Depois de termos considerado a criação violenta de um proletariado sem eira nem beira, com a disciplina sanguinária que o transforma em classe assalariada, a intervenção vergonhosa do Estado que favorece a exploração do trabalho – e portanto a acumulação do capital – mais o reforço da sua polícia, não sabemos ainda donde vêm originariamente os capitalistas. Pois é claro que a expropriação da população camponesa só engendra directamente proprietários latifundiários.
Quanto à génese do fazendeiro capitalista, quase não a podemos apontar a dedo, porque é um movimento que se desenrola lentamente e abarca séculos. Os servos, assim como os proprietários livres, grandes o pequenos, ocupavam as suas terras sob diversos títulos de propriedade: encontraram-se portanto, depois da sua emancipação, em circunstâncias económicas muito diferentes.
Na Inglaterra, o fazendeiro aparece primeiro sob a forma de bailio, ele mesmo servo. A sua posição parece-se com a do villicus da antiga Roma, mas numa esfera de acção mais restrita. Durante a segunda metade do século XIV, foi substituído pelo fazendeiro livre a quem o proprietário fornece todo o capital necessário, sementes, gado e instrumentos de trabalho. A condição de fazendeiro livre difere pouco da dos camponeses, a não ser em que explora mais jornaleiros. Em breve se torna rendeiro, colono parceiro. E depois, já uma parte do fundo de cultura é adiantada por ele e a outra pelo proprietário; ambos compartilham o produto total segundo uma proporção determinada pelo contrato. Este modo de renda, que se manteve muito tempo em França, na Itália, etc., desaparece rapidamente em Inglaterra e é substituído pela renda propriamente dita em que o fazendeiro adianta o capital e o faz valer, empregando assalariados, e paga ao proprietário, a título de renda do terreno, uma parte do produto líquido anual, em géneros ou dinheiro, segundo as estipulações do arrendamento.
Enquanto o camponês independente e o jornaleiro, cultivando por sua conta, enriquecem pelo seu trabalho pessoal, a condição do fazendeiro e o seu campo de produção permanecem igualmente medíocres. A revolução agrícola dos últimos trinta anos do século XV, prolongada até ao último quartel do século XVI, enriqueceu-o tão depressa como empobreceu a população camponesa[1]. A usurpação das pastagens comunais, etc., permitiu-lhe aumentar rapidamente e quase sem gastos o seu gado, do qual tira desde então grandes lucros, quer pela sua venda, quer pelo seu emprego como animais de trabalho, quer por estrumação mais abundante do solo.
No século XVI produziu-se um acontecimento considerável que deu searas de oiro aos fazendeiros como aos outros capitalistas empreendedores. Foi a depreciação progressiva dos metais preciosos e, por consequência, do dinheiro; essa depreciação fez baixar na cidade e no campo as taxas de salários cujo movimento não segue de perto a alta de todas as outras mercadorias. Uma porção do salário dos operários rurais entra desde então nos ganhos da herdade. O encarecimento contínuo do trigo, da lã, da carne, numa palavra, de todos os produtos agrícolas, aumentou o capital (dinheiro) do fazendeiro, sem que este nada fizesse para tal, ao passo que a renda do terreno diminuiu na proporção da depreciação do dinheiro surgida durante o tempo do arrendamento. É preciso notar que, no século XVI, os arrendamentos das herdades eram ainda a longo prazo, muitas vezes por noventa e nove anos. O fazendeiro enriqueceu portanto, ao mesmo tempo, à custa dos assalariados e à custa dos proprietários.
Desde então, não ficaremos admirados que a Inglaterra possuísse no fim do século XVI uma classe de fazendeiros capitalistas muito ricos para a época.
A criação de um proletariado sem eira nem beira – através dos despedidos pelos grandes senhores feudais, vítimas de expropriações violentas e repetidas – marchou necessariamente mais depressa do que a sua absorção pelas manufacturas nascentes. Por outro lado, estes homens bruscamente arrancados às suas condições habituais de vida não puderam subitamente habituar-se à disciplina da nova ordem social. De tudo isto surgiram portanto multidões de mendigos, de ladrões, de vagabundos. Por isso, pelos fins do século XV e durante todo o século XVI, no Ocidente da Europa, apareceu uma legislação sanguinária contra a vadiagem.
Os pais da actual classe proletária foram castigados por terem sido reduzidos ao estado de vagabundos e de pobretões. A legislação tratou-os como criminosos voluntários e admitiu que dependia do livre arbítrio desses infelizes continuarem a trabalhar como no passado e como se não tivesse surgido nenhuma mudança nas suas condições. Na Inglaterra, esta legislação começou no reinado de Henrique VII. E, no reinado de Henrique VIII (1530), os mendigos idosos e incapazes de trabalho obtiveram licença para pedir esmola. E os vagabundos robustos foram condenados ao chicote e à cadeia. Atados atrás de uma carroça, sofreram a fustigação até que o sangue lhes corresse pelo corpo; depois tiveram de se comprometer sob juramento a voltar à terra da sua naturalidade ou ao local que habitavam nos últimos três anos, e a regressar ao trabalho. Cruel ironia. Ainda acharam demasiado suave este mesmo estatuto no 27.º ano do reinado de Henrique VIII. O Parlamento agravou as penas por meio de cláusulas adicionais. Em caso de primeira reincidência, o vagabundo deveria ser fustigado de novo e teria uma orelha cortada; à segunda reincidência, deveria ser tratado como traidor e executado como inimigo do Estado.
No seu livro Utopie, o chanceler Thomas More pinta a situação dos desgraçados atingidos por estas leis atrozes:
«Assim acontece que um glutão ávido e insaciável, um verdadeiro flagelo para o seu país natal, pode apoderar-se de milhares de jeiras de terra, cercando-as de estacas e de sabes, ou atormentando os seus proprietários com injustiças que os obrigam a vender tudo. De uma ou outra maneira, por consentimento ou à força, todos têm de se esgueirar (essa pobre gente, homens, mulheres, órfãos, viúvas, mães com os seus bebés, e com todos os seus haveres). Poucos recursos mas muitas cabeças porque a agricultura carecia de muitos braços. É preciso que arrastem os seus passos para longe dos seus antigos lares, sem encontrarem um lugar de repouso. Noutras circunstâncias, a venda do seu mobiliário e dos seus utensílios domésticos teria podido ajudá-los, por pouco que valessem; mas lançados subitamente no vácuo, são forçados a dá-los por uma bagatela. E quando tiverem errado por aqui e por ali, e comido até ao último chavo, poderão fazer mais alguma coisa que não seja roubar? Depois – meu Deus – passarão a mendigar, depois serão enforcados com todas as formas legais».
Destes infelizes fugitivos, que foram forçados à vagabundagem e ao roubo, «72 000 foram executados no reinado de Henrique VIII»[1].
Um estatuto do primeiro ano do reinado de Eduardo VI (1547) ordena que todo o indivíduo refractário ao trabalho seja dado como escravo à pessoa que o tenha denunciado como vadio. O patrão alimenta esse escravo a pão e água, dá-lhe de tempos a tempos alguma bebida fraca e os restos de carne que achar conveniente. Tem o direito de o obrigar às tarefas mais nojentas servindo-se do chicote e da corrente. Se o escravo se ausentar durante quinze dias, será condenado perpetuamente à escravatura e será marcado a ferro ao rubro com a letra S (slave=escravo) na face e na testa; se fugir três vezes será executado como traidor. O patrão pode vendê-lo, deixá-lo em testamento, aluga-lo a outrem, como um móvel ou uma cabeça de gado. Se os escravos maquinarem algo contra os patrões devem ser punidos de morte. Os juízes de paz, sob informação, são obrigados a seguir a pistas desses homens. Quando seja agarrado um desses pés-descalços será marcado no peito com ferro ao rubro com um V (vagabundo) e reconduzido à terra natal onde, carregado de ferros, terá de trabalhar nas praças públicas. Se o vagabundo indicar um falso lugar de nascimento, deverá tornar-se por toda a vida escravo dessa localidade, dos seus habitantes, e da sua corporação; marcá-lo-ão com um S. qualquer pessoa tem o direito de se apoderar dos filhos do vagabundo e de os reter como aprendizes, os rapazes até aos 24 anos e as raparigas até aos 20. Se tentarem fugir, tornam-se até àquela idade os escravos dos patrões que têm o direito de os acorrentar e chibatar, à sua vontade. Qualquer patrão pode meter um anel de ferro no pescoço, ou no braço, ou na perna do seu escravo, para o reconhecer melhor e ficar mais seguro a respeito dele. A última parte do estatuto prevê o caso de certos pobres poderem ser empregados por pessoas ou localidades que queiram dar-lhes de beber e de comer e metê-los no trabalho. Este tipo de escravos de paróquia conservou-se em Inglaterra até aos meados do século XIX sob o nome de roundsmen.
Continuaria no reinado de Isabel (1572) a formação do futuro proletariado. Os mendigos sem licença e com mais de catorze anos devem ser chicoteados severamente e marcados a ferro ao rubro na orelha esquerda, se ninguém os quiser tomar ao serviço durante dois anos. Em caso de reincidência, os maiores de dezoito anos devem ser executados se ninguém os quiser empregar durante dois anos. Os que sejam apanhados uma terceira vez, devem ser mortos sem misericórdia como traidores. Há outros estatutos semelhantes (Isabel, 1597). Num reinado tão maternal como o da rainha Bess, enforcaram-se vagabundos às fornadas, postos em longas filas. Não se passava um ano que não houvesse trezentos ou quatrocentos dependurados na forca em um ou outro local, diz Strype nos seus Annals[2].
Os estatutos de Jaime I só foram revogados em 1714. Todos os indivíduos que percorram o país e mendiguem são declarados vagabundos, ou valdevinos. Podem ser açoitados publicamente e sofrer seis meses de cadeia na primeira reincidência, dois anos na segunda. Durante o tempo de cadeia, podem ser açoitados tão frequentemente e tão fortemente como se entender. Os vagabundos intratáveis e perigosos devem ser marcados com um R (primeira letra da palavra inglesa rogue equivalente a malandro e vagabundo) no ombro esquerdo e, se são apanhados a mendigar, executados sem misericórdia e privados de assistência do sacerdote.
Em França, nos meados do século XVII, os vadios tinham estabelecido o seu reino e feito de Paris a sua capital. Aí encontram-se leis semelhantes. Atá ao começo do reinado de Luís XVI (ordenança de 13 de Julho de 1777), todo o homem saudável e forte entre os dezasseis e os sessenta anos, encontrado sem meio de existência e sem profissão, deve ser enviado às galés. O mesmo se dá com o estatuto de Carlos V, para os Países Baixos.
