Na Inglaterra a servidão desapareceu de facto pelos fins do século XIV. A grande maioria da população[1] compunha-se então, e ainda mais no séc. XV, de camponeses livres, que cultivavam as suas próprias terras, quaisquer que fossem os títulos feudais que lhes davam direito à posse. Nos grandes domínios senhoriais, o antigo bailio, que não passava de servo, fora substituído pelo fazendeiro independente. Os assalariados rurais eram em parte camponeses – que, durante o tempo livre deixado pela cultura dos seus campos, alugavam os seus serviços aos grandes proprietários – e, noutra parte, formavam uma classe particular e pouco numerosa de jornaleiros. Até mesmo estes eram também, em certa medida, cultivadores por sua alta recriação, porque, além do salário, lhes concediam campos pelo menos de quatro acres[2], com cabanas; além disso, participavam com os camponeses propriamente ditos do usufruto dos bens comunais, onde apascentavam os seus gados e se forneciam de lenha ou turfa para aquecimento.
Notaremos de passagem que o servo era não só possuidor, tributário, de facto, das parcelas junto das suas casas, mas também co-proprietário dos bens comunais. Quando Mirabeau publicou o seu livro De la monarchie prussienne, a servidão ainda existia na maioria das províncias prussianas, como na Silésia, e, contudo, os servos possuíam ali bens comunais: «Não fora ainda possível levar os silesianos à partilha das comunas, ao passo que noutros locais quase não há aldeia em que esta partilha não esteja executada com o maior êxito».
O aspecto mais característico da produção feudal, em todos os países da Europa ocidental, é a partilha do solo entre o maior número possível de cidadãos. Passava-se com o senhor feudal o mesmo que com qualquer outro soberano: o seu poderio dependia menos da grandeza da sua bolsa que do número dos seus vassalos, isto é, do número de camponeses estabelecidos nos seus domínios. O Japão, com a sua organização da propriedade puramente feudal, com a sua pequena cultura, oferece sob muitos aspectos, uma imagem mais fiel da Idade Média europeia do que os nossos livros de história, impregnados de preconceitos burgueses. É muitíssimo cómodo ser-se «liberal» à custa da Idade Média.
Embora a conquista normanda tivesse constituído toda a Inglaterra em baronias gigantescas – só uma delas compreendia muitas vezes mais de novecentas senhorias anglo-saxónicas – o solo estava enxameado de pequenas propriedades rurais, intercaladas aqui e ali por grandes domínios senhoriais. Assim, desde que desapareceu a servidão e que no século XV a prosperidade das cidades tomou grandes proporções, o povo inglês atingiu o estado de abastança eloquentemente pintado pelo Chanceler Fortescue no seu De Laudibus Legum Angline. Mas esta riqueza do povo excluía a riqueza capitalista.
A revolução que ia lançar os primeiros fundamentos do regime capitalista teve o seu prelúdio no último terço do século XV e começos do século XVI. Nessa altura, o despedimento de numerosos séquitos senhoriais – Sir James Steuart diz, muito a propósito, que «atravancavam castelos e palácios» – lançou de repente no mercado do trabalho uma quantidade de proletários sem eira nem beira. E não foi só o poder real, saído do desenvolvimento burguês, o causador deste movimento de despedida por medidas violentas, na sua tendência para a soberania absoluta. Em guerra aberta contra a realeza e Parlamento, os grandes senhores criaram um proletariado também considerável, usurpando os bens comunais dos camponeses e expulsando-os do solo que possuíam com o mesmo direito feudal dos seus patrões. Na Inglaterra, o que sobretudo deu causa a actos de violência foi o desenvolvimento das manufacturas da lã na Flandres e a alta dos preços da lã, resultante deste facto. A prolongada guerra das Duas Rosas, tendo devorado a antiga nobreza, fez com que a nova nobreza, filha da sua época considerasse o dinheiro como a potência das potências. Transformação das terras aráveis em pastagens, tal foi o seu grito de guerra.
No seu Descriptions of England, prefixed to Holinsded’s Chronicles, Harrison descreve como a expropriação dos camponeses desolou o país:
«Mas que importa aos nossos grandes usurpadores! As casas dos camponeses e as cabanas dos operários foram violentamente arrasadas ou condenadas a cair em ruínas. Se quiserem comparar os antigos inventários de cada solar senhorial, verão que inúmeras casas desapareceram com os pequenos cultivadores que as habitavam, que o país alimenta muito menos gente, que muitas cidades decaíram, embora algumas de nova fundação prosperem. A propósito das cidades e aldeias destruídas para se fazerem pastagens de carneiros e onde nada se vê de pé, exceptuando os castelos senhoriais, muito teria eu que dizer».
