A contradição principal e decisiva da sociedade portuguesa actual é a contradição entre a burguesia e o proletariado. A tarefa histórica fundamental dos verdadeiros marxistas-leninistas portugueses, organizados em partido revolucionário do proletariado, consiste em actuar revolucionariamente de forma a superar aquela contradição substituindo o capitalismo pelo socialismo e instaurando a ditadura do proletariado, sem a qual jamais será possível a sociedade sem classes – o comunismo.
O derrubamento da burguesia, o estabelecimento da ditadura do proletariado, a construção do socialismo e do comunismo não são, porém, abra de um só dia. Trata-se de uma revolução complexa, prolongada e ininterrupta. Compete à vanguarda organizada da classe operária, ao seu partido, estudar e aplicar as leis científicas da revolução e da luta de classes, de modo a determinar com justeza qual a fase da revolução em que nos encontramos, os objectivos que devemos prosseguir, a direcção do golpe principal a desencadear, quem são os nossos amigos e quem são os nossos inimigos, qual a disposição das forças revolucionárias.
O que tem caracterizado o movimento revolucionário português é precisamente a falta de uma direcção proletária do movimento. O proletariado não se tem revelado capaz de elaborar a sua própria linha política de classe. Tem vindo sempre a reboque do oportunismo, da tutela ideológica e política da burguesia radical. Uma direcção independente, verdadeiramente revolucionária do movimento proletário é coisa que não tem existido. A classe operária tem falado pela boca da burguesia.
O operariado, todavia, vem possuindo uma consciência cada vez mais clara desta situação. A amplitude assumida pela justa luta de libertação dos povos das colónias, o agravamento da exploração do capital monopolista, a venda de Portugal ao imperialismo, a extensão das lutas populares, particularmente em 1961/1962, ensinaram a classe operária a distinguir os interesses proletários dos interesses da burguesia radical.
A fase actual da Revolução em Portugal é a fase da Revolução Democrática Popular. Dentro desta fase coloca-se à classe operária a tarefa prioritária de reorganizar a sua vanguarda. Sem ela, sem um verdadeiro partido marxista-leninista do proletariado português, não é possível a elaboração duma linha política proletária, não é possível realizar e levar até ao fim a Revolução Democrática Popular e encarar as tarefas da Revolução Socialista. Só com um partido proletário poderá a classe operária começar a falar com a sua própria boca.
Lutemos pela emancipação definitiva do movimento revolucionário da tutela ideológica e política da burguesia radical.
A partir dos últimos anos da guerra de 1939/45, inicia-se na economia portuguesa um movimento acelerado de concentração da produção e do capital como consequência do investimento de elevados lucros acumulados durante o conflito, da penetração do imperialismo estrangeiro e da exploração cada vez mais desenfreada dos povos das colónias.
O resultado daquela concentração é que a nossa economia é hoje essencialmente dominada pelo capital monopolista.
Umas escassas dezenas de sociedades anónimas detêm ou controlam os principais ramos da produção nacional e da exploração colonial. Dessas sociedades algumas são directamente dirigidas pelo capitalismo estrangeiro, como sucede nos sectores das minas, comunicações e transportes; outras são administradas por grupos «portugueses» (CUF, Champalimaud, Sacor, Fonsecas & Burnay, Português do Atlântico, Espírito Santo, Borges & irmão e Nacional Ultramarino) dependentes financeira e politicamente dos grandes trusts internacionais, a soldo dos quais se encontram.
No que respeita ao sector agrícola, a penetração do capitalismo, acentuada em anos recentes, destruiu, no essencial, as relações de produção pré-capitalistas e semi-feudais aí dominantes, de tal sorte que o grau de concentração é provavelmente o mais elevado da Europa.
Assim, as relações capitalistas, a compra e venda da força de trabalho como mercadoria, são as relações de produção que de uma maneira absoluta predominam no nosso país. É o capitalismo monopolista, a realidade actual predominante da nossa economia.
O fascismo-salazarismo – forma que a ditadura da burguesia assumiu para, nas condições específicas da luta de classes em Portugal, poder realizar os interesses históricos do capital e dos seus possuidores – é o instrumento político que opera esta passagem do capitalismo pré-monopolista ao capitalismo dos monopólios. Assim como a versão marcelista daquela ditadura intenta completar a mudança, consolidar as posições do capital financeiro e negociar com o capitalismo internacional o lugar de lacaio que cabe ao capital da burguesia portuguesa.
A concentração, todavia, agravando as condições gerais de exploração das classes trabalhadoras, não fez mais do que agudizar as contradições da sociedade portuguesa e, em particular, a contradição principal.
Assim, o quantitativo da classe operária triplicou desde os começos do fenómeno da concentração, passando de 500 000 operários, em 1940, para cerca de 1 500 000 em 1970. Este crescimento explosivo transformou o proletariado na classe numericamente mais importante, e veio alterar radicalmente o panorama da luta de classes.
Além de ser a mais numerosa, a classe operária está densamente concentrada em redor de duas ou três zonas industriais nucleares, o que cria condições materiais particularmente favoráveis ao incremento da unidade, consciência e combatividade revolucionárias.
Por outro lado, o proletariado português – numa boa parte constituído por elementos recentemente chegados do campo – não se encontra disperso por uma multidão de oficinas e unidades artesanais mas, sim, na sua maioria, concentrado em grandes e médias unidades fabris.
O nível dos salários é muito baixo e os mais pequenos aumentos arrancados a ferro e fogo.
A penetração do capitalismo nos campos e a concentração que posteriormente aí se processa e vem processando, criam um verdadeiro exército de operários agrícolas cujo número constitui fracção maioritária do contingente do campesinato.
A estrutura capitalista portuguesa e a situação das classes no nosso país fazem de Portugal o elo mais fraco do capitalismo europeu. E é o levantamento insurreccional, vitorioso e irresistível dos povos das colónias que vai contribuir poderosamente para transformar o elo mais fraco do capitalismo na Europa num dos elos mais fracos da cadeia mundial do imperialismo.
A guerra colonial, na medida em que contribui para transformar as contradições da vida política portuguesa numa crise revolucionária, está a dar e dará cada vez mais um impulso formidável à Revolução.
Portugal insere-se decididamente na grande «zona das tempestades revolucionárias».
Na fase actual, a revolução que a crise da ditadura burguesa e as contradições da sociedade portuguesa reclamam, é a Revolução Democrática Popular.
Significa isto que, nesta sua primeira fase, a revolução portuguesa não é ainda uma revolução socialista proletária, mas uma revolução que terminará pela edificação duma sociedade de «democracia nova», colocada sob a ditadura conjunta de todas as classes revolucionárias, com o proletariado à frente em seu papel de direcção. Só então a revolução poderá progredir para a segunda fase, a fase da edificação da sociedade socialista.
Acrescente-se, contudo, que as duas fases não constituem, nem poderão nunca constituir, compartimentos estanques. «Na medida das nossas forças, isto é, das forças do proletariado consciente e organizado, começaremos – dizia Lenine – a passar da revolução democrática à revolução socialista. Nós somos pela revolução ininterrupta». («A atitude da social-democracia em face do movimento camponês» – 1905).
Mas a revolução, além de democrática, é também popular, o que significa que deve ser conduzida sob a direcção do proletariadoe das massas populares visando a instauração de uma ditadura democrático-popular que arranque pela raiz o poder da grande burguesia monopolista e latifundiária, que destrua o aparelho de estado militar – corporativo fascista, expulse o imperialismo e ponha termo à agressão colonialista, fazendo regressar imediatamente os soldados e imediatamente reconhecendo e proclamando o direito dos povos das colónias à independência e separação.
A Revolução Democrática Popular é assim uma revolução anti-fascista, anti-monopolista, anti-imperialista e anti-colonialista pela Democracia, pela Liberdade, pela Paz, pelo Pão, pela Terra e pela Independência Nacional (de Portugal e das colónias).
É claro que uma alteração tão profunda e radical da sociedade portuguesa actual não pode ser realizada senão pela insurreição popular, pela revolução violenta. Somente quem tenha perdido o senso comum pode pensar ou defender que a Revolução Democrática Popular possa efectuar-se pacificamente, no quadro da «democracia» burguesa, concebida exactamente para manter a hegemonia da burguesia.
Esta luta de classes complexa e violenta que é a revolução faz destacar com nitidez a necessidade absoluta e prioritária da existência de um verdadeiro partido marxista-leninista dos operários portugueses, e mostra-nos como, sem um instrumento político e militar próprio, as massas populares não a conseguirão levar ao fim.
O carácter democrático e popular e a natureza violenta e insurreccional não são as únicas características que distinguem a linha proletária da linha oportunista, no que respeita ao problema da Revolução em Portugal na actual fase.
Como ensinou Lenine, «a questão essencial da revolução é a questão do poder» («Sobre a dualidade do poder» – 1917).
A insurreição e a violência são meios absolutamente indispensáveis à tomada do poder. Mas a revolução não está terminada com a tomada do poder. A tomada do poder é apenas o começo da revolução. A vitória decisiva só se obtém com a instauração da ditadura democrática popular do proletariado e das outras classes populares revolucionárias.
Diz Lenine em «As duas tácticas…»: «E esta vitória será precisamente uma ditadura, o que quer dizer que deverá apoiar-se, com absoluta necessidade, sobre a força armada, sobre as massas armadas, sobre a insurreição e não sobre estas ou aquelas instituições constituídas, «legalmente», pela «via pacífica». Não poderá ser senão uma ditadura, porque as transformações absolutamente e imediatamente necessárias ao proletariado e ao campesinato provocarão da parte do latifundiário, dos grandes burgueses e do czarismo uma resistência desesperada. Sem ditadura será impossível quebrar esta resistência, repelir os ataques da contra-revolução. Todavia não se trata evidentemente de uma ditadura socialista, mas de uma ditadura democrática.»
A questão do poder na revolução democrática popular é o aspecto essencial, que distingue a linha proletária da linha contra-revolucionária, com os revisionistas à cabeça.
Também no que respeita à questão camponesa é nítida a demarcação entre a linha proletária e a linha oportunista no seio do movimento operário.
A questão camponesa é, no essencial, o problema da procura do principal aliado da classe operária na fase democrática da revolução. Em «As duas tácticas…» Lenine define do seguinte modo a linha política do partido bolchevista: «o proletariado deve realizar e levar até ao fim a revolução democrática, chamando a si a massa dos camponeses, a fim de esmagar pela força a resistência da autocracia e paralisar a burguesia instável».
Para derrubar o aparelho repressivo fascista e a grande burguesia monopolista e latifundiária, para expulsar definitivamente o imperialismo e pôr termo à guerra de agressão nas colónias, reconhecendo o direito dos seus povos à separação e independência, a classe operária tem necessidade absoluta dum aliado consequente, sob pena de não conseguir estabelecer a sua hegemonia e de sair derrotada da grande confrontação violente de classes que se avizinha.
Qual é esse aliado principal?
Para a linha oportunista e contra-revolucionária, com os revisionistas à cabeça, o aliado principal do proletariado na chamada «revolução democrática nacional» é o movimento democrático da burguesia liberal. Daí o pacifismo, o legalismo e o eleitoralismo de que tais oportunistas têm dado mostras.
Para a linha proletária, ao contrário, o aliado principal do proletariado na Revolução Democrática e Popular é o campesinato. Os interesses de classe do campesinato jamais se realizarão, a não ser no seio desta aliança revolucionária; os interesses de classe do proletariado só com ela poderão ser levados até ao fim.
No interior daquela aliança, o papel dirigente cabe ao proletariado, como única classe verdadeira e consequentemente revolucionária. Por isso, a classe operária deve ter bem presente os ensinamentos de Lenine a propósito da análise, em termos de classe, que deve ser feita do campesinato, a sua estrutura e interesses próprios.
«O campesinato engloba uma massa de elementos semi-proletários ao lado dos seus elementos pequeno-burgueses. Esta circunstância torna-o instável e obriga o proletariado a organizar-se num partido de classe estritamente definido. Porém a instabilidade do campesinato difere radicalmente da instabilidade da burguesia, porque o campesinato está menos interessado na conservação absoluta da propriedade privada do que na confiscação das terras do latifundiário, uma das formas principais desta propriedade. Sem se tornar por isso socialista, sem deixar de ser pequeno-burguês, o campesinato é capaz de ser um lutador decidido, e dos mais radicais, da revolução democrática. (…) Só uma revolução inteiramente vitoriosa poderá dar-lhe tudo no domínio das reformas agrárias, tudo o que o campesinato deseja, tudo quanto sonha e que lhe é verdadeiramente necessário (não para a supressão do capitalismo, como pensam os socialistas revolucionários) mas, para sair da abjecção, da semi-servidão, das trevas, do embrutecimento e do servilismo, para melhorar as suas condições de existência…».
A história recente tem mostrado como o abandono da aliança operário-camponesa pelos oportunistas tem conduzido a classe operária às maiores derrotas e aos maiores fracassos. A contra-revolução fascista na Indonésia e o aniquilamento físico de centenas de milhar de comunistas provam como o oportunismo na questão camponesa, como em todos os outros aspectos da teoria e da táctica revolucionárias, significa aliança clara com o inimigo de classe, aniquilamento dos verdadeiros marxistas-leninistas, negação da revolução.
Se o proletariado é a força principal, dirigente da Revolução, e o campesinato o seu principal aliado na fase actual da Revolução Democrática Popular, se o abandono da aliança operário-camponesa é um dos crimes mais graves cometidos pelos oportunistas, tal não significa que a classe operária deva desprezar, abandonar ou subestimar outras classes ou camadas do povo português.
É dever e tarefa revolucionária do proletariado unir todas as classes e camadas da população que possam e devam ser unidas.
Todos os grupos e classes exploradas, os sectores revolucionários da pequena-burguesia urbana, os estudantes e intelectuais revolucionários, são classes e camadas da população que podem e devem ser unidas.
O lugar próprio da aliança revolucionária de todos os explorados, o órgão que deve traduzir e selar essa aliança de todos os que podem e devem ser unidos é a frente revolucionária anti-fascista, anti-monopolista, anti-imperialista e anti-colonialista pela Democracia, pela Liberdade, pela Paz, pelo Pão, pela Terra e pela Independência Nacional.
No contexto actual da luta de classes, a questão colonial assume uma importância central. Ela é mesmo a contradição fulcral do capitalismo português e a pedra de toque com a qual se pode determinar quem são os reaccionários e quem são os revolucionários no nosso país.
Tal como em todas as questões importantes que se levantam ao movimento revolucionário em Portugal, a questão colonial tem uma resposta proletária e uma resposta oportunista.
Os oportunistas, com os revisionistas à cabeça, reproduzem alargadamente a traição da II Internacional nesta matéria, limitando-se a escassas, vagas e nebulosas referências ao «problema ultramarino», onde a questão da independência, separação e apoio militante à justa causa da libertação dos povos coloniais é inteiramente escamoteada. Os oportunistas passam sobre a questão colonial como gato sobre brasas.
Para a linha proletária, ao contrário, tudo é diferente e claro.
As colónias e os países submetidos que o capital financeiro explora constituem a principal reserva de forças do imperialismo.
A justa luta de libertação nacional dos povos das colónias e dos países oprimidos tem como consequência o enfraquecimento e isolamento do imperialismo, na medida em que destaca dele a sua principal reserva de forças.
No caso particular das colónias sob controlo da burguesia portuguesa, a insurreição popular armada não só contribui para o enfraquecimento do imperialismo internacional, acelerando a crise mundial do capitalismo, como vibra um golpe mortal no capitalismo português.
Os interesses do movimento revolucionário português, e em especial os interesses do proletariado, por um lado, e os interesses dos movimentos populares de libertação nacional das colónias, por outro exigem que os dois movimentos revolucionários constituem uma frente única contra o inimigo comum – o imperialismo, de que o capitalismo português é o seu lacaio menor.
Todavia, é preciso ter muito presente que «a formação de uma frente revolucionária comum, dizia Estaline, não é possível senão se o proletariado dos países opressores sustentar directa e resolutamente o movimento de independência nacional dos povos oprimidos contra o imperialismo da metrópole, pois ««um povo que oprime outro povo não poderá ser livre» (Marx)» (Em «As bases do leninismo»).
Os povos das colónias, ao pegarem em armas contra a exploração colonialista e imperialista, dão ao proletariado português, o exemplo de como se deve combater consequentemente o inimigo comum. Cabe ao proletariado português aprender com o exemplo e cumprir com toda a determinação o seu dever internacionalista militante.
O proletariado português e os povos das colónias são aliados naturais.
O grande Lenine ensinou que o «centro de gravidade da educação internacionalista dos operários dos países opressores deve residir na propaganda e defesa efectiva do direito dos povos oprimidos a se separarem da metrópole. Sem isso, não há internacionalismo possível. Nós podemos e devemos chamar de imperialista e de patife todo o socialista dum estado opressor que tal não faça». (Em «O balanço da discussão» – sublinhados nossos).
De imperialista e de patife… dizia Lenine!
Publicado no BANDEIRA VERMLHA N.º 1
em Dezembro de 1970
Os comunistas alemães, de quem vamos falar agora, não se chamam de “esquerda”, mas – se não me engano – de “oposição de princípio” (grundsatzliche Opposition). Mas, pelo que se segue, pode-se ver que têm todos os sintomas da “doença infantil do esquerdismo”.
O folheto intitulado Cisão no Partido Comunista da Alemanha (Liga Espartaquista), que reflecte o ponto de vista dessa oposição e que foi editado pelo “Grupo local de Francoforte-sobre-o-Meno”, expõe com grande evidência, exactidão, clareza e concisão a essência dos pontos de vista dessa oposição. Algumas citações serão suficientes para familiarizar os leitores com essa entidade:
“O Partido Comunista é o partido da luta de classes mais decisiva..."
“…Do ponto de vista político, o período de transição [entre o capitalismo e o socialismo] é um período de ditadura do proletariado..."
"…Surge a seguinte pergunta: quem deve exercer a ditadura: o Partido Comunista ou a classe proletária? ... Por princípio, devemos tender para a ditadura do Partido Comunista ou para a ditadura da classe proletária? ..."
(Os realces são do original).
Mais adiante, o autor do folheto acusa o “CC” do Partido Comunista da Alemanha de procurar uma coligação com o Partido Social-Democrata Independente da Alemanha e de ter levantado “a questão do reconhecimento, por princípio, de todos os meios políticos” de luta, entre eles o parlamentarismo, somente para ocultar as verdadeiras e principais intenções de coligar-se com os independentes. E o folheto continua:
“A oposição escolheu outro caminho. Defende o critério de que a questão da hegemonia do Partido Comunista e da sua ditadura nada mais é que uma questão de táctica. Em todo caso, a hegemonia do Partido Comunista é a última forma de toda hegemonia de partido. Por princípio, deve-se tender para a ditadura da classe proletária. E todas as medidas do Partido, a sua organização, as suas formas de luta, a sua estratégia e a sua táctica devem orientar-se, para esse objectivo. De acordo com isso é preciso rejeitar do modo mais categórico todo o compromisso com os demais partidos, qualquer retorno aos métodos parlamentares de luta, histórica e politicamente obsoletos, qualquer política de manobra e conciliação". "Os métodos especificamente proletários de luta revolucionária devem ser salientados com energia. E, para abarcar os mais amplos sectores e camadas proletários, que devem incorporar-se à luta revolucionária sob a direcção do Partido Comunista, é preciso criar novas formas de organização, sobre a mais ampla base e com os mais amplos limites. Esse lugar de agrupamento de todos os elementos revolucionários é a União Operária, construída sobre a base das organizações de fábrica. Nela devem unir-se todos os operários fiéis ao lema: Fora dos Sindicatos! É aqui que o proletariado militante forma as mais amplas fileiras de combate. Basta reconhecer a luta de classes, o sistema soviético e a ditadura para ser admitido. Toda a educação política posterior das massas combatentes e a sua orientação política na luta são tarefa do Partido Comunista, que se encontra fora da União Operária..."
“... Há agora, por conseguinte, dois partidos comunistas frente à frente:
Um, é o partido dos chefes, que trata de organizar e dirigir a luta revolucionária de cima, aceitando os compromissos e o parlamentarismo com a finalidade de criar situações que permitam a esses chefes participar num governo de coligação, em cujas mãos esteja a ditadura.
O outro é o partido das massas, que espera o ascenso da luta revolucionária de baixo, que conhece e aplica nessa luta um único método que leva firmemente ao objectivo traçado, rejeitando todos os processos parlamentares e oportunistas; esse método único é o derrube incondicional da burguesia para depois implantar a ditadura de classe do proletariado, com a finalidade de instaurar o socialismo...”
“... De um lado, a ditadura dos chefes; do outro, a ditadura das massas! Essa é a nossa palavra de ordem”.
Tais são as teses fundamentais que caracterizam o ponto de vista da oposição no Partido Comunista Alemão.
Qualquer bolchevique que tenha participado conscientemente no desenvolvimento do bolchevismo desde 1903, ou que o tenha observado de perto, não poderá deixar de exclamar imediatamente, depois de ter lido tais opiniões: “Que velharias conhecidas! Que infantilidades de “esquerda”!”.
Examinemos, porém, mais de perto essas opiniões.
Só o facto de perguntar “ditadura do Partido ou ditadura da classe, ditadura (partido) dos chefes ou ditadura (partido) das massas?” mostra a mais incrível e irremediável confusão de ideias. Há pessoas que se esforçam para inventar algo inteiramente original e não conseguem mais, no seu afã de sabedoria, do que cair no ridículo. É sabido de todos que as massas se dividem em classes, que opor as massas às classes só se pode num sentido: se se opõe uma maioria esmagadora, na sua totalidade, sem se distinguir as posições ocupadas em relação ao regime social da produção, às categorias que ocupam uma posição especial nesse regime; que as classes estão geralmente, na maioria dos casos, pelo menos nos países civilizados modernos, dirigidas por partidos políticos; que os partidos políticos estão dirigidos, regra geral, por grupos mais ou menos estáveis das pessoas mais autorizadas, influentes e capazes, eleitas para os cargos mais responsáveis a que se chamam chefes. Tudo isto é o ABC, tudo isto é simples e claro. Que necessidade havia de trocar isso por tais confusões, por essa espécie de volapuque? Pelos vistos, essas pessoas desnortearam-se em virtude da rápida alternância entre vida legal e vida ilegal do Partido, que altera as relações comuns, normais e simples entre os chefes, os partidos e as classes, e caíram numa situação difícil. Na Alemanha, como nos demais países europeus, as pessoas estão excessivamente habituadas à legalidade, à eleição livre e regular dos “chefes” pelos congressos ordinários dos partidos, à comprovação cómoda da composição de classe desses últimos através das eleições parlamentares, dos comícios, imprensa, estado de espírito dos sindicatos e outras organizações, etc. Quando, em virtude da marcha impetuosa da revolução e do desenvolvimento da guerra civil, foi preciso passar dessa rotina para a alternância de legalidade, ilegalidade e da sua combinação, para métodos “pouco cómodos” e “não-democráticos” a fim de designar, formar ou conservar os “grupos de dirigentes’, essas pessoas perderam a cabeça e começaram a inventar um monstruoso absurdo. Provavelmente os “tribunistas” holandeses, que tiveram o azar de nascer num país pequeno, com tradição e condições legais particularmente privilegiadas e estáveis, e confusos e desnorteados por nunca terem assistido a esta alternância de situações legais e ilegais, ajudaram a essas invenções absurdas.
Por outro lado, salta aos olhos o uso impensado e ilógico de algumas palavras “da moda”, na nossa época, sobre “a massa” e “os chefes”. Essas pessoas ouviram e sabem de cor muitos ataques contra “os chefes” e como estes eram contrapostos à “massa”, mas não souberam raciocinar sobre o significado e ver com clareza do que se tratava.
No fim da guerra imperialista e depois dela, manifestou-se em todos os países com singular vigor e evidência o divórcio entre “os chefes” e “a massa”. A causa fundamental desse fenómeno foi explicada muitas vezes por Marx e Engels, de 1852 a 1892, usando o exemplo da Inglaterra. A situação monopolista desse país originou o nascimento de uma “aristocracia operária” oportunista, semi-pequeno-burguesa, saída da “massa”. Os chefes dessa aristocracia operária passavam-se frequentemente para o campo da burguesia, que os sustentava directa ou indirectamente. Marx foi alvo do ódio, que o honra, desses canalhas, por havê-los qualificado publicamente de traidores. O imperialismo moderno (do século XX) criou uma situação privilegiada, monopolista, para alguns países avançados, e, nesse terreno, surgiu em toda parte, dentro da II Internacional, esse tipo de chefes traidores, oportunistas, social-chauvinistas, que defendem os interesses da sua corporação, do seu reduzido grupo de aristocracia operária. Esses partidos oportunistas afastaram-se das “massas”, isto é, dos sectores mais amplos de trabalhadores, da maioria, dos operários pior remunerados. A vitória do proletariado revolucionário torna-se impossível sem a luta contra esse mal, sem o desmascaramento, a desmoralização e a expulsão dos chefes oportunistas social-traidores; esta é, exactamente, a política aplicada pela III Internacional.
