápido. A consequência natural desse progresso é que os produtos do fabrico de algodão caem rapidamente de preço; mas como o preço do algodão desce, o preço do linho será substituído pelo do algodão. Foi desta forma que o linho foi expulso de quase toda a América do Norte. E obteve-se, em vez da variedade proporcional de produtos, a dominância do algodão.

O que resta da "relação de proporcionalidade"? Nada, além do desejo piedoso de um homem honesto que gostaria que as mercadorias fossem produzidas em proporções que permitissem ser vendidas a um preço honesto. Os burgueses de boa índole e os economistas filantropos sempre gostaram de expressar esse desejo inocente.

Ouçamos o que o velho Boisguillebert diz:

"O preço das mercadorias", diz ele, "deve ser sempre proporcional, pois é este entendimento mútuo que pode permitir-lhes coexistir de modo a trocarem-se entre si em qualquer momento [aqui está a permutabilidade contínua do Sr. Proudhon] e reciprocamente se reproduzirem. ... Na medida em que a riqueza nada mais é que este intercâmbio permanente entre homens, entre profissões, etc., é uma cegueira terrível procurar a causa da miséria fora do fim de tal tráfego provocado por desordem na proporcionalidade dos preços.” (Dissertation sur la nature des richesses, ed Daire da. [pp.405 e 408] Este trabalho de Boisguillebert é citado a partir da antologia Economistes-Financiers du XVIII siècle. Précédés de Notes Historiques sur Chaque Auteur et Accompagnés de Commentaires et de Notes Explicatives par Eugene Daire, Paris 1843).

Ouçamos também um economista moderno:

"A grande lei que se deve aplicar à produção é a lei da proporcionalidade, a única que pode preservar a continuidade do valor. ... O equivalente deve ser garantido... Todas as nações tentaram, em vários períodos de sua história, instituir diversos regulamentos e restrições comerciais, para realizar, em algum grau, o objectivo aqui explicado... mas o egoísmo inerente à natureza do homem... exortou-o a quebrar todas essas regulamentações. Uma produção proporcional é a realização de toda a verdade da ciência da Economia Social.” (W. Atkinson, Princípios de Economia Política… , Londres 1840, pp.170-95)

Fuit Troja! [Tróia já não existe!] Esta justa proporção entre a oferta e a procura, que volta a ser objecto do voto de tantos, deixou há muito de existir. Passou a velharia. Só foi possível enquanto os meios de produção foram limitados, enquanto a troca ocorreu dentro de limites muito estreitos. Com o nascimento da grande indústria, esta justa proporção teve de acabar, e a produção vê-se inevitavelmente compelida a passar, numa sucessão contínua, pelas vicissitudes da prosperidade, estagnação, crise, depressão, nova prosperidade, e assim por diante.

Aqueles que, como Sismondi, têm o desejo de retornar à justa proporção da produção preservando a base actual da sociedade, são reaccionários porque, para serem coerentes, deveriam também querer restabelecer todas as outras condições da indústria dos tempos passados.

O que manteve a produção nas proporções justas ou quase justas? Uma procura que determinava a oferta e a precedia. A produção seguia de perto o consumo. A grande indústria, forçada pelos instrumentos à sua disposição a produzir em escala sempre crescente, não pode esperar pela procura. A produção precede o consumo, a oferta pressiona a procura.

Na sociedade actual, na indústria com base na troca individual, a anarquia da produção, que é fonte de tanto sofrimento, é, ao mesmo tempo, a fonte de todo o progresso.

Assim, das duas uma:

- ou quer-se a justa proporção dos séculos passados com os meios de produção actuais, e é-se ao mesmo tempo reaccionário e utópico.

- ou quer-se progresso sem anarquia e, nesse caso, para preservar as forças produtivas, é-se obrigado a abandonar a troca individual.

A troca individual só é compatível com a pequena indústria dos séculos passados, e o seu corolário de " justa proporção ", ou com a grande indústria e o seu cortejo de miséria e anarquia.

Afinal de contas, a determinação do valor pelo tempo de trabalho – a fórmula que o Sr. Proudhon aponta como fórmula regeneradora do futuro – não passa da expressão científica das relações económicas da sociedade actual, como foi demonstrado clara e precisamente por Ricardo muito antes do Sr. Proudhon.

Mas será que, pelo menos, o adjectivo "igualitário" desta fórmula pertence ao Sr. Proudhon? Não será ele o primeiro a pensar reformar a sociedade transformando todos os homens em trabalhadores reais que trocam entre si quantidades iguais de trabalho? Não terá ele o direito de censurar os comunistas – essa gente carente de todo o conhecimento de economia política, esses "homens obstinadamente tolos", esses "sonhadores do paraíso" – por não terem encontrado, antes dele, esta solução "do problema do proletariado"?

Qualquer pessoa que esteja de alguma forma familiarizada com as correntes da economia política na Inglaterra não pode deixar de saber que quase todos os socialistas desse país têm, em diferentes períodos, proposto a aplicação igualitária da teoria ricardiana. Poderíamos citar ao Sr. Proudhon: Economia Política de Hodgskin, 1827; An Inquiry into the Principles of the Distribution of Wealth, most conducive to Human Happiness de William Thompson, 1824; TR Edmonds: Practical Moral and Political Economy, 1828, etc., etc., e mais quatro páginas de etc.s. Contentamo-nos em fazer ouvir um comunista Inglês, o Sr. Bray. Citaremos passagens decisivas da sua notável obra, Labour's Wrongs and Labour's Remedy, Leeds, 1839, e vamos dedicar-lhe algum tempo, em primeiro lugar, porque o Sr. Bray ainda é pouco conhecido na França, e em segundo lugar, porque pensamos ter descoberto nela a chave para as obras passadas, presentes e futuras do Sr. Proudhon.

"A única maneira de chegar à verdade é abordar frontalmente os primeiros princípios ... Vamos ... directamente à fonte de onde os governos têm surgido ... Indo assim à origem da coisa, veremos que cada forma de governo, e toda a injustiça social e governamental, tem origem no sistema social existente – da instituição da propriedade tal como existe actualmente – e que, portanto, se quisermos acabar com as actuais injustiças e misérias de uma vez e para sempre, as actuais disposições da sociedade devem ser totalmente subvertidas ... Combatendo os economistas no seu próprio campo, e com as suas próprias armas, evita-se o barulho sem sentido sobre visionários e teóricos, com o qual estão sempre prontos a atacar quem se atreve a dar um passo fora da trilha que “a autoridade” pronunciou ser a certa. A não ser que se retractem ou contestem as verdades estabelecidas e os princípios em que os seus argumentos são fundados, os economistas não poderão rejeitar as conclusões a que chegámos por tal método.” (Bray, pp.17 e 41)

"Só o trabalho confere valor ... Cada homem tem o direito inquestionável a tudo o que pode obter com trabalho honesto. Quando assim se apropria dos frutos de seu trabalho, não comete nenhuma injustiça contra qualquer outro ser humano, pois não interfere com direito a nenhum outro homem de fazer o mesmo ... Todas as ideias de superioridade – do patrão sobre o homem – podem ser atribuídas à negligência dos primeiros princípios, e ao consequente aumento da desigualdade de posses, e tais ideias não serão subvertidas se essa desigualdade se mantiver. Os homens mantêm uma esperança cega de poder corrigir o actual estado natural das coisas ... destruindo a desigualdade existente, mas ver-se-á em breve ... que o desgoverno não é uma causa, mas uma consequência – que não é o criador, mas o criado – que é um resultado da desigualdade de posses, e que a desigualdade de posses está ligada inseparavelmente ao sistema social actual ".(Bray, pp.33, 36 e 37)

"Um sistema de igualdade não só tem do seu lado as maiores vantagens como também é de estrita justiça... Cada homem é um elo, numa cadeia de efeitos que parte duma ideia, e no final, talvez, conduza à produção de uma peça de tecido. Assim, embora se possa entreter sentimentos diferentes pelas várias profissões, isso não significa que um trabalho deva ser melhor remunerado que outro. O inventor nunca deixará de receber, além da sua justa recompensa pecuniária, o que o génio só pode obter de nós – o tributo da nossa admiração ...." (Bray, p.45)

"Pela própria natureza do trabalho e da troca, uma estrita justiça requer que todos os trocadores devam ser não só mutuamente mas também igualmente beneficiados. Os homens têm apenas duas coisas que podem trocar entre si, a saber, o trabalho e o produto do trabalho ... Se as trocas se efectuassem segundo um sistema justo, o valor dos artigos seria determinado pelo custo total de produção, e valores iguais seriam sempre trocados por valores iguais. Se, por exemplo, um chapeleiro levasse um dia para fazer um chapéu, e um sapateiro o mesmo tempo para fazer um par de sapatos – supondo a matéria-prima empregue por cada um de igual valor – e se trocarem estes artigos entre si, os benefícios são não só mútuos, mas também iguais: a vantagem obtida por qualquer das partes não pode constituir uma desvantagem para a outra, porque cada um forneceu a mesma quantidade de trabalho, e os materiais usados por cada um foram de igual valor. Mas se o chapeleiro obtivesse dois pares de sapatos por um chapéu – com o tempo e o valor dos materiais como antes – a troca seria claramente injusta. O chapeleiro usurparia o trabalho de um dia ao sapateiro, e se agisse assim em todas as suas trocas, iria receber, pelo trabalho de meio ano, o produto do trabalho de um ano inteiro de outra pessoa. Tem-se, até agora, posto em prática o sistema mais injusto de trocas – os trabalhadores fornecem o capitalista com o trabalho de um ano inteiro, em troca do valor de apenas metade de um ano – e é disso, e não de uma desigualdade de forças físicas e intelectuais entre indivíduos, que surgiu a desigualdade de riqueza e poder que, actualmente, existe. Esta desigualdade de trocas – de comprar por um preço e vender por outro – é inevitável enquanto os capitalistas continuarem a ser capitalistas, e os trabalhadores permanecerem trabalhadores – uns, uma classe de tiranos e, os outros, uma classe de escravos ... portanto, esta transacção prova claramente que os capitalistas e os proprietários apenas oferecem ao trabalhador, pelo trabalho de uma semana, uma parte da riqueza que dele obtiveram uma semana antes! – ou seja, dão-lhe nada por alguma coisa ... A transacção entre o trabalhador e o capitalista é um engano concreto, uma mera farsa: não passa, de facto e em muitas circunstâncias, de um roubo descarado embora legalizado." (Bray, pp.45, 48, 49 e 50)

