de Marx, Engels, Lenine, Estaline, Mao Tsé-tung e outros autores
Sábado, 21 de Dezembro de 2013
Que viva Estaline!

1 -- O DIA 5 de março do próximo ano de 1973 marca o vigésimo aniversário da morte do grande Estaline.

É com o mais profundo respeito pelo eminente camarada J. V. Estaline que a classe operária portuguesa, os marxistas-leninistas, o proletariado e os povos revolucionários de todo o mundo vivem essa data, exprimem a sua imensa dor pela perda de um dos seus maiores líderes e assumem a determinação inabalável de lutar, seguindo o caminho, o exemplo e a bandeira de Estaline, até à vitória final.

2 -- ESTALINE foi, após a morte de Marx, de Engels e de Lenine, o grande dirigente do movimento comunista internacional, o grande educador do proletariado e dos povos oprimidos do mundo inteiro.

Estaline salvaguardou, desenvolveu e continuou a causa do leninismo na luta sem quartel contra os inimigos de classe, tanto do interior como do exterior da União Soviética, e contra os oportunistas de direita e de «esquerda» no seio do Partido Bolchevique.

3 -- FOI sob a direcção de Estaline que o povo soviético avançou vitoriosamente na via do socialismo e erigiu o primeiro Estado socialista do mundo;

Foi sob a direcção de Estaline que o povo soviético pôs de pé uma formidável indústria pesada e realizou a colectivização da agricultura;

Foi sob a direcção de Estaline que o povo soviético, fazendo prova dum heroísmo lendário, se tornou, durante a Segunda Guerra Mundial, o principal obreiro da vitória sobre a agressão fascista e nazi e obteve magníficos sucessos que ficarão para sempre imortais na história da humanidade;

Foi sob a direcção de Estaline que o povo soviético transformou a sua pátria, relativamente atrasada do ponto de vista do desenvolvimento económico, numa força colossal;

Foi sob a direcção de Estaline que se criou o poderoso campo socialista.

4 -- AINDA em vida do grande J. V. Estaline, o camarada Mao Tsé-tung, aplicando a teoria marxista-leninista, resolveu de maneira criadora os problemas fundamentais da revolução chinesa e dirigiu o povo chinês nas lutas e guerras evolucionárias mais longas, mais encarniçadas, mais duras e mais complexas da história da revolução mundial proletária e conduziu a revolução popular à vitória num grande país do Oriente, como é a China. Essa é a maior vitória da revolução mundial proletária, depois da revolução de Outubro.

5 -- A HISTÓRIA, porém, é plena de vicissitudes; e o caminho da Revolução não é nem recto nem plano, mas sinuoso, semeado de obstáculos, cheio de curvas e contracurvas.

É assim que hoje – 55 anos após o triunfo da grande Revolução Socialista de Outubro; 50 anos após a fundação da grande União Soviética e 20 anos após a morte do grande Estaline – é assim ­que hoje, o proletariado e o povo soviético, explorados, amordaçados e oprimidos, espoliados de todas as suas conquistas revolucionárias, assumem a determinação de celebrar Estaline, ainda que o tenham de fazer, tal como o proletariado e o povo português, nas condições de uma luta ilegal e clandestina.

6 -- NO XX CONGRESSO do Partido Comunista da União Soviética, que se realizou em Fevereiro de 1956, o grupo de Krouchtchev, após três anos de preparativos, lançou um violento ataque de surpresa contra os princípios fundamentais do marxismo-leninismo e contra a linha geral marxista-leninista seguida pelo Partido Comunista da União Soviética sob a direcção de Estaline.

7 -- RECORRENDO às invenções e calúnias mais torpes e baseando-se em «documentos» e declarações de elementos hostis ao socialismo, Krouchtchev, através do seu famigerado «relatório secreto» – que ele, em breve, faria chegar discretamente às mãos da CIA, para que o publicasse! – Krouchtchev denegria a via gloriosa seguida pelo Partido Bolchevique depois da morte de Vladimir Ilitch Lenine, definindo-a como uma via «esmaltada de erros, de graves alterações e de crimes monstruosos».

Ao mesmo tempo, atribuía a Estaline a responsabilidade desses pretensos erros, crimes e alterações, acusando-o de «arbitrariedade feroz», de «ruptura com a vida e a realidade», etc., e qualificando-o, entre outras injúrias, de «déspota», de «terrorista» e de «inculto». Enquanto isto, Krouchtchev expulsara e encarcerara os autênticos quadros bolcheviques do Partido e reabilitava os inimigos do regime socialista, já condenados como agentes notórios do imperialismo.

8 -- ANALISANDO este pérfido ataque de Krouchtchev, numa altura em que a verdadeira face deste renegado apenas começava a desenhar-se à luz do dia, o camarada Mao Tsé-tung indicou duma maneira penetrante, na sua Alocução perante a Segunda Sessão Plenária do Comité Central do Partido Comunista da China, em 15 de Novembro de 1956: «Na minha opinião há duas “espadas”: uma é Lenine, e a outra é Estaline. Essa espada que é Estaline, os russos rejeitaram-na agora. Essa espada que é Lenine não foi também algo rejeitada por certos dirigentes soviéticos? Penso que ela o foi em larga medida».

9 -- DE FACTO, o XX Congresso e o «relatório secreto» constituem o último acto, o coroamento dum golpe de Estado contra-revolucionário preparado desde a morte de Estaline, golpe que transformou a ditadura do proletariado em ditadura da burguesia e que, substituindo o socialismo, restaurou o capitalismo na União Soviética.

Krouchtchev – um responsável que, dissimulado no seio do partido Comunista da União Soviética, seguia a via capitalista – é, conjuntamente com outros elementos revisionistas, o executor-chefe deste golpe, pelo qual a burguesia logrou usurpar a direcção do Partido e do Estado soviéticos.

10 -- DO PONTO de vista da luta de classes ao nível mundial e, nomeadamente, no que concerne à contradição que opõe os países socialistas aos países imperialistas, a restauração do capitalismo e da ditadura da burguesia na União Soviética, representa uma derrota temporária para as forças do socialismo e uma vitória, também temporária, para as forças do imperialismo e da reacção.

O proletariado, porém, instruído pelos erros e reveses do passado e orientado pela doutrina sempre jovem do marxismo-leninismo, está apto a criar as condições que transformam uma derrota passageira numa vitória duradoira e de significado ainda maior.

11 -- O OBJECTIVO confessado do imperialismo em relação ao País dos Sovietes sempre foi, desde o triunfo da grande Revolução Socialista de Outubro, o de destruir aí a ditadura do proletariado e restaurar a ditadura do capital. Para alcançar este objectivo, os imperialistas começaram por seguir uma política de intervenção e agressão militar directas.

Mas a União Soviética, sob a direcção de Lenine e de Estaline, era uma fortaleza inexpugnável. Nem a intervenção armada de catorze países, nem a rebelião da guarda branca, nem os ataques de milhões de soldados das hordas hitlerianas, nem as inumeráveis sabotagens e tentativas de subversão, nem o bloqueio e cerco dos imperialistas foi capaz de tomar essa fortaleza.

12 -- O TERMO da Segunda Grande Guerra trouxe uma modificação radical na relação de forças no mundo, com vantagem para o socialismo. As contradições entre o campo imperialista e reaccionário, por um lado, e o campo socialista e democrático, por outro, agudizaram-se como nunca.

A União Soviética, a despeito de ter sofrido perdas humanas e materiais mais pesadas do que qualquer outro país, saiu, todavia, daquela guerra politicamente e militarmente mais poderosa. A sua autoridade e o seu prestígio internacional haviam-se acrescido consideravelmente.

O objectivo final do imperialismo – agora capitaneado pelo imperialismo americano – continuou a ser o mesmo de sempre em relação aos países socialistas e, em particular, em relação à União Soviética.

13 -- PORÉM, o camarada Mao Tsé-tung, fazendo o balanço da situação mundial à saída da Segunda Grande Guerra e analisando a política do imperialismo, afirmou, numa entrevista concedida em Agosto de 1946: «Os Estados Unidos e a União Soviética estão separados por uma zona muito vasta, que engloba numerosos países capitalistas, coloniais e semi-coloniais na Europa, na Ásia e na África. Enquanto os reaccionários americanos não tiverem submetido estes países, um ataque contra a União Soviética está fora de questão».

E, na verdade, o imperialismo americano servia-se da «cruzada» anti-soviética como duma cortina de fumo, atrás da qual ia agredindo e submetendo os povos da vasta zona intermédia.

14 -- AO MESMO TEMPO que punha em prática esta linha de agressão e sujeição económica, política e militar, o imperialismo mundial, após a morte de Estaline, prosseguiu na União Soviética uma política de «evolução pacífica» por intermédio da clique dos renegados revisionistas, julgando assim poder escapar à sua perda.

O golpe de Estado contra-revolucionário de Krouchtchev e respectiva camarilha constitui o coroamento desta política imperialista de «evolução pacífica».

Tal como Estaline disse – na história do Partido Comunista (bolchevique) da URSS –, «é do interior que mais facilmente se tomam as fortalezas». E, de facto, o golpe de Krouchtchev desempenhou um papel que os imperialistas, por si sós, não podiam nunca desempenhar.

15 -- COMO é que o capitalismo pôde ser restaurado na União Soviética, primeiro Estado socialista do mundo?

É à luz do maoísmo – o marxismo-leninismo da nossa época, da época em que o imperialismo se precipita para a ruína total e o socialismo avança para a vitória no mundo inteiro –, é à luz do maoísmo que devemos examinar e resolver esta e outras questões de transcendente importância e actualidade para a classe operária de todos os países.

O camarada Mao Tsé-tung procedeu a um balanço completo da experiência histórica da ditadura do proletariado nos seus aspectos positivos e negativos, herdou, defendeu e desenvolveu a teoria marxista-leninista da revolução proletária e da ditadura do proletariado, formulou a grande teoria da continuação da revolução sob a ditadura do proletariado e resolveu, assim, teórica e praticamente, o mais importante problema da nossa época, a saber: a consolidação da ditadura do proletariado e a prevenção da restauração do capitalismo, de modo a levar até ao fim a revolução proletária.

16 -- «A SOCIEDADE socialista estende-se por um assaz longo período histórico, no decurso do qual continuam a existir classes, contradições de classes e luta de classes, da mesma maneira que a luta entre a via socialista e a via capitalista e bem assim o perigo duma restauração do capitalismo» – disse o camarada Mao Tsé-tung em 1962.

Na sociedade socialista também o centro da luta de classes continua a ser a questão do poder político. A este respeito, o camarada Mao salientou: «Os representantes da burguesia que se infiltraram no Partido, no governo, no exército e nos diferentes sectores do domínio cultural, constituem uma súcia de revisionistas contra-revolucionários. Se a ocasião se lhes apresentasse, eles arrancariam o poder e transformariam a ditadura do proletariado em ditadura da burguesia».

17 -- É ASSIM QUE, na União Soviética, mesmo após a revolução de Outubro que arrancou o poder à burguesia e instaurou o poder proletário, as classes, as contradições de classes e a luta de classes não deixaram nunca de existir.

Tanto no tempo de Lenine como no tempo de Estaline, essa luta de classes sob a ditadura do proletariado assumiu, por vezes, formas extremamente encarniçadas. Um certo número de elementos contra-revolucionários, representantes da burguesia destronada e do imperialismo, infiltrou-se no seio do Partido Bolchevique e na direcção do Estado soviético e procedia aí a toda uma espécie de preparativos e de manobras no sentido de – tal como Lenine o havia previsto em «A Revolução Proletária e o Renegado Kaustsky» – transformar a «esperança duma restauração» do capitalismo em «tentativas de restauração».