Mas chegar com este pretexto a contrapor, em termos gerais, a ditadura das massas à ditadura dos chefes é um absurdo ridículo e uma imbecilidade. O mais divertido é que, de facto, no lugar dos antigos chefes que se agarravam às ideias comuns sobre as coisas simples, destacam-se (encobrindo-se com a palavra de ordem de “abaixo os chefes”) novos chefes que dizem tolices e disparates que escapam a qualquer qualificação. Tais são, na Alemanha, Lauffenberg, Wolfweim, Horner11, Karl Schroeder, Friedrich Wendell e Karl Erler[1]. As tentativas deste último para “aprofundar” a questão e proclamar, de modo geral, a inutilidade e o “carácter burguês” dos partidos políticos representam verdadeiras colunas de Hércules da estupidez, deixando qualquer um estupefacto. Um processo real: a partir de um pequeno erro, pode-se fazer sempre um monstruosamente grande, caso se persista nele, caso seja aprofundado para o justificar, caso se tente “levá-lo às últimas consequências”!
Negar a necessidade do Partido e da disciplina partidária, eis o resultado a que chegou a oposição. E isso equivale a desarmar completamente o proletariado em proveito da burguesia. Acrescente-se a isso a balbúrdia, a instabilidade e a incapacidade, próprios da pequena burguesia, para ser dirigido, para a unir-se e para actuar de modo organizado, que, se formos indulgentes, causarão inevitavelmente a ruína de todo movimento revolucionário do proletariado. Negar a necessidade do Partido, do ponto-de-vista do comunismo, é dar um salto das vésperas da derrocada do capitalismo (na Alemanha) não até à fase inferior ou média do comunismo, mas até à sua fase superior. Na Rússia estamos ainda (mais de dois anos depois do derrube da burguesia) a dar os nossos primeiros passos na via da transição do capitalismo para o socialismo, ou fase inferior do comunismo. As classes subsistem e continuarão a existir durante anos, em toda parte, depois da conquista do Poder pelo proletariado. Talvez na Inglaterra, onde não há camponeses (mas onde existem pequenos proprietários!), este período possa ser mais curto. Suprimir as classes, não é apenas expulsar os proprietários de terras e os capitalistas – o que nos foi relativamente fácil fazer – é também suprimir os pequenos produtores de mercadorias; ora estes não podem ser expulsos ou esmagados; há que viver em boa harmonia com eles. Pode-se (e deve-se) transformá-los, reeducá-los – mas só mediante um trabalho de organização muito longo, muito lento e muito prudente. Eles cercam por todos os lados o proletariado de uma atmosfera pequeno-burguesa, que embebe e corrompe o proletariado, suscita constantemente no seio do proletariado reincidências de defeitos próprios da pequena burguesia: falta de carácter, dispersão, individualismo, oscilação entre entusiasmo e abatimento. Para resistir a isto, para permitir que o proletariado exerça acertada, eficaz e vitoriosamente o seu papel de organizador (que é o seu papel principal), o partido político do proletariado deve fazer reinar no seu seio uma centralização e uma disciplina rigorosas. A ditadura do proletariado é uma luta tenaz, cruel ou não, violenta e pacífica, militar e económica, pedagógica e administrativa, contra as forças e as tradições da velha sociedade. A força do costume de milhões e dezenas de milhões de homens é a força mais terrível. Sem um partido de ferro, temperado na luta, sem um partido que goze da confiança de tudo o que haja de honrado dentro da classe, sem um partido que saiba sentir o estado de espírito das massas e influir sobre ele, é impossível levar a cabo com êxito esta luta. É mil vezes mais fácil vencer a grande burguesia centralizada do que “vencer” milhões e milhões de pequenos proprietários; estes, com a sua actividade corruptora quotidiana, prosaica, invisível, imperceptível, produzem os mesmos resultados que são necessários à burguesia, que restauram a burguesia. Quem enfraqueça, por pouco que seja, a disciplina de ferro do partido do proletariado (sobretudo durante a sua ditadura) ajuda, na realidade, a burguesia contra o proletariado.
Ao lado da questão dos chefes-partido-classe-massas, é preciso exprimir a dos sindicatos “reaccionários”. Mas, antes, e a fim de facilitar a compreensão da conclusão, tomarei a liberdade de fazer algumas observações baseadas na experiência do nosso Partido. Nele, sempre houve ataques contra a “ditadura dos chefes”. Que eu lembre, a primeira vez foi em 1895, quando o partido ainda não existia formalmente, mas já começava a constituir-se em Petersburgo o grupo central que iria encarregar-se da direcção dos grupos distritais. No IX Congresso do nosso Partido (Abril de 1920) houve uma pequena oposição que também se pronunciou contra a “ditadura dos chefes”, a “oligarquia”, etc. Não há, portanto, nada de surpreendente, nada de novo, nada de alarmante na “doença infantil” do “comunismo de esquerda” entre os alemães. Essa doença manifesta-se sem perigo e, uma vez curada, chega mesmo a fortalecer o organismo. Por outro lado, a rápida alternância entre trabalho legal e ilegal, que implica a necessidade de “ocultar”, de envolver com singular segredo o Estado-Maior, os chefes, originou, algumas vezes, fenómenos profundamente perigosos. O pior deles foi a infiltração no Comité Central bolchevique, em 1912, de um agente provocador – Malinovski. Ele denunciou dezenas e dezenas dos mais abnegados e excelentes camaradas, causando-lhes a condenação a trabalhos forçados e provocando a morte de muitos deles. E se não causou maiores danos foi porque tínhamos estabelecido adequadamente a correlação entre os trabalhos legal e ilegal. Para ganhar a nossa confiança, Malinovski, como membro do Comité Central do Partido e deputado à Duma, teve de ajudar-nos a organizar a publicação de diários legais que, inclusive sob o czarismo, souberam lutar contra o oportunismo dos mencheviques e difundir, de forma velada, os princípios fundamentais do bolchevismo. Com uma das mãos, Malinovski enviava para a prisão e para a morte dezenas e dezenas dos melhores combatentes do bolchevismo; com a outra via-se obrigado a contribuir para a educação de dezenas e dezenas de milhares de novos bolcheviques, através da imprensa legal. Sobre este facto, deveriam reflectir cuidadosamente os camaradas alemães (e também os ingleses, americanos, franceses e italianos) que têm diante de si a tarefa de aprender a realizar um trabalho revolucionário nos sindicatos “reaccionários”[2].
Em muitos países, até nos mais adiantados, a burguesia infiltra e continuará infiltrando, sem a menor dúvida, agentes provocadores nos Partidos Comunistas. Um dos meios de lutar contra esse perigo consiste em saber combinar acertadamente o trabalho ilegal com o legal.
Os “esquerdistas” alemães julgam poder responder sem hesitar a esta pergunta pela negativa. Segundo eles, as declamações e invectivas contra os sindicatos “reaccionários” e “contra-revolucionários” são suficientes (K. Horner afirma-o com uma “seriedade” muito particular e idiota) para “demonstrar” a inutilidade e até a inadmissibilidade dos revolucionários, os comunistas, militarem nos sindicatos amarelos, contra-revolucionários, os sindicatos dos social-chauvinistas, dos conciliadores, dos Legien.
Mas, por mais convencidos que estejam os “esquerdistas” alemães do carácter revolucionário desta táctica, ela está na realidade fundamentalmente errada e nada contém a não ser frases vazias.
Para melhor o demonstrar, partirei da nossa própria experiência, de acordo com o plano geral deste artigo que tem por objectivo aplicar à Europa ocidental o que a história e a táctica actual do bolchevismo têm de aplicável, importante e obrigatório em toda a parte.
A relação entre os dirigentes, o partido, a classe e as massas e, por outro lado, a atitude da ditadura do proletariado e do seu partido relativamente aos sindicatos, apresentam-se hoje aqui, concretamente, da seguinte maneira: a ditadura é exercida pelo proletariado organizado nos Sovietes e dirigida pelo Partido comunista bolchevique, que, segundo os dados do último congresso (Abril de 1920), conta com 611 000 membros. O número de filiados oscilou muito, antes e depois da Revolução de Outubro; foi mesmo consideravelmente menor em 1918 e em 1919. Receamos ampliar excessivamente o partido, pois os arrivistas e aventureiros – que não merecem senão a execução – procuram esforçadamente introduzir-se nas fileiras do partido governamental. A última vez que abrimos largamente as portas do partido – exclusivamente para operários e camponeses – foi na altura (Inverno de 1919) em que Joudenitch se encontrava a algumas verstas de Petrogrado e Dénikine em Orel (a 350 verstas de Moscovo); isto é, num momento em que a República dos Sovietes era ameaçada por um perigo terrível, um perigo de morte, e em que os aventureiros, os arrivistas, os oportunistas e, de uma maneira geral, os elementos instáveis não podiam, de modo nenhum, contar com uma carreira vantajosa aderindo aos comunistas (mas sim com a forca e as torturas). O partido, que convoca congressos anuais (no último, a representação era de um delegado por 1000 membros), é dirigido por um Comité central de 19 membros, eleito no congresso; o trabalho corrente está confiado, em Moscovo, a organismos ainda mais restritos chamados “Orgbureau” (Secretariado de organização) e “Politbureau” (Secretariado político), eleitos em assembleia plenária do Comité central. Em cada um desses organismos participam 5 membros do CC. Daí resulta, pois, a mais autêntica “oligarquia”. Nenhuma questão importante, política ou de organização, é resolvida por uma instituição estatal na nossa República sem as directivas do Comité central do partido.
No seu trabalho, o partido apoia-se directamente nos sindicatos que contam actualmente, segundo os dados do último congresso (Abril de 1920), com mais de quatro milhões de membros e, formalmente, são sem-partido. Efectivamente, todas as instituições dirigentes da grande maioria dos sindicatos, e sobretudo, naturalmente, o centro ou o Secretariado dos sindicatos da Rússia (Conselho central dos sindicatos da Rússia) são compostos por comunistas e aplicam todas as directivas do partido. Obtém-se, em suma, um aparelho proletário formalmente não comunista, flexível e relativamente amplo, muito poderoso, por meio do qual o partido está estreitamente ligado à classe e às massas, e através do qual se exerce a ditadura da classe sob a direcção do partido. É claro que nos teria sido impossível governar o país e exercer a ditadura, já não digo em dois anos e meio, mas mesmo em dois meses e meio, se não houvesse a mais estreita ligação com os sindicatos, seu apoio enérgico, o seu abnegadíssimo trabalho não só na construção económica, mas também na organização militar. Como se pode compreender, esta ligação muito estreita, implica, na prática, um trabalho de agitação e propaganda bastante complexo e variado, reuniões oportunas e frequentes, não só com os dirigentes, mas, de uma maneira geral, com os militantes influentes nos sindicatos; uma luta decidida contra os mencheviques que contam, até hoje, com um certo número de adeptos, – bem pequeno, é certo – a quem ensinam todas as maquinações da contra-revolução, desde a defesa ideológica da democracia (burguesa) e a pregação da “independência” dos sindicatos (independência em relação ao poder do Estado proletário!) até à sabotagem da disciplina proletária, etc., etc.
Reconhecemos que a ligação às “massas” através dos sindicatos é insuficiente. Durante a revolução, a prática criou, no nosso pais, uma instituição que nós procuramos por todos os meios manter, desenvolver e aumentar: as conferências de operários e camponeses sem-partido, que nos permitem observar o estado de espírito das massas, aproximarmo-nos delas, reagir aos seus pedidos, chamar os seus melhores elementos para os postos de Estado, etc. Um recente decreto sobre a transformação do Comissariado do povo para o controlo do Estado em “Inspecção Operária e Camponesa”, dá a essas conferências sem-partido o direito de eleger membros para os serviços do controlo do Estado, que se encarregarão das mais diversas revisões, etc.
Além disso, como é evidente, o trabalho do partido á feito pelos Sovietes, que agrupam as massas trabalhadoras, sem distinção de profissão. Os congressos distritais dos Sovietes representam uma instituição democrática como nunca se viu nas mais democráticas das repúblicas democráticas do mundo burguês; através desses congressos (em que o partido se esforça por seguir os trabalhos com grande atenção) assim como delegando constantemente operários conscientes para as funções mais diversas no campo – o proletariado cumpre o seu papel de dirigente relativamente ao campesinato; exerce-se a ditadura do proletariado urbano, a luta sistemática contra os camponeses ricos, burgueses, exploradores, especuladores, etc..
Esse é o mecanismo geral do poder de Estado proletário considerado “de cima”, do ponto de vista da aplicação prática da ditadura. Esperamos que o leitor compreenda porque é que ao bolchevique russo, que conhece este mecanismo, que o viu nascer dos pequenos círculos ilegais e clandestinos, desenvolver-se durante 25 anos, todas estas discussões sobre a ditadura “de cima” ou “de baixo”, dos dirigentes ou das massas, etc., não podem deixar de parecer ridículas e de absurda infantilidade como o seria uma discussão sobre a questão de saber o que é mais útil ao homem, a perna esquerda ou o braço direito.
Também não nos parecem de menos absurda infantilidade e menos ridículas as graves dissertações absolutamente sábias, e terrivelmente revolucionárias dos “esquerdistas” alemães que afirmam que os comunistas não podem nem devem militar nos sindicatos reaccionários, que se pode renunciar a este trabalho, que é preciso abandonar os sindicatos e organizar, urgentemente, uma “união operária” completamente nova, completamente pura, inventada por comunistas muito simpáticos (e, na sua maioria, sem dúvida, muito jovens), etc., etc..
O capitalismo lega inevitavelmente ao socialismo, por um lado, as velhas distinções profissionais e corporativas que se estabeleceram no decorrer dos séculos entre os operários, e, por outro lado, os sindicatos que não podem transformar-se e não se transformarão senão muito lentamente, durante anos e anos, em sindicatos de indústria mais amplos, menos corporativos (englobando indústrias inteiras e não só corporações, ofícios e profissões). Por intermédio destes sindicatos de indústria, suprimir-se-á mais tarde a divisão do trabalho entre os homens; passar-se-á à educação, à instrução e à formação de homens universalmente desenvolvidos, universalmente preparados, capazes de fazer tudo. É para aí que caminha, deve caminhar e caminhará o comunismo, mas só ao fim de muitos anos. Tentar actualmente antecipar na prática esse futuro resultado do comunismo completamente desenvolvido, solidamente constituído, no apogeu da sua maturidade, é querer ensinar matemáticas superiores a uma criança de quatro anos.
Podemos (e devemos) empreender a construção do socialismo, não com material humano imaginário ou especialmente criado por nós, mas com o que capitalismo nos deixou. Isso é muito difícil, é certo, mas, qualquer outra maneira de abordar o problema é tão pouco séria que nem merece que se fale dela.
Os sindicatos representaram um progresso gigantesco da classe operária nos primeiros tempos do desenvolvimento do capitalismo, pois significaram a passagem do estado de dispersão e de impotência dos operários a embriões de organização de classe. Quando começou a desenvolver-se a forma suprema de união de classe dos proletários, o partido revolucionário do proletariado (que não merecerá este nome enquanto não souber ligar os dirigentes, a classe e as massas num todo homogéneo, indissolúvel), os sindicatos manifestaram inevitavelmente alguns traços reaccionários, uma certa estreiteza corporativa, uma certa tendência para o apoliticismo, um certo espírito de rotina, etc.. Porém, o desenvolvimento do proletariado não se faz em nenhuma parte do mundo, nem podia fazer-se de outra maneira, senão por intermédio dos sindicatos, pela sua acção conjunta com o partido da classe operária. A conquista do poder político pelo proletariado é, para o proletariado tomado como classe, um grande passo em frente e o partido deve também, mais ainda do que no passado, à maneira nova e não só à antiga, educar os sindicatos, dirigi-los, sem esquecer, contudo, que estes são e serão por muito tempo a indispensável “escola do comunismo”, a escola preparatória dos proletários para a aplicação da sua ditadura, a associação indispensável dos operários para a passagem gradual da gestão de toda a economia do país, primeiro para as mãos da classe operária (e não para estas ou aquelas profissões) e, depois, para as mãos de todos os trabalhadores.
Sob a ditadura do proletariado, é inevitável, neste sentido, a existência de um certo “espirito reaccionário” nos sindicatos. Não o compreender, é dar prova de uma completa incompreensão das condições essenciais da transição do capitalismo ao socialismo. Recear este “espírito reaccionário”, tentar iludi-lo, passar por cima, é cometer um grave erro, pois é ter medo de assumir este papel de vanguarda do proletariado, que consiste em instruir, esclarecer, educar, chamar para uma vida nova as camadas e as massas mais atrasadas da classe operária e do campesinato. Por outro lado, adiar a ditadura do proletariado até não haver nenhum operário de estreito espírito profissional, nenhum operário imbuído de preconceitos corporativos e trade-unionistas, seria um erro ainda mais grave. A arte do político (e a justa compreensão dos seus deveres por um comunista) é apreciar correctamente as condições e o momento em que a vanguarda do proletariado estará pronta a tomar o poder, a beneficiar, durante e depois, de um apoio suficiente de camadas suficientemente amplas da classe operária e das massas trabalhadoras não proletárias; em que poderá, uma vez obtido esse apoio, manter, consolidar e ampliar a sua dominação, educando, instruindo, atraindo para si massas cada vez maiores de trabalhadores.
Prossigamos. Nos países mais avançados que a Rússia manifestou-se, e tinha que, incontestavelmente, se manifestar, com muito mais força que entre nós, um certo espírito reaccionário dos sindicatos. Os nossos mencheviques tinham (e têm ainda em parte, num pequeno número de sindicatos) apoio nos sindicatos, precisamente graças a esta estreiteza corporativa, a este egoísmo profissional, e ao oportunismo. Os mencheviques do Ocidente “entrincheiraram-se” muito mais solidamente nos sindicatos, e surgiu aí uma “aristocracia operária” corporativa, mesquinha, egoísta, sem escrúpulos, ávida, pequeno-burguesa, de espírito imperialista, subornada e corrompida pelo imperialismo, muito mais poderosa que no nosso país. Isto é indiscutível. Na Europa ocidental, a luta contra os Gompers, contra os senhores Jouhaux, Henderson, Merrheim, Legien e C.ª, é muito mais difícil que a luta contra os nossos mencheviques que representam um tipo político e social perfeitamente homogéneo. Esta luta deve ser implacável e é absolutamente necessário desenvolvê-la, como nós o fizemos, até desacreditar completamente e expulsar dos sindicatos, todos os chefes incorrigíveis do oportunismo e do social-chauvinismo. É impossível conquistar o poder político (e não é preciso experimentar tomar o poder político) antes desta luta ter atingido um certo grau; nos diferentes países e nas diversas condições, este “certo grau” não é o mesmo, e só dirigentes políticos do proletariado, sensatos, experimentados e competentes, podem determiná-lo com acerto em cada país. (Na Rússia a prova do sucesso nesta luta foi-nos particularmente dada pelas eleições à Assembleia Constituinte, em Novembro de 1917, alguns dias depois da Revolução proletária de 25 de Outubro de 1917. Nessas eleições, os mencheviques foram completamente derrotados, tendo obtido apenas 0,7milhões de votos – 1,4 milhões incluindo os da Transcaucásia – contra os 9 milhões dos bolcheviques. Ver a este respeito o meu artigo As eleições para a Assembleia Constituinte e a ditadura do proletariado no número 7/8 de A Internacional Comunista)[3].
Mas sustentamos a luta contra a “aristocracia operária” em nome das massas operárias e para pô-las ao nosso lado; combatemos os chefes oportunistas e social-chauvinistas para conquistar a classe operária. Seria absurdo desconhecer esta verdade elementar e evidente para todos. Ora, é precisamente esse, o erro que cometem os comunistas alemães “de esquerda”, que, do espírito reaccionário e contra-revolucionário dos centros dirigentes sindicais, saltam para a conclusão de que...é necessário sair dos sindicatos!! recusam aí trabalharem!! e queriam criar novas formas de organização inventadas por eles!! Asneira imperdoável que equivale a um grande serviço prestado pelos comunistas à burguesia. Porque os nossos mencheviques, assim como todos os líderes sindicais oportunistas, social-chauvinistas e kautskistas, não são mais do que “agentes da burguesia no seio do movimento operário” (o que sempre dissemos dos mencheviques) ou os “tenentes laborais da classe capitalista” (labour lieutenants of the capitalist class), segundo a magnífica expressão, profundamente correcta, dos discípulos americanos de Daniel de León. Não trabalhar nos sindicatos reaccionários é abandonar as massas operárias insuficientemente desenvolvidas ou atrasadas pela influência dos líderes reaccionários, dos agentes da burguesia, da aristocracia operária ou dos “operários aburguesados” (cf. a este respeito a carta de Engels e Marx sobre os operários ingleses, 1858).
A despropositada “teoria” da não-participação dos comunistas nos sindicatos reaccionários mostra, claramente, com que leviandade, estes comunistas “de esquerda” encaram a questão da influência nas “massas”, e com que abuso utilizam a palavra “massas” nos seus apelos. Para saber ajudar as “massas” e conquistar a sua simpatia, adesão e apoio, é preciso não temer as dificuldades, os enganos, as armadilhas, os insultos, as perseguições pelos “chefes” (que, sendo oportunistas e social-chauvinistas, estão, na maior parte dos casos, ligados – directa ou indirectamente – à burguesia e à policia) e trabalhar precisamente aonde estiverem as massas. É preciso saber sofrer todos os sacrifícios e superar os maiores obstáculos para poder fazer um trabalho de agitação e propaganda metódico com perseverança, pertinácia e paciência justamente nas instituições, sociedades e organizações – mesmo nas mais reaccionárias – por toda a parte onde haja massas proletárias ou semi-proletárias. Ora os sindicatos e as cooperativas operárias (estas pelo menos em certos casos) são precisamente organizações onde se encontram as massas. Na Inglaterra, segundo as informações de um jornal sueco Folkets Dagblad Politiken[4] (de 10 de Março de 1920), o número e efectivos das trade-unions passou, do fim de 1917 ao fim de 1918, de 5 500 000 para 6 600 000, isto é aumentou 19%. No fim de 1919 aumentou para 7 500 000. Não tenho à mão os números correspondentes à França e à Alemanha; mas factos absolutamente indiscutíveis e conhecidos de todos atestam que também nestes países se verifica um sensível aumento do número de sindicalizados.
Tais factos provam com toda a evidência o que milhares de outros sintomas confirmam: o crescimento da consciência e a tendência cada vez maior para a organização que se manifestam justamente nas “camadas inferiores” das massas proletárias, entre os elementos atrasados. Na Inglaterra, França e Alemanha, milhões de operários passam pela primeira vez da total desorganização à forma de organização elementar, inferior, mais simples e mais acessível (para os que ainda estão imbuídos de preconceitos democrático-burgueses) isto é: os sindicatos. E os Comunistas de Esquerda, revolucionários mas pouco razoáveis, estacionam a gritar “as massas”, “as massas”!, e recusam-se a militar no seio dos sindicatos!! desculpando-se com o seu “espírito reaccionário”!! e inventam uma “União Operária” completamente nova, pura, virgem de preconceitos democrático-burgueses, dos pecados corporativos e estritamente profissionais, união essa que, segundo dizem, será (será!) ampla e para adesão da qual é preciso simplesmente (simplesmente!) “reconhecer o sistema dos Sovietes e a ditadura” (ver mais atrás a citação)!!
Seria impossível conceber maior disparate, maior prejuízo causado à revolução pelos revolucionários “de esquerda”! Se na Rússia, depois de dois anos e meio de vitórias sem precedente sobre a burguesia da Rússia e da Entente, estabelecêssemos actualmente, como condição de entrada nos sindicatos o “reconhecimento da ditadura”, cometeríamos uma asneira, traríamos prejuízo à nossa influência sobre as massas e faríamos o jogo dos mencheviques. Porque a tarefa dos comunistas é em saber convencer os elementos atrasados, saber trabalhar entre eles e não em isolar-se deles com palavras-de-ordem “de esquerda” de invenção ingénua.