"... o lucro do empregador nunca deixará de ser uma perda do trabalhador até que as trocas entre as partes sejam iguais, e as trocas nunca podem ser iguais, enquanto a sociedade for dividida em capitalistas e produtores – estes a viverem do seu trabalho e os primeiros a incharem do lucro desse trabalho. É claro que, estabelecer qualquer forma de governo que pregue a moral e o amor fraterno ... não faz existir reciprocidade onde há trocas desiguais. A desigualdade nas trocas, como causa da desigualdade de posses, é o inimigo secreto que nos devora.” (Bray, pp.51 e 52)

"Tem sido deduzido, também, a partir da consideração sobre a finalidade e a utilidade da sociedade, não só que todos os homens devem trabalhar e, assim, poder trocar, e que valores iguais devem sempre trocar-se por valores iguais – e que, como o ganho de um homem nunca deve ser a perda de um outro, o valor deve ser determinado pelo custo de produção. Mas vimos que, sob o regime social actual ... o ganho do capitalista e do homem rico é sempre a perda do trabalhador – resultado que ocorre invariavelmente, com o homem pobre deixado inteiramente à mercê do homem rico, qualquer que seja a forma de governo enquanto subsistir desigualdade nas trocas – e que a igualdade nas trocas só pode ser assegurada em regimes sociais em que o trabalho é universal .... Se existir igualdade nas trocas, a riqueza dos capitalistas actuais passará, gradualmente, destes para as classes trabalhadoras." (Bray, pp.53-55)

"Enquanto o sistema de desigualdade nas trocas for tolerado, os produtores serão sempre tão pobres, tão ignorantes e tão sobrecarregados com trabalho, como são hoje, mesmo que sejam abolidas todos os impostos e eliminadas todas as taxas ... somente uma mudança total do sistema – igualdade no trabalho e nas trocas – pode alterar este estado de direito ... Os produtores só têm que fazer um esforço – e são eles que devem fazer todos os esforços para a sua própria redenção – e as suas cadeias serão rompidas para sempre ... Como objectivo, a igualdade política é um fracasso; como meio, fracasso é.” (Bray, pp.67, 88-89, 94)

"Onde é mantida a igualdade nas trocas, o ganho de um homem nunca é a perda de outro, pois cada troca é, nessas condições, simplesmente uma transferência, e não um sacrifício de trabalho e de riqueza. Assim, sob um sistema social baseado na igualdade nas trocas, um homem parcimonioso pode tornar-se rico, mas a sua riqueza não será mais do que o produto acumulado do seu próprio trabalho. Pode trocar a sua riqueza, ou pode doá-la ... mas é impossível um homem rico continuar rico por um período mais longo se deixar de trabalhar. Sob igualdade nas trocas, a riqueza não consegue ter, como agora tem, um poder procriador aparentemente auto-gerado, como o de repor-se quando é consumida; pois, a menos que seja renovada pelo trabalho, a riqueza, uma vez consumida, perde-se em definitivo. Aquilo que hoje se chama lucros e juros não pode existir como tal se existir igualdade nas trocas; o produtor e o distribuidor serão igualmente remunerados, e a soma destes trabalhos determinará o valor total do artigo criado e posto à disposição do consumidor ...

"O princípio da igualdade nas trocas, pela sua própria natureza, determina, portanto, a garantia do trabalho universal." (Bray, pp.109-110)

Depois de refutar as objecções dos economistas contra o comunismo, o Sr. Bray prossegue:

"Se uma mudança de carácter é essencial para o sucesso de um sistema social da comunidade na sua forma mais perfeita – para mais quando o presente sistema não proporciona nem circunstâncias nem facilidades para se efectuar essa mudança necessária de carácter e preparar o homem para o estado maior e melhor desejado – é evidente que estas coisas necessariamente permanecem como estão .... a não ser que se descubra e se aplique algum passo preparatório – um movimento composto em parte do sistema presente e em parte do desejado –, um estágio intermédio, ao qual a sociedade possa chegar, com todos os seus defeitos e loucuras, e do qual possa avançar, imbuída das qualidades e atributos sem os quais o sistema de comunidade e de igualdade não pode, como tal, ter existência.” (Bray, p.134)

"Todo este movimento exigiria apenas a cooperação na sua forma mais simples .... Os custos de produção determinariam, em todas as circunstâncias, o valor dos produtos, e as trocas realizar-se-iam sempre entre valores iguais. Se uma pessoa trabalhasse uma semana inteira, e outra apenas meia semana, a primeira receberia o dobro da remuneração da segunda; mas o pagamento excedente de uma não seria feito à custa da outra, nem a perda sofrida pela segunda cairia em benefício da primeira. Cada pessoa trocaria o salário que recebeu individualmente por mercadorias do mesmo valor, e em nenhum caso poderia o ganho de um homem ou de um comércio ser uma perda para outro homem ou outro comércio. O trabalho de cada indivíduo seria a única medida dos seus ganhos e das suas perdas ... (Bray, pp.158 e 160)

"... Através de escritórios comerciais gerais e locais... as quantidades das diversas mercadorias necessárias ao consumo, o valor relativo de cada uma em relação às outras, o número de operários a empregar em cada função e cada ramo do trabalho, e todas as outras questões relacionadas com a produção e distribuição, poderiam, num curto espaço de tempo ser tão facilmente determinados para uma nação como o são para uma empresa individual sob o regime presente ... Da mesma forma que no sistema existente, os indivíduos agrupar-se-iam em famílias, e as famílias em comunas. Não haveria interferência directa na distribuição actual de pessoas entre cidade e campo, apesar desta ser má, .... Sob este sistema de acções comunitárias cada indivíduo teria a liberdade de acumular tanto quanto quisesse, e de desfrutar de tal acumulação quando e onde pensasse ser adequado, da mesma forma que sob o sistema actualmente existente, ... A nossa sociedade seria, por assim dizer, uma grande holding, composta por um número infinito de pequenas empresas todas trabalhando, produzindo e trocando os seus produtos sob o pé da mais perfeita igualdade... E a mudança para acções comunitárias (que nada mais é que uma concessão da sociedade actual, a fim de alcançar o comunismo), por ser estabelecida de forma a admitir a propriedade individual dos produtos em conexão com a propriedade comum das forças produtivas – e fazer todos os indivíduos dependentes dos seus próprios esforços, ao mesmo tempo, que lhes permite uma participação igualitária em todas as vantagens proporcionadas pela natureza e pela arte – está equipada para ser aplicada à sociedade tal como esta é, e para preparar o caminho para outras e melhores transformações". (Bray, pp. 162, 163, 168, 170 e 194)

Bastam poucas palavras para responder ao Sr. Bray que, sem nós e apesar de nós, suplantou o Sr. Proudhon, com a diferença de que o Sr. Bray, longe de reivindicar a última palavra em nome da humanidade, apenas propõe medidas que acha boas para um período de transição entre a sociedade actual e um regime de comunidade.

Uma hora de trabalho de Pedro troca-se por uma hora de trabalho de Paulo. Este é axioma fundamental do Sr. Bray.

Suponhamos que Pedro tem 12 horas de trabalho a seu favor, e Paulo apenas seis. Pedro terá, consequentemente, seis horas de trabalho de sobra. O que fará com elas?

Ou não fará nada com eles – caso em que terá trabalhado seis horas inutilmente – ou fica ocioso por outras seis horas para chegar ao equilíbrio, ou então, como último recurso, vai dar o trabalho dessas seis horas a Paulo, já que para ele não tem utilidade.

O que, no final, vai Pedro ganhar mais que Paulo? Algumas horas de trabalho? Não! Terá ganho apenas algumas horas de lazer; será forçado à preguiça por seis horas. E para que este novo direito ao ócio possa ser não só apreciado, mas também popular na nova sociedade, esta teria que encontrar a mais alta felicidade na preguiça, e olhar para o trabalho como um castigo do qual deve livrar-se a qualquer custo. E, voltando ao nosso exemplo, se, ao menos, essas horas de lazer que Pedro tinha ganho em relação a Paulo fossem realmente um ganho! Nem isso. Paulo, começando por trabalhar apenas seis horas, atinge pelo trabalho constante e regular o resultado que Pedro apenas assegura começando com um excesso de trabalho. Todos vão querer ser Paulo, haverá competição para conquistar o lugar de Paulo, uma competição na preguiça.

Pois bem! O que nos trouxe a troca de quantidades iguais de trabalho? Depreciação, superprodução, excesso de trabalho, seguido de desemprego, enfim, as relações económicas, como as vemos na sociedade actual, excepto a concorrência pelo trabalho.

Mas não! Estamos errados! Há ainda um expediente que pode salvar essa nova sociedade de Pedros e Paulos. Pedro consumirá sozinho o produto do trabalho de seis horas que lhe resta. Mas a partir do momento em que deixa de trocar porque produziu, não tem necessidade de produzir para trocar, e toda a hipótese de uma sociedade fundada sobre a troca e a divisão do trabalho cairá ao chão. Salva-se a igualdade nas trocas simplesmente devido ao facto das trocas deixarem de existir: Paulo e Pedro ficam na posição de Robinson.

Portanto, supondo todos os membros da sociedade trabalhadores imediatos, a troca de quantidades iguais de horas de trabalho só é possível na condição de o número de horas a usar na produção material ser acordado de antemão. Mas um tal acordo nega a troca individual.

Obtém-se o mesmo resultado, tomando como ponto de partida não a distribuição de produtos, mas o acto de produzir. Na indústria em grande escala, Pedro não é livre de fixar para si mesmo o tempo de trabalho, já que este não vale nada sem a cooperação de todos os Pedros e de todos os Paulos que formam a fábrica. É isto que explica muito bem a resistência obstinada dos proprietários das fábricas inglesas à Lei das Dez Horas. Eles sabiam perfeitamente que uma redução de duas horas na jornada de trabalho concedida a mulheres e crianças implicaria uma redução igual nas horas de trabalho dos homens adultos. É da natureza da grande indústria que o horário de trabalho seja igual para todos. O que hoje resulta do capital e da concorrência dos operários entre si será amanhã, rompendo a relação entre trabalho e capital, a consequência de uma convenção com base na relação entre a soma das forças produtivas e a soma das necessidades existentes.

Mas uma tal convenção é uma condenação da troca individual, e assim chegamos à nossa primeira conclusão!