18 -- É CERTO que o glorioso Partido Bolchevique, sob a direcção do camarada Estaline, eliminou pronta e resolutamente os principais representantes dessa camarilha contra-revolucionária, tais como Trostsky, Zinoviev, Kamenev, Bukarine e Rykov.

Todavia a União Soviética, porque era o primeiro país de ditadura do proletariado, não dispunha ainda de suficiente experiência para resolver correcta e completamente, tanto do ponto de vista teórico como do ponto de vista prático, a magna questão de saber consolidar a ditadura do proletariado, prevenir a restauração do capitalismo e levar a revolução socialista até ao fim.

Foi nestas circunstâncias que Krouchtchev e respectiva clique revisionista lograram, após a morte de Estaline, usurpar a direcção do Partido e do Estado e converter as suas esperanças de restauração do capitalismo em realidade de facto.

19 -- MAS a classe operária aprende tanto com as suas derrotas como com as suas vitórias e, num certo sentido, aprende mesmo mais com os seus reveses do que com os seus êxitos.

Extraindo as lições da História, o maoismo ensinou aos operários de todos os países que, para consolidar a ditadura do proletariado e prevenir a restauração do capitalismo, a classe operária deve fazer a revolução socialista tanto na frente económica como na frente política, ideológica e cultural e exercer em toda a linha uma ditadura sobre a burguesia também nos domínios da superestrutura, incluindo os vários sectores da cultura.

20 -- POR OUTRO LADO, na continuação da revolução sob a ditadura do proletariado é absolutamente indispensável que, não apenas os militantes e quadros do partido, mas também as amplas massas do povo assimilem o marxismo-leninismo-maoísmo e saibam manejar eles próprios essa arma poderosíssima, de modo a serem capazes de distinguir por si mesmos o certo do errado, a linha revolucionária da linha revisionista, a via socialista da via capitalista, o verdadeiro marxismo-leninismo-maoísmo do pseudo «marxismo-leninismo-maoísmo» – e isto para garantir que o país avance sempre pela linha revolucionária.

21 -- A GRANDE Revolução Cultural Proletária, iniciada e dirigida pessoalmente pelo camarada Mao Tsé-tung, representou uma nova etapa, ainda mais profunda e mais ampla, do desenvolvimento da revolução socialista na China. Porém, a sua significação não é meramente local, mas verdadeiramente universal. A Grande Revolução Cultural Proletária da China constitui uma aplicação e confirmação práticas, de transcendente significado histórico, da correcção e verdade científicas das brilhantes teses do camarada Mao Tsé-tung para todo o período em que durar a ditadura do proletariado.

22 -- APÓS o golpe de Estado contra-revolucionário da camarilha dos renegados revisionistas soviéticos, Krouchtchev, ao mesmo tempo que se dedicava à tarefa interna de consolidar o poder político e económico da burguesia soviética, procura impor aos demais partidos comunistas as teses peçonhentas e anti-proletárias aprovadas no XX Congresso do PCUS.

Para este efeito, Krouchtchev contava beneficiar tanto do efeito de surpresa com que tinha desferido o seu golpe, como do imenso caudal de simpatia, prestígio e autoridade de que justamente gozavam o Partido Bolchevique e a União Soviética sob a direcção de Lenine e Estaline.

23 -- CONTUDO, os verdadeiros comunistas de todos os países não se deixaram colher pela surpresa do ataque de Krouchtchev nem se atemorizaram com o facto de terem de desmascarar os traidores infiltrados no glorioso partido de Lenine e Estaline.

A tarefa inadiável que se colocou aos verdadeiros comunistas de todo o mundo, no seio do Movimento Comunista Internacional e no seio dos seus próprios partidos, era a de salvaguardar e continuar o marxismo-leninismo e combater com determinação o revisionismo da renegada camarilha soviética. Ao fazê-lo, os marxistas-leninistas de todos os países prestavam – e prestaram – um sincero, internacionalista e fraternal apoio ao proletariado e ao povo soviéticos.

24 -- O PARTIDO do Trabalho da Albânia, dirigido pelo camarada Enver Hoxha e o Partido Comunista da China, sob a direcção do camarada Mao Tsé-tung constituíram desde logo a vanguarda do proletariado mundial nesta batalha histórica contra o revisionismo moderno.

Daí para cá, os êxitos obtidos pela linha revolucionária marxista-leninista são magníficos e a situação actual é excelente. O carácter e a natureza de classe reaccionária do revisionismo, do social-fascismo e do social-imperialismo foi posto a nu aos olhos das massas trabalhadoras de todo o mundo. O isolamento da renegada camarilha revisionista soviética, bem como das suas agências no estrangeiro, é absolutamente irreversível.

25 -- SIMULTANEAMENTE reforçou-se como nunca a frente mundial anti-imperialista, com a China como base vermelha da Revolução; alcançou-se uma unidade nova e superior no seio do movimento comunista internacional, na base dos princípios e dos métodos do marxismo-leninismo-maoísmo; fortaleceu-se o poder político, económico e militar do conjunto dos países socialistas.

Por outro lado, em todos os países existem já, ou estão em vias de constituir-se, autênticos partidos revolucionários do proletariado, partidos fiéis ao marxismo-leninismo e dignos da Grande Revolução Cultural Proletária. E isto, inclusive, no próprio país social-imperialista.

26 -- VIMOS, portanto, que em relação aos genuínos partidos comunistas, marxistas-leninistas, as teses revisionistas do XX Congresso não conseguiram penetrar. Tais teses contra-revolucionárias não só foram firmemente recusadas pelos autênticos partidos comunistas como, em resultado do combate puro que foi necessário opor-lhes, acabaram por fortalecer ainda mais as suas fileiras.

Contudo, em relação a certos partidos ditos comunistas o mesmo não se verificou. Esses partidos não só não combateram, no mínimo que fosse, o «novo curso» revisionista, como se apressaram até a exibir imediatamente nas suas próprias montras a «nova» encomenda despachada de Moscovo.

No número destes últimos, conta-se o chamado Partido Comunista Português.

27 -- POR CONSEGUINTE, em relação à mercadoria revisionista posta à venda no XX Congresso do PCUS pelo magarefe Krouchtchev, os diversos partidos comunistas existentes dividiram-se em dois grupos radicalmente antagónicos: o grupo dos que consideram a mercadoria excelente e se fizeram dela clientes e revendedores, a retalho e por grosso; e o grupo dos que consideram, muito justamente, que jamais se deveria deixar passar semelhante mercadoria na alfândega do proletariado e que, portanto, era seu dever queimá-la na praça pública.

Ao primeiro grupo pertence – entre outros – o Partido dito Comunista Português.

28 -- É EVIDENTE que a atitude que adoptaram face ao revisionismo destilado no XX Congresso e a posição que tomaram na luta que subsequentemente se travou serviam, antes e além de mais, para revelar na prática quais os partidos comunistas que tinham e seguiam uma linha proletária e quais os partidos que, embora sob o nome de comunistas, tinham e seguiam já uma linha burguesa e reaccionária.

De facto, não foi por terem «comprado» a mercadoria vendida no XX Congresso que os partidos do tipo do Partido «Comunista» Português se transformaram em revisionistas. Ao contrário – foi porque os partidos do tipo do Partido «Comunista» Português tinham já há muito degenerado em partidos revisionistas que eles se apressaram a «comprar» a mercadoria vendida no XX Congresso.

29 -- SÃO duas coisas radicalmente diferentes no seu significado e alcance, tanto teórico como prático: uma, o dizer-se que o Partido «Comunista» Português se tornou revisionista, porque adoptou as teses do XX Congresso; outra, o dizer-se que ele adoptou as teses do XX Congresso porque já era revisionista.

Como são duas coisas completamente distintas no seu significado e alcance, tanto teórico como prático: uma, o determinar o momento em que um partido comunista – supondo que o P«C»P alguma vez o fosse – se transformou em revisionista; outra, o determinar o momento em que os comunistas tomaram consciência dessa transformação.

É óbvio que entre os dois momentos – o da transformação objectiva e o momento do conhecimento subjectivo dessa transformação – pode mediar um intervalo de tempo maior ou menor.

30 -- A IMPORTÂNCIA prática desta questão liga-se ao problema das cisões que tiveram lugar no seio dos antigos partidos comunistas, cujas direcções se mantiveram fiéis à súcia dos renegados revisionistas soviéticos.

Assim que os marxistas-leninistas dos respectivos países se tornaram conscientes do triunfo político, ideológico e organizativo do revisionismo nos seus próprios partidos; e uma vez que se aperceberam de que a ruptura com o revisionismo era não só inevitável como imprescindível para poder fazer-se a revolução e construir o socialismo – a reorganização do Partido do Proletariado passou a ser para eles um dever inadiável e a sua tarefa central.

31 -- MAS para começar e executar a tarefa urgente da reorganização do partido, os elementos mais conscientes e avançados do proletariado têm de definir, previamente e no fundamental, duas coisas: a linha política, ideológica e organizativa que deve presidir à reorganização; e a demarcação clara dos marxistas-leninistas face aos revisionistas do antigo partido.

Para obter esta demarcação clara é indispensável determinar o momento a partir do qual o antigo partido comunista se transformou objectivamente no seu contrário, isto é, num partido revisionista moderno; e, além disso, encontrar as causas e as condições que explicam essa transformação.

32 -- ISTO implica que toda a teoria e a prática passadas do antigo partido comunista sejam submetidas a uma análise materialista e a uma crítica em termos marxistas-leninistas.

Mas a crítica ao antigo partido comunista, na medida em que é encabeçado por elementos marxistas-leninistas saídos do seu seio, é absolutamente indissociável da auto-crítica desses mesmos elementos – os quais são também responsáveis pela transformação revisionista que se operou no partido onde sempre militaram.

33 -- EM ALGUNS países, porém – como são os casos de Portugal e da Itália, por exemplo – os elementos que, membros do antigo partido comunista tomaram a seu cargo a tarefa de reorganizar as fileiras dos marxistas-leninistas, não foram capazes, por virtude do oportunismo a que se atasquinhavam, de levar até às últimas consequências a análise crítica e a auto-crítica que se impunham.

A moral da história é a de que, nas fileiras de um partido revisionista, até os elementos anti-revisionistas estão marcados com o selo do revisionismo.

34 -- AGARRARAM-SE, então, esses elementos a uma suprema mistificação, através da qual julgaram poder escamotear aos olhos das massas a quota-parte de responsabilidade pesada e própria que tiveram no processo de degenerescência revisionista do «seu» partido.

Essa mistificação ideológica consistiu em considerarem que o antigo partido comunista – do qual sempre fizeram parte e com o qual sempre estiveram em «coexistência pacífica» – se transformara em partido revisionista, no momento em que eles tiveram consciência da dita transformação.

35 -- COLOCADAS as coisas neste pé, eles apenas teriam de «auto-criticar-se» pelo facto de não terem tido mais cedo consciência do fenómeno. Mas é evidente que esta pseudo-auto-crítica é um verdadeiro auto-elogio, na medida em que, ainda assim e apesar de tudo, eles teriam sido os primeiros a aperceberem-se do mal… As massas não tinham mais do que renderem-se à «clarividência desses líderes, ainda que pensassem lá para si que em terra de cegos quem tem um olho é rei!