As queixas destes velhos cronistas pintam de maneira exacta a impressão produzida nos contemporâneos pela revolução surgida na ordem económica da sociedade. Comparem-se os escritos do Chanceler Fortescue com os do Chanceler Thomas More e teremos uma ideia do abismo que separa o século XV do século XVI. Na Inglaterra, a classe trabalhadora – como diz muito justamente Thornton – foi precipitada sem transição da sua idade de oiro para a sua idade de ferro.
Esta desordem meteu medo ao Parlamento. Ainda não tinha sido atingido o elevado grau de civilização em que a riqueza nacional (isto é, a riqueza dos capitalistas, o empobrecimento e a exploração sem vergonha da massa do povo) passa o último limite da sabedoria do Estado. Bacon, na sua História de Henrique VII, diz:
«Por esta época (1489), as queixas a propósito da conversão das terras aráveis em pastagens, que só exigiam a vigilância de alguns pastores, tornaram-se cada vez mais numerosas, e herdades arrendadas por toda a vida, por largo prazo ou ao ano, de que viviam em grande parte os yeomen, foram anexadas às terras da coroa. Daqui resultou um declínio da população, seguida pela decadência de muitas vilas, igrejas, diminuição de dízimos, etc.. Os remédios aplicados a esta funesta situação testemunham uma sabedoria admirável por parte do Rei e do Parlamento. Estes tomaram medidas contra a usurpação despovoadora dos terrenos comunais e contra a extensão das pastagens despovoadas que seguiu aquela de perto».
Uma lei de Henrique VII, em 1489, cap.19, interdiz a demolição de todas as casas de camponeses que têm anexados pelo menos vinte acres de terreno. Esta interdição é renovada por uma lei do 25.º ano do reinado de Henrique VIII onde, entre outras coisas, se diz que «muitas herdades e grandes rebanhos de carneiros se amontoam em poucas mãos, de onde resulta que as rendas do solo aumentam mas diminui a mão-de-obra, que igrejas são demolidas e enormes massas de povo se encontram na impossibilidade de satisfazer a sua manutenção e das suas famílias».
A lei ordena por isso a reconstrução das casas demolidas nas herdades e fixa a proporção entre terras de trigo e pastagens. Uma lei de 1533 verifica que certos proprietários possuem 24 000 carneiros e impõe- lhes por limite 2000, etc.[3].
As queixas do povo, assim como as leis promulgadas desde Henrique VII, durante cento e cinquenta anos, contra a expropriação dos camponeses e dos pequenos fazendeiros, ficaram igualmente sem efeito. Nos seus Essays, civil e moral, no Ensaio XXIX, Bacon denuncia o segredo da ineficácia dessas leis: «A lei de Henrique VII foi profunda e admirável no sentido de ter criado estabelecimentos agrícolas e casas rurais de uma grandeza normal determinada, isto é, assegurou aos cultivadores uma porção suficiente de terra para os pôr em condições de criar indivíduos no gozo de uma honesta abastança, em condição não servil, e para manter a charrua nas mãos dos proprietários e não de mercenários».
O que era preciso à ordem de produção capitalista, era pelo contrário a condição servil das massas, a sua transformação em mercenários e a conversão dos seus meios de trabalho em capital.
Nesta época de transição, a legislação procurou também manter os quatro acres de terreno pegados à cabana do assalariado agrícola e a proibição de tomar sublocatários. Em 1627, no reinado de Jaime I, Roger Crocker de Frontmill foi condenado por ter construído uma cabana no domínio senhorial deste nome sem lhe ter anexado quatro acres de terreno perpetuamente; em 1638, no reinado de Carlos I, nomeou-se uma comissão real para dar execução às antigas leis, sobretudo a dos quatro acres. Também Cromwell interdisse a construção perto de Londres, no perímetro de seis quilómetros, de qualquer casa que não fosse dotada de um campo com quatro acres pelo menos. Enfim, na primeira metade do século XVIII, queixavam-se ainda de não haver um ou dois acres de terreno anexados à cabana do operário agrícola. Hoje este sente-se muito feliz quando tem um pequeno quintal ou quando pode arrendar, a distância considerável, um campo com alguns metros quadrados. Diz o Dr. Hunter: «Os proprietários de terras e os fazendeiros colaboram fortemente. Alguns acres acrescentados à sua cabana tornariam o trabalhador demasiado independente»[4].