Não há dúvida nenhuma que os senhores Gompers, Henderson, Jouhaux e Legien[5] ficarão muito reconhecidos a esses revolucionários “de esquerda” que, como os da oposição “de princípio” alemã (Deus nos guarde de semelhantes “princípios”!) ou como alguns revolucionários americanos dos “Operários Industriais do Mundo”[6], nos Estados Unidos, pregam o abandono dos sindicatos reaccionários e recusam-se a trabalhar aí. Não duvidamos de que os senhores “leaders” do oportunismo recorrerão a todos os artifícios da diplomacia burguesa, à ajuda dos governos burgueses, ao clero, à policia e aos tribunais, para impedir a entrada dos comunistas nos sindicatos, expulsá-los de lá por todos os meios, tornar-lhes o trabalho nos sindicatos o mais desagradável possível, ultrajá-los, cercá-los e persegui-los. É preciso saber resistir a tudo isso, estar disposto a todos os sacrifícios, usar mesmo – em caso de necessidade – de todos os estratagemas, artifícios e processos ilegais, evasivas e subterfúgios, com o único objectivo de entrar nos sindicatos, permanecer neles e realizar aí, custe o que custar, a acção comunista. Sob o czarismo, até 1905, não tivemos nenhuma “possibilidade legal”; mas quando o polícia Zoubatov organizava assembleias ultra-reaccionárias de operários e associações operárias para referenciar e combater os revolucionários, nós enviávamos a essas assembleias e para essas associações, membros do nosso Partido (entre eles, recordo-me pessoalmente do operário de Petersburgo, Babouchkine, notável militante, fuzilado em 1906 pelos generais do czar), que estabeleciam a ligação com as massas, conseguiam realizar a sua agitação e arrancavam os operários da influência dos homens de Zoubatov. Não há dúvida que é mais difícil actuar assim nos países da Europa Ocidental, particularmente imbuídos de preconceitos legalistas, constitucionais e democrático-burgueses muito enraizados. Contudo pode-se e deve-se fazê-lo, e fazê-lo sistematicamente.
O Comité Executivo da III Internacional deve, na minha opinião, condenar abertamente e propor ao próximo congresso da Internacional Comunista que condene, de um modo geral, a política de não-participação nos sindicatos reaccionários (explicando pormenorizadamente o que uma tal não-participação tem de errado e de infinitamente prejudicial à causa da revolução proletária) e, particularmente, a linha de conduta de certos membros do Partido Comunista Holandês, que – directamente, abertamente ou não, na totalidade ou em parte tanto faz) sustentaram esta falsa política. A III Internacional deve renunciar à táctica da II, e não evitar as questões penosas, não as encobrir mas pô-las frontalmente. Dissemos, abertamente, toda a verdade aos “independentes” (ao Partido Social-Democrata Independente da Alemanha); é preciso dizê-la, do mesmo modo, aos comunistas “de esquerda”.
[1] No Diário Operário Comunista 12 (n.º. 32, Hamburgo, 7 de Fevereiro de 1920), Karl Erler, num artigo intitulado A dissolução do Partido, escreve: "A classe operária não pode destruir o Estado burguês sem aniquilar a democracia burguesa, e não pode aniquilar a democracia burguesa sem destruir os partidos “.
As mais confusas cabeças dos sindicalistas e anarquistas latinos podem sentir-se "satisfeitas": alguns alemães importantes que pelos vistos, se consideram marxistas (em seus artigos no jornal citado, K. Erler e K. Horner demonstram serenamente que se consideram firmes marxistas, apesar de dizerem de modo singularmente ridículo tolices inacreditáveis, manifestando assim não conhecer o ABC do marxismo) chegam a afirmar coisas completamente absurdas. Por si só, o reconhecimento do marxismo não exime ninguém dos erros. Os russos bem sabem disso, porque o marxismo, com muita frequência, esteve “em moda" em nosso pais. '(Nota do autor)
[2] Malinovski esteve preso na Alemanha. Quando regressou à Rússia, já no poder bolchevique, foi imediatamente entregue aos tribunais e fuzilado pelos nossos operários. Os mencheviques criticaram-nos acerbamente pelo erro de ter abrigado um, provocador no Comité Central do nosso Partido, mas, quando no período de Kerenskí exigimos que fosse detido e julgado o presidente da Duma, Rodzianko, que desde antes da guerra sabia que Malinovski era um provocador e não comunicara o facto aos deputados "trudoviques" (trabalhistas) e operários da Duma, nem os mencheviques nem os socialistas revolucionários, que formavam o governo de Kerenski, apoiaram a nossa exigência, e Rodzianko ficou em liberdade e pode unir-se a Denikin sem o menor obstáculo. (Nota do autor)
[3] A Internacional Comunista, revista, órgão do Comité Executivo d Internacional Comunista, publicada em russo, alemão, francês, inglês, espanhol e chinês, de 1919 até 1943.
[4] Diário Popular Político, órgão dos social-democratas suecos, que, em 1917, formaram o Partido Social-Democrata de Esquerda da Suécia; começou a publicar-se em Estocolmo em Abril de 1916. Em 1921, o Partido Social-Democrata de Esquerda aderiu ao Komintern e tomou o nome de Partido Comunista. Depois da cisão operada na seio do Partido Comunista da Suécia em Outubro de 1929, o jornal passou para as mãos da sua ala direita. Deixou de ser publicado em Maio de 1945.
[5]Os Gompers, os Henderson, os Johaux e os Legien nada mais são que os Zoubatov, diferenciando-se dele por seus trajes europeus, o porte elegante e refinados processos aparentemente democráticos e civilizados que empregam para realizar a sua abominável política. (Nota do autor)
[6] Operários Industriais do Mundo [Industrial Workers of the World], união profissional dos operários dos Estados Unidos; foi fundada em 1905, reunia principalmente os operários não-qualificados e mal remunerados das diversas profissões. Em 1905-1907, quando o movimento grevista americano conheceu um recrescimento de actividade sob a influência da revolução na Rússia, os Industrial Workers of the World organizaram grande número de greves de massas que foram vitoriosas, lutaram contra a política de colaboração das classes, praticada pelos chefes reformistas da Federação Americana do Trabalho e pelos socialistas de direita. Durante a primeira guerra imperialista, os Industrial Workers of the World participaram na organização de manifestações contra a guerra da classe operária americana. Alguns chefes dos Industrial Workers of the World (W. Heywood e outros) saudaram a Revolução Socialista de Outubro e aderiram ao partido Comunista dos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, a actividade desta organização teve uma tonalidade anarco-sindicalista: não reconhecia a necessidade para a classe operária de conduzir a luta política, negava o papel dirigente do Partido, a ditadura do proletariado, não queria trabalhar entre os membros dos sindicatos aderindo à Federação Americana do Trabalho. Os chefes anarco-sindicalistas da organização, aproveitando o facto de os seus numerosos chefes revolucionários se encontrarem presos, rejeitaram, apesar da vontade da massa dos sindicalizados, o apelo do Comité executivo da Internacional Comunista, dirigido à organização em 1920, convidando-a a aderir ao Komintern. A política oportunista da direcção dos Industrial Workers of the World tornou-a uma organização sectária que perdeu muito depressa toda a influência no movimento operário.
(início)
Anos de preparação da revolução (1903/1905). Prenúncio de grande tempestade em toda parte. Fermentação e preparativos em todas as classes da sociedade. No estrangeiro, a imprensa dos emigrados expõe teoricamente todas as questões fundamentais da revolução. Representantes das três classes fundamentais, das três correntes políticas principais – a liberal-burguesa, a democrático-pequeno-burguesa (encoberta pelos rótulos de “social-democrática” e “socialista revolucionária”) e a proletária revolucionária – através de uma luta encarniçada de concepções programáticas e tácticas, prenunciam e preparam a futura luta de classes aberta. Todas as questões que motivaram a luta armada das massas em 1905/1907 e em 1917/1920 podem (e devem) ser encontradas, em forma embrionária, na imprensa daquela época. Entre essas três grandes áreas existia, é claro, uma série de formações intermédias, de transição, híbridas. Ou melhor: é na luta nos órgãos da imprensa, que os partidos políticos, as fracções e os grupos cristalizam as tendências ideológicas e políticas com carácter realmente de classe, que cada uma das classes forja para si a adequada arma ideológica e política para as batalhas iminentes.
Anos de revolução (1905/1907). Todas as classes agem abertamente. Todas as concepções programáticas e tácticas são testadas pela acção das massas. Luta grevista sem precedentes no mundo inteiro pela sua amplitude e dureza. Escalada da greve económica para a greve política e da greve política para a insurreição. As relações de liderança entre o proletariado dirigente e o campesinato vacilante e instável são testadas na prática. Nascimento, no processo espontâneo da luta, da forma soviética de organização. As controvérsias de então sobre o papel dos sovietes são uma antecipação da grande luta de 1917/1920. Sucessão de formas de luta parlamentares e não parlamentares, de tácticas de boicote ao parlamento e de participação no mesmo, e de formas legais e ilegais de luta, assim como as relações recíprocas e as ligações existentes entre elas – tudo isto marcado por uma extraordinária riqueza de conteúdo. Cada mês deste período equivale, do ponto de vista da aprendizagem dos fundamentos da ciência política – das massas e chefes, das classes e partidos –, a um ano de desenvolvimento “pacífico” e “constitucional”. Sem o “ensaio geral” de 1905, a vitória da Revolução de Outubro de 1917 teria sido impossível.
Anos de reacção (1907/1910). O czarismo ganhou. Foram esmagados todos os partidos revolucionários e da oposição. Desânimo, desmoralização, cisões, discórdia, deserções, pornografia em vez de política. Fortalecimento da tendência para o idealismo filosófico, o misticismo torna-se o disfarce de estado de espírito contra-revolucionário. Todavia, ao mesmo tempo, é esta grande derrota que ensina aos partidos revolucionários e à classe revolucionária uma verdadeira lição muito proveitosa, uma lição de dialéctica histórica, a da compreensão, da habilidade e da arte na condução da luta política. Os verdadeiros amigos manifestam-se na desgraça. Os exércitos derrotados passam por uma boa escola.
O czarismo vitorioso vê-se obrigado a destruir apressadamente as remanescências do regime pré-burguês e patriarcal na Rússia. O desenvolvimento burguês do país progride com notável rapidez. As ilusões à margem e acima das classes, as ilusões sobre a possibilidade de evitar o capitalismo dissipam-se. A luta de classes manifesta-se de modo absolutamente novo e com maior clareza.
Os partidos revolucionários têm de completar a sua edução. Aprenderam a atacar. Agora têm que compreender que essa ciência deve ser completada pela de saber recuar ordenadamente. É preciso compreender – e a classe revolucionária compreende-o pela sua própria amarga experiência – que não se pode triunfar sem saber atacar e como retirar correctamente. De todos os partidos revolucionários e da oposição derrotados, foram os bolcheviques que recuaram com maior ordem, com menores perdas no seu “exército”, conservando melhor o núcleo central, com cisões menos profundas e irreparáveis, menos desmoralização e com maior capacidade para reiniciar a acção de modo mais amplamente correcto e vigoroso. E se os bolcheviques conseguiram tal resultado foi exclusivamente porque desmascararam impiedosamente e expulsaram os revolucionários de boca, obstinados em não compreender que é necessário recuar, que é preciso saber recuar, que é necessário aprender a actuar legalmente nos parlamentos mais reaccionários e nas organizações sindicais, cooperativas, nas organizações de socorros mútuos e outras semelhantes, por mais reaccionárias que sejam.
Anos de ascenso (1910/1914). A princípio, o ascenso foi incrivelmente lento, em seguida, depois dos acontecimentos do Lena em 1912, um pouco mais rápido. Vencendo dificuldades inauditas, os bolcheviques arrojaram os mencheviques, cujo papel como agentes da burguesia no movimento operário foi admiravelmente compreendido depois de 1905 por toda a burguesia e aos quais, por isso mesmo, ela apoiou de mil maneiras contra os bolcheviques. Mas estes nunca teriam conseguido isso, se não tivessem aplicado uma táctica justa, combinando o trabalho ilegal com a utilização obrigatória das “oportunidades legais”. Na mais reaccionária das Dumas, os bolcheviques conquistaram toda a bancada operária.
Primeira guerra imperialista mundial (1914/1917). O parlamentarismo legal, com um “parlamento” ultra-reaccionário, presta os mais úteis serviços ao partido do proletariado revolucionário, aos bolcheviques. Os deputados bolcheviques são deportados para a Sibéria. Todos os matizes das concepções do social-imperialismo, do social-chauvinismo, do social-patriotismo, do internacionalismo inconsequente e do consequente, do pacifismo e o repúdio revolucionário das ilusões pacifistas, encontram a mais plena expressão na imprensa dos emigrados. Os imbecis sabichões e as velhas comadres da II Internacional, que franziam o cenho com desdém e arrogância ante a abundância de “fracções” no socialismo russo e ante a luta encarniçada que havia entre elas, quando a guerra suprimiu em todos os países avançados a tão alardeada “legalidade”, foram incapazes de organizar, ainda que apenas aproximadamente, um intercâmbio livre (ilegal) de ideias e uma elaboração livre (ilegal) de concepções justas, como os revolucionários russos organizaram na Suíça e noutros países. É precisamente por isso que tanto os social-patriotas declarados como os “kautskianos” de todos os países se revelaram os piores traidores do proletariado. E se o bolchevismo foi capaz de triunfar em 1917/1920, uma das causas fundamentais dessa vitória foi que desmascarou impiedosamente, já desde fins de 1914, a vileza, a infâmia e a abjecção do social-chauvinismo e do “kautskismo” (ao qual correspondem o longuetismo na França, as ideias dos chefes do Partido Trabalhista Independentee dos fabianos na Inglaterra, de Turati na Itália, etc.) e as massas foram-se convencendo cada vez mais, por experiência própria, da justeza das concepções dos bolcheviques.
Segunda revolução russa (Fevereiro-Outubro de 1917). O incrível grau de decrepitude e obsolescência do czarismo criou contra ele (com ajuda dos reveses e sofrimentos de uma guerra infinitamente penosa) uma tremenda força destruidora. Em poucos dias, a Rússia converteu-se numa república burguesa democrática, mais livre – em condições de guerra – do que qualquer outro país. Os chefes dos partidos da oposição e revolucionários começaram a formar governo como na maior parte das repúblicas “puramente parlamentares”, e o título de chefe de um partido de oposição no parlamento, mesmo no mais reaccionário jamais havido, facilitou o papel ulterior como chefe na revolução
Em poucas semanas, os mencheviques e os “socialistas revolucionários” assimilaram com perfeição todos os métodos e processos, argumentos e sofismas dos heróis europeus da II Internacional, dos ministerialistas e de outro lixo oportunista. Tudo que hoje lemos sobre os Scheidemann e os Noske, Kautsky e Hilferding, Renner e Austerlitz, Otto Bauer e Fritz Adler, Turati e Longuet, sobre os fabianos e os chefes do Partido Trabalhista Independente da Inglaterra nos parece (e é, na realidade) uma repetição monótona de um assunto antigo e conhecido. Já vimos tudo isso no exemplo dos mencheviques. A História pregou uma partida, obrigando os oportunistas de um país atrasado a manifestarem-se antes dos oportunistas de uma série de países avançados.
Se todos os heróis da II Internacional fracassaram e envergonham-se sobre a questão do papel e da importância dos sovietes e do Estado soviético, se eles se cobriram de ignomínia com singular “brilhantismo” e se os chefes dos três grandes partidos que se separaram agora da II Internacional (Partido Social-Democrata Independente da Alemanha, Partido Longuetista da França e Partido Trabalhista Independente da Inglaterra) atolaram-se nessa questão, se todos eles se tornaram escravos dos preconceitos da democracia pequeno-burguesa (bem no espírito dos pequeno-burgueses de 1848, que se chamavam “social-democratas”), também é verdade que já vimos tudo isso no exemplo dos mencheviques. A história fez esse gracejo: os Sovietes surgiram na Rússia em 1905, foram falsificados em Fevereiro-Outubro de 1917 pelos mencheviques – que fracassaram por não terem compreendido o papel e a importância dos Sovietes – e hoje emergiu no mundo inteiro a ideia do Poder Soviético, ideia que se difunde com uma velocidade extraordinária entre o proletariado de todos os países. Enquanto isso, os antigos heróis da II Internacional fracassam em toda parte, por não terem sabido compreender, do mesmo modo que os nossos mencheviques, o papel e a importância dos Sovietes. A experiência demonstrou que, em algumas questões essenciais da revolução proletária, todos os países terão de fazer, inevitavelmente, o que a Rússia tem feito.
Contrariamente às opiniões que não raro se expendem agora na Europa e na América, os bolcheviques começaram com muita prudência e não prepararam de modo algum com facilidade a sua vitoriosa luta contra a república burguesa parlamentar (de facto) e contra os mencheviques. No início do período citado, não conclamámos ao derrube do governo, mas explicámos a impossibilidade de fazê-lo sem modificar previamente a composição e o estado de espírito dos Sovietes. Não proclamámos o boicote ao parlamento burguês, a Assembleia Constituinte, mas, pelo contrário, dissemos, e a partir da Conferência Abril (1917) do nosso partido passámos a dizê-lo oficialmente em nome do partido, que uma república burguesa com uma Constituinte era preferível à mesma república sem Constituinte, mas que a república “operário-camponesa” soviética é melhor que qualquer república democrático-burguesa, parlamentar. Sem essa preparação prudente, completa, sensata e prolongada não teríamos podido alcançar nem manter a vitória de Outubro de 1917.
Em primeiro lugar, e acima de tudo, na luta contra o oportunismo que, em 1914, se transformou definitivamente em social-chauvinismo e se bandeou definitivamente para o lado da burguesia contra o proletariado. Foi, naturalmente, o principal inimigo do bolchevismo dentro do movimento operário. Este continua a ser o principal inimigo numa escala internacional. O bolchevismo prestou e presta a este inimigo a maior atenção. Esse aspecto da actividade dos bolcheviques já é muito bem conhecido no estrangeiro.
Quanto a outro inimigo do bolchevismo no movimento operário, a coisa já é bem diferente. Pouco se sabe, no estrangeiro, que o bolchevismo cresceu, formou-se e temperou-se, durante muitos anos, na luta contra o revolucionarismo pequeno-burguês, parecido com o anarquismo, ou que adquiriu dele alguma coisa, afastando-se, em tudo o que é essencial, das condições e exigências de uma consequente luta de classes do proletariado. A teoria marxista provou – e a experiência de todas as revoluções e movimentos revolucionários europeus confirmaram-no totalmente – que o pequeno proprietário, o pequeno patrão (tipo social que em muitos países europeus tem uma escala de massas muito ampla), que sofre sob o capitalismo uma opressão contínua e, amiúde, um agravamento terrivelmente brusco e rápido de precárias condições de vida, não sendo difícil arruinar-se, passa facilmente para uma posição ultra-revolucionária, mas é incapaz de manifestar serenidade, organização, disciplina e firmeza. O pequeno-burguês “enfurecido” pelos horrores do capitalismo é, como o anarquismo, um fenómeno social comum a todos os países capitalistas. São bem conhecidas a inconstância e a esterilidade de tais revolucionários, tanto como a facilidade com que se transformam rapidamente em submissão, apatia, fantasias, e mesmo num entusiasmo “frenético” por uma qualquer outra tendência burguesa “na moda”. Contudo, o reconhecimento teórico, abstracto, de tais verdades não é suficiente para proteger um partido revolucionário de antigos erros, que sempre acontecem por motivos inesperados, com ligeiras variações de forma – com aparência ou contornos nunca vistos anteriormente em ambientes sem precedentes –, mais ou menos originais.
O anarquismo é frequentemente uma espécie de expiação dos pecados oportunistas do movimento operário. Estas duas anomalias completam-se reciprocamente. Se o anarquismo exerceu na Rússia uma influência relativamente insignificante nas duas revoluções (1905 e 1917) e durante a sua preparação, não obstante a população pequeno-burguesa ser aqui mais numerosa que nos países europeus, isso se deve, em parte, sem dúvida, ao bolchevismo, que sempre lutou impiedosa e inconciliavelmente contra o oportunismo. Digo “em parte” porque o que mais contribuiu para debilitar o anarquismo na Rússia foi a possibilidade que teve no passado (década de 70 do século XIX) de alcançar um desenvolvimento extraordinário, revelando no final com profundidade a sua incapacidade de servir como teoria dirigente da classe revolucionária.
Ao surgir em 1903, o bolchevismo herdou a tradição de luta implacável contra o revolucionarismo pequeno-burguês, semi-anarquista (ou capaz de “namoricar” o anarquismo), tradição que sempre existira na social-democracia revolucionária e que se consolidou particularmente no nosso país em 1900/1903, quando foram estabelecidas as bases do partido de massas do proletariado revolucionário da Rússia. O bolchevismo fez sua e continuou a luta contra o partido que mais fielmente representava as tendências do revolucionarismo pequeno-burguês (isto é, o partido dos “socialistas revolucionários”) em três pontos principais. Em primeiro lugar, esse partido, que repudiava o marxismo, obstinava-se em não querer compreender (talvez fosse mais justo dizer que não podia compreender) a necessidade de levar em conta, com estrita objectividade, as forças de classe e as relações mútuas antes de empreender qualquer acção política. Em segundo lugar, esse partido via um sinal particular de “revolucionarismo” ou de “esquerdismo” no reconhecimento do terror individual, dos atentados, que nós, marxistas, rejeitávamos categoricamente. É claro que condenávamos o terror individual exclusivamente por conveniência; as pessoas capazes de condenar “por princípio” o terror da grande revolução francesa ou, de modo geral, o terror de um partido revolucionário vitorioso, assediado pela burguesia do mundo inteiro, já foram fustigadas e ridicularizadas por Plekhanov em 1900/1903, quando este era marxista e revolucionário. Em terceiro lugar, ser “esquerdista” consistia, para os “socialistas revolucionários”, em rir dos pecados oportunistas, relativamente leves, da social-democracia alemã, ao mesmo tempo que imitavam os ultra-oportunistas desse mesmo partido, em questões como a agrária ou a da ditadura do proletariado.
A História, diga-se de passagem, confirmou hoje, em grande escala, na escala histórico-mundial, a opinião que sempre defendemos, isto é, que a social-democracia revolucionária alemã (devemos levar em conta que, já em 1900/1903, Plekhanov reclamava a expulsão de Bernstein do partido e que os bolcheviques, mantendo sempre essa tradição, desmascaravam em 1913 toda a vilania, a baixeza e a traição de Legien) estava mais próxima que ninguém do partido que o proletariado revolucionário necessitava para triunfar. Agora, em 1920, depois de todos os rompimentos e crises ignominiosos da época da guerra e dos primeiros anos que a sucederam, vê-se com clareza que, de todos os partidos ocidentais, a social-democracia revolucionária alemã é quem deu os melhores dirigentes e que também mais rapidamente recuperou, se corrigiu e se fortaleceu. Isso também se verifica no partido dos espartaquistas e na ala esquerda, proletária, do “Partido Social-Democrata Independente da Alemanha”, que mantém uma luta firme contra o oportunismo e a cobardia dos Kautsky, Hilferding, Ledebour e Crispien. Se dermos agora uma olhada num período histórico completamente encerrado, que vai da Comuna de Paris à primeira República Socialista Soviética, veremos delinear-se com relevo absolutamente definido e indiscutível a posição do marxismo diante do anarquismo. Em última análise, o marxismo demonstrou ter razão, e se os anarquistas assinalaram com justeza o carácter oportunista das concepções sobre o Estado que imperavam na maioria dos partidos socialistas, deve-se dizer, em primeiro lugar, que esse oportunismo provinha de uma deformação e até mesmo de uma ocultação consciente das ideias de Marx a respeito do Estado (no meu livro O Estado e a Revolução registei que Bebel manteve no fundo de uma gaveta durante 36 anos, de 1875 a 1911, a carta em que Engels denunciava com singular realce, vigor, franqueza e clareza o oportunismo das concepções social-democratas em voga sobre o Estado); e, em segundo lugar, que a rectificação dessas ideias oportunistas e o reconhecimento do poder soviético e da sua superioridade sobre a democracia parlamentar burguesa partiram com maior amplitude e rapidez precisamente das tendências mais marxistas existentes no seio dos partidos socialistas da Europa e da América.
Houve dois momentos em que luta do bolchevismo contra os desvios “esquerdistas” do seu próprio partido adquiriu dimensões particularmente consideráveis: em 1908, em torno da participação num “parlamento” ultra-reaccionário e nas associações operárias legais, regidas por leis reaccionárias, e em 1918 (paz de Brest), em torno da admissibilidade de um “compromisso”.