Para que aquela mistificação tivesse uma certa aparência de verdade, faltava ainda explicar o seguinte: qual a causa, ou as causas reais da transformação meteórica do partido comunista em partido revisionista?

36 -- AQUI, esses elementos «marxistas-leninistas» vêem-se apanhados na sua fraude ideológica. E, para esconde-la, recorrem a uma segunda fraude, verdadeiramente delirante. Ouçamos a «explicação» da confraria neo-revisionista:

«O Partido Comunista cessara de existir como tal em 1956».

Então porquê? – perguntamos nós. E esses pândegos da lúmpen-emigração, baralhando a mão direita com a mão esquerda, confundindo o branco com o preto e a causa com o efeito, respondem-nos: por virtude de «o afastamento por doença do camarada José Gregório» e do «advento do revisionismo na URSS» – Informe ao V Congresso (Reconstitutivo) do P «C» de P, pág. 18 .

37 -- EM RELAÇÃO ao processo de desenvolvimento do Partido dito Comunista Português, o triunfo do revisionismo na União Soviética e o afastamento por doença do «camarada» José Gregório, têm o carácter de factores externos e funcionam apenas como tal, quer dizer, funcionam apenas nessa qualidade de factores ou causas externas.

Por maior que seja a sua importância e alcance, esses factores só podem exercê-los no processo de desenvolvimento e transformação do partido dito comunista através de causas internas. O que é essencial é encontrar estas causas internas, sendo absolutamente secundário – embora necessário – o conhecimento dos factores externos.

38 -- TODOS os marxistas-leninistas sabem que «a causa fundamental do desenvolvimento dos fenómenos não é externa, mas interna; ela reside no contraditório do interior dos próprios fenómenos». E sabem que as causas externas «são apenas capazes de provocar o movimento mecânico dos fenómenos, isto é, modificações de volume, de quantidade, não podendo explicar porque os fenómenos são duma diversidade qualitativa infinita, a razão por que passam duma qualidade a outa» (da Contradição).

Nesse sentido, tanto o triunfo do revisionismo na União Soviética exerceu uma influência indirecta no processo de degenerescência dos velhos partidos comunistas, como a degerenescência dos velhos partidos comunistas exerceu uma influência indirecta no triunfo do revisionismo na União Soviética.

39 -- O NOSSO movimento foi o primeiro – e o único – a proceder a um balanço crítico do conjunto, na base dos princípios e métodos do marxismo-leninismo-maoismo, dos cinquenta anos de actividade do Partido «Comunista» Português (ver Bandeira Vermelha n.º 1) – cumprindo assim, no essencial, uma das condições necessárias e prévias à reorganização das hostes comunistas nas condições concretas da revolução em Portugal.

A conclusão geral extraída desse balanço é a seguinte: o Partido «Comunista» Português, a despeito do nome que desde o princípio ostentou, seguiu, ao longo da sua história e no fundamental, sempre uma linha oportunista e não uma verdadeira linha marxista-leninista. Em certos momentos episódicos, sob pressão de sua base operária, do movimento de massas e do movimento comunista internacional, viu-se forçado a fazer certas concessões ao proletariado e ao povo, sempre sem revelar qualquer disposição prática de as cumprir e renegando-as na próxima oportunidade.

40 -- A CISÃO da confraria neo-revisionista não tem, por conseguinte, o carácter e a natureza duma ruptura entre o marxismo-leninismo-maoísmo e o revisionismo moderno, mas o carácter e a natureza duma divisão no seio do próprio revisionismo. Eles são os neo-revisionistas, na nossa terminologia, e para os «distinguir» do revisionismo cunhalista. Eles são os Breszhnev, enquanto Cunhal é o Krouchtchev. Ou doutra maneira: eles são, em Portugal, os Liou Chao Chis da China.

A cisão dessa gentalha com o cunhalismo é a tentativa de perpetuar, sob novas vestes, o velho revisionismo. Por outro lado, a cisão dessa gentalha constitui o começo da desagregação do partido revisionista.

41 -- QUANTO ao nosso Movimento, as divergências que o opõem ao partido cunhalista e a todos os seus filhos e netos são absolutamente inconciliáveis e antagónicas. Não se trata de divergências meramente tácticas ou sequer estratégicas, mas ideológicas e fundamentais. Nestes termos, o nosso Movimento propõe-se à organização dum novo Partido sobre a base dos princípios e métodos do marxismo-leninismo-maoísmo, fundindo intimamente a teoria e a prática do proletariado mundial, tal como foram sintetizadas e sistematizadas por Marx, Engels, Lenine, Estaline e Mao Tsé-tung, com o movimento operário português – o do passado, o do presente e o do futuro.

42 -- CELEBRAR Estaline é para nós, educarmo-nos na escola que ele nos legou, cerrarmos punhos e dentes, unirmo-nos ainda mais sob a sua bandeira vermelha e marcharmos a uma só cadência, confiantes e audazes, para a tarefa da fundação do partido marxista-leninista-maoísta do proletariado português.

A atitude perante Estaline é uma pedra de toque infalível para distinguir hoje no mundo quem são os marxistas-leninistas e quem são os revisionistas de todos os matizes e tendências.

43 -- EM RELAÇÃO ao grande Lenine, os revisionistas modernos, com a clique renegada de Brezhnev e Ca. à frente, fingem hipocritamente venerá-lo e segui-lo, invocando a cada passo o seu nome na esperança vã de fazer passar aos olhos das massas como leninismo «puro» aquilo que outra coisa não é senão uma pacotilha revisionista, social-fascista, social-imperialista e social-militarista.

Mas em relação ao grande Estaline, os revisionistas nenhuma espécie de hipocrisia se consentiram. Estaline estava demasiado vivo no coração e na inteligência dos revolucionários e dos povos de todo o mundo, para que os revisionistas o pudessem acreditar morto no seu mausoléu do Kremlin.

44 -- EM TODO o lugar onde seja pronunciada esta simples palavra: Estaline! – logo um poderoso campo magnético expele para a direita a escumalha revisionista, os reaccionários e todos os seus lacaios, e agrupa firmemente à esquerda os marxistas-leninistas, os revolucionários, o proletariado e as amplas massas do povo, isto é, os discípulos de Estaline.

Ainda agora, os imperialistas ianques acabam de anunciar as maiores manobras militares de Inverno levadas a cabo pela Nato na Europa. Têm a duração prevista de dois meses, envolvem forças de terra, mar e ar, empregam 50 mil soldados, dos quais 10 000 serão deslocados das suas bases na «retaguarda» americana em 24 horas, etc., etc.. Começarão no dia 9 de Janeiro do próximo ano e terminarão – adivinhem! – no dia 5 de Março.

Significativo! 20 anos após a morte do grande Estaline!

45 -- COM RESPEITO a Estaline, aparece também uma terceira via que procura conciliar o inconciliável e harmonizar os contrários em luta. Originariamente aparecida em França e na Itália, essa via conta com uma representação em Portugal.

Esses histriões, quando tratam deste assunto, declaram logo na primeira linha que «Estaline foi um eminente marxista-leninista» e levam as restantes duzentas linhas a denegrir o eminente marxista-leninista que foi Estaline.

São incuráveis direitistas. Não resistem à contra-prova do campo magnético!

46 -- NO DIA 21 de Dezembro de 1979, celebrar-se-á em todo o mundo o centenário do nascimento do camarada J. V. Estaline.

Nós festejá-lo-emos, sem dúvida, melhor do que vamos agora assinalar o vigésimo aniversário da sua morte.

Trabalhar arduamente para realizar as condições necessárias à fundação do Partido – eis, na hora actual, a nossa tarefa de combate! A nossa maneira de celebrar Estaline!

Devemos fazer nossas as palavras do camarada Mao Tsé-tung, escritas em 1939:

47 --  «FESTEJAR Estaline não é uma formalidade. Festejar Estaline é tomar o partido de Estaline, da sua causa, da vitória do socialismo, do rumo que assinalou à Humanidade, é tomar partido dum amigo íntimo, já que a maioria dos homens vive actualmente no sofrimento e não pode libertar-se a não ser seguindo a rota indicada por Estaline e com a ajuda de Estaline».

Que Viva Estaline!

 

Directiva do Comité Lenine, Comité Central do M.R.P.P.

aprovada na Reunião Plenária de Outono de 1972

 


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Quarta-feira, 4 de Dezembro de 2013
O Capital 1.º Volume 8.ª Secção A Acumulação Primitiva cap XXXIII

(Início)

 Capítulo XXXIII

A moderna teoria da colonização

Em princípio, a economia política procura manter uma confusão das mais cómodas entre dois tipos de propriedade privada, embora bem distintos: a propriedade privada fundada no trabalho pessoal e a propriedade privada fundada no trabalho alheio. E esquece propositadamente que esta não só forma a antítese daquela mas que só cresce sobre a sua sepultura.

Na Europa ocidental, pátria-mãe da economia política, a acumulação primitiva, isto é, a expropriação dos trabalhadores, está consumada, quer o regime capitalista tenha enfeudado directamente toda a produção nacional, quer dirija, pelo menos indirectamente, as camadas sociais que persistem ao lado dele e pouco a pouco declinam com o modo de produção caduco que elas comportam. Na sociedade capitalista já feita, o economista aplica as noções de direito e de propriedade legadas por uma sociedade pré-capitalista, com tanto mais zelo e unção quanto mais alto protestam os factos contra a sua ideologia. Nas colónias[1] o modo de produção e de apropriação capitalista choca por toda a parte contra a propriedade corolário do trabalho pessoal, contra o produtor que, dispondo das condições exteriores do trabalho, se enriquece a si mesmo em vez de enriquecer o capitalista. A antítese destes dois modos de apropriação diametralmente opostos afirma-se aqui de maneira concreta, pela luta. Se o capitalista se sentir apoiado pela potência da mãe-pátria, procura afastar violentamente do seu caminho a pedra de tropeço. O mesmo interesse que impele o economista a sustentar na sua pátria a identidade teórica da propriedade capitalista e da sua contrária, determina-o nas colónias a entrar na via das confissões, a proclamar bem alto a incompatibilidade destas duas ordens sociais. E então põe-se a demonstrar que é preciso renunciar ao desenvolvimento das potências colectivas do trabalho, à cooperação, à divisão manufactureira, ao emprego em grande escala das máquinas, etc., ou encontrar maneira de expropriar os trabalhadores e transformar os seus meios de produção em capital. No interesse do que lhe apraz chamar a riqueza da nação, procura artifícios para assegurar a pobreza do povo. Desde então, a sua couraça de sofismas apologéticos destaca-se aos bocados, como madeira podre.

Se Wakefield nada disse de novo sobre as colónias, não se pode disputar-lhe o mérito de ter descoberto com elas a verdade sobre as relações capitalistas na Europa. Assim como, originariamente, o sistema protector tendia a engendrar fabricantes na mãe-pátria, assim também a teoria da colonização de Wakefield que, durante anos, a Inglaterra se esforçou por pôr legalmente em prática, tinha por objectivo a fabricação de assalariados nas colónias. É o que se chama colonização sistemática.

Primeiramente, Wakefield descobriu nas colónias que a posse de dinheiro, de subsistências, de máquinas e de outros meios de produção não faz do homem um capitalista, a não ser que haja um certo complemento que é o assalariado, um outro homem forçado a vender-se voluntariamente. Descobriu assim que, em vez de ser uma coisa, o capital é uma relação social entre pessoas e que tal relação se estabelece por intermédio das coisas. Um homem leva com ele de Inglaterra para os Estados Unidos víveres e meios de produção no valor de 50 000 libras. Leva também 3000 operários, homens, mulheres e crianças. Uma vez chegado ao seu destino, ficou sem um criado para lhe fazer a cama ou ir buscar água ao rio[2]. Este homem previu tudo mas esqueceu-se de levar consigo as relações de produção inglesas.