A Reforma e a espoliação dos bens da igreja, que foi o seu resultado, vieram dar um impulso novo e terrível à expropriação violenta do povo no seculo XVI. A Igreja Católica era nessa época a proprietária feudal da maior parte do território inglês. A supressão dos conventos lançou os respectivos habitantes no proletariado. Os próprios bens do clero caíram nas garras dos favoritos reais ou foram vendidos por baixo preço a cidadãos e a fazendeiros especuladores que começaram por expulsar em massa os antigos rendeiros hereditários. O direito de propriedade dos pobres sobre uma parte dos dízimos eclesiásticos foi tacitamente confiscado[5].
«Há pobres por toda a parte», exclamava a Rainha Isabel, depois de ter feito uma viagem à roda da Inglaterra.
No 43.º ano do seu reinado, viram-se forçados a reconhecer o pauperismo como instituição nacional e a estabelecer a taxa dos pobres. Os autores desta lei tiveram vergonha de reconhecer os motivos e publicaram-na sem qualquer preâmbulo, contra o uso tradicional[6]. No reinado de Carlos I, o Parlamento declarou essa taxa perpétua e só veio a ser modificada em 1834. Então, do que lhes tinha sido originariamente concedido como indemnização pela expropriação sofrida, estabeleceram um castigo para os pobres.
O protestantismo é essencialmente uma religião burguesa. Para fazer sobressair o seu espírito bastará um exemplo. Era ainda no tempo de Isabel: alguns proprietários latifundiários e alguns ricos fazendeiros da Inglaterra meridional reuniram-se para aprofundar a recente lei dos pobres. Depois resumiram tudo num escrito, contendo dez questões que, em seguida, submeteram a um célebre jurisconsulto da época, o sargento Snigge, elevado ao nível de juiz no reinado de Jaime I. Eis um extracto:
«Alguns ricos fazendeiros da paróquia projectaram um plano muito inteligente por meio do qual se poderá evitar toda a espécie de perturbação na execução desta lei. Propõem que se construa na paróquia uma cadeia. Todo o pobre que não quiser deixar-se prender não receberá assistência. Em seguida, far-se-á saber nos arredores que, se algum indivíduo desejar alugar os pobres desta paróquia, terá de entregar, dentro do prazo a fixar antecipadamente, propostas seladas indicando o mais baixo preço por que quer desembaraçar-nos deles. Os autores deste plano supõem que há indivíduos que não têm a mínima vontade de trabalhar e que não têm fortuna nem crédito para obter quinta ou navio, para que possam viver sem trabalhar. Estas pessoas estariam dispostas a fazer à paróquia propostas muito vantajosas. Se aqui e ali os pobres viessem a morrer sob a guarda dos contratantes, a falta recairia sobre estes, e a paróquia teria cumprido todos os seus deveres para com os pobres. Tememos que a lei de que se trata não permita medidas de prudência deste género. Mas precisai de saber que os livres arrendatários se unirão a nós para levar os seus representantes na Câmara dos Comuns a proporem uma lei que permita meter na cadeia os pobres e obrigá-los a trabalhar, para que todo o indivíduo que se recuse à prisão perca o seu direito à assistência. Isto, temos esperança, irá impedir os miseráveis de terem necessidade de ser assistidos»[7].
No entanto, estas consequências imediatas da Reforma não foram as mais importantes. A propriedade eclesiástica criou para a ordem tradicional da propriedade dos terrenos uma avenida sagrada. Uma vez aquela tomada de assalto, a outra já não se poderia manter[8].
Nos últimos anos do século XVII, a yeomanry, classe de camponeses independentes, a orgulhosa classe camponesa (proud peasantry) de Shakespeare, ultrapassava ainda em número o estado dos fazendeiros; ela tinha constituído a principal força da República Inglesa. Os seus costumes e os seus hábitos formavam, conforme confessa Macaulay, o mais chocante contraste com os dos morgados contemporâneos, grotescos Nemrods, estúpidos, bêbados, e dos seus criados, os curas das aldeias, amantes solícitos das criadas favoritas dos nobres camponeses. Em 1750, a yeomanry tinha desaparecido.
Pondo de lado as influências puramente económicas que preparavam a expropriação dos cultivadores, só nos ocuparemos aqui das alavancas aplicadas para precipitar violentamente a sua marcha.