Em 1908, os bolcheviques “de esquerda” foram expulsos do partido, em virtude de seu empenho em não querer compreender a necessidade de participar num “parlamento” ultra-reaccionário. Os “esquerdistas”, entre os quais havia muitos excelentes revolucionários que depois foram (e continuam a ser) honrosamente membros do Partido Comunista, apoiavam-se, principalmente, na feliz experiência do boicote de 1905. Quando o czar anunciou, em Agosto de 1905, a convocação de um “parlamento” consultivo, os bolcheviques, contra todos os partidos da oposição e contra os mencheviques, declararam o boicote a esse parlamento, que foi liquidado, com efeito, pela revolução de Outubro de 1905. Naquela ocasião, o boicote foi justo, não porque seja certo abster-se, de modo geral, de participar nos parlamentos reaccionários, mas porque foi levada em conta, acertadamente, a situação objectiva, que levava à rápida transformação das greves de massas em greves políticas e, sucessivamente, em greve revolucionária e em insurreição. Além disso, o motivo da luta era, nessa época, saber se se devia deixar nas mãos do czar a convocação da primeira instituição representativa, ou se se devia tentar arrancá-la das mãos das antigas autoridades. Como não havia, nem podia haver, a plena certeza de que a situação objectiva era semelhante e que o seu desenvolvimento havia de realizar-se no mesmo sentido e com igual ritmo, o boicote deixou de ser correcto.
O boicote dos bolcheviques ao “parlamento” em 1905, enriqueceu o proletariado revolucionário com uma experiência política extraordinariamente preciosa, mostrando que, na combinação das formas de luta legais e ilegais, parlamentares e extraparlamentares, é, às vezes, conveniente e até obrigatório saber renunciar às formas parlamentares. Mas transportar cegamente, por simples imitação, sem espírito critico, essa experiência para outras condições, para outra situação, é o maior dos erros. O que já constituíra um erro, embora pequeno e facilmente corrigível[1], foi o boicote dos bolcheviques à “Duma” em 1906. Os boicotes de 1907, 1908 e anos seguintes, foram erros muito mais sérios e dificilmente reparáveis, quando, por um lado, não era acertado esperar que a onda revolucionária se reerguesse com muita rapidez e se transformasse em insurreição e, por outro, o conjunto da situação histórica originada pela renovação da monarquia burguesa impunha a necessidade de se combinar o trabalho legal com o ilegal. Hoje, quando se considera retrospectivamente esse período histórico já encerrado por completo, cuja ligação com os períodos posteriores já se manifestou plenamente, torna-se particularmente claro que os bolcheviques não teriam podido conservar (já não digo consolidar, desenvolver e fortalecer) o núcleo sólido do partido revolucionário do proletariado em 1908/1914, se não houvessem defendido, na mais árdua luta, a combinação obrigatória de formas legais de luta com ilegais, a participação obrigatória num parlamento ultra-reaccionário e numa série de instituições regidas por leis reaccionárias (associações de socorro mútuo, etc.).
Em 1918, as coisas não chegaram à cisão. Os comunistas “de esquerda” só constituíram, na ocasião, um grupo especial, ou “fracção”, dentro de nosso Partido, e por pouco tempo. No mesmo ano, os mais destacados representantes do “comunismo de esquerda”, Rádek e Bukharin, por exemplo, reconheceram abertamente o erro. Achavam que a paz de Brest era um compromisso com os imperialistas, inaceitável por princípio e funesto para o partido do proletariado revolucionário. Tratava-se, realmente, de um compromisso com os imperialistas; mas era precisamente um compromisso duma espécie que era obrigatório naquelas circunstâncias.
Hoje, quando ouço, por exemplo, os “socialistas revolucionários” atacarem a nossa táctica de assinar a paz de Brest, ou uma observação como a que me foi feita pelo camarada Landsbury durante uma conversa: “Os chefes das nossas trade-unions inglesas dizem que é aceitável o compromisso para eles, uma vez que os bolcheviques também o admitiram”, respondo habitualmente, antes de tudo, com uma comparação simples e “popular”:
Imagine que o automóvel no qual viaja é detido por bandidos armados. Dá-lhes o dinheiro, o documento de identidade, o revólver e o automóvel. Em troca disso, escapa da agradável companhia dos bandidos. Trata-se, evidentemente, de um compromisso. Do ut des (“dou” o dinheiro, as armas e o automóvel, “para que me dês” a possibilidade de seguir em paz). Dificilmente, porém, se encontraria um homem sensato capaz de declarar que esse compromisso é “inadmissível por princípio”, ou de denunciar quem o assumiu como cúmplice dos bandidos (ainda que esses bandidos, de posse do automóvel e das armas, possam utilizá-los para novas pilhagens). O nosso compromisso com os bandidos do imperialismo alemão foi semelhante a este.
Mas quando os mencheviques e os socialistas revolucionários na Rússia, os partidários de Scheidemann (e, em grande parte, os kautskistas) na Alemanha, Otto Bauer e Friedrich Adler (sem falar dos Srs. Renner e outros) na Áustria, os Renaudel, Longuet & C.ª em França, os fabianos, os “independentes” e os “trabalhistas” na Inglaterra assumiram, em 1914/1918 e em 1918/1920, com os bandidos da sua própria burguesia e, às vezes, com os da burguesia “aliada”, compromissos contra o proletariado revolucionário do seu próprio país, esses senhores agiram como cúmplices do banditismo.
A conclusão é clara: rejeitar compromissos “por princípio”, negar a legitimidade de qualquer compromisso em geral, constitui uma infantilidade que é inclusive difícil de se levar a sério. Um político que queira ser útil ao proletariado revolucionário deve saber distinguir os casos concretos de compromissos que são mesmo inadmissíveis, que são uma expressão de oportunismo e de traição, e dirigir contra esses compromissos concretos toda a força da critica, todo o esforço de um desmascaramento implacável e de uma guerra sem quartel, não permitindo aos velhos manobradores do “negócio” socialista e aos jesuítas parlamentares que se livrem de responsabilidades por meio de prelecções sobre “compromissos em geral”. Os senhores “chefes” das trade-unions inglesas, assim como os da Sociedade Fabiana e do Partido Trabalhista “Independente”, pretendem, exactamente desse modo, eximir-se da responsabilidade da traição que cometeram, por haverem assumido um compromisso que, na realidade, nada mais é que oportunismo, deslealdade e traição da pior espécie.
Há compromissos e compromissos. É preciso saber analisar a situação e as circunstâncias concretas de cada compromisso, ou de cada variedade de compromissos. É preciso aprender a distinguir o homem que entregou aos bandidos a bolsa e as armas para diminuir o mal causado por eles e facilitar a sua captura e execução, daquele que dá aos bandidos a bolsa e as armas para participar da divisão do saque. Em política, nem sempre é assim tão fácil como neste pequeno exemplo de simplicidade infantil. Seria, porém, apenas charlatão quem pretendesse inventar para os operários uma fórmula que, antecipadamente, apresentasse soluções adequadas para todas as circunstâncias da vida, ou quem prometesse que na política do proletariado revolucionário nunca surgirão dificuldades nem situações complicadas.
A fim de não deixar margem a interpretações falsas, tentarei esboçar, ainda que em poucas palavras, algumas orientações, para a análise de compromissos concretos.
O partido que acertou com o imperialismo alemão o compromisso de firmar a paz de Brest vinha elaborando na prática o seu internacionalismo desde fins de 1914. Esse partido não receou proclamar a derrota da monarquia czarista e condenar a “defesa da pátria”, na guerra entre dois predadores imperialistas. Os deputados desse partido no parlamento foram deportados para a Sibéria, em vez de seguirem o caminho que leva às pastas ministeriais num governo burguês. A revolução, ao derrubar o czarismo e proclamar a república democrática, submeteu esse partido a uma nova e importante prova: não ajustou nenhum acordo com os imperialistas do “seu” país, mas preparou o seu derrube e derrubou-os. Tomando o poder político, não deixou pedra sobre pedra nem da propriedade agrária nem da propriedade capitalista. Depois de publicar a invalidade dos tratados secretos dos imperialistas, esse partido propôs a paz a todos os povos e só cedeu ante a violência dos bandidos de Brest quando os imperialistas anglo-franceses frustraram a paz e depois dos bolcheviques terem feito tudo o que era humanamente possível para acelerar a revolução na Alemanha e noutros países. A total justeza de semelhante compromisso, assumido por tal partido nessas circunstâncias, torna-se dia a dia mais clara e evidente para todos.
Os mencheviques e socialistas revolucionários da Rússia (do mesmo modo que todos os chefes da II Internacional no mundo inteiro, em 1914/1920) começaram pela traição, justificando directa ou indirectamente a “defesa da pátria”, isto é, a defesa da sua burguesia espoliadora. Persistiram na traição coligando-se com a burguesia do seu país e lutando a seu lado contra o proletariado revolucionário do seu próprio país. A sua união na Rússia com Kerenski e os cadetes e, depois, com KoIchak e Denikin, assim como a aliança dos seus correligionários estrangeiros com a burguesia dos respectivos países, foi uma deserção para o campo da burguesia, contra o proletariado. O seu compromisso com os bandidos do imperialismo consistiu, do princípio ao fim, em tornar-se cúmplices do banditismo imperialista.
(a seguir)
[1] Pode-se dizer, da política e dos partidos – com as variações correspondentes – o mesmo que dos indivíduos. Inteligente não é aquele que não comete erros. Não há, nem pode haver, homens que não cometam erros. Inteligente é aquele que comete erros não muito graves e sabe corrigi-los acertada e rapidamente. (Nota do autor)
Nos primeiros meses que se seguiram à conquista do poder político pelo proletariado na Rússia (25-X/7-XI de 1917) poderia parecer que, em virtude das enormes diferenças existentes entre a Rússia atrasada e os países adiantados da Europa Ocidental, a revolução proletária nesses países seria muito pouco semelhante à nossa. Actualmente dispõe-se já de considerável experiência internacional, a qual mostra definitivamente que certas características fundamentais da nossa revolução têm um significado não local, ou particularmente nacional, exclusivamente russo, mas internacional. Não me refiro a um significado internacional no sentido amplo da palavra, de que não são apenas alguns, mas todos os aspectos fundamentais, e muitos secundários, da nossa revolução que têm importância internacional quanto à influência que exercem sobre todos os países. Refiro-me ao sentido mais restrito da palavra, tomando-a no sentido da validade internacional ou da inevitabilidade histórica de uma repetição, numa escala internacional, do que ocorreu no nosso país. Deve-se admitir este valor para algumas das características fundamentais da nossa revolução.
Naturalmente, seria um erro grosseiro exagerar o alcance desta verdade, aplicando-a a outros aspectos da nossa revolução além de alguns dos fundamentais. Também seria errado não ter em conta que depois da vitória da revolução proletária, mesmo que seja em apenas um dos países adiantados, se produzirá, com toda certeza, uma radical transformação: a Rússia, logo depois disso, transformar-se-á não em país modelo, e sim, de novo, em pais atrasado (do ponto de vista “soviético” e socialista).
No momento histórico actual, porém, trata-se exactamente de que o exemplo russo ensina algo a todos os países, algo muito substancial, a respeito do seu futuro próximo e inevitável. Os operários evoluídos de todos os países já compreenderam isso há muito tempo e, mais que compreender, pressentiram-no com o seu instinto de classe revolucionária. Daí a “significado” internacional (no sentido estrito da palavra) do poder soviético e dos fundamentos da teoria e da táctica bolcheviques. Esse facto não foi compreendido pelos chefes “revolucionários” da II Internacional, como Kautsky na Alemanha e Otto Bauer e Friedrich Adler na Áustria, que, por isso, provaram ser reaccionários e defensores do pior oportunismo e traição social. A propósito, o folheto anónimo A Revolução Mundial (Weltre-revolution), publicado em 1919 em Viena (Sozialistische Bücherei, Heft II; Ignaz Brand), apresenta com particular clareza todo o processo de pensamento e todo o conjunto de raciocínios, ou melhor, todo o abismo de incompreensões, pedantismo, vilania e traição aos interesses da classe operária – e além disso, mascarado de “defesa” da ideia da “revolução mundial”.
Mas teremos de deixar para outra ocasião o exame mais pormenorizado desse folheto. Limitemo-nos aqui a mais um ponto: na época, já bem distante, em que Kautsky era um marxista e não um renegado, previa, ao abordar a questão como historiador, a possibilidade do surgimento de uma situação em que o espírito revolucionário do proletariado russo se converteria em modelo para a Europa Ocidental. Isso foi em 1902, quando Kautsky publicou na “Iskra” revolucionária o artigo “Os eslavos e a Revolução”. Eis o que escreveu nesse artigo:
"Actualmente (ao contrário de 1848) parece que os eslavos não só incorporaram as fileiras dos povos revolucionários, como também, que o centro de gravidade das ideias e da acção revolucionárias se desloca cada vez mais para os eslavos. O centro revolucionário move-se de oeste para leste. Na primeira metade do século XIX encontrava-se em França e, por vezes, em Inglaterra. Em 1848, a Alemanha também se juntou às fileiras das nações revolucionárias... O novo século inicia-se com acontecimentos que sugerem a ideia de que caminhamos para um novo deslocamento do centro revolucionário: concretamente, da sua transferência para a Rússia... Rússia, que tendo tomado de empréstimo tanta iniciativa revolucionária do Ocidente, esteja hoje, ela própria, pronta para servir-lhe de fonte de energia revolucionária. O ardor actual do movimento revolucionário russo será, talvez, o meio mais poderoso para eliminar o espírito de filisteísmo flácido e de frio cálculo político que começa a difundir-se nas nossas fileiras e ressuscitará a chama viva do anseio de luta e da fidelidade apaixonada aos nossos grandes ideais. Há muito tempo que a Rússia deixou de ser para a Europa Ocidental um simples reduto da reacção e do absolutismo. A situação agora é, talvez, exactamente a oposta. A Europa Ocidental está a tornar-se o reduto da reacção e do absolutismo russos... É possível que os revolucionários russos já tivessem derrubado o czar há muito tempo se não fossem obrigados a lutar, ao mesmo tempo, contra o aliado deste, o capital europeu. Esperemos que desta vez consigam derrotar ambos os inimigos e que a nova “santa aliança" desmorone, mais rapidamente que as predecessoras. Contudo, seja qual for o resultado da luta actual na Rússia, o sangue e o sofrimento dos mártires que essa luta cria, infelizmente, em demasia, não terão sido em vão. Eles fecundarão os germes da revolução social em todo o mundo civilizado, fazendo-os crescer exuberante e rapidamente. Em 1848, os eslavos eram uma terrível geada que calcinava as flores da primavera popular. É bem possível que estejam agora destinados a cumprir o papel da tempestade que romperá o gelo da reacção e trará consigo irresistivelmente, uma nova e feliz primavera para os povos". (Karl Kautsky, Os eslavos e a revolução, artigo publicado na Iskra, jornal revolucionário da social-democracia russa, n.º 18, 10 de Março de 1902).
Como Karl Kautsky escrevia bem, há 18 anos!
Seguramente que hoje quase todo a gente percebe que os bolcheviques não poderiam ter-se mantido no poder, não dois anos e meio, mas tão-somente dois meses e meio, sem a disciplina severíssima, verdadeiramente férrea, dentro do nosso Partido, sem o apoio mais completo e abnegado prestado a este por toda a massa da classe operária, isto é, por tudo o que esta tem de consciente, honrado, abnegado, influente e capaz de conduzir com ela ou de atrair a si as camadas atrasadas.
A ditadura do proletariado é a guerra mais heróica e mais implacável da nova classe contra um inimigo mais poderoso, contra a burguesia, cuja resistência se decuplica com o seu derrubamento (ainda que num só país), e cujo poderio não reside apenas na força do capital internacional, na força e na solidez das relações internacionais da burguesia, mas ainda na força do costume, na força da pequena produção. Porque, infelizmente, ficou ainda no mundo muita e muita pequena produção, e a pequena produção engendra o capitalismo e a burguesia, cada dia, cada hora, de modo espontâneo e em massa. Por todos estes motivos, a ditadura do proletariado é indispensável, e é impossível vencer a burguesia sem uma guerra prolongada, tenaz, encarniçada, uma guerra de morte que exige serenidade, disciplina, firmeza, e uma vontade única e inflexível.
A experiência da ditadura proletária triunfante na Rússia, repito mais uma vez, mostrou claramente, a quem não sabe pensar ou a quem não teve oportunidade de reflectir sobre este problema, que a centralização incondicional e a disciplina mais severa do proletariado constituem uma das condições fundamentais da vitória sobre a burguesia.
Fala-se disso com frequência. Mas não se medita suficientemente sobre o que isso significa nem sobre as condições em que isso se torna possível. Não conviria que as saudações entusiásticas ao Poder dos Sovietes e aos bolcheviques fossem acompanhadas, mais frequentemente, pela mais séria análise das razões pelas quais os bolcheviques foram capazes de forjar a disciplina necessária ao proletariado revolucionário?
O bolchevismo existe como corrente do pensamento político e como partido político desde 1903. Somente a história do bolchevismo em todo o período de sua existência é capaz de explicar satisfatoriamente as razões pelas quais ele foi capaz de forjar e manter, nas mais difíceis condições, a disciplina férrea necessária à vitória do proletariado.
A primeira pergunta que surge é a seguinte: como se mantém a disciplina do partido revolucionário do proletariado? Como se verifica? Como se fortalece? Em primeiro lugar, pela consciência de classe da vanguarda proletária e pela fidelidade à revolução, pela firmeza, espírito de sacrifício, heroísmo. Em segundo lugar, pela capacidade de ligar-se, aproximar-se e, até certo ponto, se quiserem, de fundir-se com as mais amplas massas trabalhadoras, antes de tudo com as massas proletárias, mas também com as massas trabalhadoras não proletárias. Em terceiro lugar, pela justeza da liderança política exercida por essa vanguarda, pela justeza da sua estratégia e da sua táctica políticas, com a condição de que as mais amplas massas vejam isso a partir da sua própria experiência. Sem estas condições é impossível alcançar a disciplina de um partido revolucionário realmente capaz de ser o partido da classe avançada, cuja missão é derrubar a burguesia e transformar toda a sociedade. Sem estas condições, os propósitos de implantar uma disciplina convertem-se, inevitavelmente, em ficção, em frases sem significado, em gestos grotescos. Mas, por outro lado, estas condições não podem surgir de repente. Somente se vão formando por um trabalho prolongado e árdua experiência; a sua formação é facilitada por uma teoria revolucionária correcta que, por sua vez, não é um dogma e só se forma de modo definitivo em estreita ligação com a experiência prática de um movimento verdadeiramente de massas e verdadeiramente revolucionário.
Se o bolchevismo foi capaz de desenvolver e implementar com êxito, nos anos de 1917/1920, em condições de inaudita dificuldade, a mais rigorosa centralização e uma disciplina férrea, deve-se simplesmente a uma série de particularidades históricas da Rússia.
Por um lado, o bolchevismo surgiu em 1903 fundamentado na mais sólida base da teoria marxista. E a justeza dessa teoria revolucionária – e de nenhuma outra – foi demonstrada tanto pela experiência internacional de todo o século XIX como, em particular, pela experiência dos desvios, vacilações, erros e desilusões do pensamento revolucionário na Rússia. No decurso de quase meio século, aproximadamente de 1840 a 1890, o pensamento de vanguarda na Rússia, sob o jugo do terrível despotismo do czarismo selvagem e reaccionário, procurava avidamente uma teoria revolucionária justa, acompanhando com zelo e atenção admiráveis cada “última palavra” da Europa e da América nesse terreno. A Rússia alcançou o marxismo, como única teoria revolucionária justa, pelo sofrimento de meio século de tormentas incomparáveis e sacrifícios, de heroísmo revolucionário nunca visto, de incrível energia e abnegada pesquisa, de estudo, avaliação prática, desilusões, comprovação e comparação com a experiência europeia. Graças à emigração forçada pelo czarismo, a Rússia revolucionária da segunda metade do século XIX contava, mais que qualquer outro país, com uma enorme riqueza de relações internacionais e excelentes conhecimentos de todas as formas e teorias do movimento revolucionário mundial.
Por outro lado, o bolchevismo, surgido sobre essa base teórica de granito, passou por 15 anos de história prática (1903/1917) que, pela sua riqueza de experiência, não tem igual no mundo. Nenhum país, no decurso desses quinze anos, passou, nem ao menos aproximadamente, por experiência revolucionária tão rica na sucessão rápida e variada das diferentes formas do movimento, legais e ilegais, pacíficas e tumultuosas, clandestinas e abertas, de círculos locais e de massas, parlamentares e terroristas. Em nenhum país esteve concentrada, em tão curto espaço de tempo, semelhante riqueza de formas, matizes, métodos de luta, de todas as classes da sociedade contemporânea, luta que, além disso e em consequência do atraso do país e da gravidade da opressão czarista, amadureceu com singular rapidez e assimilou com particular sofreguidão e eficiência a “última palavra” da experiência política americana e europeia.
(a seguir)
(início)
F
6.ª fase: de 1963 até hoje
De 1953 aos nossos dias a história do P«C»P tem sido o escorregar vertiginoso na decomposição orgânica, na degradação política oportunista, no rebaixamento ideológico, no abandalhamento liberal, etc.
Em 7 anos o direitismo ou, por vezes, o aventureirismo da direcção pequeno-burguesa, vieram progressivamente à superfície, ou seja, perderam completamente a máscara pseudo-proletária, manifestando hoje o P«C»P, novamente sem disfarce, o essencial das posições teóricas e práticas do direitismo desbragado do «desvio de direita» de 56-59. A diferença essencial relativamente a este período é que aos olhos das massas operárias e camponesas esclarecidas, este processo de traição é hoje claro e susceptível de ser perfeitamente compreendido; aos olhos das camadas avançadas das massas exploradas a solução não reside já em novas «correcções», «por dentro» ou «por fora» mas sim, e finalmente, na edificação de um verdadeiro partido marxista-leninista. Quer dizer: o P«C»P não conseguirá desta feita recompor-se da grande queda em que o seu direitismo o projectou e à luta popular: o novo fluxo da luta revolucionária em Portugal será necessariamente marcado pelo aparecimento de uma organização operário-camponesa revolucionária a conduzi-lo. O partido revisionista caminha inexoravelmente para a sua cada vez mais perfeita identificação com a pequena-burguesia, para o seu corte cada vez mais nítido com a classe operária e o campesinato, para a sua clara personificação, quer ao nível político, quer ao nível de métodos de trabalho e organização, quer ao nível de base social, como representante político da pequena-burguesia radical reformista.
Que novos condicionalismos impedem nesta fase o P«C»P de demagogicamente vir a retomar, como o fez em 1960-61, a direcção da luta popular? Que novos factores originaram que neste período de refluxo do movimento de massas se tenham gerado as condições para o surgimento de uma alternativa proletária para a luta e organização dos operários e camponeses?
Três tipos de factores se conjugaram para criar condições favoráveis nesse sentido:
1.º – a guerra colonial;
2.º – o corte do PC da China com o revisionismo soviético, acompanhado de atitudes idênticas por parte de vários partidos (ou suas fracções) e movimentos revolucionários;
3.º – a tentativa frustrada duma cisão revolucionária no interior do P«C»P e o início da denúncia teórica e prática à linha da direcção do P«C»P.