Para a compreensão das descobertas ulteriores de Wakefield são necessárias duas notas preliminares. Sabe-se que meios de produção e de subsistência pertencentes ao imediato produtor, ao próprio trabalhador, não são capital. Só se tornam capital quando são meios de explorar e dominar o trabalho. Ora, tal propriedade confunde-se tão bem no espírito do economista com a substância material, que este os baptiza com o nome de capital em todas as circunstâncias, mesmo quando sejam precisamente o contrário. É assim que procede Wakefield. Além disso, ao parcelamento dos meios de produção constituídos em propriedade privada de um grande número de produtores, independentes entre si e trabalhando todos por sua própria conta, chama ele igual divisão do capital. Acontece ao economista político como ao legista da Idade Média que mascara de etiquetas feudais relações que são puramente pecuniárias. Diz Wakefield:

«Suponham o capital dividido em partes iguais entre todos os membros da sociedade e suponha-se que ninguém tem interesse em acumular mais capital do que aquele que as suas mãos poderiam empregar. É isto que, até certo grau, acontece actualmente nas novas colónias americanas onde a paixão pela propriedade de terras impede a existência de uma classe de assalariados».

Portanto, quando o trabalhador pode acumular para si próprio e de tal maneira que possa ficar proprietário dos seus meios de produção, a acumulação e a produção capitalistas são impossíveis. A classe assalariada, sem a qual não poderiam passar, faz-lhes falta. Segundo Wakefield, o operário foi expropriado dos seus meios de trabalho no antigo mundo e puderam estabelecer-se capitalismo e assalariado, graças a um contrato social de tipo completamente original: a humanidade «adoptou um método bem simples para activar a acumulação do capital», – e esta acumulação preocupava naturalmente a imaginação da dita humanidade desde Adão e Eva como fim único e supremo da sua existência – «dividiu-se em proprietários de capital e proprietários de trabalho. Esta divisão resultou de um entendimento e de uma combinação, feitos de boa vontade e de comum acordo».

Numa palavra a massa da humanidade expropriou-se a si mesma em honra da acumulação do capital! De facto, a inclinação da humanidade laboriosa para se expropriar para maior glória do capital é tão imaginária que, segundo o próprio Wakefield, a riqueza colonial só tem um único fundamento natural: a escravatura. A colonização sistemática é um simples último recurso, visto que é com homens livres e não com escravos que tem de tratar.

«Sem a escravatura, o capital teria sido perdido nos estabelecimentos espanhóis ou, pelo menos, ter-se-ia dividido em fracções mínimas, tal como um indivíduo pode empregar na sua pequena esfera. E foi o que aconteceu realmente nas últimas colónias fundadas pelos ingleses onde um grande capital em sementes, gado e instrumentos, foi perdido por falta de assalariados e onde cada colono possui mais capital do que pode manejar pessoalmente».

A primeira condição da produção capitalista é que a propriedade do solo esteja arrancada já das mãos da massa. Pelo contrário, a essência de qualquer colónia livre consiste em que a massa do solo seja ainda propriedade do povo e que cada colono esteja senhor de uma parte dela que lhe sirva de meio de produção individual, sem impedir por isso que novos colonos possam fazer o mesmo. É este o segredo da prosperidade dos colonos mas também é o seu mal: a resistência ao estabelecimento de capital entre eles.

«Onde a terra quase nada custa e onde os homens são livres, podendo cada um adquirir à vontade um pedaço de terreno, não só o trabalho é muito caro, considerada a parte que toca ao trabalhador no produto do seu trabalho, mas a dificuldade é obter a qualquer preço trabalho combinado».

Como nas colónias o trabalhador não está ainda divorciado das condições materiais do trabalho, nem da sua raiz (o solo) – ou está aqui e ali, mas em escala demasiado restrita – a agricultura também não se encontra separada da manufactura, nem a indústria doméstica dos campos está destruída. E então, onde encontrar mercado interno para o capital?

Nenhuma parte da população da América é exclusivamente agrícola, excepto os escravos e os seus patrões que combinam trabalho e capital em grandes empresas. Os americanos livres que cultivam o solo entregam-se ao mesmo tempo a outras ocupações. Confeccionam ordinariamente uma parte dos móveis e dos instrumentos que utilizam; edificam muitas vezes as suas próprias casas; levam o produto das suas indústrias aos mercados mais afastados; fiam e tecem; fabricam sabão e velas, sapatos e vestuário necessários ao seu consumo. Na América, o ferreiro, o lojista, o marceneiro, são muitas vezes ao mesmo tempo cultivadores. Não deixam campo ao capitalista.

O «óptimo» da produção capitalista é que reproduz constantemente o assalariado e ainda, proporcionalmente à acumulação do capital, faz sempre nascer assalariados supranumerários. A lei da oferta e da procura de trabalho é assim mantida em rotina conveniente, as oscilações do salário movem-se entre os limites mais favoráveis à exploração e, por fim, a indispensável subordinação do trabalhador ao capitalista está garantida; esta relação de dependência absoluta que na Europa o economista mentiroso mascara decorando-a enfaticamente com o nome de contrato livre entre dois negociantes igualmente independentes, um alienando a mercadoria-capital, o outro a mercadoria-trabalho, perpetua-se. Mas nas colónias este doce erro evapora-se. A cifra absoluta da população operária cresce aí muito mais rapidamente do que na metrópole, visto que lá os trabalhadores vêm ao mundo já feitos e, no entanto, o mercado de trabalho está sempre insuficientemente guarnecido. A lei da oferta e da procura vai sempre por água abaixo. Por um lado, o velho mundo importa sem cessar capitais ávidos de exploração e relutantes à abstinência e, por outro lado, a reprodução regular dos assalariados quebra-se de encontro a escolhos fatais. Por mais forte razão, muito mais é preciso que, proporcionalmente à acumulação de capital, se produzam trabalhadores supranumerários! O assalariado de hoje torna-se amanhã artífice ou cultivador independente; desaparece do mercado de trabalho e esta metamorfose incessante de assalariados em produtores livres, a trabalharem por sua própria conta e não por conta do capital, a enriquecerem-se em vez de enriquecer o capitalista, reage de maneira funesta sobre o estado do mercado e, portanto, sobre a taxa do salário. Não só baixa o grau de exploração mas ainda o assalariado perde, com a dependência real, todo o sentimento de sujeição ao capitalista. Daqui todos os inconvenientes de que Wakefield nos faz a pintura com emoção e eloquência:

«A oferta do trabalho assalariado não é constante, nem regular, nem suficiente. Não só é sempre demasiado fraca como ainda incerta. Embora seja considerável o produto a compartilhar entre capitalista e trabalhador, este fica com uma parte tão grande que em breve se torna capitalista. Pelo contrário, só há um pequeno número que pode acumular grandes riquezas mesmo quando a duração da vida ultrapasse muito a média.

Os trabalhadores não permitem ao capitalista que renuncie ao pagamento da maior parte do seu trabalho. E mesmo que este tenha a ideia de importar da Europa com o seu próprio capital os seus próprios assalariados, isso de nada lhe serve. Deixam em breve de ser assalariados e tornam-se camponeses independentes e até chegam a fazer concorrência aos seus antigos patrões tomando-lhes no mercado os braços que venham oferecer-se».

Poderá imaginar-se algo de mais revoltante? O bom capitalista importou da Europa, a preço do seu caro dinheiro, os seus próprios concorrentes em carne e osso! É o fim do mundo! Não admira que Wakefield se queixe da falta de disciplina entre os operários nas colónias e da ausência do sentimento de dependência. Diz o seu discípulo Mérivale: «Nas colónias a alta de salários fez nascer o desejo de um trabalhador menos caro e mais submisso, ao qual o capitalista pudesse ditar condições e não vê-las impostas. Nos países da velha civilização, o trabalhador é, embora livre, dependente do capitalista, em virtude de uma lei natural; nas colónias esta dependência tem de ser criada por meios artificiais; o resultado do sistema predominante de propriedade privada, fundada no próprio trabalho de cada um e não na exploração do trabalho alheio, é um sistema bárbaro que dispersa os produtores e fragmenta a riqueza nacional»[3].

A dispersão dos meios de produção nas mãos de inúmeros produtores-proprietários, a trabalharem por sua conta, aniquila ao mesmo tempo a concentração e a base capitalista de qualquer espécie de trabalho combinado.

Todas as empresas de grande amplitude que compreendam anos e necessitem de consideráveis adiantamentos de capital fixo, tornam-se problemáticas. Na Europa, o capital não hesita um instante em casos iguais porque a classe operária é sua pertença viva, sempre disponível, sempre abundante em excesso. Nos países coloniais… Wakefield conta-nos a propósito uma anedota comovente: conversava ele com alguns capitalistas do Canadá e do Estado de Nova Iorque, onde as vagas de emigração estagnam muitas vezes e depositam um sedimento de trabalhadores. Um dos interlocutores suspira: «O nosso capital estava já pronto para muitas operações cuja execução exigia grande período de tempo: mas o meio de operar consistia em recrutar esses operários que bem sabíamos nos virariam as costas em breve. Se estivéssemos certos de fixar esses emigrantes, tê-los-íamos logo recrutado e a salários elevados. Contudo, apesar da nossa certeza de os perder, mesmo assim os recrutaríamos se tivéssemos podido contar com substitutos à medida que deles carecêssemos».

Depois de ter feito sobressair pomposamente o contraste da agricultura capitalista inglesa de «trabalho combinado» e da exploração parcelar dos camponeses americanos, Wakefield, contrariado, deixa ver o reverso da medalha; pinta-nos a massa do povo americano como independente, abastado, empreendedor e relativamente culto, ao passo que «o operário rural inglês é um miserável esfarrapado, um pobretana… Em que país, exceptuando a América do Norte e algumas novas colónias, os salários do trabalho livre empregado na agricultura, ultrapassam por pouco que seja os meios de subsistência absolutamente indispensáveis ao trabalhador?... Em Inglaterra, os cavalos de tiro, que constituem para os seus donos uma propriedade de muito valor, são com certeza muito melhor alimentados do que os operários rurais».

Mas não importa! Mais uma vez são inseparáveis a riqueza da nação e a miséria do povo, isto pela natureza das coisas.

E agora qual o remédio para esta gangrena capitalista das colónias? Se quisessem converter ao mesmo tempo toda a terra colonial, de propriedade pública em propriedade privada, destruiriam na verdade o mal pela raiz, mas também ao mesmo tempo a colónia. Toda a arte está em matar dois coelhos com uma cajadada. O governo irá vender esta terra virgem a um preço artificial, oficialmente fixado por ele, sem respeito algum pela lei da oferta e da procura. O emigrante será assim forçado a trabalhar bastante tempo como assalariado até ganhar dinheiro suficiente para poder comprar um campo e tornar-se cultivador independente[4]. Os fundos realizados pela venda das terras a preço quase proibitivo para o trabalhador imigrante, estes fundos que se extraem do salário, à medida que crescem, serão utilizados pelo governo na importação de indigentes europeus para as colónias para que o capitalista possa encontrar o mercado do trabalho sempre copiosamente guarnecido de braços. Desde então, tudo se passará pelo melhor nas melhores colónias possíveis. Eis o grande segredo da «colonização sistemática»!