A princípio, não há troca de produtos; há troca de trabalhos que concorrem para a produção. O modo de troca de produtos depende do modo de troca das forças produtivas. No geral, a forma de troca de produtos corresponde à forma de produção. Altere-se esta última, e a primeira mudará em consequência. Assim, na história da sociedade, vemos que o modo de troca dos produtos é regulado pelo modo de os produzir. A troca individual corresponde também a um dado modo de produção que corresponde à existência de antagonismos entre classes. Assim, não há troca individual sem antagonismo entre classes.

Mas consciências honestas recusam esta evidência. Quando se é burguês, não se pode ver, nessa relação de antagonismo, mais que uma relação de harmonia e justiça eterna, que não permite a ninguém ganhar à custa de outro. Para o burguês a troca individual pode existir sem qualquer antagonismo de classes: para ele, estas são duas coisas completamente dispares. A troca individual, tal como a burguesia a representa, está longe de ser semelhante à troca individual tal como é praticada.

O Sr. Bray faz da ilusão da respeitável burguesia o ideal que gostaria de alcançar. Ele vê, na troca individual purificada, livre de todos os elementos de antagonismo que encontra nela, uma relação "igualitária" que quereria a sociedade adoptasse.

Sr. Bray não vê que essa relação igualitária, esse ideal correctivo que gostaria de aplicar ao mundo, é, em si mesmo, um reflexo do mundo real, e que, portanto, é totalmente impossível reconstituir a sociedade sobre a base do que é apenas uma sombra embelezada de si mesma. Conforme esta sombra se vai materializando, percebemos que o resultado, longe de ser a transfiguração sonhada, é o corpo real da sociedade.[1]

 

3. Aplicação da lei da proporcionalidade do valor



[1] A teoria do Sr. Bray, como todas as teorias, tem encontrado adeptos que se deixaram enganar pelas aparências. Foram criadas em Londres, Sheffield, Leeds e muitas outras cidades da Inglaterra lojas para a justa troca de produtos do trabalho. Estas lojas faliram escandalosamente depois de terem absorvido um capital considerável. O gosto por elas passou definitivamente: este é um aviso, M. Proudhon! [Nota de Marx]

Sabe-se que Proudhon não tomou esta advertência a sério. Em 1849 ele mesmo fez uma tentativa com um novo banco de trocas em Paris. O banco, entretanto, faliu antes de iniciar actividade: perseguições judiciais a Proudhon encobriram este colapso. [Nota de Engels à edição alemã 1885]


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Terça-feira, 8 de Janeiro de 2013
Miséria da Filosofia, resposta à "Filosofia da Miséria" do Sr. Proudhon - 2

(Início)

2. O valor constituído ou valor sintético

O valor (venal) é a pedra angular do edifício económico” (T1, p. 90). O valor "constituído" é a pedra angular do sistema de contradições económicas.

O que é, então, este "valor constituído", a descoberta do Sr. Proudhon em economia política?

Uma vez admitida a utilidade, o trabalho é a fonte de todo o valor. A medida do trabalho é o tempo. O valor relativo dos produtos é determinado pelo tempo de trabalho necessário para a sua produção. O preço é a expressão monetária do valor relativo de um produto. Finalmente, o valor constituído de um produto é, pura e simplesmente, o valor que se constitui pelo tempo de trabalho nele incorporado.

Assim como Adam Smith descobriu a divisão do trabalho, o Sr. Proudhon afirma ter descoberto o "valor constituído". Não se trata exactamente de "algo inédito", mas também se deve admitir que nada há de inédito em qualquer descoberta da ciência económica. Mas, o Sr. Proudhon, que reconhece toda a importância de sua própria invenção, procura atenuar o próprio mérito "a fim de tranquilizar o leitor acerca das suas pretensões à originalidade, e para conquistar os espíritos cuja timidez os torna pouco favorável às ideias novas". No entanto, à medida que reparte por cada um de seus antecessores as contribuições para a compreensão do valor, vê-se obrigado a confessar abertamente que a maior parte, a parte do leão, do mérito recai sobre si mesmo.

"A ideia sintética de valor,… foi vagamente percebida por A. Smith...

Mas esta ideia de valor era totalmente intuitiva em Adam Smith; ora, a so­ciedade não modifica os seus hábitos apenas por intuições, ela decide-se apenas sob a autoridade dos factos. Era preciso que a antinomia se expri­misse de uma maneira mais sensível e mais nítida e J. B. Say foi o seu principal intérprete". [I, 66]

Eis a história completa da descoberta do valor sintético: Adam Smith – vaga intuição; JB Say – antinomia; ao Sr. Proudhon – a verdade constituinte e "constituída". E que ninguém se equivoque: todos os outros economistas, de Say a Proudhon, apenas se arrastaram na trilha da antinomia.

"É incrível que tantos homens de bom senso se agitem há mais de quarenta anos contra uma ideia tão simples. Mas não: a comparação de valores efectua-se sem que haja entre eles qualquer ponto de comparação e sem unidade de medida. Eis o que os economistas do séc. XIX resolveram sustentar contra tudo e contra todos, ao invés de abraçar a teoria revolucionária da igualdade. O que dirá disso a posteridade?" (Vol.I, p.68)

A posteridade, tão abruptamente invocado, começará por ficar confusa com a cronologia. Ela é obrigada a perguntar-se: não são Ricardo e os economistas da sua escola do século XIX? O sistema de Ricardo, fundado no princípio segundo o qual "o valor relativo das mercadorias corresponde exclusivamente à quantidade de trabalho requerido para a sua produção", remonta a 1817. Ricardo lidera uma escola dominante na Inglaterra desde a Restauração. [A Restauração começou após o término das guerras napoleónicas e da restauração da dinastia Bourbon na França, em 1815] A doutrina ricardiana resume severamente, sem piedade, o ponto de vista de toda a burguesia inglesa, que é, em si mesma, o modelo da burguesia moderna. "O que dirá disso a posteridade?" Ninguém dirá que o Sr. Proudhon não sabia de Ricardo, pois fala, e muito, sobre ele, concluindo que o sistema dele é uma "mistura incoerente". Se alguma vez a posteridade intervier nisto, talvez diga que o Sr. Proudhon, com medo de ofender a anglofobia dos seus leitores, preferiu fazer-se o editor responsável das ideias de Ricardo. Em qualquer caso, parecerá à posteridade muito ingénuo que o Sr. Proudhon exiba como "teoria revolucionária do futuro" o que Ricardo expôs cientificamente como a teoria da sociedade actual, da sociedade burguesa, bem como o facto de considerar como a solução da antinomia entre a utilidade e o valor de troca aquilo que Ricardo e sua escola apresentaram, muito antes dele, como a fórmula científica de um único termo dessa antinomia, do valor de troca. Mas deixemos de lado a posteridade, de uma vez por todas, e confrontemos o Sr. Proudhon com o seu predecessor Ricardo. Eis alguns trechos deste autor que resumem a sua doutrina sobre o valor:

"Não é… a utilidade que é a medida do valor de troca, embora lhe seja absolutamente essencial" (Vol.I, p. 3, Principes de l'économie politique, etc., traduzido do Inglês por F.S. Constancio, Paris 1835)

"As mercadorias possuindo utilidade, o seu valor de troca deriva de duas fontes: da sua escassez, e da quantidade de trabalho necessária para obtê-las. Existem alguns produtos cujo valor é determinado apenas pela sua escassez. Como não há trabalho que possa aumentar a quantidade de tais bens, o seu valor não se pode baixar aumentando a oferta. É o caso de estátuas, de pinturas preciosas, etc. em que o valor varia de acordo com a riqueza, o gosto e o humor dos que desejam possuí-las.” (Vol.I, pp.4 e 5)

"Estes produtos, no entanto, formam uma parte muito pequena da massa de mercadorias trocada diariamente. São, de longe, a maior parte dos bens objecto de desejo, os que são produtos da indústria, e podem ser multipli­cados, não num só país, mas em vários, e, querendo dispor do trabalho necessário para produzi-los, quase sem limite atribuível." (Vol.I, p. 5)

"Portanto, ao falar de mercadorias, do seu valor de troca e das leis que regulam os seus preços relativos, queremos falar dos produtos cuja quantidade pode ser aumentada pelo esforço da indústria humana, e em cuja produção a concorrência opera sem restrição.” (Vol.I, p. 5)

Ricardo cita Adam Smith, que, segundo o próprio, "definiu com grande precisão a fonte original do valor de troca" (Adam Smith, Riqueza das Nações, Livro I, Cap. 5 [Inquérito sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações, edição aparecida em Londres em primeiro lugar, 1776]), e acrescenta:

"Que este [ou seja, o tempo de trabalho] é realmente a base do valor de troca de todas as coisas, com excepção daquelas que não podem ser multiplicadas pela indústria humana, é uma doutrina de extrema importância na economia política, pois não existe outra fonte maior de erros, e de diferença de opinião nesta ciência, do que a que parte de ideias vagas ligadas à palavra valor.” (Vol.I, p.8)

"Se a quantidade de trabalho fixado nas mercadorias regular o seu valor de troca, a cada aumento da quantidade de trabalho exercido numa mercadoria deve corresponder um crescimento do seu valor, da mesma forma que a toda diminuição deve corresponder uma redução." (Vol.I, p.8)

Ricardo continua, censurando Smith:

1. Por "erigir outra medida padrão de valor diferente do trabalho. Por vezes fala de valor do grão, por vezes da quantidade de trabalho que pode comprar algo, etc." (Vol.I, pp.9 e 10)

2. Por "admitir o princípio, sem reservas, e, ao mesmo tempo, restringir a sua aplicação ao estado primitivo e rude da sociedade que precede a acumulação de capitais e da propriedade privada da terra." (Vol.I, p.21)

Ricardo prepara-se para provar que a propriedade da terra, isto é, a renda da terra, não pode alterar o valor relativo dos produtos agrícolas e que a acumulação de capital tem apenas um efeito passageiro e perturbador nos valores relativos que são determinados pela quantidade comparativa de trabalho despendido na sua produção. Em apoio desta tese, formula a sua famosa teoria da renda da terra, analisa o capital, e acaba por encontrar nele apenas trabalho acumulado. Em seguida, desenvolve toda uma teoria do salário e do lucro, demonstrando que salários e lucros sobem e descem na razão inversa uns dos outros, sem afectar o valor relativo do produto. Ele não negligencia a influência que a acumulação de capital e seus diferentes aspectos (capital fixo e capital circulante), como também a taxa de salários, podem exercer sobre o valor proporcional dos produtos. Na verdade, estes são os principais problemas com que Ricardo se ocupa.