— A guerra colonial — criou as condições objectivas, materiais, para viabilizar a opção revolucionária: contribuindo para radicalizar o descontentamento popular e projectá-lo em lutas grandiosas e extremadas fez com que estas, como vimos, colocassem a direcção oportunista perante um impasse que ou resolvia em termos revolucionários, ou solucionava em termos reaccionários, denunciando-se. Mas tal radicalização da luta permitiu igualmente clarificar aos olhos de muitos quadros quais as saídas correctas para a luta e o significado oportunista do recuo da direcção do P«C»P. O agudizar da luta de classes projectou-se consequentemente no interior da própria organização que conduzia o movimento, fazendo estalar no seu seio as contradições latentes e mal encobertas pela «correcção» do desvio de direita. Para os militantes mais combativos e avançados, o grande refluxo a partir de 1963: a destruição maciça dos sectores operários da região de Lisboa e de outras cidades industriais, a vaga de prisões de funcionários de todos os escalões em 63, 64, 65 e 66 e o facto de quase todos (excepto alguns responsáveis) terem falado na polícia, o enorme recuo da luta operária em todo o país, o desmembramento das organizações do Alentejo e o apagamento da luta nessa região tradicionalmente combativa, o desaparecimento da influência nacional do P«C»P e a sua restrição a áreas urbanas localizadas, a degradação do já baixo nível ideológico, a implantação do liberalismo, o legalismo e o direitismo mal disfarçados por pequenos sobressaltos aventureiros, todo este refluxo, como dizíamos, deixou de ter explicação plausível. O descontentamento e a frustração ganham as fileiras mais militantes e jovens do P«C»P: os que não desertaram logo (e na altura foi a maioria) breve o viriam a fazer nos anos subsequentes;
— O corte do PC da China com o revisionismo soviético — será o elemento geral de consciencialização do descontentamento reinante. Apesar das teses chinesas terem sido histérica e demagogicamente combatidas pelo P«C»P, apesar da sua clara aceitação por vários quadros de vanguarda não ter sido nem rápida nem imediata, as críticas anti-revisionistas que elas consubstanciavam, a justeza das posições que defendiam progressivamente confirmadas pelos acontecimentos do movimento nacional e internacional, o facto de elas objectivamente virem responder às necessidades da luta proletária portuguesa, apontando a via que ela devia seguir, viabilizando a formulação da sua nova estratégia e tácticas revolucionárias, permite-nos apontar esta condição como o factor básico que vai dar conteúdo ideológico à tentativa de fracção no interior do P«C»P. Conteúdo ideológico só teoricamente apreendido e desvirtuado na prática. Mas é na base das posições revolucionárias do PC da China sobre a luta anti-imperialista no mundo e a denúncia do revisionismo, que em 63/64 se vão pretender fundamentar a 2.ª tentativa histórica de ruptura com a pequena burguesia dominante na direcção da luta operária e todos os subsequentes esforços que nos anos seguintes e com o mesmo objectivo se ensaiarão. Não nos esqueçamos que além do mais a direcção pequeno-burguesa que desde 60 casava em si mesma a tradição histórica libertária anarco-liberal e oportunista com o revisionismo tal como o apresentou o XX Congresso do P«C»US, tomara a intransigente defesa, desde 1962, das teses soviéticas. Aos olhos dos quadros, o revisionismo internacional e a desmobilização interna não podiam deixar de relacionar-se, tal como a saída revolucionária do impasse nacional e as teses chinesas necessariamente se ligavam;
— Tentativa de uma cisão revolucionária do P«C»P — apoiada num condicionalismo objectivo altamente favorável e na formulação a nível internacional de uma linha revolucionária anti-imperialista, um pequeno núcleo de militantes em fins de 1963-1964, tentou operar do P«C»P uma cisão marxista-leninista. Foi a 2.ª tentativa histórica de romper com a direcção pequeno-burguesa da luta proletária. Não é altura de analisarmos o significado da experiência da FAP que, objectivamente e na prática, se traduziu em mais uma aventura radical da pequena-burguesia, desta vez sob a bandeira do «anti-oportunismo». O que interessa reter para os efeitos desta parte do nosso trabalho é a enormíssima importância teórica da sua imprensa na desmontagem ideológica da linha e da prática do P«C»P e na formulação dos caminhos da Revolução em Portugal, consubstanciados nas etapas da Revolução Democrática e Popular e da Revolução Socialista, na definição do carácter de classe de tais etapas e no papel que nelas desempenha a aliança operário-camponesa. Apesar da sua degenerescência prática, a teoria elaborada pela imprensa central da FAP, constitui a 1.ª formulação proletária da opção anti-oportunista em Portugal e é um património muito valioso da teoria revolucionária portuguesa. É a ela que irá beber toda a luta anti-revisionista desde então travada no nosso país contra o P«C»P. Quer dizer: apesar de frustrada na prática, a tentativa da FAP vem abrir teoricamente o caminho da acção revolucionária contra o oportunismo. Saber adaptar tal teoria às novas condições do capitalismo, ou seja, actualizá-la de acordo com os caminhos que no nosso país a burguesia monopolista vai trilhando, eis o papel da ideologia revolucionária.
A partir de 1963/1964, sob o fogo da crítica marxista-leninista a nível internacional e de uma denúncia anti-oportunista a nível nacional feita por organizações que lhe são exteriores e que não pode recuperar, o P«C»P após uma atitude defensiva em que pretende reivindicar o seu papel «proletário», vai perdendo progressivamente tais veleidades: 1969 é o afundar definitivo e sem remissão no pântano da traição eleitoralista, legalista e de pactuação inter-classista.
Assim, em 1964 e 1965, para responder à perturbação das críticas da FAP o P«C»P vai apressadamente elaborar a sua «teoria da Revolução» em atraso.
Em 1964, pela primeira vez na história, procede a uma exaustiva análise do capitalismo português e da sua estrutura de classes para fundamentar a linha da «revolução democrática-nacional» que passa a substituir o «levantamento nacional» como lema estratégico. Também aí se tenta definir o carácter de classe da tal Revolução e o papel que nela desempenhará o proletariado. Tudo esto se consubstanciou num relatório apresentado por Cunhal ao CC e intitulado «Rumo à Vitória». O «Rumo à Vitória» é de facto o sumo da sujeição do proletariado aos interesses da burguesia média. «Desconhecendo» completamente o carácter monopolista industrial que a base do capitalismo português vinha acentuando desde o pós-guerra, em contraste com a sua natureza comercial, oligárquica e familiar anterior; recusando-se a tirar daqui as necessárias consequências sobre o papel de aliada da média-burguesia ao grande capital nesta nova fase do capitalismo e que a revolução «anti-monopolista», «liberal» e médio-burguesa era um mito historicamente ultrapassado; o P«C»P aponta como objectivo estratégico para a revolução médio-burguesa, de todas as classes «não-monopolistas», de todos os «homens honrados», pondo explicitamente a luta proletária a reboque dos objectivos burgueses e da direcção burguesa. No «Rumo à Vitória» sem dúvida que se define já a natureza de classe da «Revolução» do P«C»P e o papel nela do proletariado: a revolução não visa a democracia nova (?) dos explorados sob a direcção do proletariado revolucionário, como postula o marxismo-leninismo aplicado às condições portuguesas, mas sim as «liberdades fundamentais» e o «regime parlamentar» médio-burguês, em cujas instituições o P«C»P lutaria eleitoralmente por um belo programa de ousadas reformas! A «revolução», na prática, não realizando a aliança dos explorados em torno do seu programa, mas proclamando a unidade destes em torno do reformismo médio-burguês, será portanto conduzida pela burguesia liberal. De facto, o «Rumo à Vitória» adiantou alguma coisa relativamente às águas turvas do «levantamento nacional»: explicitou, a despeito da sua bela fraseologia «revolucionária», o conteúdo de classe burguês e de pactuação da linha política do P«C»P que naquele estava implícito, e que a sua longa prática comprovava.
Os «Estatutos» e o «Programa» do P«C»P, aprovados no VI Congresso de 1965, virão confirmar, mas ainda com menos ambiguidades «revolucionárias», o unitarismo médio-burguês e a sujeição da luta proletária aos objectivos da burguesia. No «Programa» surge a «unidade» da «passagem pacífica» ao socialismo como via possível a adoptar no futuro parlamentarismo burguês e «democrático». Mas repare-se que, tendo estes documentos respondido à pressão das bases sob o fogo de uma propaganda de esquerda eles não só revestem uma cuidadosa fraseologia «revolucionária» como evitam todo e qualquer «excesso» direitista. A via armada continua a ser imprescindível para derrubar o fascismo, o trabalho clandestino é o motor da luta das massas bem como o fortalecimento político da organização e, no «Rumo à Vitória, certas acções armadas de defesa e a auto-defesa são encaradas como possíveis de acordo com os níveis da sequência da luta popular. Isto a par da denúncia do direitismo («perigo não eminente»), e do esquerdismo, «perigo principal». E é nesta linha nitidamente defensiva e oportunista da direcção do P«C»P que se integram certos sobressaltos aventureiros de 1964: as palavras de ordem para o 1.º de Maio de 1964 em Lisboa apelando para a acção armada no meio de uma manifestação de massas, e pondo as organizações de massas e completamente impreparadas a tentar realizar acções de sabotagem, idênticas palavras de ordem na mesma fase na margem sul visando uma espécie de «golpe militar de mão» em Almada e noutros concelhos, o envolvimento da organização de massas em certas regiões em certas acções directas que não podiam realizar e que levaram à cadeia, etc.. Em suma: o querer «concorrer» com a FAP, a pendularidade reformismo-aventura típicas da pequena-burguesia radical e que são susceptíveis de verificar-se simultaneamente e em especial em momentos de refluxo e desespero em que a pequena-burguesia sente perder terreno e base social de apoio.
1966 e 1967 foram anos de grande recuo: prisões de muitos quadros, desagregação progressiva, traições na polícia, etc… A base social operária e camponesa do P«C»P começa a diminuir e a pequena-burguesia urbana toma um papel decisivo na direcção política da organização a nível local e regional.
O advento do marcelismo apanha a luta popular e a organização partidária em acentuada fase de declínio. Mas 1968 e o marcelismo são a luz verde para um novo surto de direitismo sem peias nem disfarces, em que o reformismo pequeno-burguês vem abertamente ao de cima retomando muitas das posições de 56/59.
Ainda que clamando que o marcelismo era o «salazarismo sem Salazar» e um mero «render de guardas de clãs fascistas», ainda que nada percebendo sobre o novo equilíbrio de forças que se gerava no seio do poder em favor da grande burguesia monopolista industrial, ainda que incapaz de compreender que uma nova fase política de tentativa de recuperação da média-burguesia e da pequena-burguesia para o «esforço do desenvolvimento» se abria, com as «descompressões» a certos níveis que isso implicava, o P«C»P vai aproveitar exactamente o novo condicionalismo para se lançar numa euforia legalista e pacifista sem precedentes.
A preparação das eleições em 1968, e as eleições em 1969, fizeram descolar o eixo da actividade do partido para a acção legal de «comissões» e «movimentos» que a despeito de desligados organicamente dos sociais-democratas faziam da sua plataforma de S. Pedro de Muel, das suas «liberdades fundamentais», da sua «solução pacífica do problema ultramarino após ampla consulta nacional» os objectivos de acção. Desmobilizando completamente as massas para uma denúncia revolucionária da farsa eleitoral, dando-lhes na prática a perspectiva de vitória nas urnas e centrando toda a acção no desprezo da luta clandestina e pelo primado do legalismo oportunista, o P«C»P em 68/69 retomou na prática e já sem subterfúgio em certos textos a solução da via pacífica para o derrubamento do fascismo: «ir às urnas para obrigar as pessoas a compreenderem a necessidade de se recensearem nas próximas eleições», «lutar por um grande movimento legal-democrático pós-eleitoral que combatesse pelas liberdades fundamentais de imprensa, de associação, etc…». Centrar a luta no legalismo eleitoralista, assumir objectivamente uma posição neo-colonialista quanto à guerra colonial, sabotar a acção radical de denúncia das eleições, pregar e defender (de braço dado com a burguesia «democrática» e tecnocrata) as «liberdades» como reivindicação praticamente exclusiva da luta, tentar na prática impor a legalidade do P«C»P desmantelando a sua clandestinidade e as suas defesas em «movimentos de oposição» completamente expostos e conhecidos da polícia, animar as massas para a vitória eleitoral: o que é isto senão o vir ao de cima do direitismo pequeno-burguês mais do que nunca implantado a todos os escalões na direcção do P«C»P? O que é isto senão o retomar nítido das teses de 56/59, aliás nunca repudiadas no essencial?
Note-se que 68, 69 e principalmente a grande desmobilização pós-eleitoral vêem surgir pela primeira vez, e espontaneamente, movimentos anti-revisionistas, grupos de contestação e surtos de ideologias trotskizantes e anarquizantes, sintomas do nítido perder de controlo pelo P«C»P da luta popular. O descarado atrelar da luta a objectivos degradantes de oportunismo e direitismo, o estalar do P«C»P por todas as costuras em matéria de segurança e organização, o liberalismo, a mexeriquice e a grupusculização interna, a deserção de sectores inteiros e de funcionários responsáveis, a perda completa de controlo de vários sectores da acção de massas, as denúncias públicas da linha do P«C»P, o rebentar do «trabalho unitário», tudo isto a par de um activíssimo e espontâneo surto de ideologias pseudo-esquerdistas bem como de correctas tentativas localizadas de luta anti-revisionista, tudo isto, dizíamos, permite-nos concluir que o período de refluxo em que o P«C»P mergulhou e o seu corte com as massas operárias e camponesas se tenderão a agudizar sem remissão. A agudização objectiva da luta de classes, conjugada com a aberta traição do P«C»P e a propagação internacional da luta anti-revisionista criaram as condições propícias para que o novo surto da luta popular em Portugal já veja à sua frente uma verdadeira direcção proletária. Direcção proletária que terá que fazer a síntese e a unidade das verdadeiras posições marxistas-leninistas, isolando-se dos frentismos pseudo-radicais, dos aventureirismos, dos anarquismos sem rumo e dos trostskismos, ou seja, permitindo que da dispersão reinante, o proletariado possa, pela primeira vez na história da sua luta, tomar nas mãos a direcção do combate.
No momento em que o P«C»P se afunda em cisões e depurações, no momento em que no desespero pela base popular que vê fugir-lhe dado o seu ultra-direitismo, a direcção pequeno-burguesa se sobressalta em actos aventureiros, neste momento podemos afirmar que o refluxo das condições subjectivas da luta, não tendo terminado, está porém a chegar ao seu fim. Dentro de algum tempo (meses, anos?) o isolamento do revisionismo e do oportunismo em geral, que com ele será arrastado, permitirá à vanguarda da luta operária tomar finalmente a direcção da luta ascendente.
Publicado no BANDEIRA VERMELHA n.º 1 em Dezembro de 1970
(início)
E
5.ª fase: de 1960 a 1962
Em 1959, atingida pelos golpes policiais a que o seu liberalismo abrira portas, internamente dividido, hesitante, sem capacidade de direcção nem popularidade entre as massas operárias e camponesas pode dizer-se que o P«C»P esteve à beira do colapso. Na sua ânsia de o transformar em instrumento de apoio aos objectivos da burguesia, a direcção fora ao ponto de quase o destruir. Ou seja, ao ponto de, retirando-lhe a base de apoio fulcral: a aliança dos operários e camponeses, retirar-lhe igualmente poder de negociação e pactuação interclassista. Um partido enquanto bastião oportunista no seio da classe operária, enquanto neutralizador do seu sector revolucionário precisa de simultaneamente ter penetração e gozar da confiança das massas trabalhadoras e oferecer garantias aos sectores da burguesia com quem pretende aliar-se. Se esta 2.ª condição fora zelosamente cumprida pela direcção, foi-o porém com tanta diligência que começou a fazer perigar a 1.ª; ao perder a base de apoio, o P«C»P tornava a fracção pequeno burguesa radical reformista dirigente isolada na arena da burguesia, retirava-lhe o poder de negociação que lhe advinha do apoio popular.
O oportunismo é neste caso uma ponte entre suas margens, entre duas classes: faltando uma delas, deixa de ter utilidade. Eis o que estava realmente a acontecer.
Isto é extremamente importante, pois é contra os «excessos» ultra-oportunistas, contra os erros mais escandalosos cometidos e contra as suas consequências no quase aniquilamento do P«C»P, como força de mediação interclassista que se vai voltar à «correcção» do desvio de direita. Não é um processo de luta de classes que se instala no seio do partido, mas uma série de correcções das consequências mais graves do direitismo, cujas raízes profundas não são afectadas. Não se tratou de impor uma direcção proletária, mas de rectificar os «absurdos» da direcção pequeno-burguesa podada nas suas posições com quadros novos como seus titulares.
Em que consistiu o processo de «correcção» do desvio de direita?
Fugido de Peniche com um grupo de dirigentes do partido, Cunhal vai liderar em 1960-1961 o processo de «correcção» do desvio de direita.
Em todo ele o que ressalta de forma patente é a recusa em aprofundar as causas dos factos, em os explicar em termos de classe, apontando-os como «ideias de certos camaradas» tal como no período da «política da transição». Atacam-se as manifestações, aborda-se por vezes a sua natureza de classe, mas tudo fica pela rama como se tivesse sucedido por acaso, na intenção deliberada de evitar uma ruptura e uma denúncia completa da direcção pequeno-burguesa. É extremamente sintomático que nas suas reuniões de Fevereiro e Dezembro de 1960, o P«C»P se tenha limitado à crítica nos aspectos organizativos e de estilo de trabalho, sem tocar na natureza política do desvio, que só veio a ser tratado enquanto tal em Março de 1961, e pelos documentos desta altura (ver nota1) se apercebe a verdadeira natureza da «correcção». A saber:
1.º – Quanto à «solução pacífica»: na sequência da «correcção» do desvio de direita espalhou-se a ideia de que o P«C»P a esta «solução» passaria a contrapor a via da Revolução Armada. Não foi isto de forma alguma que aconteceu. Não só se aderiu plenamente à tese do XX Congresso (possibilidade de passar ao socialismo pacificamente pela via parlamentar) como se considerou que tal tese conservava «completa validade e abriu aos partidos comunistas operários amplas e novas perspectivas» tendo simplesmente sido aplicada mecanicamente a Portugal. Aderiu-se ao pacifismo revisionista plenamente, só que se entendeu não ser ele aplicável às condições então existentes da ditadura fascista. De facto mesmo nas condições de ditadura fascista considerou-se que «em momentos muito especiais» tal «solução» era viável. Considerou-se mesmo terem tais condições existido em Maio-Junho de 1958 e que até à penúltima semana da Campanha eleitoral daquele ano «foi justo admitir-se e insistir-se na luta por uma solução pacífica». (o desvio de direita no P«C»P … pág. 20).
O uso do pacifismo, para tais correctores, não estava no pacifismo em si, no que ele representava enquanto conceito de pactuação e despolitização, mas no facto de se ter centrado a luta nessa perspectiva sem quase nunca ter havido condições para tal: «foi uma orientação que não teve em conta as realidades», nada mais! A sabotagem e traição da luta popular? O trabalho degradante e contra-revolucionário que paralisou o processo insurreccional? Tudo fruto de uma «orientação que não teve em conta as realidades…»‼
Sim, porque o partido continuava a ser pela solução pacífica: «O Partido deve insistir em que é seu desejo uma solução pacífica do problema político português e em que tal solução é possível em determinadas condições», (sublinhado nosso) (o desvio de direita no P«C»P … pág. 20), que tais condições devem ser procuradas e que há que «não desprezar quaisquer possibilidades de resolver o problema político sem um choque armado e violento». Só se o fascismo se não deixar derrubar, só se ele resistir, então é que terá de ser derrubado pelas armas. Na conjuntura de então era essa a perspectiva.
Quer dizer: não se atribui ao pacifismo uma natureza de classe, nem de forma alguma se nega o seu papel como via preferencial para a vitória do proletariado sobre ditadura de classe da burguesia, tal como defendia o desvio de direita. O nó da discordância está numa errada avaliação da situação (afinal o fascismo não estava a «desagregar-se») e, consequentemente, numa incorrecta aplicação táctica de uma palavra de ordem absolutamente válida (se o fascismo estivesse a desagregar-se). O facto de se dizer que «tudo indica o que o fascismo nos tempos mais próximos não virá a ceder pacificamente», em nada invalida o carácter anti-científico e anti-marxista da tese central que permanece válida, depois do desvio de direita: a via pacífica é possível, é desejável e é preferível; só se o fascismo não quiser é que não se aplicará. Para a nova direcção o erro residiu em se pensar que aquela, nas condições então vigentes, tinha sido possível: todos os desastres consequentes foram fruto deste «erro de apreciação» desta «aplicação mecânica» das teses do XX Congresso. Legalismo, golpismo, ultra-pacifismo, tudo resultaria deste «fechar os olhos à realidade». Repare-se portanto que a luta armada é na prática apresentada como o último e indesejável recurso da luta popular e não como uma via necessária e inevitável decorrente da própria natureza do estado fascista. «… o levantamento de toda a nação portuguesa que é de desejar imponha sem necessidade do recurso à violência a instauração das liberdades democráticas, mas que assumirá o carácter violento de um choque armado, caso o governo se lhe oponha pela violência» (o desvio de direita no P«C»P …). A porta do pacifismo continuou amplamente aberta: por ela, pouco mais tarde voltariam a entrar, é certo que melhor disfarçadas, todas as concepções e práticas legalistas e direitistas que os pequenos burgueses de então não tinham sabido disfarçar e comedir devidamente. Esse é o seu erro principal, para os cunhalistas.
2.º – quanto à reposição do conceito de «levantamento nacional»: a reposição do conceito de «levantamento nacional», «embora não seja de excluir a solução pacífica», não significa nunca na linha da nova direcção o reconhecimento da luta armada como via oposta à «solução pacífica» dos ultra-direitistas. Insistia-se, por oposição ao legalismo constitucionalista, na necessidade de «derrubar» o fascismo «através do levantamento em massa da nação», mas este «levantamento em massa» era e sempre foi algo de indefinido, uma «onda popular» de características vagas, que, a ser bem conduzida, viria mesmo a excluir, como vimos, o recurso à violência: «Essa orientação (o levantamento nacional) não afasta a possibilidade de uma solução pacífica, antes pode fazer desta uma real possibilidade. A solução pacífica do problema político português será tanto mais uma possibilidade quanto menos ilusões se criarem acerca da sua facilidade e viabilidade (?) (…) quanto mais ganharmos as massas populares para a ideia de que, para derrubar o governo fascista será necessário o levantamento de toda a nação portuguesa (…). Quanto mais o movimento popular ameace, pelo seu poder, derrubar (com a força se tal se impuser) a ditadura fascista, mais possibilidades há de surgirem condições para uma solução pacífica» (O desvio de direita no P«C»P. … pág. 20, sublinhados nossos). Para os cunhalistas a violência continua a não ser «parteira da história», mas a reserva a que os «comunistas», contrariamente, terão de recorrer se o fascismo resistir militarmente a um «avassalador» movimento popular, que nunca se explica, nem bem nem mal, em que consistirá.
Dizer: «devemos preparar as massas para derrubar o fascismo violentamente se não houver outro remédio, mas este surgirá (a solução pacífica) se ao legalismo opusermos a luta de massas» é o mesmo que afirmar: «a solução pacífica está certa, mas nas actuais condições tácticas o caminho de chegar lá não é a vitória eleitoral ou a campanha pacífica para derrubar o Salazar, mas sim a luta de massa». Ou seja: entre a nova e a antiga direcção está unicamente uma «errada avaliação» das condições tácticas. Objectivamente, isto indo à real natureza da «crítica» ao desvio de direita, independentemente da sua fraseologia esquerdizante e pseudo-revolucionária.
Vago quanto aos métodos, o «levantamento nacional» era-o num aspecto ainda mais grave: quanto à natureza de classe, quanto ao papel da aliança operário-camponesa na sua condução. Vejamos melhor este aspecto.
3.º – Quanto à política de unidade: como vimos a «política de unidade» dos ultra-direitistas traduzira-se no abandono puro e simples do papel dirigente da frente de classes por parte do bloco operário-camponês e sua entrega à burguesia liberal. Isto, dado o desprezo votado à condução da unidade popular, em troco da tentativa de praticar «uma unidade ainda mais ampla» (do «Informe Político» ao V Congresso do P«C»P, em 1956), dado que a base unitária de 1943-1949 (MUNAF e MUD) «tivera um carácter exclusivamente democrático» (‼) (de «A situação política actual e a posição do P«C»P, doc. Do CC, Outubro de 1956). Ou seja: tentar chamar à unidade os «elementos não democráticos» (ou seja, anti-democráticos!), os fascistas dissidentes, e colocar-se à trela de tais dissidências. Quer dizer: se era correcto ainda nesta altura organizar a luta unitária contra o fascismo na base de uma aliança de todas as classes não monopolistas, os ultra-oportunistas não acharam isto suficiente: na base da «desagregação irreversível» centraram todo o seu esforço unitário na sedução dos elementos reaccionários e fascistas descontentes com o salazarismo!
Mas que correcção fizeram os cunhalistas?
a) Não criticaram em si, antes pelo contrário, a ligação aos fascistas dissidentes, mas sim o seu excesso: «a ideia do alargamento da unidade é justa. A evolução da situação política criou condições nos últimos anos para atrair à luta pela instauração em Portugal da liberdade política sectores que antigamente mantinham uma atitude de reserva ou suspeição em relação ao movimento democrático. (…) O mal (…) foi pensar-se que o estímulo à acção dos elementos conservadores poderia substituir ou sobrepor-se à unidade das forças democráticas» («o desvio de direita do P«C»P…», pág. 22 – sublinhados nossos). Os cunhalistas deram conta de que alguma coisa mexia, em 1958-59 e a partir de aí, na tradicional base social do regime. Mas levaram tudo à conta, não da evolução do próprio capitalismo e do diferente equilíbrio de estratos dominantes que se começava a gerar, mas de «dissidências de opinião» que interessava meter no saco da unidade: o erro não estava em o P«C»P se aliar a um esboço nascente de uma nova fracção do irredutível inimigo de classe, o capital monopolista, mas em se aliar predominantemente a ele! Por isso mesmo:
b) Foram incapazes de traduzir em termos de uma análise marxista as transformações do capitalismo português a partir da década de 50 e sua consequência no esquema de alianças interclassistas: não souberam detectar o surto da base industrial e monopolista do capitalismo português, a substituição da oligarquia familiar monopolista-latifundiária por um capitalismo monopolista industrial altamente concentrado como forma dominante, cuja evolução anulava a etapa histórica da revolução conduzida pela média-burguesia, falida como classe «revolucionária» e que a partir de aí começava a jogar dentro do sistema para nele partilhar, como classe capitalista, da sua fatia na exploração. As eleições Delgado foram a última oportunidade de realizar a unidade dos explorados com todos aqueles que eram impedidos de explorar. Mas recusando a consequência política da restrição do esquema de alianças (pois se nem dos dissidentes do regime se quiseram desligar!) os cunhalistas continuam a meter no mesmo saco todas as forças «não-monopolistas», incluindo logicamente, as que a partir desta fase se começam a definir como inimigas dos objectivos unitários das classes exploradas.
c) Continuam a não definir o carácter de classe da unidade no «levantamento nacional» e a não afirmar relativamente a ela o papel dirigente do proletariado: se o «levantamento nacional», como vimos, como instrumento de luta é uma coisa totalmente indefinida, a unidade que ela pressupõe permanece estabelecida em critérios anti-científicos e oportunistas: não na base de uma análise de classes, das suas inter-relações e interesses, mas como «todos os partidos, agrupamentos e individualidades que representam os interesses das classes que se opõem aos monopólios» (O desvio de direita no P«C»P…, pág. 21). Em termos de «forças políticas», «correntes de opinião», mas não de classes, que aliás, de resto, se não analisam. E, se quanto ao papel do proletariado, o P«C» passou a reconhecer ter o desvio de direita conduzido à sua «subestimação», «redução» e «apagamento», dizendo que ele deve passar a ser «determinante», nunca se afirma, político-ideologicamente, como tinha de se fazer à luz do marxismo-leninismo, que este papel não é só determinante como dirigente da unidade popular e democrática.