Foi assim que a população dos campos, violentamente expropriada e reduzida à vagabundagem, foi dominada por uma disciplina exigida pelo sistema do assalariado, por leis de um terrorismo grotesco, pelo azorrague, pelas marcas de ferro ao rubro, pela tortura, pela escravatura.
Não basta que de um lado se apresentem as condições materiais do trabalho sob forma de capital, e do outro homens que nada têm para vender além da sua potência de trabalho. Também não basta que os constranjam pela força a venderem-se voluntariamente.
No progresso da produção capitalista, forma-se uma classe cada vez mais numerosa de operários que, graças à educação, à tradição, ao hábito, sofrem as exigências do regime tão espontaneamente como sofrem as mudanças das estações. Logo que este modo de produção adquiriu um certo desenvolvimento, o seu mecanismo quebra todas as resistências; a presença constante de uma sobrepopulação relativa, mantém a lei da oferta e da procura do trabalho e mantém o salário dentro dos limites conformes às necessidades do capital. E a surda pressão das relações económicas estabelece o despotismo do capitalista sobre o operário. Às vezes ainda se recorre ao constrangimento, ao emprego da força brutal, mas são meras excepções. No decurso vulgar das coisas, o operário passa a ser abandonado à acção das «leis naturais» da sociedade, isto é, à dependência do capital, engendrada, garantida, perpetuada, pelo próprio mecanismo da produção.
Outro aspecto diferente se apresenta durante a génese histórica da produção capitalista. A burguesia nascente não pode passar sem a constante intervenção do Estado; serve-se dela para regular o salário, isto é, para o deprimir a nível conveniente, para prolongar o dia de trabalho, para manter o operário no grau de dependência que se pretende. Eis o momento essencial da acumulação primitiva.
A classe assalariada que surgiu na última metade do século XIV não formava então, como no século seguinte, mais que uma pequena parte da população. A sua posição estava fortemente protegida, nos campos pelos camponeses independentes, na cidade pelo regime corporativo dos ofícios; nos campos como nas cidades, patrões e operários estavam socialmente aproximados. O modo de produção técnico não possuía ainda nenhum carácter especificamente capitalista. A subordinação do trabalho ao capital só existia na forma. O elemento variável do capital era muito superior ao seu elemento constante. A procura de trabalho assalariado crescia rapidamente a cada nova acumulação do capital, ao passo que a oferta de operários apenas a seguia lentamente. Uma grande parte do produto nacional, transformada mais tarde em fundo de acumulação capitalista, entrava ainda então no fundo de consumo do trabalhador.
A legislação sobre o trabalho assalariado, marcada desde a origem com o cunho da exploração do operário e daqui por diante sempre dirigida contra ele[3] foi inaugurada na Inglaterra em 1349 pelo Estatuto dos Operários de Eduardo III. Este estatuto tem de semelhante em França na ordenança de 1350, promulgada em nome do rei João. A legislação inglesa e a francesa seguem caminhos paralelos e o seu conteúdo é idêntico. Não tenho de voltar a estes estatutos no que digam respeito ao prolongamento forçado do dia de trabalho, porque este ponto já foi tratado anteriormente.
O Estatuto dos Operários foi promulgado a instâncias prementes da Câmara dos Comuns, isto é, dos compradores de trabalho. Um tory dizia ingenuamente: «Outrora os pobres pediam um salário tão elevado que era uma ameaça para a indústria e para a riqueza. Hoje, o salário é tão que ameaça igualmente a indústria e a riqueza e talvez mais perigosamente do que no passado».
Uma tarifa legal dos salários foi estabelecida para a cidade e para o campo, para o trabalho de empreitada e à jorna. Os operários rurais alugavam-se ao ano, os das cidades faziam as suas condições no mercado público. Foi proibido, sob pena de cadeia, pagar mais do que o salário legalmente fixado; mas quem recebesse um salário superior incorreria em penalidade mais severa do que aquele que o pagasse. Além disso, as secções 18 e 19 do estatuto de aprendizagem da Rainha Isabel castigavam com dez dias de cadeia o patrão que pagasse um salário demasiado elevado e em vinte e um dias o operário que o aceitasse. Não se impunham aos patrões mais do que restrições propícias à sua vantagem colectiva, tratava-se o patrão como compadre e o operário como rebelde.
As coligações de operários foram postas no nível dos maiores crimes e assim ficaram desde o século XIV até 1825.
O espírito que vem desde 1349 e dos séculos seguintes, que o tomaram como modelo, acentua-se sobretudo porque fixa um máximo acima do qual o salário não deve subir.
No século XVI a situação dos operários piorou muito. O salário nominal tinha-se elevado, mas nada em proporção à depreciação do dinheiro e à alta correspondente do preço das mercadorias. Portanto, baixara. Mas continuava-se a cortar a orelha e a marcar com ferro ao rubro os que «ninguém queria tomar ao seu serviço». Pelo estatuto da Rainha Isabel, os juízes de paz (proprietários de terrenos, manufactureiros, pastores e outros membros da classe abastada que exerciam as funções de juízes) foram autorizados a fixar certos salários e a modifica-los consoante as estações e o preço das mercadorias. Jaime I estendeu esta regulamentação aos tecelões, aos operários de fiação e a muitas outras categorias operárias. Jorge II estendeu as leis contra as coligações operárias a todas as manufacturas.
Durante o período manufactureiro propriamente dito, o modo de produção capitalista cresceu bastante para tornar a regulamentação legal do salário impraticável e supérflua; mas continuava à mão, para casos imprevistos, o velho arsenal de ucases. Sob Jorge II, o Parlamento adoptou um decreto a proibir aos companheiros alfaiates de Londres e seus arredores que recebessem salário diário superior a 2 xelins e 7,5 dinheiros, salvo em caso de luto geral; sob Jorge III, os juízes de paz são autorizados a regular o salário dos tecelões de seda. Em 1796, foram precisas duas sentenças dos tribunais superiores para decidir se as ordenanças dos juízes de paz sobre salários se aplicavam igualmente aos trabalhadores não agrícolas; em 1799, um decreto parlamentar declara ainda que o salário dos mineiros da Escócia deve ser regulado pelo estatuto de Isabel e por dois decretos escoceses de 1661 e 1671. Entretanto, as circunstâncias económicas tinham sofrido uma revolução tão radical que se produziu um facto nunca ouvido na Câmara dos Comuns. Neste recinto, onde havia mais de quatrocentos anos se fabricavam leis para fixar ao movimento dos salários um máximo que em caso algum deveria ser ultrapassado, Whitbread veio propor, em 1796, que se estabelecesse um mínimo legal para os operários rurais. Embora combatendo esta medida, Pitt concordou que «os pobres estavam em cruel situação». Enfim, em 1813, aboliram-se as leis sobre a fixação de salários que já não passavam de uma anomalia ridícula, na época em que o fabricante regia os seus operários com a sua autoridade privada, por éditos qualificados como regulamentos de fábrica, em que o fazendeiro completava, com o auxílio da taxa dos pobres, o mínimo de salário necessário à manutenção dos seus homens sofredores. As disposições dos estatutos sobre contractos entre patrões e assalariados, segundo os quais em caso de ruptura a acção cível só é recebida contra os primeiros, ao passo que a acção criminal é admitida contra os segundos, estão ainda hoje em vigor.
As leis atrozes contra as coligações de trabalhadores foram abolidas em 1825 perante a atitude ameaçadora do proletariado. Contudo, não cessaram em absoluto e foi só pela lei de 29 de Junho de 1871 que se pretendeu apagar os últimos vestígios dessa legislação e se reconheceu a existência legal das trade-unions (sociedades operárias de resistência).
Todavia, por lei suplementar da mesma data (Decreto de emenda à Lei Penal sobre violência, ameaças e molestações), as leis contra as coligações foram de facto restabelecidas sob nova forma. Os meios a que, em caso de greve ou de lock-out (greve dos patrões que se ligam para fechar ao mesmo tempo as suas fábricas), os operários podem recorrer no decurso da luta, foram abrangidos pelo direito comum e caíram sob uma legislação penal de excepção, interpretada pelos patrões na sua qualidade de juízes de paz. Dois anos antes a mesma Câmara dos Comuns e o mesmo Gladstone que, pelo édito suplementar de 1871, inventaram novos delitos próprios dos operários, tinham aprovado um decreto para pôr fim a todas as leis de excepção contra a classe operária; mas, por aliança com os tories, fizeram meia volta contra o proletariado que os tinha levado ao poder; e, não contente com esta traição, o grande partido liberal, sempre sob os auspícios do seu chefe Gladstone, permitiu aos juízes ingleses, sempre prontos a servir as classes dominadoras, que exumassem as leis antigas sobre conspiração para serem aplicadas a actos de coligação.
Só contra vontade e sob a pressão ameaçadora das massas, o parlamento inglês renunciou às leis contra as coligações e uniões operárias, depois de ter feito durante cinco séculos o ofício de uma trade-union permanente de capitalistas contra os operários.
Também em França, desde o início da tormenta revolucionária, a burguesia francesa ousou despojar a classe operária do direito de associação que esta acabava de conquistar. Por uma lei orgânica de 14 de Junho de 1791, qualquer combinação entre trabalhadores para defesa dos seus interesses comuns foi estigmatizada de atentado «contra a liberdade e a declaração dos direitos do homem», punível com multa de 500 libras, acrescida da perda de direitos civis durante um ano[4]. Este decreto, com o auxílio do Código Penal e da polícia, traçou à concorrência entre o capital e o trabalho limites agradáveis aos capitalistas e conseguiu sobreviver às resoluções e mudanças de dinastias. O regime do próprio Terror não lhe tocou. Só recentemente foi apagado do Código Penal[5] e com que luxo de precauções!
Segundo o mesmo decreto, é necessário reprimir as coligações que os operários possam formar para fazer aumentar o preço do dia de trabalho, porque eles atacam assim a liberdade dos patrões, empreiteiros do trabalho, e, «interferindo assim, procuram voltar a criar corporações aniquiladas pela revolução»[6]
Na Inglaterra a servidão desapareceu de facto pelos fins do século XIV. A grande maioria da população[1] compunha-se então, e ainda mais no séc. XV, de camponeses livres, que cultivavam as suas próprias terras, quaisquer que fossem os títulos feudais que lhes davam direito à posse. Nos grandes domínios senhoriais, o antigo bailio, que não passava de servo, fora substituído pelo fazendeiro independente. Os assalariados rurais eram em parte camponeses – que, durante o tempo livre deixado pela cultura dos seus campos, alugavam os seus serviços aos grandes proprietários – e, noutra parte, formavam uma classe particular e pouco numerosa de jornaleiros. Até mesmo estes eram também, em certa medida, cultivadores por sua alta recriação, porque, além do salário, lhes concediam campos pelo menos de quatro acres[2], com cabanas; além disso, participavam com os camponeses propriamente ditos do usufruto dos bens comunais, onde apascentavam os seus gados e se forneciam de lenha ou turfa para aquecimento.