E Wakefield exclama triunfalmente: «Com este plano, a oferte de trabalho será necessariamente constante e regular: primeiro, nenhum trabalhador é capaz de obter terra antes de ter trabalhado por dinheiro e, por isso, todos os imigrantes vão render ao seu patrão um capital que o porá em condições de empregar ainda mais trabalhadores; segundo, todos os que mudaram a sua condição de assalariados para camponeses fornecem um fundo adicional destinado à importação de novos trabalhadores para as colónias. O preço do solo outorgado pelo Estado deverá ser suficiente, isto é, bastante elevado «para impedir que os trabalhadores se tornem em camponeses independentes antes que outros tenham vindo tomar o seu lugar no mercado do trabalho».

Este «preço suficiente do solo» não passa de um eufemismo que mascara o resgate pago pelo trabalhador ao capitalista para obter licença de se retirar do mercado do trabalho e partir para o campo. Primeiro é preciso produzir capital para o patrão, para que este possa explorar mais trabalhadores, depois fornecer-lhe, à sua custa, um substituto.

Um facto verdadeiramente característico é que, durante muitos anos, o governo inglês pôs em prática este método de acumulação primitiva, recomendado por Wakefield para uso especial das colónias. O fiasco foi completo porque a corrente emigratória desviou-se simplesmente das colónias inglesas para os Estados Unidos. Desde então, o progresso da produção capitalista na Europa, acompanhado de uma pressão governamental sempre crescente, tornou supérflua a panaceia de Wakefield. Por um lado, a corrente humana, que se precipita todos os anos, imensa e contínua, para a América, deixa depósitos estagnados no Leste dos Estados Unidos; cada vaga de emigração partida da Europa lança no mercado do trabalho mais homens do que a segunda vaga leva para o far West. Por outro lado, a guerra civil americana arrastou atrás de si uma enorme dívida nacional, a exacção fiscal, o aparecimento da mais vil aristocracia financeira, o enfeudamento de uma grande parte das terras públicas a sociedades de especuladores que exploram caminhos de ferro ou minas, em suma, a rápida centralização do capital. A grande República deixou de ser a terra prometida dos operários emigrantes, a produção capitalista marcha a passos de gigante, sobretudo nos Estados do Leste, embora a baixa de salários e a servidão estejam longe de atingir o nível normal europeu.

As doações de terras coloniais baldias, tão largamente prodigalizadas pelo governo inglês aos aristocratas e capitalistas, foram altamente denunciadas pelo próprio Wakefield: além da onda incessante de pesquisadores de oiro e da concorrência que fez a importação de mercadorias inglesas ao artífice colonial, a Austrália foi dotada de uma sobre população relativa, muito menos consolidada do que na Europa, mas bastante considerável: cada paquete traz a notícia desagradável do abarrotamento do mercado de trabalho australiano e da prostituição em certas localidades tão florescentes como no Haymarket de Londres[5].

O segredo que descobriu no novo mundo a economia política do antigo mundo e que divulgou pelas suas lucubrações sobre as colónias, é este: o modo de produção e acumulação capitalista e, portanto, a propriedade privada capitalista, pressupõe o aniquilamento da propriedade privada fundada no trabalho pessoal; a sua base é a expropriação do trabalhador.



[1] Entendam-se estas colónias o solo virgem colonizado por emigrantes livres. Os Estados Unidos são ainda, sob o ponto de vista económico, uma colónia europeia.

[2] E. G. WAKEFIELD: England and America.

[3] MÉRIVALE: Lectures on colonisation and Colonies.

[4] COLINS: L’Économie Politique, source des révolutions e des utopies prétendues socialistes.

[5] G. DUFFY (Ministro dos Bens Nacionais): The land law of Victoria.


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Terça-feira, 3 de Dezembro de 2013
O Capital 1.º Volume 8.ª Secção A Acumulação Primitiva cap XXXII

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Capítulo XXXII

Tendência histórica da acumulação capitalista

Verifica-se portanto que, no fundo da acumulação primitiva do capital, no fundo da sua génese histórica, está a expropriação do imediato produtor, a dissolução da propriedade fundada no trabalho pessoal do seu possuidor.

A propriedade privada, como antítese da propriedade colectiva, só existe onde os instrumentos e as outras condições exteriores do trabalho pertençam a particulares. Mas, conforme estes sejam trabalhadores ou não-trabalhadores, a propriedade privada muda de aspecto: as formas infinitamente matizadas que esta propriedade afecta à primeira vista só reflectem os estados intermediários entre os dois extremos.

A propriedade privada do trabalhador sobre os meios da sua actividade produtiva é o corolário da pequena indústria, agrícola ou manufactureira, e esta constitui o viveiro da produção social, a escola onde se elaboram a habilidade manual, a destreza engenhosa e a livre individualidade do trabalhador. Por certo, este modo de produção encontra-se no meio da escravatura, da servidão e de outros estados de dependência. Mas só prospera, só desenvolve toda a sua energia e só reveste a sua forma integral e clássica onde o trabalhador é o proprietário livre das condições de trabalho que ele mesmo põe em acção; o camponês, do solo que ele cultiva – o artífice, da aparelhagem que ele maneja – como o artista, do seu instrumento.

Este regime industrial de pequenos produtores independentes que trabalham por sua conta, pressupõe a divisão do solo e a dispersão dos outros meios de produção: como exclui a concentração, exclui também a cooperação em grande escala, a subdivisão da tarefa na oficina e nos campos, o maquinismo, o domínio sábio do homem sobre a natureza, o livre desenvolvimento das potências sociais do trabalho, o concerto e a unidade para fins, meios e esforços da actividade colectiva; só é compatível com um estado da produção e da sociedade estreitamente limitado. Eternizá-lo seria, como muito a propósito disse Pecqueur, «decretar a mediocridade em tudo»[1]. Mas, chegado a certo grau, engendra por si mesmo os agentes materiais da sua dissolução. A partir deste momento, forças e paixões que ele comprime começam a agitar-se no meio da sociedade. Tem de ser e é aniquilado. O seu movimento de eliminação, que transforma os meios individuais de produção, esparsos, em meios de produção socialmente concentrados, que faz da pequena propriedade do grande número a propriedade colossal de alguns, esta dolorosa e pavorosa expropriação do povo trabalhador, eis a origem, eis a génese do capital. Abarca toda uma série de processos violentos, dos quais só passámos em revista os mais salientes sob o título de métodos de acumulação primitiva.

A expropriação dos produtores imediatos executa-se com um vandalismo implacável, aguilhoado pelos mais infames objectivos, pelas mais sórdidas paixões, mais odiosas ainda pela sua tacanhez. A propriedade privada, fundada no trabalho pessoal, essa propriedade que, por assim dizer, solda o trabalhador isolado e autónomo às condições exteriores do trabalho, vai ser suplantada pela propriedade privada capitalista, fundada na exploração do trabalho alheio, fundada no assalariado[2].

Desde que um processo de transformação decompôs suficientemente e dos pés à cabeça a velha sociedade, que os produtores se transformaram em proletários, e as suas condições de trabalho em capital, que, por fim, o regime capitalista se sustenta apenas pela força económica das coisas, então a socialização ulterior do trabalho, bem como a metamorfose progressiva do solo e dos outros meios de produção em instrumentos socialmente explorados (comuns, numa palavra), a eliminação ulterior das propriedades privadas vai revestir uma nova forma. O que irá ser depois expropriado já não é o trabalhador independente mas o capitalista, o chefe de um exército ou de um grupo de assalariados.

Esta expropriação realiza-se pelo jogo das leis imanentes da produção capitalista que vão dar à concentração de capitais. Paralelamente a esta centralização, à expropriação de grande número de capitalistas pelo pequeno número, desenvolvem-se em escala sempre crescente a aplicação da ciência à técnica, a exploração da terra com método e em conjunto, a transformação da ferramenta em instrumentos poderosos apenas pelo uso comum, produzindo a economia dos meios de produção, o entrelaçamento de todos os povos na rede do mercado universal; daqui, o carácter internacional imprimido ao regime capitalista.

À medida que diminui o número de potentados do capital que usurpam e monopolizam todas as vantagens deste período de evolução social, aumentam a miséria, a opressão, a escravatura, a degradação, a exploração, mas também a resistência da classe operária crescendo sem cessar, e cada vez mais disciplinada, unida e organizada pelo próprio mecanismo da produção capitalista. O monopólio do capital torna-se um entrave para o modo de produção que com ele cresceu e prosperou, sob os seus auspícios. A socialização do trabalho e a centralização dos seus recursos materiais chegam a um ponto em que já não podem conter-se no invólucro capitalista. Este invólucro rebenta em estilhaços. A hora da propriedade capitalista soou. Os expropriadores são por sua vez expropriados.

A apropriação capitalista, conformada ao modo de produção capitalista, constitui a primeira negação da propriedade privada que é apenas o corolário do trabalho independente e individual. Mas a produção capitalista engendra ela mesma a sua própria negação com a fatalidade que preside às metamorfoses da natureza. É a negação da negação. Restabelece não a propriedade privada do trabalhador, mas a propriedade individual, fundada nas aquisições da era capitalista, na cooperação e posse comum de todos os meios de produção, incluindo o solo.

Para transformar a propriedade privada e dividida, objecto do trabalho individual, em propriedade capitalista, foi naturalmente preciso mais tempo, mais esforços e mais dores do que exigiu a metamorfose em propriedade social da propriedade capitalista, que, de facto, se baseia já num modo de produção colectiva. Além, tratava-se da expropriação da massa por alguns usurpadores; aqui trata-se da expropriação de alguns usurpadores pela massa.

(cap XXXIII)

[1] C. PEQUEUR: Théorie nouvelle d´économie sociale e politique, ou étude sur l’organization des sociétés.

[2] SISMONDI: ob. cit.


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Segunda-feira, 2 de Dezembro de 2013
O Capital 1.º Volume 8.ª Secção A Acumulação Primitiva cap XXXI

 (Início)

Capítulo XXXI

Génese do capitalista industrial

A génese do capitalista industrial[1] não se realizou pouco a pouco como a do agricultor ou fazendeiro. Não há dúvida que muitos chefes de corporação, muitos artífices independentes e até operários assalariados se tornaram a princípio capitalistas embrionários e que, pouco a pouco, graças a uma exploração sempre mais extensa do trabalho assalariado, seguida de uma correspondente acumulação, saíram por fim da casca como capitalistas dos pés à cabeça. A infância da produção capitalista oferece, sob vários aspectos, as mesmas fases que a infância da cidade na Idade Média: a questão de saber qual dos servos evadidos seria patrão ou servo, era em grande parte decidida pela data mais ou menos antiga da respectiva fuga. Contudo, esta marcha a passo de tartaruga, não respondia de modo nenhum às necessidades comerciais do novo mercado universal, criado pelas grandes descobertas do fim do século XV. Mas a Idade Média tinha transmitido duas espécies de capital que brotam sob os mais variados regimes de economia social e até, antes da Era moderna, monopolizam só para eles o nível de capital. Essas espécies são o capital usurário e o capital comercial.