Mas, repare-se, como o poderiam ter feito? Mantendo o proletariado à trela dos interesses reformistas da burguesia liberal, que nesta fase deixam de ser redutíveis a uma plataforma de unidade táctica com as classes exploradas, mantendo em luta o povo por objectivos que são essencialmente os de uma classe que deixa de ser sua aliada para o ser dos monopólios, como se poderia afirmar o papel dirigente da classe operária neste processo? Ficaram pelo «determinante»: mais coerente e menos assustador para os seus aliados «não-monopolistas».
4.º – Quanto à exploração colonialista: se, desde sempre, e em particular no «desvio de direita», a exploração dos povos coloniais nunca foi óbice para a direcção pequeno-burguesa confraternizar «democraticamente» com os estratos colonialistas da pequena e média burguesia, também os cunhalistas continuaram a fazer letra morta e a omitir completamente o papel do P«C»P e do seu dever de solidariedade internacionalista com os povos coloniais. Só com uma diferença: é que em 1961 estala a rebelião armada nas colónias. À pressa o P«C»P virá gritar o seu internacionalismo, na prática nada se alterará: não prejudicar o unitarismo médio-burguês com uma atitude internacionalista; melhor: trair a sua solidariedade com a luta revolucionária anti-colonialista em favor dos interesses coloniais consubstanciados na plataforma unitária imposta pela burguesia média e ao seu serviço.
A partir de 1961 a traição da solidariedade internacionalista tem uma cínica particularidade relativamente ao «desvio de direita»: tem de verbalmente, demagogicamente, apregoar-se de anti-colonialista. No fundo são os interesses neocolonialistas da média e pequena burguesia que se defendem.
5.º – Quanto ao estilo de trabalho e organização: neste campo pode dizer-se que a crítica, tendo sido mais completa, continua ao nível das manifestações externas e das explicações das coisas na base das «concepções erróneas». Vai-se no entanto operar um reforço da organização do P«C»P e os seus processos de trabalho. Bem cedo, fruto da demagogia e superficialidade de todo este processo crítico, a reposição dos princípios do «centralismo democrático», devidamente esvaziado do seu conteúdo ideológico revolucionário, vai servir como instrumento autoritarista de uma fracção oportunista, impedir a crítica de base e esmagar à nascença toda a tentativa de superação marxista-leninista do impasse.
6.º – Quanto ao trabalho teórico e baixo nível ideológico da organização: se bem que detectado, se bem que relacionado com o desvio de direita e com a sujeição do movimento operário à linha da burguesia, ele vai permanecer fundamentalmente inalterado. Se o desvio de direita «corrigido» não pelo processo de uma intensa e aprofundada luta ideológica, não pelo processo da luta de classes no seio do P«C»P, mas por intermédio de um compromisso resultando numa crítica frouxa e oportunista, de tal crítica não se poderia abrir caminho para um reforço do nível teórico e da vigilância revolucionária do P«C»P. Se ao oportunismo degradante e abertamente contra-revolucionário se substitui um outro só formalmente diferente mas melhor escondido, logicamente continua a não ser do interesse da nova direcção elevar a consciência política dos quadros e das organizações. A ausência de discussão política e de estudo e a impreparação teórica da esmagadora maioria dos quadros vão-se manter e, com a agudização das contradições, acentuar e alimentar: este é um dos sintomas mais nítidos e reveladores do carácter oportunista, superficial e ele próprio pequeno-burguês do que se chamou a «correcção do desvio de direita».
Podemos pois agora tirar algumas conclusões sobre tal «correcção»:
— A despeito de se ter traduzido num certo número de expulsões e despromoções a «correcção do desvio de direita» não acabou (nem isso pretendia) com o direitismo no P«C»P nem arrancou e eliminou as posições de direcção da pequena-burguesia radical-reformista no seio da organização: sem tocar, na maioria dos aspectos essenciais, na verdadeira raiz ideológica dos desvios, sem atentar contra a base das concepções direitistas, limitou-se a criticar e corrigir os excessos, o levar demasiado adiante de posições cuja natureza se aceita. Daí se ter a clara percepção de se pairar numa crítica demagógica e oportunista dos efeitos para disfarçar as causas;
— Isto significa que tal correcção foi, ela também, da direita oportunista: visou reforçar o P«C»P não para o afirmar como vanguarda proletária revolucionária, mas para impedir que, pelo ultra-direitismo, ela viesse a perder o apoio popular e a deixar de ter base de negociação com a burguesia a quem continua atrelado;
— A natureza da «correcção» do desvio de direita traduziu-se em última análise num reforço da pequena-burguesia na direcção do movimento: neutralizando, por uma crítica verbalista e formalmente esquerdizante, a radicalização do descontentamento das bases e suas consequências revolucionárias; radicando ainda mais fortemente o reformismo, posto que simulando formalmente a sua irradicação melhor e mais demagogicamente ele foi encoberto e disfarçado e instalado; melhorando a inserção das massas e aumentando, consequentemente, o poder de negociação com os restantes sectores da burguesia.
Com um novo figurino terminológico, com uma prática mais dinâmica e activista, tendo realizado no essencial uma certa unidade no P«C», a pequena-burguesia parte para nova caminhada: em breve os acontecimentos a ultrapassarão fazendo-a tirar a máscara…
Hoje, conhecida a experiência do período que sucedeu à «correcção» do desvio de direita é-nos possível sintetizar tal prática em certas conclusões teóricas, é-nos possível, nomeadamente, perceber como os acontecimentos posteriores vão, em boa parte, radicar no oportunismo da crítica de 1961. Nem sempre foi assim: a maioria (nem todos, como veremos) dos quadros que se lançaram à luta contra o direitismo, não se aperceberam da natureza oportunista de tal luta. Mais: representando ela em vários aspectos a denúncia de oportunismos escandalosos mais imediatamente sentidos e o reforço dos métodos do trabalho e organização, tal crítica mobilizou muitos quadros do P«C» num esforço reorganizativo que lhe permitiu retomar em boa medida a confiança popular e conduziu a um vasto incremento e alargamento da organização a níveis que talvez nunca tenha alcançado, nomeadamente nas grandes concentrações operárias. A «correcção do desvio de direita», apesar da sua índole reformista está na origem de um importante movimento de inserção do P«C» nas massas e dum reforço objectivo do seu papel dirigente da luta. Reforço politicamente assente em pés de barro: mas reforço efectivo que resultou da «correcção» de certas posições e métodos cujo desaparecimento (embora aparente) só por si e nesse momento fez crer a uma organização ideologicamente débil que o direitismo estava de facto morto. Reforço facilitado também pela própria evolução da situação do capitalismo português: no advento dos anos 60 assiste-se a um importante surto de industrialização e concentração de empresas nas regiões do Porto, de Lisboa e Setúbal. A diminuição decisiva do peso do artesanato industrial a favor das grandes unidades gera uma cintura proletária naqueles distritos numerosa e politizável, que, juntamente com o proletariado rural alentejano e ribatejano e certas camadas da pequena-burguesia urbana vão travar importantíssimas batalhas que originarão simultaneamente uma importante viragem no movimento revolucionário português. Por outro lado, com a eclosão da guerra colonial e o agravamento das condições de vida, a intensificação da exploração e o aumento constante da repressão, generaliza-se o descontentamento a largas massas populares, radicaliza-se e agudiza-se a luta de classes. Condições objectivas favoráveis, fortalecimento das possibilidades subjectivas, tudo se conjuga para se poder definir um nítido ascenso da luta popular que entra numa clara fase de fluxo.
As eleições para deputados em Novembro de 1961 foram o primeiro sintoma de tal ascenso: na linha unitária «ampla» e de direita da «correcção», o P«C»P concorreu em unidade com sectores liberais e burgueses manifestamente reaccionários e anti-populares, nomeadamente ligados a interesses colonialistas, monopolistas e de grandes agrários (Directório de Acção Democrato-Social). No entanto, tal participação, ainda que na plataforma médio-burguesa, teve um carácter de independência e autonomia que nunca tinha assumido desde 49. O P«C» manobrou com notória posição de força, e transformou as eleições numa importante luta de massas contra a farsa eleitoral e o fascismo, num processo em que a burguesia foi completamente marginalizada e ultrapassada: as manifestações de rua em Lisboa, sucedendo-se em rimo crescente e trazendo cada vez mais pessoas, e, principalmente as memoráveis mobilizações operárias da margem sul fizeram descer à rua milhares de trabalhadores em Almada, na Cova da Piedade, etc., num afrontamento directo com a GNR de que resultaram mortos, assaltando a esquadra de Almada da PSP, apedrejando os centros de votação, etc., foram sintoma certo do crescendo da luta popular.
Depois das manifestações de 31 de Janeiro e do 8 de Março no Porto, em Março de 1962, desencadeia-se e rapidamente se radicaliza e estende a todo o país a luta dos estudantes de Lisboa que a burguesia tenta desesperadamente manter isolada da luta popular, em parte sem êxito.
Com uma forte organização nacional o P«C» lança então as jornadas de Maio: no dia 1.º de Maio, em Lisboa, Setúbal, Almada, Porto, Aljustrel e todo o Baixo Alentejo, centenas de milhares de trabalhadores, recorrendo a processos de auto-defesa artesanais, enfrentam as forças da PSP, da GNR, da LP e da PM em verdadeiras batalhas de rua cuja intensidade e extensão ultrapassam em tudo as melhores previsões. Todo o mês de Maio de 1962 marca uma viragem decisiva da luta das massas: as lutas operárias nas concentrações industriais, as greves e manifestações estudantis, os levantamentos camponeses pelas 8 horas de trabalho atingem então o seu ponto máximo, desdobrando-se em acções espontâneas e não controladas. Se bem que não se tenha atingido um estado pré-insurreccional como em 1958 (em 1962 o poder estava firmemente coeso no esforço repressivo), atingiu-se sem dúvida o limiar de um certo tipo de luta que, note-se, não era já dirigida pela média-burguesia, como em 1958, mas indiscutivelmente pelo P«C». Deve notar-se, porém, que apesar da direcção residir no P«C» isso não significa que esta tenha sido revolucionária: que a radicalização da luta tenha sido dirigida ou desejada pela direcção daquele. O entusiasmo de uma organização em aparente ruptura com o direitismo, a existência de excelentes condições objectivas, fizeram as lutas atingir limites que ultrapassavam em tudo os interesses da pequena-burguesia dirigente do P«C» e ultrapassava porque a partir deste momento gera-se na organização, ou nos mais militantes sectores dela, a consciência da necessidade de se saltar qualitativamente nas formas de luta, de que se tinha atingido o limiar de um processo de luta e que para radicalizar o combate e mantê-lo em ascenso era preciso começar a conjugá-lo com a acção armada. Melhor: que o centro de gravidade da luta de classes começava a deslocar-se para a luta armada, ante as novas condições existentes. Mas desta conclusão fugia desesperadamente a direcção do P«C»: adoptá-la seria fazer estalar toda a estratégia de «levantamento nacional», toda a «política de unidade», ou seja, todo o compromisso com a média burguesia. Seria, em última análise, fazer enveredar o movimento pela via revolucionária e pela liquidação, a curto prazo, da fracção pequeno-burguesa dirigente.
Da solução a dar à continuidade das lutas dependeria o julgamento da própria utilidade futura que elas tivessem: o arranque para um surto revolucionário ou um salto no vazio cuja frustração e desmobilização lançariam fatalmente a luta popular num novo período de refluxo. As duas saídas não eram porém meramente tácticas. Como vimos, elas prendiam-se à própria estratégia da luta do proletariado e ao papel nela do P«C»; o seu confronto fazia pois surgir à luz do dia e com clareza a natureza reformista da direcção contra a fracção nesse momento revolucionária. Originar tal confronto e o fim das ambiguidades foi o fruto necessário da radicalização da luta de classes de 62. Mas a incipiência das posições revolucionárias, a fraca vigilância de classe do geral das organizações do Partido, o baixíssimo nível teórico dos quadros, a predominância teórica e prática das posições pequeno-burguesas reformistas não deixava ilusões sobre o desenlace da luta: a pequena-burguesia manteve as suas posições, frustrou as lutas e lançou o movimento num profundo refluxo político e organizativo. Pagas com uma grande desmobilização popular, as lutas de 62 terão o mérito de tirar a máscara à direcção reformista e de vir a viabilizar a 2.º tentativa histórica de ruptura com a pequena-burguesia na direcção do movimento operário.
(início)
D
4.ª fase: de 1956 a 1959
A luz verde para o despertar oportunista vai ser dada pelo XX Congresso do Partido «Comunista da URSS. Tendo esta reunião marcado o início do assenhoreamento da direcção do P«C»US por uma fracção revisionista que daí em diante irá iniciar o processo de reconstrução capitalista em vários países socialistas e originar o aparecimento de uma nova burguesia naqueles países, ela representa igualmente, a nível do movimento comunista internacional quer a sanção para o oportunismo já reinante nos principais partidos da Europa Ocidental e da América Latina, quer o incitamento ao revisionismo internacional para despertar do seu torpor disfarçado. A linha de pactuação com o imperialismo consubstanciada no entendimento e na prática revisionista da «coexistência pacífica» e na teoria das «soluções pacíficas» é o produto internacional de uma vasta ofensiva do direitismo, das pequenas burguesias radicais, das aristocracias operárias, etc., com vista a dominar as organizações proletárias nacionais.
Perante a favorável conjuntura internacional, e aproveitando a fraqueza estrutural e conjuntural do P«C»P, a pequena burguesia radical-reformista dominante passa, imediatamente a seguir ao termo do Congresso, à acção, assenhoreando-se rapidamente, sem a mais pequena dificuldade ou qualquer resistência séria, da completa e exclusiva direcção política do P«C»P o que atesta bem a insignificante vigilância ideológica e revolucionária existente na organização.
Logo em Maio de 1956, na 1.ª reunião do CC a seguir ao XX Congresso, se fala num amplo movimento de unidade antissalazarista que «criará condições para a solução pacífica do problema português». Seguidamente a «solução pacífica» é erigida em princípio oficial, em linha política oficial do P«C»P que expressamente a consagrou no V Congresso (III Ilegal) do partido.
A partir desta altura até aos nossos dias vamos pois assistir ao crescimento harmónico da tradição libertária, reformista ou anarquizante e da fraternidade inter-classista, característica do oportunismo histórico da pequena burguesia radical portuguesa, com as concepções revisionistas de pacifismo e pactuação com a burguesia, qua a partir de 1956 dimanam do P«C»US para grande número de partidos de todo o mundo. De características diferentes, estas concepções vão fundir-se em definitivo na linha de direcção do P«C»P, manifestando-se sem qualquer disfarce até 1959, em cambiantes e variações diferentes em torno da mesma raiz burguesa. A isto se chamou mais tarde o «desvio de direita». Aprofundemos um pouco este tema, cujos ensinamentos que fornece são enormemente pedagógicos para uma luta actual.
A linha política do «desvio de direita»
Tal como na «política de transição» o cerne do «desvio de direita» é a pretensão declarada de pôr a luta popular ao serviço dos interesses reformistas, legalistas ou golpistas da pequena e média burguesia, pela negação do papel condutor da aliança operário-camponesa na luta democrática e pela explícita sabotagem dos objectivos e interesses específicos do proletariado.
Se tal linha, aquando da «política de transição» não pôde ser imposta claramente pela pequena burguesia por circunstâncias que vimos, permanecendo no entanto sob disfarces verbais radicais, agora, ante condições novas, vai ser abertamente aplicada: o refluxo da luta popular, a fraqueza das concepções revolucionárias no seio do P«C»P, o aval revisionista internacional, fazem a pequena burguesia dirigente tirar a máscara e perder a vergonha…
Mas que teoria forjaram os direitistas neste seu eufórico despertar?
Com base nas decisões do XX Congresso do P«C»US (que preconizava possibilidade de passagem pacífica do capitalismo ao socialismo) a partir de Maio de 1956 e definitivamente com o V Congresso em 1957, a direcção do P«C»P passou a defender como linha oficial a tese da «solução pacífica para a substituição do regime». De início esta tese substitui a linha do «levantamento nacional». Para «justificar» tal «solução» os ultra-direitistas proclamaram a «desagregação irreversível» da ditadura fascista: uma «análise nova» da correlação de forças mundiais e nacionais, possibilitava concluir que o regime estava em vias de «completa desagregação» e que a tarefa central do partido se devia centrar, não na luta independente das massas, sob a direcção operário-camponesa, mas no esforço para «aprofundar as contradições internas do regime». Por essa via o salazarismo acabaria por cair pacificamente, toda a luta popular devendo ser orientada com vista a agravar esta «decomposição política irreversível». Esta tese fundamentalmente idêntica à da «teoria da transição» e da iniciativa dos mesmos quadros que então por ela se bateram levam igualmente, com idêntico despudor, à mesma traição escandalosa: «desligar do salazarismo os fascistas descontentes», «mobilizar os jovens da MP contra os dirigentes e estabelecer acordos com os legionários», «não fazer ataques frontais como atá aqui, à UN, à Legião Portuguesa, à Assembleia Nacional, mas sim aos elementos mais reaccionários que se encontrem aí», etc. …, etc. … (Proposta de «Ramiro», elemento da direcção, ao CC do P«C»P em Abril de 1956 «sobre a orientação política do partido», propostas essas essencialmente adoptadas no V Congresso em 1956).
Em vez de centrar a política de unidade, assente na aliança operária-camponesa, na unidade das forças democráticas não monopolistas, o que durante esta fase do capitalismo podia continuar a considerar-se correcto, os reformistas lutaram sim por obter o apoio dos «fascistas dissidentes» (‼!) com vista a piorar a «desagregação» e criar uma unidade numa «base ainda mais larga». O resultado desta «preocupação» foi colocar mais uma vez as lutas populares sob a direcção e ao serviço do poder de negociação da burguesia liberal que melhor as captou; foi pôr os operários e camponeses na esteira do constitucionalismo e reformismo burguês, ou dividi-los sabotando a sua aliança, dado o grande controlo ideológico que se deixou a burguesia obter sobre as massas, nomeadamente no campo. Eis a que limites de degradação levou o domínio pequeno-burguês, ainda sem os períodos de linguagem que hoje tem, forte do aval revisionista soviético e internacional. Portugal foi um dos exemplos típicos em que a «solução pacífica» do XX Congresso, reforçou e explicitou a passagem para a coexistência inter-classista, e, mais do que isso, para sujeição da luta proletária à direcção da burguesia.
A partir desta fase de traição aberta e vergonhosa da luta proletária, nunca mais a pequena burguesia abandonou o controlo estreito da direcção do P«C»P, ainda que para tal tenha tido que recorrer a «correcções» e a «denúncias» dos «excessos» nesta fase cometidos. Por seu intermédio, e a partir dela, se inculcaram na luta popular profundas marcas e vícios oportunistas de toda a ordem: o legalismo, o golpismo, o liberalismo, etc. … etc. … que ainda hoje pesam decisivamente na prática revolucionária e nova do proletariado. Isto, aliado ao cepticismo e à descrença que as miseráveis traições estão cometidas relativamente às grandes batalhas populares originaram nas massas, eis o balanço do controlo radical pequeno-burguês do P«C»P, eis o seu «contributo histórico» à luta do proletariado português, na altura em que os seus caciques preparam as comemorações gastronómicas e folclóricas do seu 50.º aniversário.
Três formas diferentes de oportunismo pacifista-revisionista marcaram este período:
1.º) o oportunismo legalista: campeou antes e durante as «eleições» presidenciais de 1958 e consistia na afirmação de que a «solução pacífica» possibilitada pela «desagregação» residiria num «triunfo eleitoral das forças democráticas» (?!): «na base da mais ampla unidade, as próximas eleições (tratam-se das eleições para deputados para a AN em 1957) permitirão a condução de uma campanha suficientemente poderosa para arrancar ao regime as liberdades fundamentais…» afirmava o CC explicando «que isto é possível mesmo dentro de um regime ditatorial e fascista prova-o a vitória da oposição na Grécia em Fevereiro deste ano…» (Resolução do CC do P«C»P de Maio de 1956). Tal foi a orientação dominante durante a campanha eleitoral de 1958: «concorrer à boca das urnas, sem condicionalismos prévios», determinou o V Congresso. Todas estas posições e linhas, que nada têm a ver com o marxismo-leninismo, ou mesmo com a mais elementar consciência política proletária, que não passavam de subprodutos ultra-oportunistas que só num partido sem qualquer espécie de vigilância revolucionária conseguiriam triunfar, levaram à completa castração e frustração das imensas batalhas populares desta época que conduziram o país a um estado pré-insurreccional. Cabe à direcção do P«C»P a responsabilidade histórica de ter intencionalmente abortado e traído um possível assalto insurreccional ao poder. Foi pois intencionalmente que não preparou, que sabotou, que desaconselhou de preparar formas superiores de luta que respondessem à burla eleitoral em que «não acreditava»: «… falar ao partido e às massas na necessidade de preparação de greves para depois do acto eleitoral seria admitir com antecedência a ideia de uma derrota…» dizia o CC (Relatório da Comissão Política do CC, apresentado na reunião do CC de Agosto de 1958).
Durante todo o período eleitoral, em que as massas foram muito mais sensibilizadas e dirigidas pelos «leaders» da oposição burguesa, foi esforço constante do P«C»P evitar todo o «excesso» que estragasse o arranjo com os interesses da burguesia liberal: os levantamentos de unidades militares foram abafados, as greves desaconselhadas (é sabido que na cintura de Lisboa, na margem Norte, foram-no, sob pressão de quadros do P«C»P, empresários e donos de fábricas (‼)), as acções radicais condenadas. Interessava, isso sim, ganhar as eleições! Depois da burla foi a desorientação, a desmobilização: as massas lançam-se para greve por iniciativas pessoais de grupos mais destacados ou de organizações locais do P«C»P. A direcção vem a reboque, atrás dos acontecimentos que não previra nem desejara. Desalentadas, sem perspectivas nem condução, conscientes da imensa fraude que tinham sido vitimas, as massas populares desmobilizam-se e recuam. O poder entretanto contra-ataca e retoma as suas posições.
2.º) o oportunismo golpista: surge após a «desilusão» eleitoralista e traduz-se na negação do papel motor da aliança operário-camponesa e das massas populares no derrubamento do fascismo e na atribuição desse papel aos «dissidentes do regime», neste caso, militares, oficiais «desiludidos» com a situação. Estes, na boa lógica da «desagregação irreversível», apeariam a ditadura por golpe militar, mas também «pacificamente», sem derramamento de sangue: uma revolta de palácio‼
Centrando as esperanças nos golpes militares dos sectores conservadores da burguesia, a direcção do P«C»P, a eles sujeitou a sua acção. O objectivo é o mesmo: evitar e castrar a iniciativa e os objectivos próprios da classe operária e seus aliados; pô-los a reboque, neste caso, do «putschismo» que substitui as urnas como «instrumento revolucionário»; evitar que as massas com as suas lutas radicais estragassem o belo arranjinho da pequena e média burguesia, cujos interesses seriam bem protegidos «na lei e na ordem» pela «disciplina e aprumo» das forças militares insurrectas. Chamava a isto o CC «a conjugação da acção das massas e das forças amadas…», «o movimento militar e popular» em que as «acções civis», da iniciativa do P«C»P , e estariam sujeitas e subordinadas em tudo ao Movimento Militar Independente, no qual o partido não participava e cujos planos até desconhecia! Ou seja: retomando a tradição golpista-anarquista profundamente enraizada no passado na classe operária e de novo amplamente espalhada nas massas, o P«C»P adoptou-a como linha táctica oficial em dado momento com a «particularidade» de todos os aspectos da condução do golpe fugirem completamente ao seu controlo para as mãos da burguesia conservadora. Em Março de 1959 o MMI falha o «putsch» (o golpe da Sé de Lisboa) e a direcção do P«C»P tem de arranjar nova «saída pacífica»…
3.º) o oportunismo ultra-pacifista: desiludida com os insucessos golpistas, a direcção do partido enceta então em Maio de 1959 a «Campanha para a demissão de Salazar» que culminaria como «expressão máxima» da «Jornada Nacional Pacífica para a demissão de Salazar» (‼!). tal «Jornada» que «forçaria Salazar a sair do Governo» (!?) revestiria a forma, à semelhança dos «irmãos» revisionistas espanhóis, duma «greve geral política de carácter pacífico». Tudo sempre na perspectiva de forçar a «desagregação irreversível» do regime que, evidentemente, continuava a acentuar-se sem cessar!
