de Marx, Engels, Lenine, Estaline, Mao Tsé-tung e outros autores
Segunda-feira, 2 de Dezembro de 2013
O Capital 1.º Volume 8.ª Secção A Acumulação Primitiva cap XXXI

 (Início)

Capítulo XXXI

Génese do capitalista industrial

A génese do capitalista industrial[1] não se realizou pouco a pouco como a do agricultor ou fazendeiro. Não há dúvida que muitos chefes de corporação, muitos artífices independentes e até operários assalariados se tornaram a princípio capitalistas embrionários e que, pouco a pouco, graças a uma exploração sempre mais extensa do trabalho assalariado, seguida de uma correspondente acumulação, saíram por fim da casca como capitalistas dos pés à cabeça. A infância da produção capitalista oferece, sob vários aspectos, as mesmas fases que a infância da cidade na Idade Média: a questão de saber qual dos servos evadidos seria patrão ou servo, era em grande parte decidida pela data mais ou menos antiga da respectiva fuga. Contudo, esta marcha a passo de tartaruga, não respondia de modo nenhum às necessidades comerciais do novo mercado universal, criado pelas grandes descobertas do fim do século XV. Mas a Idade Média tinha transmitido duas espécies de capital que brotam sob os mais variados regimes de economia social e até, antes da Era moderna, monopolizam só para eles o nível de capital. Essas espécies são o capital usurário e o capital comercial.

Disse um escritor inglês que, de resto, não dá atenção ao papel representado pelo capital comercial:

«Agora toda a riqueza da sociedade passa em primeiro lugar pelas mãos do capitalista. Ele paga ao proprietário das terras a renda, ao trabalhador o salário, ao fisco os impostos e os dízimos, e retém para si uma grande porção do produto anual do trabalho, de facto a parte maior e que cresce sempre de dia para dia. Hoje o capitalista pode ser considerado como proprietário em primeira mão de toda a riqueza social, embora nenhuma lei lhe tenha conferido o direito a esta propriedade. Esta mudança de propriedade foi operada pela usura, e o curioso é que os legisladores de toda a Europa quiseram impedi-lo por leis próprias. O poder do capitalismo sobre toda a riqueza nacional produziu uma revolução radical no direito de propriedade; por que lei ou por que série de leis foi operada?»[2].

O autor citado deveria ter dito que as revoluções não se fazem por meio de leis.

A constituição feudal dos campos e a organização corporativa das cidades impediam o capital-dinheiro, formado pela dupla via da usura e do comércio, de se converter em capital industrial. Estas barreiras caíram com o despedimento dos séquitos senhoriais, com a expropriação e expulsão parcial dos cultivadores, mas pode avaliar-se a resistência que encontraram os comerciantes quando se transformaram em comerciantes produtores, porque pequenos fabricantes de tecidos, ainda em 1794, mandaram uma comissão ao Parlamento para pedir uma lei que proibisse ao comerciante tornar-se fabricante[3]. Por isso, as novas manufacturas estabeleceram-se de preferência nos portos marítimos, centros de exploração, e nos lugares do interior, situados fora do «controlo» do regime municipal e das corporações de ofícios. Daí, na Inglaterra, a luta encarniçada entre as velhas cidades privilegiadas (Corporate towns) e os novos alfobres da indústria. Noutros países, em França por exemplo, estas foram colocadas sob protecção especial dos reis.

A descoberta das regiões auríferas e argentíferas da América, a redução dos autóctones à escravatura, o seu duro trabalho nas minas ou o seu extermínio, os indícios da conquista e pilhagem nas Índias Orientais, a transformação da África numa espécie de coutada comercial para a caça aos infelizes de pele preta, eis os processos idílicos de acumulação primitiva que assinalam a era capitalista na sua aurora. Logo a seguir rebenta a guerra mercantil que tem por teatro o mundo inteiro. Iniciada pela revolta da Holanda contra a Espanha, assume proporções gigantescas na cruzada da Inglaterra contra a Revolução Francesa e prolonga-se até aos nossos dias com expedições de piratas, como as Guerras do Ópio contra a China.

Os diferentes métodos de acumulação primitiva que a era capitalista fez surgir, entram primeiro, por ordem mais ou menos cronológica, em Portugal, Espanha, Holanda, França e Inglaterra. Esta combina-os a todos, no último terço do século XVII, num conjunto sistemático, compreendendo ao mesmo tempo o regime colonial, o crédito público, a finança moderna e o sistema proteccionista. Alguns destes métodos baseiam-se no emprego da força bruta, mas todos, sem excepção, exploram o poder do Estado, a força concentrada e organizada da sociedade, para precipitar com violência a passagem da ordem económica feudal à ordem económica capitalista e abreviar as fases de transição. E, com efeito, a força é a parteira de toda a velha sociedade. A força é um agente económico.

Um homem, cujo fervor cristão lhe deu fama, W. Howitt, exprime-se assim sobre a colonização cristã:

«As barbaridades e atrocidades execráveis perpetradas pelas raças pretensamente cristãs em todas as regiões do mundo e contra todos os povos que puderam subjugar, não têm paralelo em nenhuma outra era da história universal e em nenhuma raça por mais grosseira, selvagem, impiedosa e desavergonhada que pudesse ter sido»[4].

A história da administração colonial dos holandeses – e a Holanda foi no século XVII a nação capitalista por excelência – «desenrola-se num quadro de assassínios, traições, corrupção e baixeza que nunca será igualado»[5].