Sob a restauração dos Stuart, os proprietários latifundiários conseguiram cometer legalmente uma usurpação, realizada depois no continente sem a menor interferência parlamentar. Aboliram a constituição feudal do solo, isto é, descarregaram-no das servidões que o oneravam, indemnizando o Estado por impostos sobre os camponeses e o resto do povo, reivindicaram o título de propriedade privada, no sentido moderno, bens possuídos em virtude de títulos feudais, e coroaram a obra promulgando leis sobre o domicílio legal que faziam dos trabalhadores rurais uma pertença da paróquia, justamente como o famoso édito do tártaro Boris Godounov fizera dos camponeses russos uma pertença da gleba. A gloriosa revolução levou ao poder, com Guilherme III, príncipe de Orange[9], fabricantes de dinheiro, nobres possuidores de grandes terras, capitalistas plebeus, que inauguraram a Nova Era por meio de um esbanjamento verdadeiramente colossal do tesouro público. Os domínios do Estado, que até ali só tinham sido pilhados com modéstia, dentro de limites conformes com uma certa decência, foram extorquidos ao Rei à viva força, como gratificações devidas a cúmplices, ou vendidos por preços irrisórios, ou, sem nenhuma formalidade, simplesmente anexados às propriedades privadas[10]. E tudo isto a descoberto, ruidosamente, descaradamente, até com desprezo por uma fingida legalidade.
Esta apropriação fraudulenta do domínio público e a pilhagem dos bens eclesiásticos, sem contar os bens que a revolução republicana lançou na circulação, eis a base sobre a qual assenta o poderio relativo aos bens da coroa da oligarquia inglesa actual. Os burgueses capitalistas favoreceram a operação, com o fim de fazerem da terra um artigo de comércio, de aumentarem o seu aprovisionamento de proletários campesinos, de estenderem o campo da grande agricultura, etc.. De resto, a nova aristocracia latifundiária é a aliada natural da nova bancocracia, da alta finança há pouco nascida e dos gordos manufactureiros, fautores do sistema proteccionista. A burguesia inglesa agia conforme os seus interesses, como fez a burguesia sueca quando se ligou aos camponeses, para ajudar os reis a retomar por medidas terroristas as terras da coroa escamoteadas pela aristocracia.
A propriedade comunal, completamente distinta da propriedade pública de que acabamos de falar, era uma velha instituição germânica que permanecia em vigor no meio da sociedade feudal. Vimos que as usurpações violentas sobre as comunas, quase sempre seguidas da conversão das terras aráveis em pastagens, começaram no último terço do século XV e prolongaram-se para além do século XVI. Mas então estes actos de rapina só constituíam atentados individuais combatidos em vão durante cento e cinquenta anos pelo Parlamento. Mas no século XVIII – vejam que progresso! – as próprias leis tornaram-se o instrumento da espoliação, o que aliás não impediu os grandes fazendeiros de recorrerem também a pequenas práticas particulares e, por assim dizer, extralegais.
A forma parlamentar do roubo cometido sobre as comunas é a de «leis para encerramento das terras comunais». São decretos por meio dos quais os proprietários latifundiários oferecem presentes a si mesmos, são decretos de expropriação do povo. Numa defesa de advogado espertalhão, Sir F. M. Eden procura apresentar a propriedade comunal como propriedade privada, embora ainda indivisa, os modernos senhores da terra vêm ocupar o lugar dos seus predecessores (os senhores feudais) mas nega-se a si próprio pedindo que o Parlamento vote um estatuto geral que sancione de uma vez para sempre todos os terrenos das comunas. E, não contente por ter confessado que seria preciso um golpe de Estado parlamentar para legalizar a transferência de bens comunais para os senhores da terra, consuma a sua derrota insistindo, para descanso de consciência, sobre a indemnização aos pobres cultivadores[11]. Se não houvesse expropriados, não haveria evidentemente ninguém a indemnizar.
Ao mesmo tempo que a classe independente dos yeomen era suplantada pela dos pequenos fazendeiros cujo contrato podia ser rescindido todos os anos, raça tímida, servil, à mercê do bom prazer senhorial – o roubo sistemático das terras comunais, junto à pilhagem dos domínios do Estado, contribuía para engrossar as grandes herdades chamadas no século XVIII «herdades do capital» ou «herdades dos comerciantes», isto é, para transformar a população dos campos em proletariado «disponível» para a indústria.