"Nunca a economia no uso de trabalho deixa de reduzir o valor relativo[1] de uma mercadoria, quer a poupança esteja no trabalho necessário para o fabrico do próprio produto, quer no trabalho necessário para a formação do capital, pela ajuda do qual é produzida.” (Vol.I, p.28)

"Sob tal circunstância, o valor da caça, produto do trabalho no dia do caçador, seria exactamente igual ao valor do peixe, o produto do trabalho no dia do pescador. O valor comparativo do peixe e da caça seria inteiramente regulada pela quantidade de trabalho realizado por cada um, qualquer que seja a quantidade da produção, ou quaisquer que possam ser as altas ou as baixas dos salários ou dos lucros.” (Vol.I, p.28)

"Considerar o trabalho o fundamento do valor das mercadorias, e a quantidade relativa de trabalho necessária à sua produção, a regra que determina as respectivas quantidades de bens pelas quais devem ser dadas em troca, não é negar a possibilidade que o preço real ou de mercado das mercadorias sofra desvios acidentais e temporários desse seu preço primário e natural.” (Vol.I, p.105, lc)

"É o custo de produção que regula, em última análise, o preço das mercadorias, e não, como tem sido dito muitas vezes, a relação entre a oferta e a procura." (Vol.II, p.253)

O senhor Lauderdale tinha explicado as variações do valor de troca de acordo com a lei da oferta e da procura, ou da escassez e da abundância em relação à procura. Na sua opinião, o valor de uma coisa pode aumentar quando escasseia ou quando a procura cresce, e pode diminuir quando abunda ou quando a procura se reduz. Assim, o valor de uma coisa pode variar por oito causas diferentes, a saber, quatro causas referentes à própria coisa e outras quatro que se aplicam ao dinheiro ou a qualquer outra mercadoria que sirva como medida do seu valor. Eis a refutação de Ricardo:

"As mercadorias que são monopolizadas por um indivíduo ou por uma empresa variam de valor de acordo com a lei que o Senhor Laudersdale formulou: ele cai na medida em que são oferecidas em maior quantidade, e aumenta na proporção em que escasseiam ou que a procura aumenta; o seu preço não tem uma relação necessária com o seu valor natural, mas os preços das mercadorias que estão sujeitos à concorrência, e cuja quantidade pode ser aumentada, de forma moderada, dependem, em última análise, não do estado da procura e da oferta, mas do aumento ou da diminuição dos custos de produção.” (Vol.II, p.259)

Deixamos ao leitor fazer a comparação entre a linguagem simples, clara e precisa de Ricardo e as tentativas retóricas do Sr. Proudhon para chegar à determinação do valor relativo pelo tempo de trabalho.

Ricardo mostra-nos o movimento real da produção burguesa, aquilo que constitui o valor. O Sr. Proudhon, abstraindo-se do movimento real que conta, “debate-se" para inventar novos processos e alcançar a reorganização do mundo segundo uma fórmula pretensamente original, que, na verdade, não passa da expressão teórica do movimento real existente e que já tinha sido tão bem descrito por Ricardo. Ricardo parte da sociedade actual para demonstrar como se constitui o valor; o Sr. Proudhon parte do valor constituído para, através desse valor, constituir um novo mundo social. Para o Sr. Proudhon, o valor constituído deve movimentar-se e tornar-se o factor constituinte num mundo já completamente constituída de acordo com este modo de avaliação. A determinação do valor pelo tempo de trabalho é, para Ricardo, a lei do valor de troca; para o Sr. Proudhon, é a síntese do valor de uso e do valor de troca. A teoria de valores de Ricardo é a interpretação científica da vida económica real; a teoria de valores do Sr. Proudhon é a interpretação utópica da teoria de Ricardo. Ricardo verifica a verdade da sua fórmula, derivando-a de todas as relações económicas, e, explica desta forma todos os fenómenos, mesmo aqueles como a renda da terra, a acumulação de capital e a relação entre salários e lucros, que, à primeira vista, parecem contradizê-la; é precisamente isto que faz da sua doutrina um sistema científico. O Sr. Proudhon, que redescobriu esta fórmula de Ricardo através de hipóteses inteiramente arbitrárias, é forçado depois a procurar factos económicos isolados que torce e falsifica para fazer passá-los como exemplos, aplicações já existentes, realizações iniciais da sua ideia regeneradora. (Cfr., adiante, o ponto 3. Aplicação da lei da proporcionalidade do valor)

Vejamos agora as conclusões que o Sr. Proudhon retira do valor constituído (pelo tempo de trabalho):

– uma certa quantidade de trabalho equivale ao produto criado por essa mesma quantidade de trabalho.

– qualquer jornada de trabalho equivale a outra jornada de trabalho; ou seja, se as quantidades forem iguais, o trabalho de um homem vale tanto quanto o trabalho de outro homem: não há diferenças qualitativas. Dado que as quantidades de trabalho são iguais, o produto de um homem pode ser dado em troca pelo produto de outro. Todos os homens são trabalhado­res assalariados recebendo igual remuneração por igual tempo de trabalho. É a perfeita igualdade que rege as trocas.

São estas as conclusões rigorosas, as consequências naturais do valor "constituído" ou determinado pelo tempo de trabalho?

Se o valor relativo de uma mercadoria é determinado pela quantidade de trabalho necessária para produzi-lo, segue-se naturalmente que o valor relativo do trabalho, o salário, é igualmente determinado pela quantidade de trabalho necessária para produzir esse salário. O salário, isto é, o valor relativo ou o preço do trabalho é assim determinado pelo tempo de trabalho requerido para produzir tudo o que é necessário para a manutenção do operário.

"Diminua-se o custo de produção de chapéus, e o seu preço acabará por cair para um novo preço natural, mesmo que a procura possa ter dupli­cado, triplicado, ou quadruplicado. Diminua-se o custo de subsistência dos homens, pela diminuição do preço natural dos alimentos e vestuário, pelos quais a vida é sustentada, e os salários, em última análise, irão cair não obstante a procura por trabalhadores possa crescer consideravelmente.” (Ricardo, Vol.II, p.253)

Sem dúvida que a linguagem de Ricardo não pode ser mais cínica. Colocar o custo de fabricação de chapéus e o custo de manutenção dos homens no mesmo plano é transformar os homens em chapéus. Mas não se proteste contra o cinismo dessa linguagem. O cinismo está nos factos, não nas palavras que os expressam. Escritores franceses como os Srs. Droz, Blanqui, Rossi e outros, obtêm uma satisfação inocente provando a sua superioridade sobre os economistas ingleses, ao observarem a etiqueta de uma fraseologia "humanitária". Se atiram à cara de Ricardo e da sua escola que estes usam uma linguagem cínica, é porque os irrita ver as relações económicas expostos em toda a sua crueza e os mistérios da burguesia desmascarados.

Resumindo: o trabalho, sendo ele próprio uma mercadoria, é medido como tal pelo tempo de trabalho necessário para produzir o trabalho-merca­doria. E o que é necessário para tanto? Exactamente o tempo de trabalho necessário para produzir os bens indispensáveis à ma­nutenção contínua do trabalho, isto é, para manter o trabalhador vivo e em condições de propagar a sua raça. O preço natural do trabalho não é outro senão o salário mínimo.[2] Se o preço corrente dos salários ultrapassa este preço natural, é precisamente porque a lei do valor, que o Sr. Proudhon coloca como princípio, é compensada pelas consequências das variações da relação entre oferta e procura. Mas o salário mínimo não deixa de ser o cen­tro em torno do qual gravitam os preços correntes dos salários.

Assim, o valor relativo, medido pelo tempo de trabalho, é, fatal­mente, a fórmula da escravidão actual do operário, em vez de ser, como o Sr. Proudhon pretende, a "teoria revolucionária" da emancipação do proletariado.

Vejamos, agora em que casos, a aplicação do tempo de trabalho como medida de valor é incompatível com o antagonismo entre classes existente e com a distribuição desigual do produto entre o trabalhador imediato e o proprietário de trabalho acumulado.

Suponhamos um produto qualquer, por exemplo, tecido de linho. Este produto, como tal, encerra uma dada quantidade de trabalho. Esta será sempre a mesma qualquer que seja a situação recíproca daqueles que concorreram para criar o produto.

Tomemos um outro produto: um pano de lã que tenha exigido a mesma quantidade de trabalho que o tecido de linho.

Se houver uma troca destes dois produtos, existe uma troca de quantidades iguais de trabalho. Numa troca de quantidades iguais de tempo de trabalho, nada muda na posição recíproca dos produtores, assim como permanece inalterada a situação dos operários e dos fabricantes entre si. Afirmar que esta troca de produtos medidos pelo tempo de trabalho resulta em igualdade de retribuição a todos os produtores é supor que a igualdade de participação no produto existia antes da troca. Quando a troca de pano de lã pelo tecido de linho se realiza, os produtores de pano de lã passam a compartilhar o tecido numa proporção igual àquela em que anteriormente compartilhavam o pano de lã.

A ilusão do Sr. Proudhon é provocada por tomar como consequência o que poderia ser, no máximo, uma suposição gratuita.

Prossigamos.

O tempo de trabalho, como medida de valor, supõe, pelo menos, que as jornadas são equivalentes, e que a jornada de um homem vale tanto quanto a de outro? Não.

Admitamos, por um momento, que a jornada de um joalheiro equivale a três jornadas de um tecelão; permanece o facto de qualquer alteração no valor das jóias em relação ao dos tecidos, a menos que seja um resultado transitório de flutuações na oferta e na procura, dever ser consequência de uma redução ou de um aumento do tempo de trabalho despendido na produção de um ou de outro artigos. Se três jornadas de trabalho de trabalhadores diferentes estiverem relacionadas entre si na proporção de 1:2:3, qualquer variação no valor relativo dos seus produtos corresponderá a uma mudança nessa proporção de 1:2:3. Assim, os valores podem ser medidos pelo tempo de trabalho, apesar da disparidade de valor das diferentes jornadas de trabalho; mas, para aplicar uma tal medida, é necessário ter uma escala comparativa das diferentes jornadas de trabalho –e é a competição que define essa escala.

A sua hora de trabalho vale tanto quanto a minha? Essa é a questão que é decidida pela competição.