Notaremos de passagem que o servo era não só possuidor, tributário, de facto, das parcelas junto das suas casas, mas também co-proprietário dos bens comunais. Quando Mirabeau publicou o seu livro De la monarchie prussienne, a servidão ainda existia na maioria das províncias prussianas, como na Silésia, e, contudo, os servos possuíam ali bens comunais: «Não fora ainda possível levar os silesianos à partilha das comunas, ao passo que noutros locais quase não há aldeia em que esta partilha não esteja executada com o maior êxito».
O aspecto mais característico da produção feudal, em todos os países da Europa ocidental, é a partilha do solo entre o maior número possível de cidadãos. Passava-se com o senhor feudal o mesmo que com qualquer outro soberano: o seu poderio dependia menos da grandeza da sua bolsa que do número dos seus vassalos, isto é, do número de camponeses estabelecidos nos seus domínios. O Japão, com a sua organização da propriedade puramente feudal, com a sua pequena cultura, oferece sob muitos aspectos, uma imagem mais fiel da Idade Média europeia do que os nossos livros de história, impregnados de preconceitos burgueses. É muitíssimo cómodo ser-se «liberal» à custa da Idade Média.
Embora a conquista normanda tivesse constituído toda a Inglaterra em baronias gigantescas – só uma delas compreendia muitas vezes mais de novecentas senhorias anglo-saxónicas – o solo estava enxameado de pequenas propriedades rurais, intercaladas aqui e ali por grandes domínios senhoriais. Assim, desde que desapareceu a servidão e que no século XV a prosperidade das cidades tomou grandes proporções, o povo inglês atingiu o estado de abastança eloquentemente pintado pelo Chanceler Fortescue no seu De Laudibus Legum Angline. Mas esta riqueza do povo excluía a riqueza capitalista.
A revolução que ia lançar os primeiros fundamentos do regime capitalista teve o seu prelúdio no último terço do século XV e começos do século XVI. Nessa altura, o despedimento de numerosos séquitos senhoriais – Sir James Steuart diz, muito a propósito, que «atravancavam castelos e palácios» – lançou de repente no mercado do trabalho uma quantidade de proletários sem eira nem beira. E não foi só o poder real, saído do desenvolvimento burguês, o causador deste movimento de despedida por medidas violentas, na sua tendência para a soberania absoluta. Em guerra aberta contra a realeza e Parlamento, os grandes senhores criaram um proletariado também considerável, usurpando os bens comunais dos camponeses e expulsando-os do solo que possuíam com o mesmo direito feudal dos seus patrões. Na Inglaterra, o que sobretudo deu causa a actos de violência foi o desenvolvimento das manufacturas da lã na Flandres e a alta dos preços da lã, resultante deste facto. A prolongada guerra das Duas Rosas, tendo devorado a antiga nobreza, fez com que a nova nobreza, filha da sua época considerasse o dinheiro como a potência das potências. Transformação das terras aráveis em pastagens, tal foi o seu grito de guerra.
No seu Descriptions of England, prefixed to Holinsded’s Chronicles, Harrison descreve como a expropriação dos camponeses desolou o país:
«Mas que importa aos nossos grandes usurpadores! As casas dos camponeses e as cabanas dos operários foram violentamente arrasadas ou condenadas a cair em ruínas. Se quiserem comparar os antigos inventários de cada solar senhorial, verão que inúmeras casas desapareceram com os pequenos cultivadores que as habitavam, que o país alimenta muito menos gente, que muitas cidades decaíram, embora algumas de nova fundação prosperem. A propósito das cidades e aldeias destruídas para se fazerem pastagens de carneiros e onde nada se vê de pé, exceptuando os castelos senhoriais, muito teria eu que dizer».
As queixas destes velhos cronistas pintam de maneira exacta a impressão produzida nos contemporâneos pela revolução surgida na ordem económica da sociedade. Comparem-se os escritos do Chanceler Fortescue com os do Chanceler Thomas More e teremos uma ideia do abismo que separa o século XV do século XVI. Na Inglaterra, a classe trabalhadora – como diz muito justamente Thornton – foi precipitada sem transição da sua idade de oiro para a sua idade de ferro.
Esta desordem meteu medo ao Parlamento. Ainda não tinha sido atingido o elevado grau de civilização em que a riqueza nacional (isto é, a riqueza dos capitalistas, o empobrecimento e a exploração sem vergonha da massa do povo) passa o último limite da sabedoria do Estado. Bacon, na sua História de Henrique VII, diz:
«Por esta época (1489), as queixas a propósito da conversão das terras aráveis em pastagens, que só exigiam a vigilância de alguns pastores, tornaram-se cada vez mais numerosas, e herdades arrendadas por toda a vida, por largo prazo ou ao ano, de que viviam em grande parte os yeomen, foram anexadas às terras da coroa. Daqui resultou um declínio da população, seguida pela decadência de muitas vilas, igrejas, diminuição de dízimos, etc.. Os remédios aplicados a esta funesta situação testemunham uma sabedoria admirável por parte do Rei e do Parlamento. Estes tomaram medidas contra a usurpação despovoadora dos terrenos comunais e contra a extensão das pastagens despovoadas que seguiu aquela de perto».
Uma lei de Henrique VII, em 1489, cap.19, interdiz a demolição de todas as casas de camponeses que têm anexados pelo menos vinte acres de terreno. Esta interdição é renovada por uma lei do 25.º ano do reinado de Henrique VIII onde, entre outras coisas, se diz que «muitas herdades e grandes rebanhos de carneiros se amontoam em poucas mãos, de onde resulta que as rendas do solo aumentam mas diminui a mão-de-obra, que igrejas são demolidas e enormes massas de povo se encontram na impossibilidade de satisfazer a sua manutenção e das suas famílias».
A lei ordena por isso a reconstrução das casas demolidas nas herdades e fixa a proporção entre terras de trigo e pastagens. Uma lei de 1533 verifica que certos proprietários possuem 24 000 carneiros e impõe- lhes por limite 2000, etc.[3].
As queixas do povo, assim como as leis promulgadas desde Henrique VII, durante cento e cinquenta anos, contra a expropriação dos camponeses e dos pequenos fazendeiros, ficaram igualmente sem efeito. Nos seus Essays, civil e moral, no Ensaio XXIX, Bacon denuncia o segredo da ineficácia dessas leis: «A lei de Henrique VII foi profunda e admirável no sentido de ter criado estabelecimentos agrícolas e casas rurais de uma grandeza normal determinada, isto é, assegurou aos cultivadores uma porção suficiente de terra para os pôr em condições de criar indivíduos no gozo de uma honesta abastança, em condição não servil, e para manter a charrua nas mãos dos proprietários e não de mercenários».
O que era preciso à ordem de produção capitalista, era pelo contrário a condição servil das massas, a sua transformação em mercenários e a conversão dos seus meios de trabalho em capital.
Nesta época de transição, a legislação procurou também manter os quatro acres de terreno pegados à cabana do assalariado agrícola e a proibição de tomar sublocatários. Em 1627, no reinado de Jaime I, Roger Crocker de Frontmill foi condenado por ter construído uma cabana no domínio senhorial deste nome sem lhe ter anexado quatro acres de terreno perpetuamente; em 1638, no reinado de Carlos I, nomeou-se uma comissão real para dar execução às antigas leis, sobretudo a dos quatro acres. Também Cromwell interdisse a construção perto de Londres, no perímetro de seis quilómetros, de qualquer casa que não fosse dotada de um campo com quatro acres pelo menos. Enfim, na primeira metade do século XVIII, queixavam-se ainda de não haver um ou dois acres de terreno anexados à cabana do operário agrícola. Hoje este sente-se muito feliz quando tem um pequeno quintal ou quando pode arrendar, a distância considerável, um campo com alguns metros quadrados. Diz o Dr. Hunter: «Os proprietários de terras e os fazendeiros colaboram fortemente. Alguns acres acrescentados à sua cabana tornariam o trabalhador demasiado independente»[4].
A Reforma e a espoliação dos bens da igreja, que foi o seu resultado, vieram dar um impulso novo e terrível à expropriação violenta do povo no seculo XVI. A Igreja Católica era nessa época a proprietária feudal da maior parte do território inglês. A supressão dos conventos lançou os respectivos habitantes no proletariado. Os próprios bens do clero caíram nas garras dos favoritos reais ou foram vendidos por baixo preço a cidadãos e a fazendeiros especuladores que começaram por expulsar em massa os antigos rendeiros hereditários. O direito de propriedade dos pobres sobre uma parte dos dízimos eclesiásticos foi tacitamente confiscado[5].
«Há pobres por toda a parte», exclamava a Rainha Isabel, depois de ter feito uma viagem à roda da Inglaterra.
No 43.º ano do seu reinado, viram-se forçados a reconhecer o pauperismo como instituição nacional e a estabelecer a taxa dos pobres. Os autores desta lei tiveram vergonha de reconhecer os motivos e publicaram-na sem qualquer preâmbulo, contra o uso tradicional[6]. No reinado de Carlos I, o Parlamento declarou essa taxa perpétua e só veio a ser modificada em 1834. Então, do que lhes tinha sido originariamente concedido como indemnização pela expropriação sofrida, estabeleceram um castigo para os pobres.