No entanto, o século XVIII não compreendeu tão bem como o século XIX a identidade destes dois termos: riqueza da nação, pobreza do povo. Daí a polémica virulenta sobre o terreno das comunas que se encontra na literatura económica desta época. Do vasto material que nos foi legado sobre este assunto, bastará extrair algumas passagens que farão sobressair fortemente a situação desses tempos.
«Num grande número de locais, vinte e quatro herdades, cada uma com, pelo menos, 50 a 150 acres em média, ficaram reunidas em três.
Procedeu-se em grande medida ao encerramento dos terrenos comunais; e a maior parte dos novos senhorios saídos desta operação foi convertida em pastagens, de modo que onde se trabalhavam 1500 acres de terra já só se trabalham 50. Ruínas de casa, de granjas, de estábulos, eis os únicos traços que deixaram os seus antigos habitantes. Em muitos lugares, centenas de habitações e de famílias foram reduzidas a oito ou dez. Na maior parte das paróquias onde o encerramento data de há quinze ou vinte anos só passa a existir um pequeno número de proprietários, comparado ao grande número que cultivava o solo quando os campos eram abertos. Não é raro ver quatro ou cinco ricos criadores de gado usurparem domínios, ainda há pouco fechados, que antes se encontravam nas mãos de vinte ou trinta fazendeiros e de um grande número de pequenos proprietários e de vilões. Todos estes últimos e suas famílias foram expulsos com muitas outras famílias que empregavam e mantinham.
Não foram só as terras maninhas mas até as cultivadas, quer em comum quer pagando uma certa renda à comuna, que os proprietários limítrofes anexaram sob o pretexto de inclusão.
Refiro-me ao emparcelamento de terrenos e campos já cultivados. Até os escritores que defendem o emparcelamento concordam que, em certos casos, reduz a cultura, faz elevar os preços das subsistências e produz o despovoamento. E mesmo que se trate de terras incultas, a operação, tal como hoje se pratica, tira ao pobre uma parte dos seus meios de subsistência e activa o desenvolvimento de herdades que já são demasiado grandes»[12].
«Quando o solo – diz o Dr. Price – cai nas mãos de um pequeno número de grandes fazendeiros, os pequenos fazendeiros vão ser transformados em pessoas forçadas a ganhar as suas subsistências, a trabalhar para outrem e a ir ao mercado comprar o que lhes é necessário. Talvez se produza mais trabalho, porque haverá maior constrangimento. As cidades e as manufacturas crescerão porque nelas se encontrarão mais pessoas expulsas à procura de trabalho. É neste sentido que a concentração das herdades opera desde há muitos anos neste reino»[13].
A situação das classes inferiores piorou sob todos os aspectos: os pequenos proprietários e os fazendeiros ficaram reduzidos ao estado de jornaleiros e de mercenários e, ao mesmo tempo, tornou-se mais difícil ganhar a vida nestas condições[14].
De facto, a usurpação dos bens comunais e a revolução agrícola que se seguiu fizeram-se sentir duramente entre os trabalhadores dos campos; e a tal ponto que, segundo o próprio Eden, de 1765 a 1780, o salário começou a descer abaixo do mínimo e teve de ser completado por meio do socorro oficial. «O salário já não chegava para as primeiras necessidades da vida».
Escutemos ainda por instantes um apologista dos emparcelamentos, adversário do Dr. Price:
«Estaríamos absolutamente enganados se concluíssemos que o país se despovoa porque já não se vêem nos campos tantas pessoas a perder o seu tempo e o seu labor. Se há menos nos campos, há mais nas cidades. Se, depois da conversão dos pequenos camponeses em jornaleiros, obrigados a trabalhar para outrem, se faz mais trabalho, é uma vantagem que a nação só tem a desejar. O produto será mais considerável, se empregarem numa só herdade o trabalho combinado: formar-se-á assim um excedente de produto para as manufacturas, e estas, verdadeiras minas de ouro do nosso país, aumentarão proporcionalmente à quantidade de cereais fornecida»[15].
Quanto à serenidade de espírito e ao estoicismo imperturbável com os quais o economista encara a profanação mais desavergonhada do «direito sagrado da propriedade» e os atentados mais escandalosos contra as pessoas, desde que ajudem a estabelecer o modo de produção capitalista, poderemos julgar pelo exemplo de Sir F. M. Eden, tory e filantropo. Os actos de rapina, as atrocidades e sofrimentos que, desde o último terço do século XV até ao fim do século XVIII, formam o cortejo da expropriação violenta dos cultivadores, conduzem-no simplesmente a esta conclusão reconfortante:
«Era preciso estabelecer uma proporção justa entre as terras de cultivo e as pastagens. Durante todo o século XIV e a maior parte do século XV, havia ainda dois, três e até quatro acres de terreno arável por cada acre de pastagem. Nos meados do século XVI, esta proporção alterou-se: primeiro, três acres de pastagem por dois de solo cultivado, depois dois por um, até que por fim se chegou à justa proporção de três acres de terra de pastagem por cada acre de terra arada».