A competição, de acordo com um economista americano, determina quantas jornadas de trabalho simples estão contidas numa jornada de trabalho complexo. Esta redução da jornada de trabalho complexo a jornadas de trabalho simples não suporá que o trabalho simples é tomado como medida de valor? Por outro lado tomar apenas a quantidade de trabalho como medida de valor, independentemente da qualidade, pressupõe que o trabalho simples se tornou o pivô da indústria. Pressupõe que os trabalhos foram equalizados pela subordinação do homem à máquina ou pela extrema divisão do trabalho; que os homens se apagam diante do trabalho; que o pêndulo do relógio se tornou na medida exacta da actividade relativa de dois trabalhadores como o é da velocidade de duas locomotivas. Portanto, não devemos dizer que uma hora de um homem vale uma hora de outro homem, mas sim que um homem de uma hora vale tanto quanto outro homem de uma hora. O tempo é tudo, o homem não é nada, ele é, no máximo, a carcaça do tempo. A qualidade já não importa. A quantidade decide tudo: hora por hora, jornada por jornada. Mas esta equalização do trabalho não resulta da realização da justiça eterna do Sr. Proudhon, é pura e simplesmente um facto da indústria moderna.

Na fábrica, o trabalho de um operário mal se distingue de qualquer forma de trabalho de outro operário: os operários só se distinguem entre si pela quantidade de tempo que despendem. No entanto, essa diferença quantitativa torna-se, de um certo ponto de vista, qualitativa, já que o tempo que despendem depende, em parte, de causas puramente materiais, tais como a constituição física, a idade e o sexo; e em parte, de causas morais puramente negativas, como a paciência, a diligência e a imperturbabilidade. Em suma, se há diferença de qualidade no trabalho de operários diferentes, ela é, no máximo, na qualidade do pior tipo, o que está longe de ser uma especialidade distintiva. Em última análise, este é o que o estado de coisas da quantidade na industria moderna. E é sobre esta igualdade, já realizada pelo trabalho mecanizado, que o Sr. Proudhon aplica a sua plaina da "equalização", a cumprir-se universalmente em "tempo que há-de vir!"

Todas as consequências "igualitárias" que o Sr. Proudhon deduz da doutrina de Ricardo são baseadas num erro fundamental. Ele confunde o valor das mercadorias medido pela quantidade de trabalho incorporado nelas com o valor das mercadorias medido pelo "valor do trabalho". Se estas duas formas de medir o valor das mercadorias forem equivalentes, pode-se dizer indiferentemente em relação ao valor de qualquer mercadoria que é medido pela quantidade de trabalho incorporado na mesma, ou que é medido pela quantidade de trabalho que se pode comprar com essa mercadoria; ou, de outra forma, que é medido pela quantidade de trabalho que pode adquiri-la. Mas está longe de ser assim. O valor do trabalho não serve como uma medida do valor de qualquer outra mercadoria. Alguns exemplos bastarão para explicar ainda melhor o que acabamos de afirmar.

Se o moio de trigo custasse duas jornadas de trabalho em vez de uma, teria o dobro do seu valor original, mas não colocaria em acção o dobro da quantidade de trabalho, porque não conteria mais valor nutritivo do que antes. Assim, o valor do moio de trigo, medido pela quantidade de trabalho usado para produzi-lo, teria dobrado; mas medido quer pela quantidade de trabalho que pode comprar quer pela quantidade de trabalho com que pode ser comprado, estaria muito longe de ter dobrado. Por outro lado, se o mesmo trabalho produzir o dobro da roupa que antes, o seu valor relativo cairá para metade, no entanto, essa quantidade de vestuário não exigirá metade da quantidade de trabalho anterior, nem a mesma quantidade de trabalho comprará o dobro da roupa, pois metade destas roupas continuará a servir o trabalhador da mesma forma que antes servia a mesma quantidade.

Assim, determinar o valor relativo das mercadorias pelo valor do trabalho contradiz os factos económicos. É mover-se num círculo vicioso: é determinar um valor relativo por outro valor relativo que, por sua vez, tem de ser determinado.

Sem dúvida que o Sr. Proudhon confunde as duas medidas, a medida pelo tempo de trabalho necessário à produção da mercadoria e a medida pelo valor do trabalho. "O trabalho de qualquer homem", diz ele, "pode comprar o valor que ele encerra". Assim, segundo ele, uma certa quantidade de trabalho incorporado num dado produto é equivalente ao pagamento do trabalhador, isto é, ao valor do trabalho. É o mesmo raciocínio que o leva a confundir custos de produção com salários.

"… no fundo, o que é o salário? É o preço de venda do trigo, [etc.] ..., é o preço integrado de todas estas coisas. Mas iremos um pouco mais longe: o salário é a proporcionalidade dos elementos que compõem a riqueza…" O que é o salário? É o valor do trabalho.

Adam Smith toma como a medida do valor ora o tempo de trabalho necessário para a produção de uma mercadoria, ora o valor do trabalho. Ricardo expõe esse erro, mostrando claramente a disparidade dessas duas formas de medir. O Sr. Proudhon vai mais longe do que Adam Smith no erro, identificando as duas coisas que o último tinha apenas colocado em justaposição.

É com o fim de encontrar a proporção adequada em que os trabalhadores devem participar dos produtos, ou, por outras palavras, para determinar o valor relativo do trabalho, que o Sr. Proudhon procura uma medida para o valor relativo das mercadorias. Para calcular o valor relativo das mercadorias, imagina que o melhor é considerar como equivalente de uma certa quantidade de trabalho a soma total dos produtos que ele cria, que significa supor que toda a sociedade consiste apenas em trabalhadores que recebem como salário a sua própria produção. Em segundo lugar, assume a equivalência entre as jornadas dos diversos trabalhadores. Em suma, procura a medida do valor relativo das mercadorias para encontrar a retribuição igual dos trabalhadores, e toma a igualdade de salários como um facto já estabelecido para encontrar o valor relativo das mercadorias. Que dialéctica admirável!

"Say, e os economistas que o seguiram, observaram que o próprio trabalho estava sujeito à avaliação; [seria] uma mercadoria como as outras, enfim, e haveria portanto um círculo vicioso em tomá-lo por princípio e causa eficiente do valor…

“Estes economistas, que eles me permitam dizê-lo, deram mostras com isso de uma prodigiosa desatenção. Diz-se que o trabalho vale, não enquanto mercadoria em-si mas em função dos valores que se supõem encerrados potencialmente nele. O valor do trabalho é uma expressão figurada, uma antecipação da causa sobre o efeito. É uma ficção, da mesma forma que a produtividade de capital. O trabalho produz, o capital vale e quando, por uma espécie de elipse, diz-se valor do trabalho... O trabalho, como a liberdade ... é uma coisa vaga e indeterminada na sua natureza, mas que se define qualitativamente pelo seu objecto, quer dizer, torna-se uma realidade pelo seu produto.” [I 61]

Seria necessário insistir? A partir do momento em que o economista [leia-se Sr. Proudhon] muda o nome das coisas, vera rerum vocabula [nomes reais das coisas], confessa implicitamente a sua impotência e põe-se fora de causa. (Cft. Proudhon, I, 188)

Vimos que o Sr. Proudhon faz do valor do trabalho a "causa determinante" do valor dos produtos, de tal forma que, para ele, o salário, nome oficial do "valor que encontra problemas na objecção de Say. Na mercadoria trabalho, que é uma triste realidade, ele não vê mais que uma elipse gramatical. Assim, toda a sociedade existente, baseada na mercadoria trabalho, passa, doravante, a ser baseada numa permissividade poética, numa expressão figurada. A sociedade quer "eliminar todos os inconvenientes" que a atormentam? Pois bem, basta-lhe eliminar os termos que soam mal, alterar a linguagem, e com esse fim, dirigir-se à Academia para uma nova edição do seu dicionário! Depois disto tudo, é fácil entender por que o Sr. Proudhon, num trabalho de economia política, teve que entrar em longas dissertações sobre etimologia e outras partes da gramática. Por isso, ainda não superou a fase da velha sábia polémica sobre a derivação de servus [escravo, servo] a partir de servare [preservar, conservar]. Estas dissertações filológicas têm um profundo significado, um significado esotérico, formando uma parte essencial da argumentação do Sr. Proudhon.

O trabalho, a força de trabalho, na medida em que é comprado e vendido, é uma mercadoria como qualquer outra, e tem, em consequência, um valor de troca. Mas o valor do trabalho, ou o trabalho, enquanto mercadoria, produz tão pouco quanto o valor do trigo, ou o trigo, enquanto mercadoria, serve como alimento.

O trabalho "vale" mais ou menos, consoante os produtos alimentares são mais ou menos caros, segundo o grau em que a oferta e a procura de mão-de-obra existem, etc., etc..

O trabalho não é uma "coisa vaga", é sempre um trabalho determinado, nunca é um trabalho em geral o que é comprado ou vendido. Não é só o trabalho que é qualitativamente definido pelo objecto; também o objecto é determinado pela qualidade específica do trabalho.

O trabalho, na medida em que é comprado e vendido, é ele próprio uma mercadoria. É comprado em função de quê? "Em função dos valores que se supõem encerrados potencialmente nele". Mas quando se diz que certa coisa é uma mercadoria, não há dúvida quanto à razão pela qual é comprada, ou seja, quanto à utilidade que se pretende extrair dela, da aplicação que se fará dela. É mercadoria enquanto objecto de tráfego. Os argumentos do Sr. Proudhon limitam-se ao seguinte: o trabalho não é comprado como um objecto de consumo imediato. Não, ele é comprado como um instrumento de produção, da mesma forma que uma máquina é comprada. Enquanto mercadoria, o trabalho vale mas não produz. O Sr. Proudhon poderia muito bem ter dito que não existem mercadorias, uma vez que cada produto é comprado com uma dada finalidade utilitária, e não enquanto mercadoria.

Na medição do valor das mercadorias pelo trabalho, o Sr. Proudhon vislumbra vagamente a impossibilidade de excluir o trabalho dessa mesma medida, dado que encerra um valor, enquanto mercadoria trabalho. Ele pressente que significa fazer do salário mínimo o preço natural e normal do trabalho imediato, e que equivale a aceitar o estado actual da sociedade. Então, para escapar desta consequência fatal, faz meia-volta e afirma que o trabalho não é uma mercadoria, que não pode ter valor. Esquece-se que ele próprio tomou o valor do trabalho como medida, esquece-se que todo o seu sistema repousa sobre o trabalho como mercadoria, sobre o trabalho que se troca, compra, vende, permuta por produtos, etc., sobre o trabalho que é uma fonte imediata de rendimento para o trabalhador. Esquece-se de tudo.

Para salvar o seu sistema, ele consente em sacrificar a sua base. Et propter vitam, vivendi perdere causas!