Disse um escritor inglês que, de resto, não dá atenção ao papel representado pelo capital comercial:

«Agora toda a riqueza da sociedade passa em primeiro lugar pelas mãos do capitalista. Ele paga ao proprietário das terras a renda, ao trabalhador o salário, ao fisco os impostos e os dízimos, e retém para si uma grande porção do produto anual do trabalho, de facto a parte maior e que cresce sempre de dia para dia. Hoje o capitalista pode ser considerado como proprietário em primeira mão de toda a riqueza social, embora nenhuma lei lhe tenha conferido o direito a esta propriedade. Esta mudança de propriedade foi operada pela usura, e o curioso é que os legisladores de toda a Europa quiseram impedi-lo por leis próprias. O poder do capitalismo sobre toda a riqueza nacional produziu uma revolução radical no direito de propriedade; por que lei ou por que série de leis foi operada?»[2].

O autor citado deveria ter dito que as revoluções não se fazem por meio de leis.

A constituição feudal dos campos e a organização corporativa das cidades impediam o capital-dinheiro, formado pela dupla via da usura e do comércio, de se converter em capital industrial. Estas barreiras caíram com o despedimento dos séquitos senhoriais, com a expropriação e expulsão parcial dos cultivadores, mas pode avaliar-se a resistência que encontraram os comerciantes quando se transformaram em comerciantes produtores, porque pequenos fabricantes de tecidos, ainda em 1794, mandaram uma comissão ao Parlamento para pedir uma lei que proibisse ao comerciante tornar-se fabricante[3]. Por isso, as novas manufacturas estabeleceram-se de preferência nos portos marítimos, centros de exploração, e nos lugares do interior, situados fora do «controlo» do regime municipal e das corporações de ofícios. Daí, na Inglaterra, a luta encarniçada entre as velhas cidades privilegiadas (Corporate towns) e os novos alfobres da indústria. Noutros países, em França por exemplo, estas foram colocadas sob protecção especial dos reis.

A descoberta das regiões auríferas e argentíferas da América, a redução dos autóctones à escravatura, o seu duro trabalho nas minas ou o seu extermínio, os indícios da conquista e pilhagem nas Índias Orientais, a transformação da África numa espécie de coutada comercial para a caça aos infelizes de pele preta, eis os processos idílicos de acumulação primitiva que assinalam a era capitalista na sua aurora. Logo a seguir rebenta a guerra mercantil que tem por teatro o mundo inteiro. Iniciada pela revolta da Holanda contra a Espanha, assume proporções gigantescas na cruzada da Inglaterra contra a Revolução Francesa e prolonga-se até aos nossos dias com expedições de piratas, como as Guerras do Ópio contra a China.

Os diferentes métodos de acumulação primitiva que a era capitalista fez surgir, entram primeiro, por ordem mais ou menos cronológica, em Portugal, Espanha, Holanda, França e Inglaterra. Esta combina-os a todos, no último terço do século XVII, num conjunto sistemático, compreendendo ao mesmo tempo o regime colonial, o crédito público, a finança moderna e o sistema proteccionista. Alguns destes métodos baseiam-se no emprego da força bruta, mas todos, sem excepção, exploram o poder do Estado, a força concentrada e organizada da sociedade, para precipitar com violência a passagem da ordem económica feudal à ordem económica capitalista e abreviar as fases de transição. E, com efeito, a força é a parteira de toda a velha sociedade. A força é um agente económico.

Um homem, cujo fervor cristão lhe deu fama, W. Howitt, exprime-se assim sobre a colonização cristã:

«As barbaridades e atrocidades execráveis perpetradas pelas raças pretensamente cristãs em todas as regiões do mundo e contra todos os povos que puderam subjugar, não têm paralelo em nenhuma outra era da história universal e em nenhuma raça por mais grosseira, selvagem, impiedosa e desavergonhada que pudesse ter sido»[4].

A história da administração colonial dos holandeses – e a Holanda foi no século XVII a nação capitalista por excelência – «desenrola-se num quadro de assassínios, traições, corrupção e baixeza que nunca será igualado»[5].

Nada mais característico do que o rapto dos autóctones das Celebes com o fim de obter escravos para Java. Tinham um pessoal adestrado para esse rapto de novo tipo. Os principais agentes deste comércio eram o raptor, o intérprete e o vendedor, e os principais vendedores eram os príncipes nativos. A juventude raptada era aferrolhada nos calabouços secretos das Celebes até a encafuarem nos navios de escravos. Diz um relatório oficial: «Só a cidade de Macassar está cheia de prisões secretas, todas elas horríveis, cheias de desgraçados, vítimas da avidez e da tirania, carregados de grilhões, violentamente arrancados às suas famílias».

Para se apoderarem de Malaca, os holandeses corromperam o governador português que os deixou entrar na cidade em 1641. Os holandeses correram logo a casa do governador e assassinaram-no, evitando assim pagar-lhe a soma de 21 875 libras, preço da sua traição. Por todo o lado onde punham pé, a sua passagem era assinalada por devastação e despovoamento. Uma província de Java, Banjuwangi, contava em 1750 mais de 80 000 habitantes, em 1811, já só tinha 8000. Eis o doce comércio!

A Companhia Inglesa das Índias Orientais obteve, além do poder político, o monopólio exclusivo do comércio do chá e do comércio chinês em geral, assim como do transporte das mercadorias da Europa para a Ásia e vice-versa. Mas a cabotagem e a navegação entre ilhas, assim como o comércio no interior da Índia, foram concedidos exclusivamente aos empregados superiores dessa Companhia. Os monopólios do sal e do ópio, do bétele e de outros artigos, eram minas inesgotáveis de riqueza. Os empregados fixavam os preços e assim arrancavam à vontade a pele dos desgraçados indianos. O governo-geral participava deste comércio privado. Os seus favoritos obtinham tais adjudicações que, mais fortes do que os alquimistas, faziam oiro de nada. Grandes fortunas surgiam em vinte e quatro horas como cogumelos; a acumulação primitiva operava-se sem um centavo de adiantamento. O processo de Warren Hastings está cheio de exemplos deste tipo. Citemos apenas um: um certo Sullivan arranjou um contrato para uma entrega de ópio, no momento em que partia em missão oficial para certa região da Índia muito distante dos distritos produtores; Sullivan cedeu o seu contrato por 40 000 libras a um certo Binn; este revendeu-o no mesmo dia por 60 000 libras, e o comprador definitivo, pondo-o em acção, declarou que fez um ganho enorme. Segundo uma lista apresentada ao Parlamento, a Companhia e os seus empregados extorquiram aos indianos, desde 1757 a 1760, sob a única rubrica de dádivas voluntárias, uma quantia de seis milhões de libras! De 1769 a 1770, os ingleses provocaram uma fome artificial comprando todo o arroz; e só consentiram em o vender a preços fabulosos[6].

A sorte dos nativos era naturalmente a mais pavorosa nas plantações destinadas ao comércio de exportação, como nas Índias Ocidentais e nos países ricos e populosos das Índias Orientais e do México, caídos nas mãos de aventureiros europeus, ávidos de lucros. No entanto, até mesmo nas colónias propriamente ditas, o carácter «cristão» da acumulação primitiva nunca foi desmentido: os puritanos, os austeros intrigantes do protestantismo, concederam em 1703 por decreto da sua assembleia um prémio de 40 libras por cada crânio de índio e outro prémio igual por cada pele-vermelha feito prisioneiro; em 1720, um prémio de 100 libras; em 1744, Massachusetts-Bay declarou rebelde certa tribo e ofereceu os seguintes prémios: 100 libras por crânio de indivíduo masculino de doze ou mais anos; 105 libras por cada prisioneiro masculino; 55 libras por cada mulher ou criança apanhada e 50 libras por cada crânio das mesmas! Trinta anos depois, as atrocidades do regime colonial recaíram sobre os descendentes destes piedosos colonialistas que por sua vez se tornaram rebeldes. Os cães treinados na caça aos colonos revoltosos e os índios pagos pela entrega dos respectivos crânios foram proclamados pelo Parlamento «meios divinos e naturais postos à mão».

O regime colonial deu grande impulso à navegação e ao comércio; criou sociedades mercantis, dotadas pelos governos de monopólios e de privilégios, servindo de poderosas alavancas à concentração de capitais; assegurou mercados às manufacturas nascentes, cuja facilidade de acumulação redobrou, graças ao monopólio do comércio colonial. Os tesouros directamente extorquidos fora da Europa pelo trabalho forçado dos nativos reduzidos à escravatura, pela concussão, pela pilhagem e pelo assassínio, refluíam para a mãe-pátria e aqui funcionavam como capital. A Holanda, a verdadeira iniciadora deste porquíssimo regime colonial, atingira em 1648 o apogeu da sua grandeza. Estava de posse quase exclusiva do comércio das Índias Orientais e das comunicações entre o sudoeste e o nordeste da Europa. As suas pescarias, a sua marinha, as suas manufacturas, ultrapassavam as dos outros países. Os seus capitais eram talvez mais importantes do que todos os do resto da Europa reunidos.

Nos nossos dias, a supremacia industrial implica a supremacia comercial. Mas, na época manufactureira propriamente dita, a supremacia comercial é que dava a supremacia industrial. Daí o papel preponderante que representou então o regime colonial. Foi ele o Deus colocado no altar ao lado dos velhos ídolos europeus; um belo dia acotovelou os seus camaradas e catrapus, todos os ídolos foram a terra!

O sistema de crédito público, isto é, da dívida pública, cujos primeiros marcos foram colocados, na Idade Média, por Veneza e Génova, invadiu a Europa definitivamente durante a época manufactureira. O regime colonial, com o seu comércio marítimo e as suas guerras comerciais a servir-lhe de estufa quente, instalou-se primeiro na Holanda. A dívida pública, por outros termos, a alienação do Estado (quer seja despótico, ou constitucional, ou republicano), marca com o seu selo a era capitalista. A única parte da pretensa riqueza nacional que entra realmente na posse colectiva dos povos modernos é a dívida pública[7]. Não há que admirar que quanto mais um povo se endivida mais enriquece, segundo a doutrina moderna. O crédito público, eis o credo do capital. Por isso a falta de fé na dívida pública, desde a incubação desta, tomou o lugar do pecado contra o Espírito Santo, outrora imperdoável[8].

A dívida pública opera como um dos agentes mais enérgicos da acumulação primitiva. Por artes mágicas, a dívida pública dota o dinheiro improdutivo com a virtude reprodutora e converte-o assim em capital, sem que para isso tenha que correr riscos ou perturbações, inseparáveis do seu emprego industrial, ou até da usura privada. Os credores públicos, em boa verdade, não dão nada porque o seu dinheiro metamorfoseado em fundos públicos de fácil transferência continua a funcionar nas suas mãos como outro tanto numerário. Mas, exceptuando a classe dos capitalistas ociosos, assim criada, exceptuando a fortuna improvisada dos financeiros intermediários entre o governo e a nação – como os traficantes, os comerciantes, os manufactureiros particulares, a quem uma boa parte de qualquer empréstimo é capital caído do céu – a dívida pública deu um empurrão às sociedades por acções, ao comércio de qualquer tipo de «papéis» negociáveis, às operações aleatórias, à agiotagem, em suma aos jogos de bolsa e à bancocracia moderna.