No século XIX chegou a perder-se a lembrança do íntimo laço que ligava o cultivador ao solo comunal. O povo dos campos, por exemplo, nunca obteve um chavo de indemnização pelos 3 511 770 acres que lhe foram arrancados de 1801 a 1831 e que os senhores latifundiários ofereceram uns aos outros por meio de decretos de emparcelamento.
O último processo de alcance histórico que se emprega para expropriar os cultivadores chama-se clearing of estates ou, literalmente, «limpeza dos bens de raiz». Em francês diz-se «limpar uma floresta», mas «limpar bens de raiz», no sentido inglês, não significa uma operação técnica de agronomia; é o conjunto de actos de violência por meio dos quais se desembaraçam dos cultivadores e das suas habitações, quando estão de posse de bens de raiz destinados a passar ao regime da grande cultura ou ao estado de pastagens. E foi a este estado que chegaram os métodos de expropriação: onde já não há camponeses a suprimir, arrasam as cabanas dos assalariados agrícolas cuja presença desfeia o solo. Mas o clearing of estates que vamos abordar tem por teatro a região predilecta dos romancistas modernos, as Highlands da Escócia.
A operação distingue-se pelo seu carácter sistemático e pela grandeza da escala em que se executa – na Irlanda, muitas vezes um proprietário de terras arrasa frequentemente algumas aldeias de uma só vez; mas na Escócia, trata-se de superfícies ainda mais extensas.
O povo das Highlands compunha-se de tribos cada uma das quais possuía como propriedade o solo no qual se estabelecera. O representante da tribo, o seu chefe (ou «grande homem») era apenas o proprietário titular do solo, como a rainha de Inglaterra é proprietária titular do solo nacional. Quando o governo inglês conseguiu suprimir definitivamente as guerras intestinas entre estes «grandes homens» e as suas contínuas incursões nas planícies limítrofes da baixa Escócia, eles não abandonaram o seu antigo mister de salteadores; só mudaram a respectiva forma. Baseados na sua própria autoridade, convertiam o direito de propriedade titular em direito de propriedade autêntica e, quando encontravam obstáculos aos seus projectos de enriquecimento, expulsavam à viva força.
«Um rei de Inglaterra pretenderia da mesma forma possuir o direito de expulsar os seus súbditos para o mar»[16].
Podem-se seguir as primeiras fases desta revolução nas obras de James Anderson[17] e de James Steuart. Este informa-nos que, na sua época, no último terço do século XVIII, a alta Escócia apresentava ainda um quadro da Europa de há quatrocentos anos.
«A renda (é assim que ele chama erradamente ao tributo pago ao chefe da tribo) é muito pequena em relação à extensão mas, se considerardes relativamente ao número de bocas que a herdade alimenta, vereis que uma terra nas montanhas da Escócia alimenta talvez duas vezes mais pessoas que uma terra do mesmo valor numa outra província. Passa-se com certas terras como com certos conventos de frades: quanto mais bocas há para alimentar, melhor vivem»[18].
No último terço do século XVIII, quando começaram a expulsar os gaélicos, proibiram-lhes ao mesmo tempo a emigração para o estrangeiro para os forçarem a afluir a Glasgow e a outras cidades manufactureiras.
Nas suas Observatios sur la «Richesse des Nations» de Adam Smith, publicadas em 1814, David Buchanan dá-nos uma ideia dos progressos feitos pelo clearing of estates:
«Nas Highlands o proprietário latifundiário, sem consideração pelos rendeiros hereditários (ele aplica erradamente esta palavra às pessoas da tribo que possuíam o solo em conjunto), oferece a terra a quem mais lhe der por ela. O solo, anteriormente enxameado de pequenos camponeses, era muito povoado em relação ao seu rendimento. O novo sistema de cultura aperfeiçoada e de rendas sempre em aumento faz obter o maior produto líquido com o menor dispêndio possível e, com este objectivo, desembaraçam-se dos colonos daqui em diante inúteis. Assim repelidos do solo natal, vão procurar a sua subsistência nas cidades manufactureiras».