Chegamos, agora, a uma nova definição de "valor constituído": “é a relação de proporcionalidade dos elementos que compõem a riqueza".

Notemos, em primeiro lugar que a única frase "valor relativo ou troca" implica a ideia de uma relação em que os produtos são trocados reciprocamente. Designando esta relação por "relação de proporcionalidade", nada se modifica no valor relativo, excepto a sua expressão. Nem a depreciação nem o aumento do valor de um produto destroem a propriedade de entrar numa "relação de proporcionalidade" com os outros produtos que constituem a riqueza.

Qual a razão desta nova designação que não introduz uma ideia nova?

A "relação de proporcionalidade" sugere muitas outras relações económicas, tais como a proporcionalidade da produção, a justa proporção entre oferta e procura, etc., e o Sr. Proudhon pensou em tudo isso quando formulou esta paráfrase didáctica de valor comercial.

Em primeiro lugar, o valor relativo dos produtos a ser determinado pela quantidade comparativa de trabalho utilizado na produção de cada um deles, a relação de proporcionalidade, aplicada a este caso especial, repousa na respectiva quota de produtos que podem ser fabricados num dado tempo, e que, consequentemente, são trocáveis entre si.

Vejamos o que o Sr. Proudhon extrai a partir desta relação de proporcionalidade.

Todos sabem que, quando a oferta e a procura se equilibram, o valor relativo de qualquer produto é determinado com precisão pela quantidade de trabalho nele incorporado, que é dizer, que este valor relativo expressa a relação de proporcionalidade precisamente no sentido de que acabámos de esclarecer. O Sr. Proudhon inverte a ordem das coisas. Comece-se, diz ele, por medir o valor relativo de um produto pela quantidade de trabalho incorporado no mesmo, e a oferta e a procura infalivelmente se equilibrarão; a produção corresponderá ao consumo, o produto será sempre permutável; o seu preço actual expressará exactamente o seu verdadeiro valor. Em vez de dizer como todos os outros – quando faz bom tempo, vemos muita gente a passear – o Sr. Proudhon manda as pessoas passearem para lhes assegurar o bom tempo.

O que o Sr. Proudhon dá como consequência do valor comercial determinado a priori pelo tempo de trabalho só poderia ser obtido por uma lei expressável mais ou menos nos seguintes termos: os produtos serão, de agora em diante, trocados na proporção exacta do tempo de trabalho que custam; qualquer que seja a relação entre a oferta e a procura, a troca de mercadorias será sempre feita como se tivessem sido produzidos proporcionalmente à procura. Se o Sr. Proudhon formular e fizer aplicar uma tal lei, então dispensamos as provas. Mas se, ao contrário, insiste em justificar a teoria, não como legislador, mas como economista, então terá de provar que o tempo necessário para criar um produto indica exactamente o grau da sua utilidade e marca a sua relação de proporcionalidade com a procura e, por consequência, com o conjunto da riqueza. Neste caso, se um produto é vendido a um preço igual ao seu custo de produção, a oferta e a procura serão sempre equilibradas, porque se pressupõe que o custo de produção expressa a verdadeira relação entre a oferta e a procura.

Na verdade, o Sr. Proudhon esforça-se para provar que o tempo de trabalho necessário para criar um produto expressa a sua verdadeira relação de proporcionalidade com as necessidades, de modo que as coisas quanto menos tempo de produção exigem, mais imediatamente úteis são, e assim por diante, gradualmente. A mera produção de um objecto de luxo comprovaria, de acordo com esta doutrina, que a sociedade teria tempo livre para permitir satisfazer uma necessidade de luxo.

O Sr. Proudhon encontra a prova de sua tese na observação de que as coisas mais úteis custam menos tempo a produzir, que a sociedade começa sempre com as indústrias mais fáceis e progressivamente "se inicia na produção de objectos que exigem mais tempo de trabalho e correspondem a necessidades de uma ordem superior”.

O Sr. Proudhon toma emprestado do Sr. Dunoyer o exemplo da indústria extractiva – colecta, pastoreio, caça, pesca, etc. – que é a mais simples, a menos dispendiosa, e aquela pela qual o homem começou "o primeiro dia da sua segunda criação. O primeiro dia da sua primeira criação está registado no Génesis, que apresenta Deus como o primeiro fabricante do mundo.

As coisas acontecem de uma maneira bem diferente do que o Sr. Proudhon imagina. No começo da civilização, a produção é fundada no antagonismo entre as ordens, as classes, os estamentos e, finalmente, no antagonismo entre o trabalho acumulado e o trabalho em realização. Sem antagonismo, não há progresso. Esta é a lei que a civilização tem seguido até hoje. Até agora as forças produtivas desenvolveram-se graças ao sistema de antagonismos de classes. Afirmar agora que seria porque todas as necessidades de todos os trabalhadores estavam satisfeitas, que os homens se poderiam dedicar à criação de produtos de uma ordem superior – com indústrias mais complexas – é desprezar os antagonismos entre classes e inverter tudo no desenvolvimento histórico. É como dizer que, como sob os imperadores romanos havia moreias mantidas em viveiros artificiais, então estava provado que toda a população romana era fartamente alimentada. A verdade era o contrário, enquanto o povo romano não tinha o suficiente para comprar pão, aos aristocratas romanos sobravam escravos suficientes para os jogar como forragem às moreias.

 

(seguinte)



[1] Ricardo, como é bem conhecido, determina o valor de uma mercadoria pela quantidade de trabalho necessário para a sua produção. No entanto, devido à forma predominante de troca em cada modo de produção baseado na produção de mercadorias, incluindo, portanto, o modo de produção capitalista, este valor não se expressa directamente na quantidade de trabalho, mas em quantidades de algumas outras mercadorias. O valor de uma mercadoria expressa numa quantidade de outra mercadoria (seja ela dinheiro ou não) é denominado por Ricardo valor relativo. [Nota de Engels à edição alemã 1885]

[2] A tese de que o preço "natural", isto é, o preço normal da força de trabalho coincide com o salário mínimo, ou seja, com o equivalente em valor dos meios de subsistência absolutamente indispensável à vida e à procriação do operário, foi apresentada pela primeira vez por mim em Esboços para uma Crítica da Economia Política ( Deutsch-Französische Jahrbücher , Paris 1844) e n’ A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra em 1844 . Como aqui se vê, Marx adoptou, naquela época, esta tese; Lassalle tomou-a de nós dois. Mas, mesmo que, na realidade, os salários tendam constantemente a aproximarem-se do mínimo, a tese acima é incorrecta. É verdade que, no geral e em média, a força de trabalho é paga abaixo do seu valor, mas não é esse facto que altera o seu valor. N’O Capital (Secção “Compra e Venda de Força de Trabalho” e também no Capítulo XXIII: “A Lei Geral da Acumulação Capitalista”) Marx corrigiu esta tese, analisando as condições que permitem à produção capitalista reduzir progressivamente o preço da força de trabalho, pagando abaixo do seu valor. [Nota de Engels à edição alemã 1885]

 


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Sábado, 5 de Janeiro de 2013
Cartas de Longe - Primeira Carta

A primeira etapa da primeira Revolução

A primeira revolução, engendrada pela Guerra Imperialista Mundial, estalou. Seguramente esta primeira revolução não será a última.

A primeira etapa desta primeira revolução, concretamente a revolução russa de 1 de Março de 1917, terminou, a julgar pelos escassos dados de que se dispõe na Suíça. Seguramente, esta primeira etapa não será a última da nossa revolução.

Como se pôde produzir o «milagre» de que só em oito dias – segundo afirmou o senhor Miliukov no seu exultante telegrama a todos os representantes da Rússia no estrangeiro – se tenha desmoronado uma monarquia que se tinha mantido ao longo dos séculos e que se manteve, apesar de tudo, durante três anos – 1905-1907 – de gigantescas batalhas de classes em que todo o povo participou?

Nem na natureza nem na história se produzem milagres, porém todas as viragens bruscas da história, incluindo qualquer revolução, oferecem um conteúdo tão rico, desenvolvem combinações tão inesperadas e originais de formas de luta e de correlação das forças em confronto, que muitas coisas podem parecer milagre à frente do filisteu.

Para que a monarquia czarista tenha podido desmoronar-se em alguns dias, foi necessária a conjugação de várias condições de importância histórica para o mundo inteiro. Indiquemos as principais:

Sem os três anos de formidáveis batalhas de classes, sem a energia revolucionária despendida pelo proletariado russo em 1905-1907, teria sido impossível uma segunda revolução tão rápida, no sentido que culminou a sua etapa inicial nuns quantos dias. A primeira revolução (1905) removeu profundamente o terreno, arrancou pela raiz preconceitos seculares, despertou para a vida e a luta políticas milhões de operários e dezenas de milhões de camponeses, revelou a cada classe e ao mundo inteiro o verdadeiro carácter de todas as classes (e de todos os principais partidos) da sociedade russa, a verdadeira correlação dos seus interesses, das suas forças, dos seus meios de acção, dos seus objectivos imediatos e longínquos. A primeira revolução e a época de contra-revolução que se lhe seguiu (1907-1914) puseram a descoberto a verdadeira natureza da monarquia czarista, levaram esta ao seu «último extremo», revelaram toda a sua putrefacção, toda a ignomínia, todo o cinismo e toda a libertinagem do bando czarista com o monstro Rasputine à cabeça; revelaram toda a ferocidade da família dos Romanov – esses progromistas[1] que inundaram a Rússia com o sangue dos judeus, de operários, de revolucionários – esses latifundiários, «os primeiros entre os seus iguais» possuidores de milhões de hectares de terra, dispostos a todas as atrocidades, a todos os crimes, dispostos a arruinar e estrangular quantos cidadãos fosse preciso para defender a sua «sacrossanta propriedade» e a da sua classe.