O protestantismo é essencialmente uma religião burguesa. Para fazer sobressair o seu espírito bastará um exemplo. Era ainda no tempo de Isabel: alguns proprietários latifundiários e alguns ricos fazendeiros da Inglaterra meridional reuniram-se para aprofundar a recente lei dos pobres. Depois resumiram tudo num escrito, contendo dez questões que, em seguida, submeteram a um célebre jurisconsulto da época, o sargento Snigge, elevado ao nível de juiz no reinado de Jaime I. Eis um extracto:
«Alguns ricos fazendeiros da paróquia projectaram um plano muito inteligente por meio do qual se poderá evitar toda a espécie de perturbação na execução desta lei. Propõem que se construa na paróquia uma cadeia. Todo o pobre que não quiser deixar-se prender não receberá assistência. Em seguida, far-se-á saber nos arredores que, se algum indivíduo desejar alugar os pobres desta paróquia, terá de entregar, dentro do prazo a fixar antecipadamente, propostas seladas indicando o mais baixo preço por que quer desembaraçar-nos deles. Os autores deste plano supõem que há indivíduos que não têm a mínima vontade de trabalhar e que não têm fortuna nem crédito para obter quinta ou navio, para que possam viver sem trabalhar. Estas pessoas estariam dispostas a fazer à paróquia propostas muito vantajosas. Se aqui e ali os pobres viessem a morrer sob a guarda dos contratantes, a falta recairia sobre estes, e a paróquia teria cumprido todos os seus deveres para com os pobres. Tememos que a lei de que se trata não permita medidas de prudência deste género. Mas precisai de saber que os livres arrendatários se unirão a nós para levar os seus representantes na Câmara dos Comuns a proporem uma lei que permita meter na cadeia os pobres e obrigá-los a trabalhar, para que todo o indivíduo que se recuse à prisão perca o seu direito à assistência. Isto, temos esperança, irá impedir os miseráveis de terem necessidade de ser assistidos»[7].
No entanto, estas consequências imediatas da Reforma não foram as mais importantes. A propriedade eclesiástica criou para a ordem tradicional da propriedade dos terrenos uma avenida sagrada. Uma vez aquela tomada de assalto, a outra já não se poderia manter[8].
Nos últimos anos do século XVII, a yeomanry, classe de camponeses independentes, a orgulhosa classe camponesa (proud peasantry) de Shakespeare, ultrapassava ainda em número o estado dos fazendeiros; ela tinha constituído a principal força da República Inglesa. Os seus costumes e os seus hábitos formavam, conforme confessa Macaulay, o mais chocante contraste com os dos morgados contemporâneos, grotescos Nemrods, estúpidos, bêbados, e dos seus criados, os curas das aldeias, amantes solícitos das criadas favoritas dos nobres camponeses. Em 1750, a yeomanry tinha desaparecido.
Pondo de lado as influências puramente económicas que preparavam a expropriação dos cultivadores, só nos ocuparemos aqui das alavancas aplicadas para precipitar violentamente a sua marcha.
Sob a restauração dos Stuart, os proprietários latifundiários conseguiram cometer legalmente uma usurpação, realizada depois no continente sem a menor interferência parlamentar. Aboliram a constituição feudal do solo, isto é, descarregaram-no das servidões que o oneravam, indemnizando o Estado por impostos sobre os camponeses e o resto do povo, reivindicaram o título de propriedade privada, no sentido moderno, bens possuídos em virtude de títulos feudais, e coroaram a obra promulgando leis sobre o domicílio legal que faziam dos trabalhadores rurais uma pertença da paróquia, justamente como o famoso édito do tártaro Boris Godounov fizera dos camponeses russos uma pertença da gleba. A gloriosa revolução levou ao poder, com Guilherme III, príncipe de Orange[9], fabricantes de dinheiro, nobres possuidores de grandes terras, capitalistas plebeus, que inauguraram a Nova Era por meio de um esbanjamento verdadeiramente colossal do tesouro público. Os domínios do Estado, que até ali só tinham sido pilhados com modéstia, dentro de limites conformes com uma certa decência, foram extorquidos ao Rei à viva força, como gratificações devidas a cúmplices, ou vendidos por preços irrisórios, ou, sem nenhuma formalidade, simplesmente anexados às propriedades privadas[10]. E tudo isto a descoberto, ruidosamente, descaradamente, até com desprezo por uma fingida legalidade.
Esta apropriação fraudulenta do domínio público e a pilhagem dos bens eclesiásticos, sem contar os bens que a revolução republicana lançou na circulação, eis a base sobre a qual assenta o poderio relativo aos bens da coroa da oligarquia inglesa actual. Os burgueses capitalistas favoreceram a operação, com o fim de fazerem da terra um artigo de comércio, de aumentarem o seu aprovisionamento de proletários campesinos, de estenderem o campo da grande agricultura, etc.. De resto, a nova aristocracia latifundiária é a aliada natural da nova bancocracia, da alta finança há pouco nascida e dos gordos manufactureiros, fautores do sistema proteccionista. A burguesia inglesa agia conforme os seus interesses, como fez a burguesia sueca quando se ligou aos camponeses, para ajudar os reis a retomar por medidas terroristas as terras da coroa escamoteadas pela aristocracia.
A propriedade comunal, completamente distinta da propriedade pública de que acabamos de falar, era uma velha instituição germânica que permanecia em vigor no meio da sociedade feudal. Vimos que as usurpações violentas sobre as comunas, quase sempre seguidas da conversão das terras aráveis em pastagens, começaram no último terço do século XV e prolongaram-se para além do século XVI. Mas então estes actos de rapina só constituíam atentados individuais combatidos em vão durante cento e cinquenta anos pelo Parlamento. Mas no século XVIII – vejam que progresso! – as próprias leis tornaram-se o instrumento da espoliação, o que aliás não impediu os grandes fazendeiros de recorrerem também a pequenas práticas particulares e, por assim dizer, extralegais.
A forma parlamentar do roubo cometido sobre as comunas é a de «leis para encerramento das terras comunais». São decretos por meio dos quais os proprietários latifundiários oferecem presentes a si mesmos, são decretos de expropriação do povo. Numa defesa de advogado espertalhão, Sir F. M. Eden procura apresentar a propriedade comunal como propriedade privada, embora ainda indivisa, os modernos senhores da terra vêm ocupar o lugar dos seus predecessores (os senhores feudais) mas nega-se a si próprio pedindo que o Parlamento vote um estatuto geral que sancione de uma vez para sempre todos os terrenos das comunas. E, não contente por ter confessado que seria preciso um golpe de Estado parlamentar para legalizar a transferência de bens comunais para os senhores da terra, consuma a sua derrota insistindo, para descanso de consciência, sobre a indemnização aos pobres cultivadores[11]. Se não houvesse expropriados, não haveria evidentemente ninguém a indemnizar.
Ao mesmo tempo que a classe independente dos yeomen era suplantada pela dos pequenos fazendeiros cujo contrato podia ser rescindido todos os anos, raça tímida, servil, à mercê do bom prazer senhorial – o roubo sistemático das terras comunais, junto à pilhagem dos domínios do Estado, contribuía para engrossar as grandes herdades chamadas no século XVIII «herdades do capital» ou «herdades dos comerciantes», isto é, para transformar a população dos campos em proletariado «disponível» para a indústria.
No entanto, o século XVIII não compreendeu tão bem como o século XIX a identidade destes dois termos: riqueza da nação, pobreza do povo. Daí a polémica virulenta sobre o terreno das comunas que se encontra na literatura económica desta época. Do vasto material que nos foi legado sobre este assunto, bastará extrair algumas passagens que farão sobressair fortemente a situação desses tempos.
«Num grande número de locais, vinte e quatro herdades, cada uma com, pelo menos, 50 a 150 acres em média, ficaram reunidas em três.
Procedeu-se em grande medida ao encerramento dos terrenos comunais; e a maior parte dos novos senhorios saídos desta operação foi convertida em pastagens, de modo que onde se trabalhavam 1500 acres de terra já só se trabalham 50. Ruínas de casa, de granjas, de estábulos, eis os únicos traços que deixaram os seus antigos habitantes. Em muitos lugares, centenas de habitações e de famílias foram reduzidas a oito ou dez. Na maior parte das paróquias onde o encerramento data de há quinze ou vinte anos só passa a existir um pequeno número de proprietários, comparado ao grande número que cultivava o solo quando os campos eram abertos. Não é raro ver quatro ou cinco ricos criadores de gado usurparem domínios, ainda há pouco fechados, que antes se encontravam nas mãos de vinte ou trinta fazendeiros e de um grande número de pequenos proprietários e de vilões. Todos estes últimos e suas famílias foram expulsos com muitas outras famílias que empregavam e mantinham.
Não foram só as terras maninhas mas até as cultivadas, quer em comum quer pagando uma certa renda à comuna, que os proprietários limítrofes anexaram sob o pretexto de inclusão.
Refiro-me ao emparcelamento de terrenos e campos já cultivados. Até os escritores que defendem o emparcelamento concordam que, em certos casos, reduz a cultura, faz elevar os preços das subsistências e produz o despovoamento. E mesmo que se trate de terras incultas, a operação, tal como hoje se pratica, tira ao pobre uma parte dos seus meios de subsistência e activa o desenvolvimento de herdades que já são demasiado grandes»[12].
«Quando o solo – diz o Dr. Price – cai nas mãos de um pequeno número de grandes fazendeiros, os pequenos fazendeiros vão ser transformados em pessoas forçadas a ganhar as suas subsistências, a trabalhar para outrem e a ir ao mercado comprar o que lhes é necessário. Talvez se produza mais trabalho, porque haverá maior constrangimento. As cidades e as manufacturas crescerão porque nelas se encontrarão mais pessoas expulsas à procura de trabalho. É neste sentido que a concentração das herdades opera desde há muitos anos neste reino»[13].
A situação das classes inferiores piorou sob todos os aspectos: os pequenos proprietários e os fazendeiros ficaram reduzidos ao estado de jornaleiros e de mercenários e, ao mesmo tempo, tornou-se mais difícil ganhar a vida nestas condições[14].
De facto, a usurpação dos bens comunais e a revolução agrícola que se seguiu fizeram-se sentir duramente entre os trabalhadores dos campos; e a tal ponto que, segundo o próprio Eden, de 1765 a 1780, o salário começou a descer abaixo do mínimo e teve de ser completado por meio do socorro oficial. «O salário já não chegava para as primeiras necessidades da vida».
Escutemos ainda por instantes um apologista dos emparcelamentos, adversário do Dr. Price:
«Estaríamos absolutamente enganados se concluíssemos que o país se despovoa porque já não se vêem nos campos tantas pessoas a perder o seu tempo e o seu labor. Se há menos nos campos, há mais nas cidades. Se, depois da conversão dos pequenos camponeses em jornaleiros, obrigados a trabalhar para outrem, se faz mais trabalho, é uma vantagem que a nação só tem a desejar. O produto será mais considerável, se empregarem numa só herdade o trabalho combinado: formar-se-á assim um excedente de produto para as manufacturas, e estas, verdadeiras minas de ouro do nosso país, aumentarão proporcionalmente à quantidade de cereais fornecida»[15].