George Ensor diz num livro publicado em 1818.
«Os grandes da Escócia expropriaram famílias como se fossem ervas más; trataram aldeias e habitantes como os índios ébrios de vingança tratam os animais ferozes e as suas tocas. Vende-se um homem por lã de ovelha, por uma perna de carneiro e até por menos… quando se deu a invasão da China setentrional, o Grande Conselho dos Mongóis discutiu se não seria bom extirpar do país todos os habitantes e convertê-lo numa vasta pastagem. E grande número de proprietários escoceses pôs em prática este desígnio no seu próprio país, contra os seus próprios compatriotas»[19].
A iniciativa mais completa pertence à duquesa de Sutherland, a qual, logo que tomou as rédeas da administração, resolveu recorrer aos grandes meios e converter tudo em pastagens, expulsando 15 000 habitantes de 1814 a 1820 (cerca de três mil famílias). Todas as aldeias foram destruídas e queimadas e os campos convertidos em pastagens. Soldados ingleses requisitados entraram em combate. Uma velha que se recusou a abandonar a sua choupana morreu nas chamas. Foi assim que a nobre dama açambarcou 794 000 acres de terras que pertenciam à tribo desde tempos imemoriais.
Uma parte dos espoliados foi absolutamente expulsa; à outra, concederam-lhe uns 6000 acres nas praias do mar, terras até agora incultas e que nunca tinham produzido um chavo. A duquesa levou a sua grandeza de alma até ao ponto de as arrendar pela média de 2 xelins e 6 dinheiros por acre, àqueles membros da tribo que durante séculos tinham derramado o seu sangue ao serviço dos senhores Sutherland. O terreno que ela assim conquistou, dividiu-o em vinte e nove grandes herdades de carneiros, estabelecendo em cada uma delas uma só família, composta quase sempre de criados ingleses de lavoura. Em 1825, os quinze mil proscritos já tinham sido substituídos por 131 000 carneiros. Os que foram lançados para a costa marítima entregaram-se à pesca e tornaram-se, segundo a expressão de um escritor inglês, verdadeiros anfíbios, vivendo metade do tempo em terra e a outra metade na água mas, com tudo isso, vivendo apenas por metade[20].
Mas estava escrito que os gaélicos[21] teriam de sofrer ainda mais: o cheiro do peixe incomodou o nariz do capital, que farejou novos lucros, e não tardou a arrendar a costa aos peixeiros de Londres. Mais outra vez foram expulsos os gaélicos.
Por fim, realizou-se uma última metamorfose: uma porção das terras convertidas em pastagens foi convertida em reservas de caça.
Sabe-se que a Inglaterra já não tem florestas de verdade. A caça criada nos parques é uma espécie de caça doméstica e constitucional, gorda como os ricaços de Londres. A Escócia é portanto o último asilo da nobre paixão venatória. Diz Robert Somers:
«Nas Highlands, em 1848, alargaram-se muito as florestas reservadas aos animais selvagens. A conversão dos campos em pastagens expulsou os gaélicos para as terras menos férteis; agora que a caça selvagem começa a substituir o carneiro, a miséria torna-se-lhes ainda mais esmagadora. Este tipo de florestas improvisadas e o povo não podem coexistir; é preciso que um deles ceda o lugar ao outro. À medida que vai aumentar o número e a extensão das reservas de caça no próximo quarto de século, como se fez no último, não se encontrará um só gaélico na sua terra natal. Por um lado, a devastação artificial das Highlands é assunto que de certo modo lisonjeia o orgulho aristocrático dos proprietários latifundiários e a sua paixão pela caça, mas por outro lado, entregam-se ao comércio da caça para fins exclusivamente mercantis. Não há dúvida que o espaço pode render muito menos como pastagem do que como reserva de caça. O amador à procura de caça, em geral, não põe outro limite às suas ofertas que não seja a sua possibilidade monetária. As Highlands tiveram sofrimentos tão cruéis como aqueles com que a política dos reis normandos feriu a Inglaterra. Os animais selvagens tiveram campo cada vez mais livre, ao passo que os homens foram empurrados para um círculo cada vez mais apertado. O povo viu que lhe arrebatavam todas as suas liberdades, uma após outra. Aos olhos dos senhores das terras, é princípio fixo, necessidade agronómica, o expurgo do solo quanto aos seus habitantes, como se abatem árvores e mato nas regiões selvagens da América ou da Austrália, e a operação segue tranquilamente o seu caminho com toda a regularidade»[22] .