Sem a revolução de 1905-1907, sem a contra-revolução de 1907-1914, teria sido impossível uma «definição» tão precisa de todas as classes do povo russo e de todos os povos que habitam a Rússia, e a definição da atitude dessas classes – de umas para com as outras e de cada uma delas para com a monarquia czarista – que se revelou durante os oito dias da revolução de Fevereiro-Março de 1917. Esta revolução de oito dias foi «representada», se se pode permitir a metáfora, como se se houvesse procedido anteriormente a uns dez ensaios parciais e gerais; os «actores» conheciam-se, sabiam os seus papéis, os sue lugares, conheciam todo o cenário em comprimento e altura em todos os seus detalhes, conheciam até aos menores matizes das tendências políticas e das formas de acção. Mas para que a primeira, a grande revolução de 1905, condenada como sendo «uma gran rebelião» pelos senhores Guchkov, Miliukov e seus acólitos, tivesse conduzido em 12 anos à «brilhante» e «gloriosa» revolução de 1917, que os Guchkov e os Miliukov declararam «gloriosa» porque lhes deu (de momento) o Poder, era necessário, para além do mais um grande «director de cena», vigoroso, omnipotente, capaz por um lado de acelerar extraordinariamente a marcha da história universal, e por outro de engendrar crises mundiais económicas, políticas, nacionais e internacionais de uma força inusitada. Para além de uma aceleração extraordinária da história universal, eram necessárias viragens particularmente bruscas desta, para que uma delas pudesse voltar, bruscamente, a carroça sangrenta e enlameada da monarquia dos Romanov.

Este «director de cena» omnipotente, esse acelerador vigoroso foi a guerra imperialista mundial.

Hoje, já não existem dúvidas de que a guerra é mundial, pois os Estados Unidos e a China já estão parcialmente envolvidos nela, e amanhã estarão totalmente.

Já não há dúvidas de que a guerra é imperialista de ambos os lados. Só os capitalistas e os seus sequazes, os sociais-patriotas e os sociais-chauvinistas – ou, aplicando em lugar de definições críticas gerais, nomes de políticos bem conhecidos na Rússia – só os Guchkov e os Lvov, os Miliukov e os Shingariov por um lado, e os Gvozdiev, os Potrésov, os Chjenkeli, os Kerensky e os Chjeidze por outro, podem negar ou escamotear este facto. Tanto a burguesia alemã como a burguesia anglo-francesa fazem a guerra para saquearem outros países, para estrangular os pequenos povos, para estabelecer o seu domínio financeiro no Mundo, para proceder à repartição e redistribuição das colónias, para salvar, enganando e dividindo os operários dos diversos países, o agonizante regime capitalista.

A guerra imperialista devia – era objectivamente inevitável – acelerar extraordinariamente e recrudescer de maneira inusitada a luta de classe do proletariado contra a burguesia, devia transformar-se numa guerra civil entre classes inimigas.

Esta transformação começou com a revolução de Fevereiro-Março de 1917 cuja primeira etapa nos mostrou, em primeiro lugar, o golpe conjunto vibrado no czarismo por duas forças: por um lado toda a Rússia burguesa e latifundiária, com todos os seus acólitos inconscientes e com todos os seus orientadores conscientes, os embaixadores e capitalistas anglo-franceses, e por outro o soviete de deputados operários que começou a conquistar para o seu lado os deputados soldados e camponeses.

Estes três campos políticos, estas três forças políticas fundamentais são: 1) a monarquia czarista cabeça dos proprietários fundiários feudais, cabeça da velha burocracia e dos generais; 2) a Rússia burguesa e latifundiária dos Outubristas, e os democratas constitucionalistas, atrás da qual se arrastava a pequena-burguesia (cujos representantes mais destacados são Kerensky e Chjeidze); 3) o soviete de deputados operários, que trata de fazer seus aliados todo o proletariado e as massas de todos os sectores pobres da população; estas três forças políticas fundamentais revelaram-se com plena clareza, mesmo nos oito dias da «primeira etapa» mesmo para um observador obrigado a contentar-se com os magros telegramas dos jornais estrangeiros e tão afastado dos acontecimentos como está quem escreve estas linhas.

Mas antes de desenvolver esta ideia devo voltar à parte da minha carta consagrada ao factor de maior importância: a guerra imperialista mundial.

A guerra ligou entre si com cadeias de ferro as potências beligerantes, os grupos beligerantes de capitalistas, os «donos» do regime capitalista, os esclavagistas da escravatura capitalista. Uma amálgama sangrenta, eis o que é a vida social e política do momento histórico que vivemos.

Os socialistas que se passaram para o campo da burguesia no começo da guerra, os David e Scheidemann na Alemanha, os Plekanov, Protesov, Gvozdiev & C.ª na Rússia vociferaram largamente e em altos berros contra as «ilusões» do Manifesto de Basileia, contra o «sonho-farsa» da transformação da guerra imperialista em guerra civil, enalteceram em todas os tons a força, o vigor, a faculdade de adaptação revelada, segundo eles, pelo capitalismo: eles que ajudaram os capitalistas a «adaptar», domesticar, enganar e dividir a classe operária dos diferentes países! Mas, «quem ri por último, ri melhor». A burguesia não conseguiu atrasar por muito tempo a crise revolucionária gerada pela guerra. Esta crise agrava-se com uma força irresistível em todos os países, começando pela Alemanha, que sofre agora, segundo a expressão de um observador que a visitou recentemente, «uma fome genialmente organizada», e terminando com a Inglaterra e a França, onde a fome se aproxima também e onde a organização é muito menos «genial».

Era natural que a crise revolucionária estalasse, em primeiro lugar, na Rússia czarista, onde a desorganização era mais monstruosa e o proletariado o mais revolucionário (não devido às suas qualidades singulares, mas sim às tradições, ainda vivas do «ano cinco»). Aceleraram esta crise as duríssimas derrotas sofridas pela Rússia e os seus aliados. Estas derrotas sacudiram todo o velho mecanismo governamental e toda a velha ordem das coisas, enfureceram contra ele todas as classes da população, exasperaram o exército, exterminaram muitíssimos dos velhos chefes saídos de uma nobreza fossilizada, e, particularmente de uma burocracia apodrecida, substituindo-os por elementos jovens, frescos, principalmente burgueses, «raznochintsi», pequeno-burgueses. Os lacaios descarados da burguesia ou os homens simplesmente sem carácter que gritavam e vociferavam contra o «derrotismo», vêem-se hoje perante o facto da ligação histórica entre a derrota da monarquia czarista, a mais atrasada e bárbara, e o começo do incêndio revolucionário.

Mas se as derrotas, ao começar a guerra, desempenharam o papel de um factor negativo, que acelerou a explosão, o vínculo entre o capital financeiro anglo-francês, o imperialismo anglo-francês e o capital outubrista e demo-constitucionalista da Rússia, foi o factor que acelerou esta crise, mediante a organização directa de um complot contra Nicolau Romanov.

Por razões bem compreensíveis a imprensa anglo-francesa silencia esse aspecto extraordinariamente importante da questão, ao mesmo tempo que a imprensa alemã o sublinha com maldosa alegria. Nós, marxistas, devemos olhar a verdade cara a cara, serenamente sem nos deixarmos desconcertar pela mentira, a mentira oficial, diplomática e adocicada dos diplomatas e dos ministros do primeiro grupo beligerante de imperialistas, nem pelos trejeitos ou risos trocistas dos seus concorrentes financeiros e militares do outro grupo beligerante. Todo o curso dos acontecimentos na revolução de Fevereiro-Março mostra claramente que as embaixadas inglesa e francesa, com os seus agentes e as suas «relações», que já há muito tempo faziam os esforços mais desesperados para impedir os acordos «separados» e uma paz separada entre Nicolau II (esperamos e faremos o necessário para que seja o último) e Guilherme II, organizaram directamente um complot com os outubristas e os democratas constitucionalistas, com parte dos generais e da oficialagem do exército, sobretudo da guarnição de Petersburgo, especialmente para depor Nicolau Romanov.

Não tenhamos ilusões. Não caiamos no erro daqueles – como alguns «Okistas» ou «mencheviques» que vacilam entre a posição dos Gvozdev e Potresov e o internacionalismo, deslizando com excessiva frequência para o pacifismo pequeno-burguês – que estão dispostos a elogiar o «acordo» entre o partido operário e os democratas constitucionalistas, o «apoio» dos primeiros aos últimos, etc., etc.. Essa gente, rendendo tributo á sua velha e estafada doutrina (que nada tem de marxista), cobre com o véu o complot tramado pelos imperialistas anglo-franceses com os Guchkov e os Miliukov para encostar à parede Nicolau Romanov, a «primeira espada», e pôr em seu lugar espadas mais enérgicas, menos gastas, mais capazes.

Se a revolução triunfou com tanta rapidez e de uma maneira tão radical – aparentemente e à primeira vista – é unicamente porque, devido a uma situação histórica original em extremo, se fundiram, com notável «unanimidade», correntes absolutamente diferentes, interesses de classe absolutamente heterogéneos, aspirações políticas e socias absolutamente opostas, a saber: a conjura dos imperialistas anglo-franceses, que empurraram Miliukov, Guchkov & C.ª a tomarem conta do poder para continuar a guerra imperialista, para continuá-la mais encarniçada e tenazmente, para imolar novos milhões de operários e camponeses russos a fim de dar Constantinopla… aos Guchkov, a Síria… aos capitalistas franceses, a Mesopotâmia… aos capitalistas ingleses, etc.. Isto por um lado. Por outro lado um profundo movimento proletário e de massas do povo (todos os sectores pobres da população das cidades e dos campos), movimento de carácter revolucionário, pelo pão, a paz e a verdadeira liberdade.

 Seria absurdo falar de «apoio» por parte do proletariado revolucionário da Rússia ao imperialismo demo-constitucionalista-outubrista, «edificado» com dinheiro inglês e tão repugnante como o imperialismo czarista. Os operários revolucionários demoliam, demoliram já em grande parte e continuarão a demolir a vergonhosa monarquia czarista até acabar com ela, sem se entusiasmar nem mudar de posição mesmo quando, em outros momentos históricos de breve duração e de conjuntura excepcional, veio a ajudá-los a luta dos Buchnan, dos Guchkov, dos Miliukov & C.ª, visando substituir um monarca por outro, e de preferência por outro Romanov.

As coisas passaram-se assim, e somente assim. Assim e só assim, pode considerar as coisas o político que não teme a verdade, que avalia com lucidez a correlação das forças sociais na revolução, que tem em conta cada «momento actual», não só em tudo o que tem de original num dado momento mas também do ponto de vista das causas mais profundas, de uma correlação mais profunda dos interesses do proletariado e da burguesia, tanto na Rússia como em todo o mundo.

Os operários de Petersburgo, assim como os operários de toda a Rússia têm combatido com abnegação contra a monarquia czarista, pela liberdade, pela terra para os camponeses, pela paz, contra a matança imperialista. O capital imperialista anglo-francês, para continuar a intensificar esta matança, urdiu intrigas palacianas, tramou um complot com os oficiais da guarda, instigou e alentou os Guchkov e os Miliukov, tinha completamente formado um novo governo, que foi aquele que tomou o poder assim que o proletariado vibrou os primeiros golpes no czarismo.