Quanto à serenidade de espírito e ao estoicismo imperturbável com os quais o economista encara a profanação mais desavergonhada do «direito sagrado da propriedade» e os atentados mais escandalosos contra as pessoas, desde que ajudem a estabelecer o modo de produção capitalista, poderemos julgar pelo exemplo de Sir F. M. Eden, tory e filantropo. Os actos de rapina, as atrocidades e sofrimentos que, desde o último terço do século XV até ao fim do século XVIII, formam o cortejo da expropriação violenta dos cultivadores, conduzem-no simplesmente a esta conclusão reconfortante:
«Era preciso estabelecer uma proporção justa entre as terras de cultivo e as pastagens. Durante todo o século XIV e a maior parte do século XV, havia ainda dois, três e até quatro acres de terreno arável por cada acre de pastagem. Nos meados do século XVI, esta proporção alterou-se: primeiro, três acres de pastagem por dois de solo cultivado, depois dois por um, até que por fim se chegou à justa proporção de três acres de terra de pastagem por cada acre de terra arada».
No século XIX chegou a perder-se a lembrança do íntimo laço que ligava o cultivador ao solo comunal. O povo dos campos, por exemplo, nunca obteve um chavo de indemnização pelos 3 511 770 acres que lhe foram arrancados de 1801 a 1831 e que os senhores latifundiários ofereceram uns aos outros por meio de decretos de emparcelamento.
O último processo de alcance histórico que se emprega para expropriar os cultivadores chama-se clearing of estates ou, literalmente, «limpeza dos bens de raiz». Em francês diz-se «limpar uma floresta», mas «limpar bens de raiz», no sentido inglês, não significa uma operação técnica de agronomia; é o conjunto de actos de violência por meio dos quais se desembaraçam dos cultivadores e das suas habitações, quando estão de posse de bens de raiz destinados a passar ao regime da grande cultura ou ao estado de pastagens. E foi a este estado que chegaram os métodos de expropriação: onde já não há camponeses a suprimir, arrasam as cabanas dos assalariados agrícolas cuja presença desfeia o solo. Mas o clearing of estates que vamos abordar tem por teatro a região predilecta dos romancistas modernos, as Highlands da Escócia.
A operação distingue-se pelo seu carácter sistemático e pela grandeza da escala em que se executa – na Irlanda, muitas vezes um proprietário de terras arrasa frequentemente algumas aldeias de uma só vez; mas na Escócia, trata-se de superfícies ainda mais extensas.
O povo das Highlands compunha-se de tribos cada uma das quais possuía como propriedade o solo no qual se estabelecera. O representante da tribo, o seu chefe (ou «grande homem») era apenas o proprietário titular do solo, como a rainha de Inglaterra é proprietária titular do solo nacional. Quando o governo inglês conseguiu suprimir definitivamente as guerras intestinas entre estes «grandes homens» e as suas contínuas incursões nas planícies limítrofes da baixa Escócia, eles não abandonaram o seu antigo mister de salteadores; só mudaram a respectiva forma. Baseados na sua própria autoridade, convertiam o direito de propriedade titular em direito de propriedade autêntica e, quando encontravam obstáculos aos seus projectos de enriquecimento, expulsavam à viva força.
«Um rei de Inglaterra pretenderia da mesma forma possuir o direito de expulsar os seus súbditos para o mar»[16].
Podem-se seguir as primeiras fases desta revolução nas obras de James Anderson[17] e de James Steuart. Este informa-nos que, na sua época, no último terço do século XVIII, a alta Escócia apresentava ainda um quadro da Europa de há quatrocentos anos.
«A renda (é assim que ele chama erradamente ao tributo pago ao chefe da tribo) é muito pequena em relação à extensão mas, se considerardes relativamente ao número de bocas que a herdade alimenta, vereis que uma terra nas montanhas da Escócia alimenta talvez duas vezes mais pessoas que uma terra do mesmo valor numa outra província. Passa-se com certas terras como com certos conventos de frades: quanto mais bocas há para alimentar, melhor vivem»[18].
No último terço do século XVIII, quando começaram a expulsar os gaélicos, proibiram-lhes ao mesmo tempo a emigração para o estrangeiro para os forçarem a afluir a Glasgow e a outras cidades manufactureiras.
Nas suas Observatios sur la «Richesse des Nations» de Adam Smith, publicadas em 1814, David Buchanan dá-nos uma ideia dos progressos feitos pelo clearing of estates:
«Nas Highlands o proprietário latifundiário, sem consideração pelos rendeiros hereditários (ele aplica erradamente esta palavra às pessoas da tribo que possuíam o solo em conjunto), oferece a terra a quem mais lhe der por ela. O solo, anteriormente enxameado de pequenos camponeses, era muito povoado em relação ao seu rendimento. O novo sistema de cultura aperfeiçoada e de rendas sempre em aumento faz obter o maior produto líquido com o menor dispêndio possível e, com este objectivo, desembaraçam-se dos colonos daqui em diante inúteis. Assim repelidos do solo natal, vão procurar a sua subsistência nas cidades manufactureiras».
George Ensor diz num livro publicado em 1818.
«Os grandes da Escócia expropriaram famílias como se fossem ervas más; trataram aldeias e habitantes como os índios ébrios de vingança tratam os animais ferozes e as suas tocas. Vende-se um homem por lã de ovelha, por uma perna de carneiro e até por menos… quando se deu a invasão da China setentrional, o Grande Conselho dos Mongóis discutiu se não seria bom extirpar do país todos os habitantes e convertê-lo numa vasta pastagem. E grande número de proprietários escoceses pôs em prática este desígnio no seu próprio país, contra os seus próprios compatriotas»[19].
A iniciativa mais completa pertence à duquesa de Sutherland, a qual, logo que tomou as rédeas da administração, resolveu recorrer aos grandes meios e converter tudo em pastagens, expulsando 15 000 habitantes de 1814 a 1820 (cerca de três mil famílias). Todas as aldeias foram destruídas e queimadas e os campos convertidos em pastagens. Soldados ingleses requisitados entraram em combate. Uma velha que se recusou a abandonar a sua choupana morreu nas chamas. Foi assim que a nobre dama açambarcou 794 000 acres de terras que pertenciam à tribo desde tempos imemoriais.
Uma parte dos espoliados foi absolutamente expulsa; à outra, concederam-lhe uns 6000 acres nas praias do mar, terras até agora incultas e que nunca tinham produzido um chavo. A duquesa levou a sua grandeza de alma até ao ponto de as arrendar pela média de 2 xelins e 6 dinheiros por acre, àqueles membros da tribo que durante séculos tinham derramado o seu sangue ao serviço dos senhores Sutherland. O terreno que ela assim conquistou, dividiu-o em vinte e nove grandes herdades de carneiros, estabelecendo em cada uma delas uma só família, composta quase sempre de criados ingleses de lavoura. Em 1825, os quinze mil proscritos já tinham sido substituídos por 131 000 carneiros. Os que foram lançados para a costa marítima entregaram-se à pesca e tornaram-se, segundo a expressão de um escritor inglês, verdadeiros anfíbios, vivendo metade do tempo em terra e a outra metade na água mas, com tudo isso, vivendo apenas por metade[20].
Mas estava escrito que os gaélicos[21] teriam de sofrer ainda mais: o cheiro do peixe incomodou o nariz do capital, que farejou novos lucros, e não tardou a arrendar a costa aos peixeiros de Londres. Mais outra vez foram expulsos os gaélicos.
Por fim, realizou-se uma última metamorfose: uma porção das terras convertidas em pastagens foi convertida em reservas de caça.
Sabe-se que a Inglaterra já não tem florestas de verdade. A caça criada nos parques é uma espécie de caça doméstica e constitucional, gorda como os ricaços de Londres. A Escócia é portanto o último asilo da nobre paixão venatória. Diz Robert Somers:
«Nas Highlands, em 1848, alargaram-se muito as florestas reservadas aos animais selvagens. A conversão dos campos em pastagens expulsou os gaélicos para as terras menos férteis; agora que a caça selvagem começa a substituir o carneiro, a miséria torna-se-lhes ainda mais esmagadora. Este tipo de florestas improvisadas e o povo não podem coexistir; é preciso que um deles ceda o lugar ao outro. À medida que vai aumentar o número e a extensão das reservas de caça no próximo quarto de século, como se fez no último, não se encontrará um só gaélico na sua terra natal. Por um lado, a devastação artificial das Highlands é assunto que de certo modo lisonjeia o orgulho aristocrático dos proprietários latifundiários e a sua paixão pela caça, mas por outro lado, entregam-se ao comércio da caça para fins exclusivamente mercantis. Não há dúvida que o espaço pode render muito menos como pastagem do que como reserva de caça. O amador à procura de caça, em geral, não põe outro limite às suas ofertas que não seja a sua possibilidade monetária. As Highlands tiveram sofrimentos tão cruéis como aqueles com que a política dos reis normandos feriu a Inglaterra. Os animais selvagens tiveram campo cada vez mais livre, ao passo que os homens foram empurrados para um círculo cada vez mais apertado. O povo viu que lhe arrebatavam todas as suas liberdades, uma após outra. Aos olhos dos senhores das terras, é princípio fixo, necessidade agronómica, o expurgo do solo quanto aos seus habitantes, como se abatem árvores e mato nas regiões selvagens da América ou da Austrália, e a operação segue tranquilamente o seu caminho com toda a regularidade»[22] .
O livro de Robert Somers apareceu primeiro nas colunas do Times em forma de cartas sobre a fome que os gaélicos tiveram de passar em 1847, vencidos perante a concorrência da caça. Sábios economistas tiraram a conclusão de que havia demasiados gaélicos, o que fazia exercer pressão sobre os meios de subsistência.
Vinte anos depois, este estado de coisas tinha piorado muito, como pôde verificar o professor Leone Levi num discurso pronunciado em Abril de 1866, perante a Sociedade das Artes.
«Despovoar o país, converter terras aráveis em pastagens, foi, em primeiro lugar, o meio mais cómodo de ter rendimento sem ter gastos. Depois, a substituição das pastagens pelas florestas de caça tornou-se um acontecimento vulgar. O gamo expulsou o carneiro como este tinha expulsado o homem. A raposa, o gato selvagem, a marta, a doninha, a fuinha, a lontra, a lebre dos Alpes, já se naturalizaram há muito tempo; o coelho vulgar, o esquilo e o rato encontraram recentemente o mesmo caminho. Enormes distritos que figuravam como pradarias de fertilidade e extensão excepcionais são agora rigorosamente excluídas de qualquer tipo de cultura e consagrados aos prazeres de um punhado de caçadores e só durante alguns meses do ano».