Desde o seu aparecimento, os grandes bancos, cheios de títulos nacionais, passaram a ser associações de especuladores estabelecidos ao lado dos governos e, graças aos privilégios que deles obtêm, capazes de lhes emprestar o dinheiro público. Por isso a acumulação da dívida pública não tem graduador mais infalível do que a alta sucessiva das acções dos bancos, cujo desenvolvimento integral data da fundação do Banco de Inglaterra em 1694. Este começou por emprestar todo o seu capital-dinheiro ao governo ao juro de 8 por cento; ao mesmo tempo foi autorizado pelo Parlamento a cunhar moeda do mesmo capital. E de novo emprestou a moeda ao público sob a forma de notas que lhe foi permitido pôr em circulação; descontou com elas as letras de câmbio; adiantou-as sobre mercadorias; empregou-as na compra de metais preciosos. Pouco depois, este dinheiro de crédito, do próprio fabrico do Banco de Inglaterra, torna-se o dinheiro com que o mesmo banco efectua os seus empréstimos ao Estado e paga pelo Estado os juros da dívida pública. Deu por um lado, não só para receber mais, como ainda, ao receber, ficou credor perpétuo da nação até ao pagamento do último cêntimo. E, pouco a pouco, tornou-se necessariamente no receptáculo dos tesouros metálicos do país e o grande centro em torno do qual gravita o crédito comercial. E ainda, ao mesmo tempo que deixaram de queimar bruxas, começaram a enforcar os falsificadores de notas.

É preciso ter lido os escritos daquele tempo, os de Bolingbroke por exemplo, para se compreender todo o efeito que produziu sobre os contemporâneos a súbita aparição desta engenhoca de bancocratas, financeiros, capitalistas, intermediários, agentes de câmbio, homens de negócios, linces, GATUNOS[9].

Com a dívida pública nasceu um sistema de crédito internacional que esconde muitas vezes uma das fontes da acumulação primitiva neste ou naquele povo. É assim que as rapinas e violências venezianas formaram uma das bases da riqueza da Holanda, a quem Veneza emprestou somas consideráveis. Por sua vez, a Holanda, decaída nos fins do século XVII da sua supremacia industrial e comercial, viu-se obrigada a fazer valer capitais enormes emprestando-os ao estrangeiro e, de 1701 a 1776, especialmente à Inglaterra, sua vitoriosa rival.

É o mesmo que se está a dar agora com a Inglaterra e os Estados Unidos: muito capital que aparece hoje nos Estados Unidos sem certificado de nascimento é o sangue das crianças das fábricas, capitalizado outrora na Inglaterra.

Como a dívida pública está baseada no rendimento público, o moderno sistema de impostos foi o corolário obrigatório dos empréstimos nacionais. Estes empréstimos, que dão ao Estado a possibilidade de despesas extraordinárias sem que os contribuintes se dêem conta delas imediatamente, arrastam atrás de si um aumento de impostos; por outro lado, a sobrecarga de impostos, causada pela acumulação de dívidas sucessivas contraídas, obriga os governos, em caso de novas despesas extraordinárias, a recorrer a novos empréstimos. O fisco moderno, cujos impostos sobre objectos de primeira necessidade acarretam o encarecimento destes, formava a princípio o eixo; hoje encerra em si um germe de progressão automática. A sobrecarga das taxas não é um incidente dessa progressão, mas o princípio. Assim, na Holanda, onde este sistema foi inaugurado, Witt exaltou-o nas suas Maximes como o mais próprio para tornar o salário submisso, frugal e industrioso. Mas a influência deletéria que exerce na classe operária ocupar-nos-á menos agora do que a expropriação forçada do camponês, dos artífices e de outros elementos da pequena classe média. Sobre isto não há duas opiniões, até mesmo entre os economistas burgueses. E essa acção expropriadora é ainda reforçada pelo sistema proteccionista que constitui uma das suas partes integrantes.

A grande parte que toca à dívida pública e ao sistema correspondente do fisco, na capitalização da riqueza e na expropriação das massas, induziu muitos escritores, como William Cobbett, Doubleday e outros, a procurar aqui (erradamente), a primeira causa da miséria dos povos modernos.

O sistema proteccionista foi um meio artificial de fabricar fabricantes, de expropriar trabalhadores independentes, de converter em capital os instrumentos e condições materiais do trabalho, de abreviar à viva força a transição do modo tradicional da produção para o modo moderno. Os Estados europeus disputaram a palma do proteccionismo e, uma vez postos ao serviço dos fabricantes de mais-valia, não se contentaram em sangrar a frio os seus próprios povos, indirectamente pelos direitos protectores, directamente pelos prémios de exportação, pelos monopólios de venda interna, etc.. Nos países vizinhos colocados sobre a sua dependência, extirparam violentamente toda a espécie de indústria; foi assim que a Inglaterra matou a manufactura de lãs na Irlanda por meio de «ukases»[10] parlamentares. O processo de fabrico foi ainda simplificado no continente, onde Colbert fez escola. A fonte encantada, de onde o capital primitivo chegava direitinho aos fabricantes, sob a forma de adiantamentos e até de dádiva gratuita, foi muitas vezes o erário público. Disse Mirabeau: «Mas porquê ir procurar mais longe a causa da população e do brilho manufactureiro do Saxe antes da guerra? – Cento e oitenta milhões de dívidas feitas pelos reis»[11].

Regime colonial, dívida pública, exacções fiscais, protecção industrial, guerras comerciais – tudo rebentos do período manufactureiro propriamente dito, que tomaram um desenvolvimento gigantesco durante a primeira juventude da grande indústria. Quanto ao nascimento desse período, pode explicar-se perfeitamente por uma espécie de massacre dos inocentes: o roubo de crianças executado à grande. O recrutamento para as novas fábricas foi feito como na marinha real: por meio de recrutamento forçado.

Por mais encantado que Eden se mostrasse a respeito da expropriação do cultivador, cujo horror enche três séculos, fosse qual fosse o seu ar de complacência em face deste drama histórico, só «necessário» para estabelecer a agricultura capitalista e a «verdadeira proporção entre terras de cultivo e pastagens», falha a serena inteligência das fatalidades económicas quando se trata de roubo de crianças, de necessidade de as escravizar, para se poder transformar a exploração manufactureira em exploração mecânica e estabelecer a verdadeira relação entre capital e força operária.

«Talvez o público fizesse bem em examinar estas manufacturas, cujo êxito exige que se arranquem às choupanas e aos asilos, pobres crianças que, revezando-se por grupos, sofrerão a maior parte da noite e serão privadas de repouso; as quais, além disto, aglomeram indivíduos diferentes no sexo, na idade e nas inclinações, de modo que o contágio do exemplo conduz necessariamente à depravação e à libertinagem. Poderá dizer-se que aumenta a felicidade individual e nacional?»[12].

«As máquinas recentemente inventadas foram empregadas nas suas grandes fábricas, muito perto de cursos de água bastante fortes para moverem a roda hidráulica. De repente foram precisos milhares de braços nestes lugares afastados das cidades e houve necessidade de população. Dedos pequenos e ágeis, tal era o grito geral, e logo nasceu o costume de procurar pseudo-aprendizes nos asilos pertencentes às diversas paróquias de Londres, de Birmingham e de outras localidades. Milhares destes pobres pequenos abandonados, de sete a treze e catorze anos, foram assi expedidos para o Norte. O patrão (ladrão de crianças) encarregava-se de vestir, alimentar e alojar os seus aprendizes numa casa ad hoc muito perto da fábrica. Durante o trabalho, estavam sob as vistas dos vigilantes. O interesse destes guarda-chusmas era fazer andar as crianças a todo o transe porque, consoante a quantidade de produtos que soubessem tirar, aumentaria ou diminuiria a sua paga. Maus-tratos, tal era a consequência natural. Estes seres inocentes, sem abrigo nem amparo, que tinham sido entregues aos patrões como coisas, foram submetidos às mais pavorosas torturas. Cansados pelo excesso de trabalho, foram chibatados, agrilhoados, atormentados com os mais bem estudados refinamentos. Muitas vezes, quando a fome os torcia mais fortemente, o chicote mantinha-os a trabalhar. O desespero levou-os em alguns casos ao suicídio! Cometeram-se impunemente atrocidades sem nome e até assassínios! Os ganhos enormes arrecadados pelos fabricantes só lhes aguçavam os dentes. Imaginaram a prática do trabalho nocturno, isto é, depois de terem esgotado um grupo de trabalhadores na tarefa diurna, tinham outro grupo preparado para a tarefa nocturna. Os primeiros lançavam-se nas camas que os segundos acabavam de deixar no mesmo instante e vice-versa. Era tradição popular que as camas nunca arrefeciam!»[13].

Com o desenvolvimento da produção capitalista durante o período manufactureiro, a opinião pública europeia perdeu o seu último farrapo de consciência e de pudor. As nações gloriavam-se cinicamente de todas as infâmias apropriadas para acelerar a acumulação de capital. Leiam-se por exemplo os ingénuos Annales du Commerce do honesto A. Anderson. Este bom homem admira-se do rasgo de génio da política inglesa: quando da Paz de Utrecht, a Inglaterra arrancou à Espanha, pelo tratado de Amiens, o privilégio de fazer, entre a África e a América espanhola, o mercado de escravos pretos, que, até então, só tinha feito entre a África e as suas possessões da Índia Oriental. A Inglaterra conseguiu assim, até 1743, trazer quatro mil e oitocentos pretos por ano da América espanhola. Isto serviu-lhe ao mesmo tempo para cobrir com um véu oficial as proezas do seu contrabando. Foi o mercado de escravos pretos que fez os alicerces da grandeza de Liverpool; para esta cidade, o tráfico de carne humana constituiu o método de acumulação primitiva. As notabilidades de Liverpool cantaram as virtudes do comércio de escravos «que desenvolve o espírito de empreendimento até à paixão, faz marinheiros sem igual, e rende dinheiro à farta»[14] . Liverpool empregava no comércio da escravatura 15 navios em 1730, 53 em 1751, 74 em 1760, 96 em 1770 e 132 em 1792.

Ao mesmo tempo que a indústria introduzia na Inglaterra a escravatura das crianças, os Estados Unidos transformavam o tratamento mais ou menos patriarcal dos pretos em sistema de exploração mercantil. Criou-se, par pedestal da escravatura dissimulada dos assalariados na Europa, a escravatura desenfreada no novo mundo[15].

Tantœ molis erat! (tão difícil foi!). Eis o preço por que temos pago as nossas conquistas; eis o que custou libertar as «leis naturais e eternas» da produção capitalista, consumar o divórcio entre o trabalhador e as condições de trabalho, transformar estas em capital, a massa do povo em assalariados, em labouring poor – obra-prima de arte, criação sublime da história moderna[16]. Se, como diz Augier, foi «com manchas de sangue numa das faces que o dinheiro veio ao mundo»[17], o capital chegou até nós suando sangue e lama por todos os poros[18].

(cap XXXII)

[1] Termo empregado em oposição ao capitalista agrícola.

[2] TH. HODGSKIN: The natural and artificial Rights of Property contrasted.

[3] DR. JOHN AIKIN.

[4] WILLIAM HOWITT: Colonisation and Christianity.

[5] THOMAS STAMFORD RAFFLES, último governador de Java: The History of Javaand its dependences. Compilação de Charles Comte: Traité de Législationé preciso estudar o que faz o burguês por toda a parte onde pode modelar o mundo à sua imagem»).

[6] Ainda em 1866 mais de um milhão de hindus morreu de fome, só na província de Orissa!

[7] WILLIAM COBBETT nota muito bem que todas as coisas públicas são reais (do Rei), mas a dívida é nacional.

[8] Mémoires du Comte de Bussy-Rabutin.

[9] «Se ao tártaros inundassem hoje a Europa, seria o cabo dos trabalhos fazê-los compreender o que é um financeiro de agora», MONTESQUIEU: Esprit des lois, t. IV.

[10] Do russo «ukasasi»: indicar.

[11] MIRABEAU: De la monarchie prussienne.

[12] F.M. EDEN: The State of the Poor.