O oportunismo legalista desta fase dispensa comentários alongados: o inimigo não é uma classe, é Salazar (como aliás em todo o período); e o pacifismo vai ao ponto de considerar que as estruturas quebrariam por si numa altura de grande refluxo da luta popular e de forte incremento repressivo e recomposição das forças e grupos dominantes. Se, por natureza, as «saídas pacíficas» são teorias anti-científicas que fazem letra morta da análise marxista-leninista do carácter do estado capitalista, para pregar o pacifismo e a coexistência de classes antagónicas, no caso português, elas foram ao ponto de fazer carreira numa ditadura fascista e num período de terrorismo policial.
É por esta altura que, aproveitando a ambiguidade da linha do «levantamento nacional» a direcção entende poder reeditá-lo sem perigo de «equívocos» acrescentando-lhe a natureza de «pacífico».
Profundamente atingido nos seus quadros, impopular, desligado das massas operárias e camponesas, vemos surgir então todo o reportório terminológico, demagógico e triunfalista que, em vão, se pretendia esconder o desastre em que se afundava o movimento proletário.
O «desvio de direita» e o estilo de trabalho
É também extremamente importante para a futura compreensão de todo este processo, conhecermos o que foram 3 anos de estilo de trabalho ultra-liberal e oportunista.
A fracção pequeno-burguesa, em 1956, perante o descrito condicionalismo favorável, reforça facilmente a sua direcção do partido, mas sem que para tal, apesar de tudo, tenha podido prescindir do puro e simples esmagamento das normas fundamentais do trabalho partidário leninista. Rebentar com os métodos e os processos leninistas para se apoderar definitivamente do aparelho em 1956; utilizá-los formalmente nas suas manifestações exteriores e despidos de todo o conteúdo proletário, seguidamente, para impedir ser apeado pela base. Este foi o ciclo organizativo do controlo pequeno-burguês de direcção do P«C»P entre 1956 e 1962, como veremos: a partir de 1956 a pequena-burguesia deixa de correr o risco de ser apeada e reforça definitivamente o seu controlo da direcção.
Nesta fase, o taque cerrado pelo controlo da direcção é favorecido necessariamente pelo desmantelamento das suas defesas, dos seus métodos leninistas, ou seja, dos princípios do centralismo democrático.
Bebendo na «contribuição de inapreciável valor dada aos partidos comunistas de todo o mundo pelo XX Congresso» (como lhe chamou[1] quem viria a «corrigir» o desvio de direita) – «o desvio de direita no P«C»P nos anos de 1956-1959», doc. do CC, 1961, pág. 1 e seguintes – os ultra-direitistas lançaram a partir de 1956 luta contra o «culto da personalidade» dentro do P«C»P. O V Congresso descobre não só «cultos de personalidade individuais», como também «o culto da personalidade do Secretariado como organismo», e lança uma campanha pela «democratização» do P«C»P.
Fazendo renascer a tradição e o estilo anarquista e liberal na prática do movimento operário, a fracção pequeno-burguesa começa por impô-lo e generaliza-lo na vida do Partido, como forma de melhor abater a resistência revolucionária e a vigilância de classe. O anarco-liberalismo foi o processo organizativo necessário à pequena burguesia para impor politicamente o direitismo, o golpismo, o eleitoralismo, etc. …, para sujeitar a luta proletária aos seus interesses, para reforçar decisivamente a sua direcção do P«C»P.
Em que se manifestou a linha anarco-liberal no trabalho de organização?
a) O «nivelamento» e o «igualitarismo» pequeno-burgueses: com base no combate ao «culto da personalidade» radicado no desprezo anarquista pelos dirigentes, esta tendência impunha o nivelamento artificial dos quadros independentemente da sua competência, da sua dedicação e, das provas prestadas na luta. Numa luta contra as «hierarquias» que negava a importância da luta pelos mais valorosos, dedicados e aptos quadros revolucionários, que negava a exaltação do exemplo do heroísmo, coragem e apego à causa do proletariado, que visava objectivamente apagar nas massas o prestígio e a consideração pelos dirigentes revolucionários postos ao nível das personalidades da opinião burguesa. Era o método de ataque e desprestígio das tradições revolucionárias da luta do proletariado português que servia os interesses da pequena burguesia na destruição da firmeza comunista do Partido. E assim, isso levou às seguintes práticas
1. – uma política liberal e oportunista de recrutamento e promoção de quadros que abriu ainda mais a organização a oportunistas e provocadores;
2. – uma atitude de «compreensão» e de «maleabilidade» para com os quadros que levou a aceitar não só atitudes individualistas e comportamentos liberais de toda a ordem, como, e principalmente, a sapar a intransigente vigilância ante o porte na polícia: «menos rigidez» na avaliação dos comportamentos, condenação como «erros» da divulgação pública da traição, recusa como «culto da personalidade» da exaltação pública dos comportamentos corajosos, etc. ..., etc. …
3. – o obreirismo que idealística e espontaneamente pressuponha as qualidades inatas dos quadros operários e que levou a tomar a defesa dos bufos que aceitavam as direcções dos sindicatos fascistas: «salvo raras excepções (!), os dirigentes sindicais se são trabalhadores, estão relacionados com os interesses da classe operária e não da burguesia» (‼!) «explicava» o «Avante» em Maio de 1957, conduzindo igualmente à promoção à direcção do P«C»P de indivíduos que vieram a trair miseravelmente: Amador, Martinho, Candeias, Malaquias, L. Reis, etc.;
4. – guerra ao prestígio dos dirigentes passados e actuais do movimento operário, traduzida no seu desprestígio e apagamento aos olhos das massas, na recusa em defendê-los quando presos, no seu nivelamento ou apagamento ante os dirigentes da burguesia;
5. – a «democratização» e grande abertura do órgão como o CC onde se adopta a prática de que «todos os membros podem fazer tudo» e de que as funções devem rodar periodicamente por todos igualmente (o rotativismo), abrandando a compartimentação e a organização do trabalho, sapando a autoridade e o prestígio dos órgãos superiores mais restritos, abrindo totalmente a direcção central aos oportunistas provocadores e traidores, impedindo uma efectiva e regular condução centralizada da luta;
b) A desautorização e desprestígio do Secretariado do CC: como aspecto particular da luta contra o «culto da personalidade do Secretariado» e pelo «nivelamento». O Secretariado foi um dos alvos preferidos dos direitistas, pois nele repousava até aí o papel de vigilância ideológica e centralização política de quadros, como órgão supremo. O seu aniquilamento na prática, o seu desprestígio, a redução das suas tarefas ao nível do tarefismo, o retirar-lhe a função de órgão supremo central da vida do Partido, foi objectivo básico da Comissão Política do CC onde se acoitava o quartel-general da ofensiva da pequena-burguesia: Júlio Fogaça, Pedro Soares e outros. Tudo isto acompanhado de internas lutas intestinas e intrigas que ocupavam o grosso do tempo de trabalho e paralisavam politicamente a vida da direcção.
c) O «anti-centralismo», a «autonomia» e o liberalismo: retomando a bandeira democratista de todos os anti-leninistas na história do movimento operário e dos anarquistas em Portugal, negando o centralismo democrático e os princípios da disciplina revolucionária, os ultra-oportunistas foram nesta fase os campeões da «democracia interna». A tolerância perante a indisciplina, o aceitar como normal da desobediência às decisões dos órgãos superiores, a união de «feudos» «autónomos» no seio do Partido, o fazer estalar a unidade e coesão de uma direcção central e consequentemente toda a possibilidade de uma acção leninista e revolucionária, foi o caminho nítido que trilharam os ultra-direitistas para se encaixarem nas suas posições e reforçarem o seu controlo. Dividir, desarticular, quebrar, para mandar. Depois, para não serem corridos, repor todas as formalidades e aparências fazendo funcionar o autoritarismo, impedindo as discussões, neutralizando os opositores, tudo já em nome do «centralismo democrático»! A par disto, generalizou-se em todo o Partido, formulado pela sua direcção, um método de trabalho retintamente liberal: o desleixo, a inconfidência, a descompartimentação, o individualismo, a indisciplina, a irrealidade, o vedetismo, a imposição, etc. …, importados também do ambiente de «desagregação irreversível» do fascismo, tornaram o Partido mais num clube democrático do que numa organização proletária, abrindo as portas aos provocadores, aos oportunistas e aos carreiristas: a pequena-burguesia recrutava no fundo, a sua base social.
d) O desprezo e a sabotagem da luta ideológica e do trabalho teórico: é uma consequência lógica do domínio pequeno-burguês. Tornado este possível pela fraca capacidade de vigilância ideológica e classista do P«C»P, obviamente não iria fomentar o progresso da consciência política proletária. O praticismo, a total ausência de luta ideológica e de trabalho teórico foram, e são, características típicas do direitismo; desde então, nunca o P«C»P traduziu qualquer das obras fundamentais dos clássicos do marxismo, à excepção do «Esquerdismo» e falsificação grosseira do Manifesto Comunista. A pactuação com a burguesia pressupunha uma fraca consciência política generalizada, que aliás acentuou decisivamente.
Concluindo, podemos afirmar que o chamado «desvio de direita» não foi mais do que o reforço decisivo e definitivo da direcção radical pequeno-burguesa do aparelho do P«C»P. A partir desta altura ela moldará o partido organizativa e politicamente às suas necessidades, sem as peias, as ambiguidades, as dificuldades que lhe tinham imposto nos anos 40 um forte e radicalizado movimento popular, e um campo socialista vigilante e revolucionário. A partir desta altura deixa de haver possibilidade de superar revolucionariamente do interior do P«C»P a sua direcção direitista. Se a debilidade ideológica e a fraca vigilância proletária antes o tinham impedido, agora, são as próprias defesas organizativas e políticas da pequena-burguesia radical dominante que o impedirão. Todas as «concessões» posteriores à linha nesta fase não são mais do que adaptações da própria pequena-burguesia com vista a responder a necessidades novas, a «emendar erros tácticos», a reforçar no fundo o seu controlo exclusivo.
Do peso do seu oportunismo, do seu legalismo, do seu eleitoralismo, do seu golpismo, do seu pacifismo e do seu liberalismo, refinação de uma prática e teoria da direcção histórica da pequena-burguesia radical ao movimento operário, se ressente e ressentirá o movimento proletário, ao querer assumir uma linha revolucionária.
[1] Referimo-nos essencialmente aos seguintes documentos: – «O DESVIO DA DIREITA NO P«C»P nos anos 1956-1959» (Documento do CC de Março de 1961 e a resolução do CC da mesma data); – «A TENDÊNCIA ANARCO-LIBERAL NA ORGNIZAÇÃO DO TRABALHO DA DIRECÇÃO» (doc. do CC de 1966) e «O MILITANTE» n.º 111.
(início)
B
2.ª fase: de 1943 a 1949
A partir de 1942 nota-se um reforço das posições revolucionárias no trabalho da direcção do P«C»P. centrando a sua actividade essencialmente na organização, na defesa e no impulsionamento da luta de massas como objectivos centrais, 6 meses depois de estar à beira da desaparição, o Partido dirige (através do seu Secretariado) funcionando como Comité Nacional de Greve, as grandes greves de Julho e Agosto de 1943. Durante o período subsequente o P«C»P irá enraizar-se pela primeira vez profunda e duradouramente nas massas a nível nacional, conquistando um importante prestígio e um indiscutido papel de direcção na luta popular. Vive-se num período de predominância duma prática revolucionária, dum nítido reforço do papel do P«C»P e de fluxo das lutas populares: três meses depois das greves de 1943 realiza-se o 1.º congresso ilegal do P«C»P no interior, cria-se o 1.º Comité Central e adopta-se pela primeira vez uma orientação política global para a luta. Em 1944 o P«C»P está à frente das célebres greves de 8 e 9 de Maio, aumentando crescentemente os seus quadros e influência. Entre 1943 e 1948 importantíssimas lutas proletárias terão efeito sob a direcção do P«C»P. Este vive uma fase de ascenso caracterizada pelo predomínio facilitado por um favorável condicionalismo objectivo: desenvolvimento industrial e grande aumento da concentração da classe operária sujeita a intensa exploração, por um lado, e os êxitos da URSS e do socialismo no conflito mundial, por outro.
Mas predomínio, que, de forma alguma se traduziu num movimento tendente a desalojar o domínio político pequeno-burguês. Verificamos mesmo que a ala radical pequeno-burguesa só a partir de 1945 retomou a importância crescente e tentou mesmo impôr uma orientação ultra-direitista à linha do P«C»P. É a força derivada do fluxo do movimento popular e da sua radicalização e os efeitos que tal luta conseguira criar nos quadros do P«C»P que impedem, nesta fase, a adopção daquilo a que se chamou a «Linha Política de Transição».
Como foi possível, num período de fluxo da luta e de predomínio na prática (ainda que só na prática) da orientações de cariz proletário, que a pequena burguesia tentasse contra-atacar, reimpondo o seu controlo total, e uma linha ultra-direitista?
Há que não perder de ideia, neste processo, 3 pontos essenciais:
a) A debilidade endémica do movimento operário português continuava mesmo em 1945 (só três anos após 1942), a fazer sentir-se profundamente quer ao nível de organização, quer ao nível ideológico e teórico e não se formara ainda um verdadeiro e experimentado escol de proletários revolucionários profissionais bem preparados e conscientes politicamente;
b) A classe operária em crescimento e recém-chegada do campo era portadora das concepções pequeno-burguesas dos estratos mais explorados e consequentemente susceptível a elas;
c) Finalmente, e principalmente, com o terminar da segunda guerra, o reforço geral do movimento socialista e democrático e a crise aguda que atravessou o fascismo, generalizou-se na pequena e média burguesia a ilusão legalista e oportunista de que o regime poderia, pela sua «deterioração», transitar pacificamente para formas democráticas. O P«C»P, rebocado no trabalho unitário por tais classes, sem uma linha de independência política relativamente a elas, impreparado para uma vigilância revolucionária por parte do geral dos seus militantes, deixou que no seu seio quadros e concepções pequeno-burguesas se infiltrassem abundante e rapidamente, vindo reforçar posição da fracção pequeno-burguesa dominante, e travar o ascenso da ala proletária. É num período de grandes lutas populares que tendem para a radicalização, em 1945, que a ala oportunista se laça ao contra-ataque, não só sabotando o avanço duma luta que atingira grandes níveis, como tentando traí-la e impôr o pacifismo inter-classista.
Aliás repare-se que só no campo prático a pequena burguesia sentia fugir o controlo do P«C»P: o I Congresso de 1943 (ilegal) que marca um passo importante no reforço da organização, mantém absolutamente inalterável a linha unitária vigente, falando num «levantamento nacional» contra o fascismo, cuja natureza de classe não definia, cujo papel dirigente do proletariado é expressamente omitido, cujas características são propositadamente vagas e nebulosas. O I Congresso escamoteia a questão colonial e faz letra morta do chauvinismo colonialista médio e pequeno-burguês, na mira de salvaguardar a mística fraternidade dos «portugueses honrados», ou melhor, na mira de assegurar o controlo burguês do movimento anti-fascista.
A «política de transição» é unicamente o aprofundar e extremar desta linha, a cuja coerência não foge correspondendo igualmente à tentativa da burguesia da neutralizar a radicalização da luta proletária.
De facto, em Maio de 1945, a fracção pequeno-burguesa lança-se ao ataque, primeiramente no seio da direcção do partido, o CC, onde reforçara as suas posições, era designada como «as discordâncias dum importante número de camaradas». Posto em minoria nessa reunião, mas sempre aumentando a sua força organizativa, esse «forte núcleo de camaradas», regressaram ao assalto no II Congresso ilegal de 1946. Que pretendiam, em suma, estes «camaradas»?
Pretendiam com aquilo a que chamaram a «política de transição» que o «partido devia deixar de falar e agir para a movimentação geral do povo português, para a revolução nacional anti-fascista, e devia fundamentar toda a sua táctica na acção para a desagregação do fascismo, donde resultaria a queda, doce, suave de Salazar, um governo de transição» (!‼). A «suave transição» para a democracia pela «desagregação» da ditadura fascista «devíamos procurá-la:»
a) «declarando aceitar um governo (nomeadamente saído de um golpe militar), embora com elementos do fascismo, que realize um programa mínimo»;
b) «criando aa ideia que o fascismo está a ceder, animando assim as massas (…) e orientando toda a propaganda na imprensa e em diligências pela ideia da possibilidade de uma saída doce»;
c) «apoiando no Conselho Nacional de Unidade tudo o que tenda a tranquilizar e a mobilizar os não salazaristas, mesmo os fascistas»;
d) «não falando em movimentos populares, em insurreição, em ataque, etc.»;
e) «orientando a luta nas empresas de forma a que, em nenhum caso o patrão e os empregados não fascistas se aterrorizem e estejam contra os operários em luta»; (texto citado no relatório do CC do P«C»P, ao II Congresso Ilegal de 1946).
Esta tendência contra-revolucionária, anti-proletária e de aberta traição, cujo fim era a entrega despudorada da luta proletária dos desígnios pacifistas do reformismo burguês, foi derrotada no II Congresso Ilegal e considerada «direitista e oportunista». Mas não se pense que o processo da sua derrota correspondeu a qualquer reforço das concepções proletárias na teoria e na prática do P«C»P, acompanhado de uma irradiação e expulsão da fracção pequeno-burguesa dominante. Nada disso:
1.º) A «política de transição» não foi considerada nas suas origens de classe, nem relacionada com a linha unitarista do levantamento nacional, mas considerada superficialmente como «tendências que surgiram na ideia de alguns camaradas» (texto citado no relatório do CC do P«C»P ao II Congresso Ilegal de 1946). Nestes termos nem mesmo se encetou um processo de luta ideológica pelo reforço de uma luta revolucionária e pela expulsão dos oportunistas. Podados nos seus «excessos», os ultra-direitistas e a sua base de classe mantiveram intactas as suas posições, aguardando melhor ocasião. Nada disto se aproveitou no sentido de atiçar a chama da vigilância ideológica proletária pela denúncia exemplar do direitismo;
2.º) Não se lançou, com base no combate ao direitismo que se deveria ter encetado, uma definição nos caminhos da Revolução em Portugal e da natureza de classe do «levantamento nacional», da aliança de classes e do papel do bloco operário-camponês na frente inter-classista de tal levantamento e em que processos de luta ele se centraria. Criticou-se o facto de a «política de transição» centrar a actividade das massas na «desagregação» do regime pondo a reboque desta e não no levantamento nacional, sem se continuar a explicar o carácter classista e o papel do proletariado nesta etapa da revolução (nem sequer etapas estavam delineadas), mantendo-se, encoberto por uma terminologia grandiloquente, «unitária» e vaga, uma situação politicamente equívoca e propositadamente nebulosa. Mais: no Relatório político do II Congresso afirma-se mesmo que ao P«C»P não repugnavam certos métodos ultra-oportunistas utilizados («também o Partido procura tranquilizar e atrair os elementos conservadores»), desde que o cerne da luta não fosse para aí orientado, mas sim para o «levantamento nacional», o que, no essencial, nada altera à tese ultra-direitista.
Mas, repare-se, se nada disto se fez, tal não aconteceu por acaso, por «esquecimento» ou «erro» da direcção existente: a crítica ao ultra-direitismo ficou pela rama, limitou-se a coarctar os seus «excessos» mais escandalosos porque ela correspondeu, não à crítica do proletariado revolucionário, sem força política suficiente na direcção, mas sim ao ponto de vista da própria pequena-burguesia dominante.
Impossibilitada de impôr a sua linha num momento de grandes lutas populares e de pressão da sua organização, a pequena burguesia dirigente vai «condenar» os que propunham levar até ao fim a linha que ela própria defendia, com o fito de assegurar as suas posições de chefia e de não se desligar do movimento popular. A «crítica» daqui resultante saiu necessariamente frouxa e superficial, pois que a natureza, o essencial da linha criticada era perfilhada pela direcção do P«C»P.
Repare-se que se passa nesta altura exactamente o mesmo fenómeno a que mais tarde assistiremos na «correcção» do «desvio de direita»: o ataque demagógico a algumas das suas manifestações para preservar o essencial da sua natureza de classe e das posições desta última.
E que se demonstra pelo facto de, após grandes lutas em 1946, 1948 e 1949, que elevaram o P«C»P a um dos pontos mais altos da sua força em toda a sua história, na Campanha Eleitoral de 1949, o movimento proletário ter sido posto a reboque de um unitarismo médio-burguês, cuja liderança é da burguesia em torno de Norton de Matos, corifeu colonialista na base de objectivos reformistas e colonialistas que faziam letra morta dos interesses próprios da classe operária e da solidariedade internacionalista com os povos coloniais.
Assim, este período, caracterizado por importantes fases da radicalização da luta popular pela melhoria de condições objectivas e predominância na prática de concepções de luta proletárias, não vai afectar, no essencial, a direcção pequeno-burguesa, limitando-se a sabotar temporariamente a adopção do seu programa ultra-direitista e pacifista.
As grandes lutas então travadas, postas ao serviço do eleitoralismo, não com o fim de derrubar o fascismo, pela alteração qualitativa das formas de acção, mas para reforço do poder de negociação entre as várias alas da burguesia, vão entrar em declínio, a par de uma severa repressão a que a euforia legalista e oportunista de 49 pelo P«C»P, abrira as portas.
O movimento entra em refluxo, sem que a organização proletária tenha saído reforçada ao nível da sua vigilância da classe e ideológica e na sua consciência política revolucionária.
C
3.ª fase: de 1950 a 1955
Nos anos seguintes a 1949, vítima do liberalismo e da exposição originados no trabalho eleitoral, o movimento operário é sujeito a uma das mais violentas campanhas de perseguição de sempre (é o período do grande afrontamento entre o sistema socialista e o capitalista a nível internacional) entrando num acentuado período de refluxo: numerosos funcionários e quadros da direcção do P«C»P são presos, tendo 2 quadros do CC traído na polícia – em 1952, a organização tinha regressado a situação equivalente à de 1943. Assiste-se a um certo apagamento da influencia pequeno-burguesa na vida do P«C»P; entra-se numa fase do reforço do centralismo da defesa e da disciplina que levará à expulsão de vários quadros e a um novo predomínio das concepções proletárias não só na prática, como mesmo, única altura da história em que tal aconteceu, no campo da teoria.
É nesta época que parece estar mais acesa a chama da vigilância de classe: não só as depurações atingem certos sectores manifestamente revisionistas, como é durante este período, e unicamente durante ele, que o P«C»P ainda sem aprofundar a natureza do «levantamento nacional» adopta o conceito de «Revolução Democrática e Popular», o que parece ter significado uma posição diferente sobre o esquema de alianças, o carácter, os objectivos e os processos de tal «levantamento».
No entanto, ferido por uma repressão sem precedentes, numa fase de refluxo da luta das massas, o P«C»P passa por um período de profundo enfraquecimento: a pequena burguesia dominante, nunca essencialmente desalojada dos seus postos de comando, ainda que em estado letárgico, não foi realmente afectada por este curto período de endurecimento; não houve um processo interno de depuração anti-oportunista, nem no seio do P«C»P – debilitado e isolado – havia forças para tal.
Perante este estado de fraqueza política e orgânica e com o aparecimento de condições internacionais altamente favoráveis, a pequena burguesia vê chegada a altura de impor finalmente, sem peias nem subterfúgios, a sua linha ultra-direitista de pactuação interclassista, de sujeição da luta proletária aos interesses da burguesia liberal. E portanto desperta para retomar as rédeas de uma direcção que, temporariamente, lhe tinha em parte fugido.
(a seguir)
I
O QUE É O M.R.P.P.?