Nos fins de Maio de 1866, um jornal escocês anunciou o facto seguinte nas suas notícias do dia: «Uma das melhores herdades de carneiros, pela qual, ao findar o arrendamento corrente, ofereceram um milhão e duzentas mil libras, vai ser convertida em floresta de caça». E o Economist de Londres, de 2 de Junho de 1866, escreve: «Os instintos feudais dão-se livre curso hoje, como no tempo em que o conquistador normando destruía trinta e seis aldeias para criar a Nova Floresta. Dois milhões de acres, compreendendo as terras mais férteis da Escócia, estão totalmente devastados. O solo sacrificado ao prazer da caça estende-se por uma superfície enorme. A perda em fontes de produção que esta devastação causou ao país pode apreciar-se pelo facto de todo esse terreno se tornar improdutivo. Equivaleu a mergulhá-lo no Mar do Norte. É preciso que o braço da lei intervenha para dar o golpe de graça a estas solidões, a estes desertos improvisados».
A espoliação dos bens da igreja, a alienação fraudulenta dos domínios do Estado, a pilhagem dos terrenos comunais, a transformação usurpadora e terrorista da propriedade feudal, ou até patriarcal, em moderna propriedade privada, a guerra às choupanas, foram estes os processos idílicos de acumulação primitiva. Conquistaram a terra para a agricultura capitalista, incorporaram o solo no capital e entregaram à indústria das cidades os braços dóceis de um proletariado sem eira nem beira.
[1] Vide Macaulay, The History of England.
[2] O acre corresponde, em Portugal, à jeira ou jorna (terreno que uma junta de bois pode lavrar num dia). Em Inglaterra eram aproximadamente 40 ares.
[3] No seu Utopie, Thomas More refere-se ao estranho país onde os carneiros comem os homens.
[4] Dr. HUNTER: Public Health, 7th Report, 1865.
[5] J. D. TUCKETT: A History of the past and present state of the labouring population.
[6] WILLI COBBET: A History of the protestant reformation.
[7] R. BLAKEY: The History of political literature from the earliest times.
[8] M. ROGERS: Histoire de l’agriculture.
[9] Fez grandes concessões de terras a Lady Orkney por causa dos seus serviços: faeda labiorum ministeria (sórdido serviço dos lábios).
[10] F. W. NEWMAN: Lectures on political econ.
[11] EDEN: The State of the Poor.
[12] RÉV. ADDINGTON: Inquiry into the Reasons for and against enclosing open fields.
[13] DR. R. PRICE: Observations on reversionary Payments.
[14] APPIEN: Les Guerres civiles romaines.
[15] K. B. SEELEY: The Perils of the Nation.
[16] F. W. NEWMAN: Lectures on polit. Economy.
[17] JAMES ANDERSON: Observation on the means of exciting a spirit of national industry.
[18] JAMES STEUART: Works
[19] GEORGE ENSOR: An Inquiry concerning the Population of Nations.
[20] New York Daily Tribune, 9-2-1853 (Artigo: The Duches of Sutherland and Slavery)
[21] Descendentes dos normandos, antigos habitantes da Gália.
[22] ROBRT SOMERS: Letters from The Highlands: or the Famine of 1847.
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Vimos como o dinheiro se transforma em capital, o capital em fonte de mais-valia, e a mais-valia em fonte de capital adicional. A acumulação capitalista pressupõe a presença de mais-valia e esta a produção capitalista que, por sua vez, só entra em cena no momento em que massas de capitais e de forças operárias bastante consideráveis se encontram já acumuladas. Todo este movimento gira um círculo vicioso, do qual não se pode sair sem admitir uma acumulação primitiva (previous accumulation, disse Adam Smith) anterior à acumulação capitalista e que serve de ponto de partida para a produção capitalista, em vez de provir desta.
A acumulação primitiva representa na economia política quase o mesmo que o pecado original em teologia. Adão mordeu a maçã e aí está o pecado a dar entrada no mundo e explicam-nos a origem do pecado por uma aventura que se teria passado poucos dias depois da criação.
Pois também outrora, há muito tempo, a sociedade dividia-se em dois campos: de um lado, pessoas da elite, laboriosas, inteligentes, dotadas de hábitos domésticos; do outro lado, um montão de patifes, em festança da manhã à noite e de noite até pela manhã. Em seguida, uns amontoaram tesouro sobre tesouro, ao passo que os outros em breve se encontraram despidos de tudo. Daí a pobreza da grande massa que, apesar de um trabalho sem fim nem tréguas, pagou sempre com a sua pessoa; e a riqueza de um pequeno número que colhe todos os frutos do trabalho sem ter de mexer os dedos.
A historieta do pecado mostra-nos, é verdade, como foi o homem condenado pelo Senhor a ganhar o seu pão com o suor da testa; mas quanto ao pecado económico, há uma lacuna lamentável e não se sabe como foi que homens escaparam a esta ordem do Senhor.
E estas insípidas infantilidades não se cansam de as repisar. Thiers[1] dá brindes aos franceses, outrora tão espirituosos, e pretende ter reduzido a nada os ataques sacrílegos do socialismo contra a propriedade. É verdade que, posto sobre a mesa o problema da propriedade, todos devem considerar seu dever sagrado manter-se na sabedoria do abecedário, a única em uso e ao alcance dos estudantes de todas as idades[2].
Nos anais da história, foi sempre a conquista, a escravidão, a rapina à mão armada, o reino da força brutal, que empalmaram a propriedade. Pelos manuais beatos da economia política foi só o idílio que em todos os tempos reinou. Segundo os seus dizeres, nunca houve outros meios de enriquecer senão o trabalho e o direito. Mas, de facto, os métodos da acumulação primitiva são tudo o que quiserem, excepto matéria de idílio.
A relação oficial entre o capitalista e o assalariado é de carácter puramente mercantil. Se o primeiro representa o papel de patrão e o último o de servidor, é graças a um contrato pelo qual este não só se pôs ao serviço daquele e portanto sob a sua dependência, mas pelo qual renunciou a todo o tipo de propriedade sobre o seu próprio produto. Mas porque é que o assalariado faz este comércio? Porque nada mais possui além da sua força pessoal – o trabalho no estado de potência – ao passo que todas as condições exteriores requeridas para dar corpo a esta potência, a matéria e os instrumentos necessários ao exercício útil do trabalho, o poder de dispor das subsistências indispensáveis à manutenção da força operária e à sua conservação em movimento produtivo, tudo isso se encontra do outro lado.
No fundo do sistema capitalista há portanto a separação radical entre o produtor e os meios de produção. Esta separação produz-se em escala progressiva desde que o sistema capitalista se estabeleceu; mas como aquela separação forma a base deste sistema, este não pode estabelecer-se sem aquela. Para que viesse ao mundo, foi preciso que, pelo menos parcialmente, os meios de produção tivessem sido arrancados aos produtores, que os empregavam para realizar o seu próprio trabalho, e que tais meios se encontrassem já detidos por produtores comerciantes que os empregavam a especular sobre o trabalho alheio. O movimento histórico que faz divorciar o trabalho das suas condições exteriores, eis portanto a fina palavra da acumulação chamada «primitiva» porque pertence à idade histórica do mundo burguês.
A ordem económica capitalista saiu das entranhas da ordem económica feudal. A dissolução de uma libertou os elementos constitutivos da outra.
Quanto ao operário, produtor imediato, para poder dispor da sua própria pessoa, precisa em primeiro lugar de deixar de estar ligado à gleba ou de estar enfeudado a outra pessoa (também não podia tornar-se livre vendedor de trabalho, sem ter escapado ao regime das corporações, com o seu patronato, os seus jurados, as suas leis de aprendizagem, etc.). O movimento histórico que converteu os produtores em assalariados apresenta-se portanto como a alforria, a libertação da escravidão e da hierarquia industrial. Por outro lado, estes alforriados só se tornam vendedores de si mesmos depois de terem sido despojados de todos os seus meios de produção e de todas as garantias de existência oferecidas pela antiga ordem das coisas. A história dessa expropriação não é assunto de conjectura: está escrita nos anais da humanidade a letras de sangue e de fogo indeléveis.
Quanto aos capitalistas empreendedores, estes novos potentados tiveram não só que deslocar os mestres dos ofícios, mas também os detentores feudais das fontes de riqueza. Assim, o aparecimento do capitalista apresenta-se como resultado de uma luta vitoriosa contra o poder senhorial com as suas prerrogativas revoltantes, e contra o regime corporativo com os entraves que punha ao livre desenvolvimento da produção e à livre exploração do homem pelo homem. Mas os cavaleiros da indústria não suplantaram os cavaleiros da espada a não ser pela exploração de acontecimentos que não eram feitura sua. Chegaram por meios tão vis como aqueles de que se serviu o alforriado romano para se tornar patrão do seu patrão.
O conjunto do desenvolvimento, compreendendo ao mesmo tempo a génese do assalariado e a do capitalista, tem por ponto de partida a servidão dos trabalhadores; o progresso consiste em mudar a forma de servidão, em transformar por metamorfose a exploração feudal em exploração capitalista. Para fazer compreender a marcha desta metamorfose precisamos de subir muito alto. Embora os primeiros esboços da produção capitalista tenham sido feitos bastante cedo em algumas cidades do Mediterrâneo, a era capitalista só data do século XVI. Por toda a parte onde nasceu, a abolição da servidão é de há muito tempo um facto consumado, e o regime das cidades soberanas, essa glória da Idade Média, está já em plena decadência.
Na história da acumulação primitiva, fazem época todas as revoluções que servem de alavanca ao avanço da classe capitalista em via de formação, sobretudo aquelas que, despojando grandes massa dos seus meios de produção e de existência tradicionais, as lançam de improviso no mercado de trabalho. Mas a base de toda esta evolução é a expropriação dos cultivadores.
Em Inglaterra realizou-se de maneira radical: este país representará pois o primeiro papel no nosso bosquejo. Mas todos os outros países da Europa Ocidental percorrem idêntico movimento, embora mude de cor local, ou se apertem em círculo mais acanhado, ou apresente um carácter menos fortemente pronunciado, ou siga uma ordem diferente de sucessão.
[1] Thiers, De la propriété.
[2] Goethe, Gesammelte Werke:
«O mestre-escola: donde veio a fortuna do teu pai?
O aluno: do avô.
E ao teu avô?
Do bisavô.
E ao teu bisavô?
Agarrou-a».