Este novo governo, no qual os outubritas e os «renovadores pacíficos» Lvov e Guchkov, ontem cúmplices de Stolypin o Carrasco, ocupavam potos de verdadeira importância, postos capitais, postos decisivos, detêm nas suas mãos o exército e a burocracia; este governo no qual Miliukov e outros democratas constitucionalistas figuram acima de tudo como adorno, como rótulo, para pronunciar melífluos discursos professorais, e o «Trudovique» Kerensky desempenha o papel de balalaica para enganar os operários e os camponeses, esse governo não é um agrupamento acidental de pessoas. São os representantes de uma nova classe chegada ao poder político na Rússia, a classe dos latifundiários capitalistas e da burguesia, que desde há muito tempo dirige economicamente o nosso país e que tanto na revolução de 1905-1907 como durante a contra-revolução de 1907-1914 e por fim, durante a guerra de 1914-1917 – neste período com especial velocidade – se organizaram politicamente com extraordinária rapidez apoderando-se das administrações locais, da educação pública, de congressos de todo o género, da Duma, dos Comités da indústria de guerra, etc.. Esta nova classe estava já «quase completamente» no Poder em 1917; por isso, os primeiros golpes foram suficientes para que o czarismo se desmoronasse, abandonando o campo à burguesia. A guerra imperialista, ao exigir uma incrível tensão de forças, acelerou a tal extremo o processo do desenvolvimento da Rússia atrasada, que, «de um momento para o outro» –   na realidade aparentemente de um momento para o outro – alcançámos a Itália, a Inglaterra e quase a França, obtivemos um governo «parlamentar», de «coligação», «nacional» (quer dizer, adaptado para dirigir a matança imperialista e para enganar o povo). Ao lado deste governo – que não é, no fundo, mais do que um simples agente das «firmas» de multimilionários da «Inglaterra e França» do ponto de vista da actual guerra – apareceu um governo operário, o governo principal, não oficial, ainda não desenvolvido, relativamente débil que exprime os interesses do proletariado e de todos os elementos pobres da população da cidade e do campo. Este governo é o Soviete de deputados operários de Petersburgo, que procura ligações com os soldados e camponeses e também com os operários agrícolas. Como é natural, sobretudo com estes, mais do que com os camponeses.

Tal é a verdadeira situação política, que devemos esforçarmo-nos antes de tudo o mais, por esclarecer com a máxima precisão objectiva para dar à táctica marxista a única base sólida que pode ter: os factos.

- A monarquia czarista deposta, mas ainda não destruída

- O governo outubrista demo-constitucionalista burguês que quer levar a guerra imperialista «até ao fim», agente na realidade da firma financeira «Inglaterra & França», que se vê obrigado a prometer ao povo todas as liberdades e todas as dádivas compatíveis com a manutenção do poder sobre o povo e com a possibilidade de continuar com a matança imperialista.

- O Soviete de deputados operários, organização operária, embrião do governo operário, representante dos interesses de todas as massas pobres da população, quer dizer nove décimos da população que luta pela paz, o pão e a liberdade.

A luta destas três forças determina a situação presente, que é a passagem da primeira à segunda etapa da revolução. A contradição entre a primeira força e a segunda não é profunda, é uma contradição temporária, suscitada somente pela conjuntura do momento, por uma brusca viragem dos acontecimentos na guerra imperialista. No novo governo, todos são monárquicos, pois o republicanismo verbal de Kerensky não é sério nem digno de um político, é, objectivamente, politiquice. Ainda não tinha o novo governo dado o golpe de misericórdia na monarquia czarista, quando já estavam entrando em acordos com a dinastia dos latifundiários Romanov. A burguesia do tipo outubrista demo-constitucionalista necessita da monarquia, como cabeça da burocracia e do exército, para salvaguardar os privilégios do capital contra os trabalhadores.

Quem pretende que os operários devem apoiar o novo governo em nome da luta contra a reacção do czarismo (e isso é o que pretendem pelos vistos os Potrésov, os Gvózdiev, os Chjenkeli e, também, apesar da sua posição ambígua os Chjeidze) atraiçoa os operários, atraiçoa a causa do proletariado, a causa da paz e da liberdade. Porque, de facto, precisamente este novo governo está atado de pés e mãos pelo capital imperialista, pela política imperialista belicista de rapina; iniciou os acordos (sem consultar o povo!) com a dinastia; já se atarefa na restauração da monarquia czarista; já convida um candidato a reizito, Mikail Romanov; já se preocupa em lhe assegurar o trono, em substituir a monarquia legitimista (legal, baseada em velhas leis) por uma monarquia bonapartista, plebiscitária (baseada num sufrágio popular falsificado).

Para combater realmente contra a monarquia czarista, para assegurar realmente a liberdade, e não em palavras, e não só nas promessas miríficas de Miliukov e Kerensky, não são os operários quem deve apoiar o novo governo, mas este governo quem deve «apoiar» os operários! Porque a única garantia de liberdade e de destruição completa do czarismo, é armar o proletariado, consolidar, estender, desenvolver o papel, a importância e a força do Soviete de deputados operários.

Tudo o mais são frases ocas e mentirosas, ilusões de politiqueiros do campo liberal e radical, maquinações fraudulentas.

Ajudai o armamento dos operários, ou pelo menos não o estorveis e a liberdade será invencível na Rússia, nada conseguirá restaurar a monarquia e a república será assegurada.

De contrário, os Guchkov e os Miliukov restaurarão a monarquia e não farão nada, absolutamente nada do que prometeram no que respeita às «liberdades». Todos os politiqueiros burgueses em todas as revoluções burguesas «alimentaram» e embalaram os operários com promessas.

A nossa revolução é burguesa, e por isso os operários devem apoiar a burguesia, dizem os Potrésov, os Gvózdiev e os Chjeidze, como já antes dizia Plekanov.

A nossa revolução é burguesa, dizemos nós os marxistas, e por isso os operários devem abrir os olhos ao povo para que veja o engano dos politiqueiros burgueses e ensinar-lhes a não crer nas palavras, a confiar unicamente nas suas próprias forças, na sua própria organização, na sua própria união, no seu próprio armamento.

O governo dos outubristas e democratas constitucionalistas dos Guchkov e dos Miliukov não pode dar ao povo – mesmo que o quisesse sinceramente (só crianças de tenra idade podem acreditar na sinceridade de Guchkov e Lvov) – nem paz, nem pão, nem liberdade.

A paz, porque é um governo de guerra, um governo de continuação da matança imperialista, um governo de rapina que deseja saquear a Arménia, a Galícia, a Turquia, conquistar Constantinopla, reconquistar a Polónia, a Curlândia, a Lituânia, etc.. Este governo está atado de pés e mãos pelo capital imperialista anglo-francês. O capital russo não é mais do que uma sucursal da «firma» universal que maneja centenas de milhares de milhões de rublos e que se chama «Inglaterra & França».

O pão, porque este governo é burguês. No melhor dos casos, dará ao povo, como o fez a Alemanha, «uma fome genialmente organizada». Mas o povo não quererá tolerar a fome. O povo chegará a saber, e sem dúvida rapidamente, que há pão e que se pode obtê-lo, mas somente através de medidas desprovidas de todo o respeito para com o capital e da propriedade da terra.

A liberdade, porque este governo é um governo de latifundiários e capitalistas, que teme o povo e já entrou em acordos com a dinastia dos Romanov.

Noutro artigo trataremos dos objectivos tácticos da nossa conduta imediata a respeito deste governo. Mostraremos em que consiste a peculiaridade do momento actual, da passagem da primeira à segunda etapa da revolução e porque é que a palavra de ordem, a «tarefa do dia», deve ser neste momento: operários! Fizestes prodígios de heroísmo proletário e popular na guerra civil contra o czarismo. Deveis fazer prodígios de organização proletária e popular para preparar o vosso triunfo na segunda etapa da revolução.

Limitando-nos por agora a analisar a luta de classes na etapa actual da revolução, ainda temos de levantar esta questão: quem são os aliados do proletariado na actual revolução?

Esses aliados são dois: em primeiro lugar, as amplas massas dos semi-proletários e em parte, dos pequenos camponeses da Rússia, massa que conta dezenas de milhões de homens e constitui a imensa maioria da população. Esta massa necessita de paz, de pão, de liberdade e de terra. Esta massa sofrerá inevitavelmente uma certa influência da burguesia e sobretudo da pequena-burguesia, da qual se aproxima mais pelas suas condições de existência, vacilando entre a burguesia e o proletariado. As duras lições da guerra, que serão tanto mais duras quanto mais energicamente seja conduzida a guerra por Guchkov, Lvov, Miliukov & C.ª, empurrarão inevitavelmente esta massa para o lado do proletariado, obrigá-la-ão a segui-lo. Agora devemos aproveitar a liberdade relativa do novo regime e os Sovietes de deputados operários para nos esforçarmos por educar e organizar, sobretudo e antes de mais estas massas. Os Sovietes de deputados camponeses, os Sovietes de operários agrícolas são uma das nossas principais tarefas. Não só nos esforçaremos para que os operários agrícolas formem os seus sovietes próprios, como também para que os camponeses pobres se organizem separadamente dos camponeses abastados. Na carta seguinte trataremos das tarefas especiais e das formas especiais desta organização, cuja necessidade se impõe hoje em dia com grande força.

Em segundo lugar, aliado do proletariado russo é o proletariado dos países beligerantes e de todos os países em geral. Hoje, este aliado encontra-se em grande medida esmagado pela guerra, e os seus porta-vozes são com excessiva frequência os social-chauvinistas, que na Europa se passaram, como Plekanov, Grosdiev e Potresov na Rússia, para o campo da burguesia.

Com estes dois aliados, o proletariado pode avançar, e avançará aproveitando as particularidades do actual momento de transição, primeiro para a conquista da república democrática e para a vitória completa dos camponeses sobre os latifundiários, em vez de semi-monarquia Guchkov-Miliukoviana, e depois para o socialismo, pois só este dará a paz, o pão e a liberdade aos povos extenuados pela guerra.



[1] Progrom – caça aos judeus; usada no tempo dos czares como forma de desviar os trabalhadores dos seus verdadeiros interesses, fazendo recair as culpas de tudo o que acontecia sobre as supostas actividades dos judeus. Foi assim uma forma racista de manter o estado autocrata.


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