[13] JOHN FIELDEN: The curse of the factory system. DR. AIKIN: Description of the Country. GISBORNE: Enquiry into the Duties of Men.

[14] DR. AIKIN: ob cit.

[15] HENRY BROUGHAM: An Inquiry into the colonial policy of the EUropean powers

[16] A expressão labouring poor foi mesmo uma expressão legal. E das leis passou à economia política (Culpeper, J. Child, Adam Smith, Eden). «As leis do comércio são leis da natureza e consequentemente de Deus», EDMOND BURKE: Thoughts and Details on Scarcity.

[17] MARIE AUGIER: Du crédit public.

[18] «O capital evita o tumulto e é por natureza tímido. Isto é verdade mas não é toda a verdade. Aborrece a falta de lucro ou um lucro mínimo, como a natureza tem horror ao vácuo. Faça-se o lucro conveniente, e o capital ganha coragem: 10% garantidos e empregam-no por toda a parte; 20% e ele aquece; 50%, mostra uma temeridade louca; 100%, pisa a pés todas as leis humanas; 300%, não há crime que não ouse cometer, até com risco da forca. Se a desordem e a discórdia derem lucro, anima-as, como se prova pelo contrabando e a escravatura dos pretos»… F. J. DUNNING, Trades’ Unions and Strikes: their Philosophy and Intention, Londres 1860, pp. 35, 36.


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Domingo, 1 de Dezembro de 2013
O Capital 1.º Volume 8.ª Secção A Acumulação Primitiva cap XXX

(Início)

Capítulo XXX

Reacção da revolução agrícola sobre a indústria. Estabelecimento do mercado interno para o capital industrial

Como vimos, a expropriação e a expulsão dos cultivadores por empurrões sempre renovados forneceu à indústria das cidades massas proletárias, recrutadas inteiramente fora do meio corporativo, circunstância que fez crer o velho Anderson (não o confundam com o James Anderson), na sua Histoire du Commerce, numa intervenção directa da Providência. Precisamos ainda de nos deter por momentos neste elemento da acumulação primitiva.

A rarefacção da população rural (composta de camponeses independentes que cultivavam os seus próprios campos) não arrastou só a condensação do proletariado industrial (também, segundo Geoffroy Saint-Hilaire, a rarefacção da matéria cósmica num ponto arrasta a condensação num outro ponto)[1]. Apesar do número decrescente dos cultivadores, o solo continuou a produzir tantos ou mais produtos como dantes, porque a revolução nas condições de propriedade foi acompanhada pelo aperfeiçoamento dos métodos de cultura, pela cooperação em maior escala, pela concentração dos meios de produção, etc.. Além disso, os assalariados agrícolas ficaram adstritos a um trabalho mais intenso, visto que o campo outrora explorado por sua própria conta e para seu benefício pessoal, era bem diferente dos campos expropriados. Foi assim que os meios de subsistência de uma grande parte da população rural se tornaram disponíveis, ao mesmo tempo que todos passaram a figurar, no futuro, como elemento material do capital variável. Daqui por diante, o camponês despojado teve de comprar o valor, sob forma de salário, ao seu novo patrão, o capitalista manufactureiro. E aconteceu às matérias-primas da indústria, provenientes da agricultura, o mesmo que às subsistências: transformaram-se em elemento do capital constante.

Vejamos por exemplo os camponeses que fiavam linho, uns bruscamente expropriados do solo, outros convertidos em jornaleiros das grandes herdades. Passam a estabelecer-se fábricas de fiação e de tecelagem, de dimensões mais ou menos consideráveis, onde os mesmos camponeses são alistados como assalariados.

O linho não é diferente de outrora, nenhuma das suas fibras mudou, mas uma nova alma social se introduziu, por assim dizer, no seu corpo: o linho, daqui por diante, faz parte do capital constante do patrão manufactureiro; antigamente repartido entre muitos pequenos produtores que o cultivavam e fiavam em família, por pequenas fracções, vai concentrar-se nas mãos de um capitalista para quem outros fiam e tecem. O trabalho suplementar despendido na fiação convertia-se outrora num suplemento de rendimento para inúmeras famílias de camponeses; agora converte-se em lucro para um pequeno número de capitalistas. As dobadoiras e os teares, há pouco dispersos pelo país, passam a estar reunidos em algumas oficinas-casernas, assim como os operários e as matérias-primas. E dobadoiras, teares e matérias-primas, tendo deixado de servir de meio de existência independente àqueles que as manobravam, são metamorfoseados em meios de comandar fiandeiros e tecelões e de absorver trabalho gratuito[2].

As grandes manufacturas não traem à primeira vista a sua origem como as grandes herdades. Não deixam rasto aparente, nem a concentração das pequenas oficinas de onde saíram, nem o grande número de pequenos produtores independentes que foi preciso expropriar para as formar.

Contudo, a intuição popular não se deixa enganar. No tempo de Mirabeau, o leão revolucionário, as grandes manufacturas tinham ainda o nome de «manufacturas reunidas», como agora se fala de «terras reunidas».

«Só se presta atenção às grandes manufacturas onde centenas de homens trabalham sob um dirigente e que têm o nome de «manufacturas reunidas». Aquelas onde um grande número de operários trabalha, cada um em separado, cada um por sua própria conta, mal são consideradas; põem-nas a uma distância infinita das outras. É um grande erro; porque estas constituem um objecto de prosperidade nacional verdadeiramente importante. As fábricas reunidas enriquecerão prodigiosamente um ou dois empreiteiros, mas os operários serão apenas jornaleiros pagos (mais ou menos) e em nada participarão do bem da empresa. Na fábrica separada, pelo contrário, ninguém se tornará rico, mas muitos operários viverão bem; os económicos e os industriosos poderão amontoar um pequeno capital, juntar alguns recursos para o nascimento de um filho, para uma doença, para eles mesmos ou para algum dos seus. E o número de operários económicos e industriosos aumentará, porque verão na sua boa conduta e na sua actividade, um meio de melhorar essencialmente a sua situação, e não de obter um pequeno aumento de salário que nunca pode ser um factor importante para o futuro, e cujo único resultado é pôr os homens em estado de viver um pouco melhor, mas só dia a dia. As manufacturas reunidas, as empresas de alguns particulares que assalariam operários à jorna para trabalharem por conta deles, podem pôr esses particulares na abastança mas nunca deverão ser um objecto digno da atenção governamental»[3].

Mirabeau designa as manufacturas separadas, na maioria combinadas com a pequena cultura, como as «únicas livres».

Os acontecimentos que transformam os cultivadores em assalariados e os meios de subsistência e trabalho em elementos materiais do capital, criam para este o seu mercado interno. Outrora a mesma família camponesa produzia primeiro e consumia depois – pelo menos em grande parte – os víveres e as matérias brutas, frutos do seu trabalho. Transformados agora em mercadorias, são vendidos por junto pelo fazendeiro a quem as manufacturas fornecem o mercado. Por outro lado, os artefactos como fios, tecidos, etc., cujos materiais comuns se encontravam ao alcance de qualquer família camponesa, até então produtos camponeses, convertem-se daqui em diante em artigos de manufactura que encontram mercado nos campos, ao passo que os clientes dispersos, cujo aprovisionamento se fazia ao retalho, de numerosos pequenos produtores a trabalhar por sua própria conta, concentram-se agora e constituem apenas um grande mercado para o capital industrial[4]. Foi assim que a expropriação dos camponeses e a sua transformação em assalariados, provocou o aniquilamento da indústria doméstica dos campos, o divórcio entre a agricultura e qualquer espécie de manufactura. E, com efeito, este aniquilamento da indústria doméstica do camponês é a única coisa que pode dar ao mercado interno de um país a extensão e a constituição exigidas pelas necessidades da produção capitalista.

Contudo, o período manufactureiro propriamente dito não consegue de modo nenhum tornar radical esta revolução: ela só se apodera da indústria nacional, de maneira fragmentária, esporádica, tendo sempre como base principal os teares das cidades e a indústria doméstica dos campos. Se esta foi destruída sob certas formas, em certos ramos particulares e em certos pontos, fê-la nascer noutros, porque não podia passar sem ela para a primeira fase das matérias brutas. Dá assim ocasião à formação de uma nova classe de pequenos agricultores para a qual a cultura do solo se torna acessória, sendo o trabalho industrial, cujo produto se vende às manufacturas, directamente ou por intermédio do comerciante, a sua ocupação principal. Foi o que se deu com a cultura do linho nos fins do reinado de Isabel, uma das circunstâncias desconcertantes quando se estuda de perto a história de Inglaterra: com efeito, no último terço do século XV, as queixas contra a extensão crescente da agricultura capitalista e a destruição progressiva dos camponeses independentes não deixam de ecoar, com excepção de curtos intervalos, e ao mesmo tempo encontram-se constantemente estes camponeses, embora em número sempre menor e em condições cada vez piores. Há uma excepção nos tempos de Cromwell: durante a República, todas as camadas sociais inglesas se levantaram da degradação em que tinham caído sob o reinado dos Tudors.

Esta reaparição dos pequenos lavradores é, em parte, como acabámos de ver, o efeito do regime manufactureiro, mas a razão básica é que a Inglaterra se entrega de preferência, ora à cultura dos cereais, ora à criação de gado, e que os seus períodos de alternativa abarcam para uma, meio século, e para a outra apenas uns vinte anos; o número de pequenos lavradores a trabalhar por conta própria varia também conforme estas flutuações.

Só a grande indústria, por meio das máquinas, funda a exploração agrícola capitalista em base permanente, expropria radicalmente a imensa maioria da população rural e consuma a separação entre a agricultura e a indústria doméstica dos campos, extirpando as raízes respectivas – a fiação e a tecelagem: «manufacturas propriamente ditas e destruição das manufacturas rurais ou domésticas produzem, à chegada das máquinas, a grande indústria dos lanifícios»[5].

«A charrua e o jugo foram invenção de deuses e trabalho de heróis: o tear, o fuso, a dobadoira, tiveram acaso origem menos elevada? Separai a dobadoira da charrua, o fuso do jugo, e obtereis fábricas e casas de trabalho, crédito e pânico, duas nações hostis, uma agrícola e outra comercial»[6].

Desta separação fatal datam o desenvolvimento necessário dos poderes colectivos do trabalho e a transformação da produção fragmentária e rotineira em produção combinada e científica. A indústria mecânica consumou esta separação e foi também ela que primeiro conquistou para o capital todo o mercado interno.

Os filantropos da economia inglesa, como J. Stuart Mill, Rogers, Goldwin Smith, Fawcett, etc., os fabricantes liberais, os John Bright e consortes, interpelam os proprietários das terras em Inglaterra como Deus interpelou Caim acerca de Abel. Que é feito desses milhares de rendeiros livres? E vós, donde vindes? Não será da destruição daqueles? E porque não perguntar também o que foi feito dos tecelões, dos fiandeiros, e de todos os artífices independentes?

(cap XXXI)

[1] GEOFFROY SAINT-HILAIRE: Notions de Philosophie naturelle.

[2] (Diz o capitalista: «Eu consentirei que tenhas a honra de me servir, sob condição que me dês o pouco que te resta, em paga do trabalho que eu tenho de mandar em ti»), J. J. ROUSSEAU: Discours sur l’économie politique.

[3] MIRABEAU: De la Monarchie prussienne sous Frédéric le Grand.

[4] DAVID URQUHART: Familiar Words as affecting England and the English

[5] TUCKETT: A History of the Past and the Present State of Labouring Populatios.

[6] DAVID URQUHART: ob cit.


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