Nos últimos anos, as greves operárias são extraordinariamente frequentes na Rússia. Não há uma única província onde não tenha havido várias greves. Nas grandes cidades, as greves sucedem-se. Compreende-se, pois, que os operários conscientes e os socialistas ponham cada vez mais amiúde a questão do significado das greves, dos modos de as levar a cabo e das tarefas que os socialistas se propõem ao participar nelas.
Queremos tentar fazer uma exposição dalgumas das nossas considerações sobre estes problemas. No primeiro artigo pensamos falar do significado das greves no movimento operário em geral; no segundo, das leis russas contra as greves, e em terceiro, de como se desenvolvem as greves na Rússia e qual deve ser a atitude dos operários conscientes em face delas.
Em primeiro lugar, é preciso ver como se explica o nascimento e a difusão das greves. Qualquer pessoa que recorde os casos de greve que conheça pela sua própria experiência pessoal, pelos relatos de outros ou através dos jornais, constatará que as greves surgem e estendem-se onde aparecem e se estendem as grandes fábricas. Nas fábricas mais importantes, em que trabalham (e às vezes milhares) operários, não se encontrará uma única onde não tenha havido greves. Quando na Rússia eram poucas as fábricas, as greves eram escassas, mas desde que aquelas se multiplicam rapidamente, tanto nas antigas localidades fabris como nas novas cidades e centros industriais, as greves são cada vez mais frequentes.
Por que é que a grande produção industrial conduz às greves? Isso deve-se a que o capitalismo leva necessariamente à luta dos operários contra os patrões, e quando a produção se transforma numa produção em grande escala, esta luta toma necessariamente a forma de greves.
Vejamos.
Denomina-se capitalismo a organização da sociedade em que a terra, as fábricas, os instrumentos de produção, etc., pertencem a um pequeno número de proprietários de terra e capitalistas, enquanto a massa do povo não possui nenhuma ou quase nenhuma propriedade e tem, por isso, de alugar a sua força de trabalho. Os proprietários de terra e os capitalistas contratam os operários, obrigam-nos a produzir estes ou aqueles artigos, que vendem no mercado. Os patrões abonam aos operários unicamente o salário imprescindível para que estes e os seus familiares possam subsistir, ainda que mal, e tudo o que o operário rende, acima dessa quantidade de produtos necessária para a sua manutenção, os patrões embolsam-no; isto constitui o seu lucro. Portanto, na economia capitalista, a massa do povo trabalha à jorna para outros, não trabalha para si, mas para os patrões, e fá-lo a troco de um salário. Compreende-se que os patrões se esforcem sempre por reduzir o salário: quanto menos entregarem aos operários, mais lucro lhes fica. Em troca, os operários esforçam-se por receber o maior salário possível, para poderem sustentar a sua família com uma alimentação abundante e saudável, viver numa casa boa e não se vestirem como mendigos, mas como toda a gente. Portanto, entre patrões e operários trava-se uma luta constante pelo salário: o patrão tem liberdade para contratar o operário que quiser, razão por que procura o mais barato. O operário tem liberdade para se alugar ao patrão que quiser, e procura o mais caro, o que pague mais. Quer o operário trabalhe no campo ou na cidade, quer alugue os seus braços a um proprietário de terras, a um lavrador rico, a um empreiteiro ou a um fabricante, regateia com o patrão, lutando contra ele pelo salário.
Mas, pode o operário, isolado, sustentar essa luta?
Cada vez é maior o número de operários: os camponeses arruínam-se e fogem das aldeias para as cidades e para as fábricas. Os proprietários de terras e os fabricantes introduzem máquinas, que deixam, os operários sem trabalho. Nas cidades, aumenta sem cessar o número de desempregados, e nas aldeias, o de gente reduzida à miséria; a existência de um povo faminto faz que os salários baixem cada vez mais. É impossível, ao operário, lutar isolado contra o patrão. Se o operário lhe exigir melhor salário ou não aceitar uma redução do mesmo, o patrão responder-lhe-á: Vai-te embora, são muitos os famintos que esperam à porta da fábrica e que ficarão contentes por trabalhar, ainda que a troco de um salário baixo.
Quando a ruína do povo chega a um ponto tal que nas cidades e nos povoados há sempre massas de desempregados, quando os patrões amontoam enormes fortunas e os pequenos proprietários são submersos pelos milionários, então o operário isolado transforma-se num homem absolutamente desarmado frente ao capitalista. O capitalista pode esmagar por completo o operário, condená-lo à morte num trabalho de forçados, e não só a ele, mas também à sua mulher e aos seus filhos. Com efeito, vêde as indústrias em que os operários não conseguiram ainda a protecção da lei e não podem oferecer resistência aos capitalistas e comprovareis que a jornada é incrivelmente longa, atingindo mesmo as 17 e as 19 horas, que criaturas de cinco ou seis anos executam um trabalho extenuante e que os operários padecem de fome constantemente, condenados a uma morte lenta. Um exemplo é o dos operários que trabalham ao domicílio para os capitalistas; mas qualquer operário se lembrará de muitos outros exemplos! Nem mesmo sob a escravidão e sob o regime de servidão existiu uma opressão tão tremenda do povo trabalhador como a que sofrem os operários quando não podem opor resistência aos capitalistas nem conquistar leis que limitem a arbitrariedade patronal.
Pois bem, para não se verem reduzidos a esta situação tão extrema, os operários iniciam a luta mais obstinada. Vendo que cada um deles é, por si só, absolutamente impotente e vive sob a ameaça de sucumbir sob o jugo do capital, os operários começam a erguer-se juntos contra os seus patrões. Dão começo às greves operárias. É frequente, a princípio, que os operários não tenham sequer uma ideia clara daquilo que se esforçam por conseguir, que não compreendam por que é que actuam assim: simplesmente quebram as máquinas e destroem as fábricas. A única coisa que querem é dar a conhecer aos patrões a sua indignação, experimentar as suas forças conjugadas para sair de uma situação insuportável, sem saberem ainda por que é que a sua situação é tão desesperada e quais devem ser as suas aspirações.
Em todos os países, a indignação dos operários começou com distúrbios isolados, com motins, como lhes chamam no nosso país a polícia e os patrões. Em todos os países, estes distúrbios deram lugar, por um lado, a greves mais ou menos pacíficas e, por outro, a uma luta geral da classe operária pela sua emancipação.
Que significado têm as greves na luta da classe operária? Para responder a esta pergunta devemos primeiro deter-nos a examinar mais detalhadamente as greves. Se o salário do operário se determina — como vimos — por um acordo entre o patrão e o operário, e se cada operário isolado é absolutamente impotente, torna-se evidente que os operários devem necessariamente defender juntos as suas reivindicações, devem necessariamente declarar-se em greve para impedir que os patrões reduzam o salário ou para obter um salário mais alto. E, efectivamente, não existe nenhum país capitalista onde não estalem greves operárias. Em todos os países europeus e na América, os operários sentem-se impotentes quando actuam individualmente e só podem opor resistência aos patrões quando estão unidos, quer declarando-se em greve, quer ameaçando com a greve. E quanto mais se desenvolve o capitalismo, quanto maior é a rapidez com que crescem as grandes fábricas, quanto mais os pequenos capitalistas se vêem submersos pelos grandes, mais imperiosa é a necessidade de uma resistência conjunta dos operários, porque se agrava o desemprego forçado, se agudiza a concorrência entre os capitalistas, que tratam de produzir as mercadorias do modo mais barato possível (para o que necessitam de pagar aos operários o menos possível), e se acentuam as oscilações da indústria e as crises[1]. Quando a indústria prospera, os patrões obtêm grandes lucros e não pensam em reparti-los com os operários; mas durante a crise tratam de atirar com as perdas para cima dos operários. A necessidade das greves na sociedade capitalista é de tal forma reconhecida por toda a gente nos países da Europa, que a lei não proíbe a declaração de greves; só na Rússia é que subsistem leis selvagens contra as greves (destas leis e da sua aplicação falaremos noutro momento).
Mas as greves, por derivarem da própria natureza da sociedade capitalista, significam o começo da luta da classe operária contra esta estrutura da sociedade. Quando operários necessitados que actuam individualmente se encontram frente aos potentados capitalistas, isto equivale à plena escravização dos operários. Mas quando estes operários necessitados se unem, a coisa muda. Os patrões não poderão tirar quaisquer lucros das suas riquezas se não encontrarem operários dispostos a trabalhar com os instrumentos e os materiais dos capitalistas e a produzir novos valores. Quando os operários se enfrentam com os patrões isoladamente, continuam a ser verdadeiros escravos, que trabalham eternamente para um estranho a troco de um pedaço de pão, como assalariados eternamente submissos e silenciosos. Mas quando os operários proclamam juntos as suas reivindicações e se negam a submeter-se aos que têm os bolsos cheios de ouro, então deixam de ser escravos, convertem-se em homens e começam a exigir que o seu trabalho sirva não só para enriquecer um punhado de parasitas, mas que permita aos trabalhadores viver como pessoas. Os escravos começam a exigir tornar-se senhores: trabalhar e viver não como querem os proprietários de terras e os capitalistas, mas como querem os próprios trabalhadores. As greves infundem sempre um tal medo aos capitalistas, porque começam a fazer vacilar o seu domínio. «Todas as rodas pararão, se assim o quiser o teu braço vigoroso», diz sobre a classe operária uma canção dos operários alemães. Com efeito, as fábricas, as herdades dos proprietários de terras, as máquinas, os caminhos de ferro, etc., etc., são, por assim dizer, rodas de um imenso mecanismo: este mecanismo fornece produtos de toda a espécie transforma-os, distribui-os para onde é necessário. Todo este mecanismo é movido pelo operário, que cultiva a terra, extrai o mineral, produz as mercadorias nas fábricas, constrói casas, oficinas e linhas férreas. Quando os operários se recusam a trabalhar, todo este mecanismo ameaça paralisar. Cada greve recorda aos capitalistas que os verdadeiros donos não são eles, mas os operários, que proclamam os seus direitos com força crescente. Cada greve recorda aos operários que a sua situação não é desesperada e que não estão sós. Vêde que enorme influência exerce uma greve tanto sobre os grevistas como sobre os operários das fábricas vizinhas ou próximas ou das fábricas do mesmo ramo da indústria. Em tempo normal, pacífico, o operário arrasta em silêncio a sua carga, não responde ao patrão, não reflecte sobre a sua situação. Durante uma greve, o operário proclama em voz alta as suas reivindicações, lembra aos patrões todos os atropelos de que tem sido vítima, proclama direitos, não pensa apenas em si nem exclusivamente no seu salário, mas pensa também em todos os seus camaradas, que abandonaram o trabalho juntamente com ele e que defendem a causa operária sem medo das privações. Todas as greves acarretam aos operários grande número de privações, e privações tão terríveis que só se podem comparar às calamidades da guerra: fome na família, perda do salário, frequentemente prisões, expulsão da cidade onde reside e onde trabalha. E apesar de todas estas calamidades, os operários desprezam aqueles que abandonam os seus camaradas e que colaboram com o patrão. Apesar das calamidades da greve, os operários das fábricas vizinhas sentem entusiasmo sempre que vêem que os seus camaradas iniciaram a luta. «Os homens que resistem a tais calamidades para quebrar a oposição de um burguês, saberão também quebrar a força de toda a burguesia», dizia um grande mestre do socialismo, Engels, falando das greves dos operários ingleses. Muitas vezes, basta que uma fábrica se declare em greve para que imediatamente comece uma série de greves em muitas outras fábricas. Tão grande é a influência moral das greves, tão contagioso é o influxo que sobre os operários exerce ver os seus camaradas que, ainda que temporariamente, se transformam de escravos em pessoas com os mesmos direitos que os ricos! Qualquer greve dá com enorme força aos operários a ideia do socialismo: a ideia da luta de toda a classe operária pela sua emancipação do jugo do capital. É muito frequente que, antes de uma greve importante, os operários de uma fábrica ou de uma indústria, ou de uma cidade qualquer, não conheçam o socialismo nem pensem nele, mas depois da greve estendem-se cada vez mais entre eles os círculos e as associações e são cada vez mais os operários que se tomam socialistas.