O livro de Robert Somers apareceu primeiro nas colunas do Times em forma de cartas sobre a fome que os gaélicos tiveram de passar em 1847, vencidos perante a concorrência da caça. Sábios economistas tiraram a conclusão de que havia demasiados gaélicos, o que fazia exercer pressão sobre os meios de subsistência.
Vinte anos depois, este estado de coisas tinha piorado muito, como pôde verificar o professor Leone Levi num discurso pronunciado em Abril de 1866, perante a Sociedade das Artes.
«Despovoar o país, converter terras aráveis em pastagens, foi, em primeiro lugar, o meio mais cómodo de ter rendimento sem ter gastos. Depois, a substituição das pastagens pelas florestas de caça tornou-se um acontecimento vulgar. O gamo expulsou o carneiro como este tinha expulsado o homem. A raposa, o gato selvagem, a marta, a doninha, a fuinha, a lontra, a lebre dos Alpes, já se naturalizaram há muito tempo; o coelho vulgar, o esquilo e o rato encontraram recentemente o mesmo caminho. Enormes distritos que figuravam como pradarias de fertilidade e extensão excepcionais são agora rigorosamente excluídas de qualquer tipo de cultura e consagrados aos prazeres de um punhado de caçadores e só durante alguns meses do ano».
Nos fins de Maio de 1866, um jornal escocês anunciou o facto seguinte nas suas notícias do dia: «Uma das melhores herdades de carneiros, pela qual, ao findar o arrendamento corrente, ofereceram um milhão e duzentas mil libras, vai ser convertida em floresta de caça». E o Economist de Londres, de 2 de Junho de 1866, escreve: «Os instintos feudais dão-se livre curso hoje, como no tempo em que o conquistador normando destruía trinta e seis aldeias para criar a Nova Floresta. Dois milhões de acres, compreendendo as terras mais férteis da Escócia, estão totalmente devastados. O solo sacrificado ao prazer da caça estende-se por uma superfície enorme. A perda em fontes de produção que esta devastação causou ao país pode apreciar-se pelo facto de todo esse terreno se tornar improdutivo. Equivaleu a mergulhá-lo no Mar do Norte. É preciso que o braço da lei intervenha para dar o golpe de graça a estas solidões, a estes desertos improvisados».
A espoliação dos bens da igreja, a alienação fraudulenta dos domínios do Estado, a pilhagem dos terrenos comunais, a transformação usurpadora e terrorista da propriedade feudal, ou até patriarcal, em moderna propriedade privada, a guerra às choupanas, foram estes os processos idílicos de acumulação primitiva. Conquistaram a terra para a agricultura capitalista, incorporaram o solo no capital e entregaram à indústria das cidades os braços dóceis de um proletariado sem eira nem beira.
[1] Vide Macaulay, The History of England.
[2] O acre corresponde, em Portugal, à jeira ou jorna (terreno que uma junta de bois pode lavrar num dia). Em Inglaterra eram aproximadamente 40 ares.
[3] No seu Utopie, Thomas More refere-se ao estranho país onde os carneiros comem os homens.
[4] Dr. HUNTER: Public Health, 7th Report, 1865.
[5] J. D. TUCKETT: A History of the past and present state of the labouring population.
[6] WILLI COBBET: A History of the protestant reformation.
[7] R. BLAKEY: The History of political literature from the earliest times.
[8] M. ROGERS: Histoire de l’agriculture.
[9] Fez grandes concessões de terras a Lady Orkney por causa dos seus serviços: faeda labiorum ministeria (sórdido serviço dos lábios).
[10] F. W. NEWMAN: Lectures on political econ.
[11] EDEN: The State of the Poor.
[12] RÉV. ADDINGTON: Inquiry into the Reasons for and against enclosing open fields.
[13] DR. R. PRICE: Observations on reversionary Payments.
[14] APPIEN: Les Guerres civiles romaines.
[15] K. B. SEELEY: The Perils of the Nation.
[16] F. W. NEWMAN: Lectures on polit. Economy.
[17] JAMES ANDERSON: Observation on the means of exciting a spirit of national industry.
[18] JAMES STEUART: Works
[19] GEORGE ENSOR: An Inquiry concerning the Population of Nations.
[20] New York Daily Tribune, 9-2-1853 (Artigo: The Duches of Sutherland and Slavery)
[21] Descendentes dos normandos, antigos habitantes da Gália.
[22] ROBRT SOMERS: Letters from The Highlands: or the Famine of 1847.
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