O MOVIMENTO REORGANIZATIVO DO PARTIDO DO PROLETARIADO (M.R.P.P.) é a organização embrionária do futuro Partido Revolucionário do Proletariado Português. Rege-se na sua linha política e nos seus métodos de organização pelos princípios do marxismo-leninismo e pela experiência histórica da luta proletária nacional e internacional contra o capitalismo e o imperialismo, contra o oportunismo e o revisionismo, pela construção do socialismo. O seu objectivo estratégico é conduzir a classe operária na conquista do poder pela Revolução Socialista, através da etapa da Revolução Popular. Mas para que tal condução seja possível e vitoriosa, põe-se-lhes como necessidade táctica central e primeira o reagrupamento e organização dos trabalhadores comunistas e de todos os marxistas-leninistas num verdadeiro e novo Partido Revolucionário do Proletariado. Tal objectivo tornou-se imprescindível pelo domínio da organização proletária existente (P«C»P) por uma fracção da burguesia que trai e paralisa a luta da classe operária e dos explorados pelos seus fins próprios, pondo-a a reboque dos interesses reformistas e oportunistas da pequena e média burguesia. O P«C»P não é mais que uma frente de penetração burguesa no seio do proletariado, para o amarrar e pôr ao seu serviço como tropa de choque. Não é uma organização ao serviço da classe operária, ainda que continue a ter (cada vez menos) uma base social em certa medida trabalhadora.
Por outro lado, desde 1964 que, em tentativas infrutíferas, procuraram várias forças reconstituir o Partido. Compreender o processo de controlo pela pequena burguesia da direcção do P«C»P desde a sua fundação, por um lado, estudar as razões políticas do falhanço de todas as tentativas para superar revolucionariamente o domínio reformista-revisionista, por outro, eis o caminho correcto para que possamos hoje finalmente progredir: sintetizar a experiência para fortalecer a nossa teoria por forma a que ela seja um verdadeiro agente de transformação da realidade.
Neste primeiro número do «BANDEIRA VERMELHA» vamos tratar essencialmente do primeiro aspecto.
II
PRECISA A CLASSE OPERÁRIA DE TER UMA VANGUARDA DIRIGENTE PARA TRIUNFAR?
1. É importante respondermos com clareza a esta pergunta, posto que a aparente evidência de uma resposta afirmativa tem abrigado, ao longo da história do movimento operário, posições radicalmente distintas e que envolvem a própria concepção sobre a natureza e fins da luta do proletariado. As discussões acerca do que seja a vanguarda da classe operária e sobre a necessidade da sua existência, puseram-se e põem-se com particular agudeza nos momentos de crise, de refluxo, de desagregação ou de embrião do movimento operário, quando nele não existe uma direcção firme e correcta, quando a dúvida e a desorientação campeiam. Então, ciclicamente, as velhas concepções, os velhos oportunismos renascem dos túmulos onde só aparentemente estavam enterrados: o cerco da classe que os gera não desapareceu e o contra-ataque da sua ideologia retoma alento perante o fraquejar das forças revolucionárias. O oportunismo não é uma «teoria» esmagável por uma outra «teoria» não oportunista num dado momento histórico e para sempre. É o produto ideológico de uma classe. No seio do movimento operário, é o produto ideológico da pequena burguesia radical nele infiltrada. O seu aniquilamento prende-se pois, à própria dinâmica da luta de classes. Só o proletariado revolucionário pelo reforço das suas posições à luz de uma teoria revolucionária, pela sua prática por ela correctamente orientada, pode expurgar as degenerescências burguesas no seu seio e denunciar as suas «teorias» e posições. Por isso os momentos de refluxo da luta são momentos de desorientação e de reedição oportunista.
É numa altura de dispersão e fraqueza do movimento socialista russo, em 1901-1902, que as concepções espontaneístas negadoras do papel de vanguarda e dirigente político do Partido do Proletariado dominam no movimento operário daquele país. É numa altura de refluxo da luta de classes em Portugal que ressurgem à tona, com colorações diversas e disfarces pouco enganadores, as posições imediatistas e «trade-unionistas», hoje dominantes na luta operária portuguesa, e as suas tentativas de «superação» anarquizantes e anarco-sindicalistas.
A reorganização da vanguarda política do proletariado português passa necessariamente pela explicação, detecção e isolamento destas duas tendências inimigas dos interesses revolucionários dos trabalhadores. Chegaremos lá começando por ver qual a posição marxista-leninista sobre esse problema.
2. Decorre da própria concepção materialista da História a constatação que, na fase do capitalismo e do seu estádio supremo, o imperialismo, de todas as classes que combatem tal sistema ou por ele exploradas, a única verdadeira e consequentemente revolucionária é o proletariado. Marx explicou-o dizendo que «de todas as classes que se opõem actualmente à burguesia só o proletariado é uma classe verdadeiramente revolucionária. As outras classes declinam e perecem com a grande indústria; o proletariado ao contrário é o seu produto mais autêntico». De facto, o proletariado é a classe trabalhadora ligada à forma mais avançada da economia, a grande produção. Cresce e desenvolve-se com a sua concentração, contrariamente ao campesinato e aos estratos arruinados da burguesia cuja decomposição é o produto directo de tal desenvolvimento e que lhe resistem «procurando fazer andar para trás a roda da História». A concentração cada vez maior da indústria e do seu «produto mais autêntico», o proletariado, permite a este um rápido desenvolvimento da consciência de classe e propicia-lhe, pelas próprias condições do trabalho, uma especial aptidão para a resistência à exploração e organização na defesa dos seus interesses e na luta pela sua libertação. Fruto do desenvolvimento capitalista, ele integra a sua primeira contradição. É a única classe naturalmente apta a superá-la, a única que com a revolução «só tem a perder as suas cadeias».
Mas enquanto classe, subjectivamente, o proletariado não gera espontaneamente a consciência da sua missão histórica e do seu papel revolucionário no processo de produção e na luta de classes. Não gera por si próprio, pela sua situação social, uma consciência socialista que lhe permita a interpretação global da sua posição relativamente às outras classes e à luz da qual possa forjar os instrumentos teóricos e práticos da sua libertação. «A história de todos os países, diz Lenine, atesta que unicamente com as suas forças, a classe operária não pode chegar senão à consciência tradeunionista, ou seja, à convicção de que é preciso unir-se em sindicatos, travar a luta contra o patronato, reclamar do governo estas ou aquelas leis necessárias aos operários, etc…». (Lenine: Que fazer?). Por seu turno, a doutrina socialista, a consciência socialista, «nasceu de teorias filosóficas, históricas e económicas elaboradas pelos representantes instruídos das classes dominantes, os intelectuais», (idem) (os únicos estratos com acesso ao conhecimento científico, dada a sua posição social e a repartição de trabalho existente na sociedade capitalista) e desenvolveu-se «de uma forma completamente independente do crescimento espontâneo do movimento operário», não se engendrando uma na outra mutuamente. Por isso, conclui Lenine, «a consciência política de classe não pode ser levada ao operário senão do exterior, quer dizer, do exterior da luta económica, do exterior da esfera de relações entre operários e patrões». Esta importação da ideologia socialista no proletariado e a sua firme condução política, na teoria e na prática, só pode ser realizada pela constituição de um destacamento de vanguarda relativamente à própria classe. Uma organização que, mergulhando profundamente nas aspirações do proletariado, agrupe os seus mais firmes e experientes elementos e os seus quadros revolucionários, numa vanguarda, como sua fracção mais consciente, como seu estado-maior: «Só o partido revolucionário do proletariado PODE SER ESSE ESTADO-MAIOR» (Estaline: Princípios do Leninismo). O Partido está à cabeça da classe operária, vê mais longe que a classe operária, fá-la subir da espontânea consciência trade-unionista à consciência socialista e existe enquanto existir a luta de classes para defesa de posições do proletariado, e para a efectivação do seu papel histórico. Só dirigida pelo seu Partido a classe operária conquistará o poder. Defender o contrário, defender como fizeram os economistas-espontaneístas, que o proletariado pela sua luta imediatista e puramente económica é espontaneamente conduzido à consciência política e que, por isso, só é desejável a luta que é possível a este nível primário de consciência de classe, não devendo os revolucionários «forçar» ou «impor de fora» objectivos que a classe é incapaz de atingir, representa, como Lenine o denunciou, uma diminuição do papel da ideologia revolucionária na luta de classes, uma subordinação do movimento operário à ideologia burguesa, um rebaixamento da política socialista à política trade-unionista, sendo que «a política trade-unionista da classe operária é precisamente a política burguesa da classe operária».
Nesta linha, historicamente, o espontaneísmo economista negou a necessidade da existência de uma vanguarda destacada da classe como seu «elemento consciente» e dirigente, confundindo a natureza da luta sindical e dos sindicatos com a da luta partidária e do Partido, pondo esta a reboque daquela. De braço dado com este oportunismo direitista anda um outro esquerdista: o «revolucionarismo» anarquista, pregando a luta política, entendia que ela não tinha nem devia ser conduzida «do exterior» da classe operária por uma organização revolucionária, mas sim pelas próprias organizações trabalhadoras de massas, visando a «greve geral política» ou o «terrorismo excitativo» que fizesse despertar o proletariado do seu «torpor». Economismo e anarco-sindicalismo foram e são as duas vestes diferentes do oportunismo pequeno-burguês contrário ao papel do partido como organização de vanguarda e consequentemente contrário à libertação da classe operária. A edificação do Partido do Proletariado passou e terá de passar pelo isolamento e destruição de tais bolsas oportunistas no seio da classe operária.
Vejamos a manifestação actual de tais tendências no nosso país.
3. Sossegam-se os revisionistas afirmando que falar em economismo no movimento operário português actual é uma enormidade sem pés nem cabeça: não existe o P«C»P como vanguarda da classe operária? Não se reconhece a necessidade da luta política distinta da económica e importada no proletariado por tal partido como forma de elevar a sua consciência a um nível superior?
Claro que para nós, marxistas-leninistas, esta «argumentação» não nos cega, posto que toma o economismo como uma forma, ou seja, como um conjunto de manifestações organizativas desligadas da sua raiz de classe, da sua verdadeira natureza política. O espontaneísmo, como tendência burguesa no seio do proletariado, caracteriza-se pelo bloqueamento da luta deste no imediatismo das suas reivindicações espontâneas. Impede objectivamente a classe operária de, por uma politização e direcção conduzidas pela sua vanguarda consciente, se aperceber do seu papel no conjunto das relações sociais e do processo produtivo e consequentemente de se lançar numa luta pela destruição do sistema capitalista. Quer dizer: restringe a luta do proletariado aos limites necessários à preservação da estrutura e da exploração capitalista. Historicamente este resultado pode ser conseguido por caminhos, por formas diversas: quer negando o papel partidário de vanguarda distinta das massas ao seu destacamento mais consciente e combativo, quer, após a sua organização, pelo assenhoreamento dele por uma fracção direitista e pequeno-burguesa que imprima ao partido uma orientação que se traduza no efectivo bloqueio e sabotagem da luta revolucionária, alienando o movimento aos interesses classistas da burguesia, impedindo-o de, no seu crescimento os atingir.
Dum lado trai-se, recusando como princípio o papel de vanguarda do Partido; do outro trai-se igualmente negando na prática ao Partido constituído um papel de vanguarda e transformando-o num bastião burguês no seio da classe operária. As Uniões Socialistas espontaneístas da Rússia, em 1903, negavam como posição política o carácter vanguardista do Partido. A direcção do P«C»P defendendo na teoria essa natureza, na prática aproveita-se do Partido como instrumento de manutenção do carácter primário da luta proletária, pondo-a à trela do reformismo burguês. Duas concepções de Partido só aparentemente diferentes: duas formas de manifestar o mesmo controlo da burguesia no movimento operário.
As posições anarco-sindicalistas, por seu turno, levam igualmente a água ao mesmo moinho do capitalismo. Com fortes tradições na luta operária em Portugal, esta concepção pequeno-burguesa e o domínio ideológico pequeno-burguês em geral, é um dos principais responsáveis pelas derrotas da classe operária portuguesa na sua luta antifascista e anticapitalista. Tendo deixado fortes raízes ideológicas e políticas no movimento comunista aquando da sua constituição em Portugal, pode dizer-se que a ele foram beber todos os oportunistas, todas as tentativas da pequena burguesia portuguesa para se assenhorear (com êxito) do movimento operário. Se, mercê de condicionalismos que adiante veremos, foi a facção radical-reformista daquele estrato que de há longa data se apoderou da direcção da luta proletária e a pôs ao seu serviço, é todavia a sua ala radical-revolucionarista que, no geral, tem encabeçado politicamente as tentativas de «superação» do revisionismo. A acção «anti-revisionista» visível, politicamente organizada, no nosso país, salvo poucas excepções, objectivamente não tem sido mais do que a tentativa de uma fracção da pequena-burguesia para expulsar outra na direcção do movimento operário. Isto independentemente da intenção e da coragem individual de alguns dos seus promotores; isto como resultado global e objectivo: verdadeiros marxistas-leninistas, eminentes teóricos do proletariado português estiveram ligados a tais tentativas, mas a sua influência pessoal não conseguiu impôr um cunho verdadeiramente revolucionário a tal acção. É isto que explica que à prática eminentemente aventureira e pequeno-burguesa do geral dessas movimentações estejam ligados vários documentos históricos de ruptura teórica com o revisionismo, que constituem património valiosíssimo da teoria revolucionária portuguesa. Negando na prática a necessidade do partido e pretendendo substituí-lo quer pelo próprio movimento das massas enquanto tal, quer por acções de «terrorismo excitativo» completamente desligado da organização do partido e das massas, quer por eclécticas e empíricas «Frentes» pluriclassistas, anarquismo e anarco-sindicalismo satisfazem as necessidades da burguesia: manter desorganizada a vanguarda revolucionária do proletariado ou suicidá-la em aventuras desesperadas.
Revisionismo economista e anarquismo são as mordaças da mesma classe, que têm paralisado a reorganização marxista-leninista do Partido do Proletariado. Até agora.
O Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado representa o esforço ainda embrionário do proletariado para tomar finalmente as rédeas da luta nas suas mãos, antes de mais pela reconstituição da sua vanguarda. Mas para o poder fazer com êxito, tem de saber sintetizar a experiência passada do movimento operário.
É isso que passamos a fazer, analisando mais detalhadamente as experiências oportunistas na acção do proletariado português, começando, neste primeiro artigo, pelo estudo da experiência mais significativa e prolongada no tempo: o controlo do P«C»P pela pequena burguesia radical, com predomínio permanente e claro desde 1956, da ala reformista e revisionista.
Vamos historiar nos seus aspectos fundamentais a evolução do P«C»P até aos nossos dias, pois nela se reúne, pelo menos até 1964, o essencial da direcção da luta proletária portuguesa.
III
QUAL A RAZÃO DO PREDOMÍNIO POLÍTICO DA PEQUENA-BURGUESIA NA DIRECÇÃO DO MOVIMENTO OPERÁRIO PORTUGUÊS DESDE O SEU APARECIMENTO?
O movimento operário português foi ao longo da sua história uma presa normalmente fácil da direcção oportunista da pequena-burguesia radical. O motivo desta debilidade endémica da luta proletária portuguesa tem de ser encontrada em razões particulares, inerentes às características do capitalismo português. Assim constatamos que:
1.º) A base social do movimento operário, a classe operária, reflectiu a incipiência e o atraso do capitalismo português até à segunda guerra, com uma diminuta base industrial, assente numa estrutura empresarial artesanal e dispersa. A classe operária encontrava-se consequentemente dispersa, apresentando características mais de artesanato industrial: não existia um proletariado antigo, numeroso e concentrado, acumulado de experiências passadas, temperado numa luta histórica que tivesse permitido forjar as armas de uma organização, de quadros e de uma consciência verdadeiramente revolucionárias. País economicamente dependente, de indústria inexistente ou artesanal, com um colonialismo de herança, serôdio e não correspondendo às necessidades de exportação de capitais da fase imperialista de então, eis a imagem do capitalismo português no início deste século, e que não vai sofrer alterações estruturais profundas até à Segunda Guerra mundial.
2.º) A fraqueza daqui resultante par o movimento operário, veio permitir que a direcção da sua luta, desde as suas primeiras manifestações politicamente organizadas (fundação do Partido dos Operários Socialistas Portugueses em 1875), tenha pertencido à pequena-burguesia radical, que alternativamente, lhe foi dando um cunho reformista social-democrata ou anarquista e libertário.
No século XX, e a partir da 1.ª guerra, as grandes lutas operárias caem sob a direcção política do anarquismo e do anarco-sindicalismo pequeno-burgueses. Esta posição amplamente dominante na luta proletária portuguesa desde o princípio do século até aos primórdios dos anos 30, não só conduzirá o movimento operário a grandes derrotas e desmobilizações que permitirão o advento do fascismo, como deixará raízes e vícios oportunistas de toda a espécie na prática e na teoria da luta, dos quais o P«C»P nunca se conseguirá libertar.
Nascido sob a tutela oportunista da pequena burguesia radical, experimentado no seu reformismo direitista ou no seu aventureirismo anarquista, o movimento operário até aos nossos dias não se conseguiu libertar da dependência ideológica e política daquela fracção da burguesia.
Não quer isto significar que ao longo de todo este período de sujeição não tenha o proletariado português travado grandiosas e corajosas lutas revolucionárias, lutas que constituem um património indiscutível do movimento revolucionário. Quer sim significar que tais lutas foram normalmente traídas ou desperdiçadas pela direcção pequeno-burguesa, não foram levadas frequentemente às suas últimas consequências saldando-se em derrotas e desmobilizações. Deve aliás notar-se que os períodos de fluxo revolucionário na história da luta proletária portuguesa correspondem normalmente a momentos de maior pressão da base e dos quadros mais militantes das organizações que, fruto de condicionalismos favoráveis, conseguem temporariamente forçar o movimento em determinado sentido, sem nunca se conseguirem apossar da sua direcção ou mudar a sua linha política no essencial. Os períodos de grandes lutas operárias e camponesas têm correspondido portanto a pressões ou a tentativas de ruptura de fracções ou da base, cujo êxito foi limitado no tempo e que não lograram qualquer continuidade revolucionária.
É neste sentido que se deve interpretar a fundação do P«C»P em 1921, como uma tentativa frustrada de ruptura marxista-leninista com o domínio pequeno-burguês no movimento proletário.
IV.O QUE SIGNIFICAM PARA O PROLETARIADO PORTUGUÊS, 50 ANOS DE DIRECÇÃO POR PARTE DO P«C»P?
A fundação do P«C»P foi a primeira tentativa histórica de romper com a direcção pequeno-burguesa do movimento operário. Tentativa que desde o seu início se frustrou, que nunca possibilitou o enraizamento de um verdadeiro controlo marxista-leninista: sem uma classe operária concentrada, numerosa e experimentada por gerações de luta; sem uma teoria revolucionária minimamente elaborada que permitisse o isolamento e a denúncia do predomínio até aí existente das concepções oportunistas; com um nível ideológico baixíssimo vogando no empirismo e sujeito a uma férrea repressão, o P«C»P nasceu sem força política, sem organização e sem uma clara linha de ruptura revolucionária com o oportunismo radical pequeno-burguês.
A sua histttória vai ser o longo itinerário do controlo da pequena burguesia que se consegue instalar desde a fundação no seio do partido pendendo ciclicamente para a aventura ou para o direitismo, com certos períodos de predomínio da prática proletária onde quase sempre se nota um recrudescimento da luta popular. Períodos em que fracções revolucionárias ou de base, apoiadas em favoráveis condições objectivas, conseguem provisoriamente imprimir uma prática proletária: uma prática, pois mesmo nestes intervalos a direcção e a linha política permanecem essencialmente inalteráveis, retomando o controlo oportunista das lutas, fazendo o movimento recuar, reinstalando rapidamente a sua efectiva direcção.
Deve notar-se que, se bem que globalmente possamos detectar na história do P«C»P desvios aventureiros anarquizantes e desvios direitistas, é o direitismo sob a forma da «concórdia» inter-classista, da pactuação com a média burguesia, da renúncia aos interesses próprios do proletariado, que desde os anos 30, com um pequeno intervalo entre 1950 e 1956, domina na teoria política, na linha do P«C»P. Na teoria desde esta época, e na prática principalmente desde 1956 até hoje. Isto dado que na prática de luta dos anos 30 e entre 1943 e 1949, como veremos, revela-se por vezes, com características revolucionárias e de independência relativamente aos interesses dos vários estratos da burguesia.
Porque entre 1929 e os nossos dias a força dominante na direcção da luta operária vai ser o P«C»P, porque, mal ou bem, será essencialmente sob o seu enquadramento que durante todos estes anos as massas populares travarão as suas principais batalhas; porque este longo período de domínio da direcção pequeno-burguesa de tais lutas conduziu o proletariado a um acentuadíssimo estado de desmobilização, lhe imprimiu concepções práticas oportunistas, lhe boicotou a sua consciencialização revolucionária; porque hoje queremos sintetizar a experiência passada para podermos avançar sob a bandeira do marxismo-leninismo, por tudo isto há que estudar atentamente o que significou para o proletariado esta longa caminhada do oportunismo na sua luta e dela retirar as devidas lições.
É isso que, nos seus traços essenciais, iremos fazer neste primeiro artigo, analisando as diversas fases da história do P«C»P no que têm de politicamente mais significado.
A
1.º fase: de 1929 a 1942
Extremamente débil, como vimos, desde a sua nascença, o P«C»P, fundado em 1921, não teve praticamente existência até 1929, ano em que se realiza a Conferência Nacional do P«C»P onde se lançou a sua organização, com um pequeno punhado de unicamente 30 quadros, no essencial de origem e formação anarco-sindicalista.
Em toda esta fase se vai sentir no P«C»P vogando sem uma linha política global táctica e estratégica, definida aos sabor do empirismo, numa nítida influência de golpismo radical pequeno-burguês. Vários dos seus quadros estão envolvidos em golpes e revoltas dessa altura e relacionados com a maçonaria. A sua organização é diminuta, assentando praticamente nos artesãos, operários, camponeses pobres, marinheiros, intelectuais e estudantes da região de Lisboa e do Sado, estando exactamente devido ao seu pendor anarquizante e golpista, sujeita a uma constante repressão que impediu na prática, durante este período, qualquer enraizamento autêntico nas massas populares: 1935 a 1942 o P«C»P terá um Secretariado todos os seis meses e não possui um Comité Central; em 1942 está reduzido a 5 funcionários, 2 casas ilegais, uma tipografia e sem fundos.
Esta debilidade organizativa e o predomínio de orientações anarquizantes durante esta fase, fazem o P«C»P cair no esquerdismo sectário (até 1935, desvio corrigido no 7.º Congresso da Internacional Comunista) ou tornam-no permeável à provocação (em 1937 a organização de Lisboa é dominada por grupo de provocadores), impedem o seu enraizamento e a instalação duma efectiva direcção marxista-leninista. É tudo isto que motivará nesta altura a sua expulsão da Internacional Comunista onde só mais tarde (194?) será readmitido.
Saliente-se, no entanto, que o P«C»P vai estar à frente de importantes batalhas populares nesta fase, algumas porém, nítido reflexo da referida orientação golpista. Esta fase tem todavia a característica de uma elevada militância e espírito de sacrifício por parte dos quadros do P«C»P, única organização estruturada a resistir clandestinamente ao fascismo e que encabeçou, a despeito dos referidos desvios, algumas lutas objectivamente revolucionárias e independentes: a revolta dos marinheiros de 1936, a grande agitação de 1937 a 1938, com o «Avante» saindo semanalmente, importantes lutas estudantis, etc..
É extremamente importante notar, que simultaneamente com o empirismo político e organizativo e a tendência golpista, o domínio ideológico radical pequeno-burguês a partir de 1933 começou a manifestar-se, quanto ao trabalho unitário, já com nítidas características de pactuação inter-classista. A «restituição ao povo português de todas as liberdades democráticas conquistadas pelos nossos antepassados desde 1820 a 1910 e que a ditadura lhes arrancou» (in «Contestação à secretaria do Tribunal Militar especial» de Bento Gonçalves em 1936) pedida por Bento Gonçalves já ultrapassava no seu significado a pura e simples defesa (aliás correcta) da unidade anti-fascista: dissolvia nessa unidade os interesses do proletariado nascente, nos dos seus «antepassados» da burguesia liberal, omitia o carácter chauvinista e colonialista dos interesses passados e actuais de tal burguesia, afirmando mesmo o P«C»P, na continuidade de tais interesses: «…Nós vimos desse povo que criou a «Portuguesa» onde se encerra mais a ideia da Nação, do que tudo o que poderá conter a este respeito toda a Torre do Tombo dos decretos e das notas oficiosas do Estado Novo» (in citada «Contestação…» de B. Gonçalves).
Aqui reside o cerne ideológico da direcção pequeno-burguesa radical do P«C»P, até hoje a «concórdia e fraternidade» anti-fascista, o sacrifício dos interesses próprios do proletariado.
(a seguir)
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