A greve ensina os operários a compreender a raiz da força dos patrões e da dos operários, ensina a não pensar apenas no seu patrão nem nos seus camaradas próximos, mas em todos os patrões, em toda a classe capitalista e em toda a classe operária. Quando um patrão que amontoou milhões à custa do trabalho de várias gerações de operários recusa o mais modesto aumento de salários e inclusive tenta reduzi-los ainda mais e, no caso de os operários oferecerem resistência, atira para a rua milhares de famílias famintas, então os operários vêem claramente que toda a classe capitalista é inimiga de toda a classe operária e que os operários só podem confiar em si mesmos e na sua união. Acontece muitas vezes que um patrão tenta, a todo o custo, enganar os operários, apresentar-se diante deles como um benfeitor, dissimular a exploração dos seus operários com uma qualquer dádiva fútil, com qualquer promessa ardilosa. Qualquer greve destrói sempre imediatamente este engano, fazendo ver aos operários que o seu «benfeitor» é um lobo com pele de cordeiro.
Mas a greve abre os olhos aos operários não só no que se refere aos capitalistas, mas também no que se refere ao governo e às leis. Do mesmo modo que os patrões se esforçam por aparecer como benfeitores dos operários, também os funcionários e os seus lacaios se esforçam por convencer os operários de que o czar e o governo czarista se preocupam igualmente com os patrões e com os operários, com um espírito de justiça. O operário não conhece as leis e não se dá com os funcionários, em particular com os altos, pelo que frequentemente dá crédito a tudo isto. Mas rebenta uma greve, apresentam-se na fábrica o fiscal, o inspector da fábrica, a polícia e muitas vezes as tropas, e é então que os operários se apercebem de que transgrediram a lei: a lei permite aos fabricantes reunirem-se e tratar abertamente de como reduzir o salário dos operários, mas considera um crime a união dos operários com vista a uma acção comum! São desalojados das suas casas, a polícia encerra as cantinas onde os operários poderiam adquirir alimentos a crédito e tenta-se açular os soldados contra os operários inclusive quando estes mantêm uma atitude serena e pacífica. Dá-se mesmo aos soldados ordem de abrir fogo contra os operários e quando matam trabalhadores indefesos atirando nas costas da multidão que foge, o próprio czar manifesta a sua gratidão às tropas (assim fez com os soldados que mataram, em 1895, uns grevistas, em Yaroslavl). Torna-se evidente para qualquer operário que o governo czarista é um inimigo jurado, que defende os capitalistas e ata os operários de pés e mãos. O operário começa a compreender que as leis são ditadas em benefício exclusivo dos ricos, que também os funcionários defendem os interesses dos ricos que se tapa a boca ao povo trabalhador e não se lhe permite exprimir as suas necessidades e que a classe operária tem necessariamente de obter o direito de greve, o direito a publicar jornais operários e o direito a participar numa Assembleia Popular representativa encarregada de promulgar as leis e de velar pelo seu cumprimento. Por sua vez, o governo compreende muito bem que as grevas abrem os olhos aos operários e por isso teme-as e esforça-se por sufocá-las o mais cedo possível. Um ministro do Interior alemão, que ganhou fama devido às suas furiosas perseguições contra os socialistas e os operários conscientes, declarou — não sem razão — numa ocasião perante os representantes do povo: «Por detrás de cada greve cresce a hidra da revolução». Durante cada greve cresce e desenvolve-se nos operários a consciência de que o governo é seu inimigo e de que a classe operária deve lutar contra ele pelos direitos do povo.
Assim, pois, as greves ensinam os operários a unir-se, as greves fazem-nos ver que só unidos podem sustentar a luta contra os capitalistas, as greves ensinam os operários a pensar na luta, de toda a classe operária contra toda a classe patronal e contra o governo autocrático e policial. Por isso mesmo, os socialistas chamam às greves «escola de guerra», escola em que os operários aprendem a fazer a guerra aos seus inimigos pela emancipação de todo o povo e de todos os trabalhadores do jugo dos funcionários e do jugo do capital.
Mas a «escola da guerra» não é ainda a própria guerra; quando as greves alcançam grande difusão, alguns operários (e alguns socialistas) começam a pensar que a ciasse operária pode limitar-se às greves e às caixas ou sociedades de resistência, que só com as greves a classe operária pode conseguir uma grande melhoria da sua situação e inclusive a sua própria emancipação. Vendo a força que representa a união dos operários e até as suas pequenas greves, algumas pessoas pensam que basta aos operários declarar a greve geral em todo o país para obterem dos capitalistas e do governo tudo o que quiserem. Esta opinião foi também expressa pelos operários de outros países quando o movimento operário estava na sua etapa inicial e os operários tinham ainda muito pouca experiência. Mas esta opinião é errónea. As greves são um dos meios de luta da classe operária pela sua emancipação, mas não o único, e se os operários não prestam atenção a outros meios de luta, atrasam o desenvolvimento e os êxitos da classe operária. Com efeito, para que as greves tenham êxito são necessárias as caixas de resistência, a fim de manter os operários enquanto durar o conflito. Os operários (geralmente os de cada indústria, de cada ofício ou de cada empresa) organizam estas caixas em todos os países, mas na Rússia isto é extremamente difícil, porque a polícia persegue-as, apodera-se do dinheiro e prende os operários. Naturalmente, os operários sabem defender-se da polícia; naturalmente, a organização destas caixas é útil, e nós não queremos dissuadir os operários de que se ocupem disto. Mas não se deve esperar que, estando proibidas pela lei, as caixas operárias possam contar com muitos membros; e sendo escasso o número de cotizantes, as ditas caixas não terão grande utilidade. Além disso, mesmo nos países em que as associações operárias existem livremente, e em que as caixas são muito fortes, mesmo nesses a classe operária não pode de maneira nenhuma limitar-se, na sua luta, às greves. Basta que sobrevenham dificuldades na indústria (uma crise como a que, por exemplo, se começa actualmente a desenhar na Rússia), para que os patrões provoquem inclusive premeditadamente greves, porque às vezes convém-lhes suspender temporariamente o trabalho, porque têm interesse que as caixas operárias esgotem os seus fundos. Daí que os operários não podem, de modo algum, circunscrever-se às greves e às sociedades de resistência. Em segundo lugar, as greves só são vitoriosas quando os operários possuem já bastante consciência, quando sabem escolher o momento para declará-las, quando sabem apresentar reivindicações, quando mantêm contacto com os socialistas para receber panfletos e brochuras. Mas operários assim ainda há muito poucos na Rússia, e é necessário dirigir todos os esforços para aumentar o seu número, para dar a conhecer a causa operária às massas operárias, para fazê-las conhecer o socialismo e a luta operária. Esta é a missão que devem assumir os socialistas e os operários conscientes, formando para isso o Partido Operário Socialista. Em terceiro lugar, as greves mostram aos operários, como vimos, que o governo é seu inimigo e que é preciso lutar contra ele. Com efeito, as greves ensinaram gradualmente a classe operária, em todos os países, a lutar contra os governos pelos direitos dos operários e pelos direitos de todo o povo. Como dissemos, esta luta só pode ser levada a cabo pelo Partido Operária Socialista, difundindo entre os operários as ideias justas sobre o governo e sobre a causa operária. Noutra ocasião referir-nos-emos particularmente a como se realizam na Rússia as greves e a como devem utilizá-las os operários conscientes. Por agora devemos indicar que as greves são, como dissemos anteriormente, uma «escola de guerra», mas não a própria guerra; as greves são apenas um dos meios de luta, uma das formas do movimento operário. Das greves isoladas os operários podem e devem passar, e passam realmente em todos os países, à luta de toda a classe operária pela emancipação de todos os trabalhadores. Quando todos os operários conscientes se tornarem socialistas, quer dizer, quando aspirarem a esta emancipação, quando se unirem em todo o pais para propagar entre os operários o socialismo e ensinar-lhes todos os meios de luta contra os seus inimigos, quando formarem o Partido Operário Socialista, que luta para libertar todo o povo da opressão do governo e para emancipar todos os trabalhadores do jugo do capital, só então a classe operária se incorpora plenamente no grande movimento dos operários de todos os países, que agrupa todos os operários e levanta bem alto a bandeira vermelha sobre a qual estão inscritas estas palavras:
«Proletários de todos os países, uni-vos!»
Escrito, no exílio, em fins de 1899. Publicado pela primeira vez em 1924, na revista Proletárskaya revolutsia (A Revolução Proletária), n.º 8-9.
[1] Sobre as crises na indústria e sobre o seu significado para os operários falaremos qualquer dia com mais detalhe. Agora, observemos unicamente que, nos últimos anos, os assuntos industriais correram às mil maravilhas, a indústria «prosperou», mas agora (em fins de 1899) observam-se Já claros sintomas de que esta prosperidade desembocará na crise: nas dificuldades para a venda de mercadorias, nas falências de fabricantes, na ruína de pequenos proprietários e em terríveis calamidades para os operários (desemprego forçada, diminuição do salário, etc.).
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