Nada mais característico do que o rapto dos autóctones das Celebes com o fim de obter escravos para Java. Tinham um pessoal adestrado para esse rapto de novo tipo. Os principais agentes deste comércio eram o raptor, o intérprete e o vendedor, e os principais vendedores eram os príncipes nativos. A juventude raptada era aferrolhada nos calabouços secretos das Celebes até a encafuarem nos navios de escravos. Diz um relatório oficial: «Só a cidade de Macassar está cheia de prisões secretas, todas elas horríveis, cheias de desgraçados, vítimas da avidez e da tirania, carregados de grilhões, violentamente arrancados às suas famílias».

Para se apoderarem de Malaca, os holandeses corromperam o governador português que os deixou entrar na cidade em 1641. Os holandeses correram logo a casa do governador e assassinaram-no, evitando assim pagar-lhe a soma de 21 875 libras, preço da sua traição. Por todo o lado onde punham pé, a sua passagem era assinalada por devastação e despovoamento. Uma província de Java, Banjuwangi, contava em 1750 mais de 80 000 habitantes, em 1811, já só tinha 8000. Eis o doce comércio!

A Companhia Inglesa das Índias Orientais obteve, além do poder político, o monopólio exclusivo do comércio do chá e do comércio chinês em geral, assim como do transporte das mercadorias da Europa para a Ásia e vice-versa. Mas a cabotagem e a navegação entre ilhas, assim como o comércio no interior da Índia, foram concedidos exclusivamente aos empregados superiores dessa Companhia. Os monopólios do sal e do ópio, do bétele e de outros artigos, eram minas inesgotáveis de riqueza. Os empregados fixavam os preços e assim arrancavam à vontade a pele dos desgraçados indianos. O governo-geral participava deste comércio privado. Os seus favoritos obtinham tais adjudicações que, mais fortes do que os alquimistas, faziam oiro de nada. Grandes fortunas surgiam em vinte e quatro horas como cogumelos; a acumulação primitiva operava-se sem um centavo de adiantamento. O processo de Warren Hastings está cheio de exemplos deste tipo. Citemos apenas um: um certo Sullivan arranjou um contrato para uma entrega de ópio, no momento em que partia em missão oficial para certa região da Índia muito distante dos distritos produtores; Sullivan cedeu o seu contrato por 40 000 libras a um certo Binn; este revendeu-o no mesmo dia por 60 000 libras, e o comprador definitivo, pondo-o em acção, declarou que fez um ganho enorme. Segundo uma lista apresentada ao Parlamento, a Companhia e os seus empregados extorquiram aos indianos, desde 1757 a 1760, sob a única rubrica de dádivas voluntárias, uma quantia de seis milhões de libras! De 1769 a 1770, os ingleses provocaram uma fome artificial comprando todo o arroz; e só consentiram em o vender a preços fabulosos[6].

A sorte dos nativos era naturalmente a mais pavorosa nas plantações destinadas ao comércio de exportação, como nas Índias Ocidentais e nos países ricos e populosos das Índias Orientais e do México, caídos nas mãos de aventureiros europeus, ávidos de lucros. No entanto, até mesmo nas colónias propriamente ditas, o carácter «cristão» da acumulação primitiva nunca foi desmentido: os puritanos, os austeros intrigantes do protestantismo, concederam em 1703 por decreto da sua assembleia um prémio de 40 libras por cada crânio de índio e outro prémio igual por cada pele-vermelha feito prisioneiro; em 1720, um prémio de 100 libras; em 1744, Massachusetts-Bay declarou rebelde certa tribo e ofereceu os seguintes prémios: 100 libras por crânio de indivíduo masculino de doze ou mais anos; 105 libras por cada prisioneiro masculino; 55 libras por cada mulher ou criança apanhada e 50 libras por cada crânio das mesmas! Trinta anos depois, as atrocidades do regime colonial recaíram sobre os descendentes destes piedosos colonialistas que por sua vez se tornaram rebeldes. Os cães treinados na caça aos colonos revoltosos e os índios pagos pela entrega dos respectivos crânios foram proclamados pelo Parlamento «meios divinos e naturais postos à mão».

O regime colonial deu grande impulso à navegação e ao comércio; criou sociedades mercantis, dotadas pelos governos de monopólios e de privilégios, servindo de poderosas alavancas à concentração de capitais; assegurou mercados às manufacturas nascentes, cuja facilidade de acumulação redobrou, graças ao monopólio do comércio colonial. Os tesouros directamente extorquidos fora da Europa pelo trabalho forçado dos nativos reduzidos à escravatura, pela concussão, pela pilhagem e pelo assassínio, refluíam para a mãe-pátria e aqui funcionavam como capital. A Holanda, a verdadeira iniciadora deste porquíssimo regime colonial, atingira em 1648 o apogeu da sua grandeza. Estava de posse quase exclusiva do comércio das Índias Orientais e das comunicações entre o sudoeste e o nordeste da Europa. As suas pescarias, a sua marinha, as suas manufacturas, ultrapassavam as dos outros países. Os seus capitais eram talvez mais importantes do que todos os do resto da Europa reunidos.

Nos nossos dias, a supremacia industrial implica a supremacia comercial. Mas, na época manufactureira propriamente dita, a supremacia comercial é que dava a supremacia industrial. Daí o papel preponderante que representou então o regime colonial. Foi ele o Deus colocado no altar ao lado dos velhos ídolos europeus; um belo dia acotovelou os seus camaradas e catrapus, todos os ídolos foram a terra!

O sistema de crédito público, isto é, da dívida pública, cujos primeiros marcos foram colocados, na Idade Média, por Veneza e Génova, invadiu a Europa definitivamente durante a época manufactureira. O regime colonial, com o seu comércio marítimo e as suas guerras comerciais a servir-lhe de estufa quente, instalou-se primeiro na Holanda. A dívida pública, por outros termos, a alienação do Estado (quer seja despótico, ou constitucional, ou republicano), marca com o seu selo a era capitalista. A única parte da pretensa riqueza nacional que entra realmente na posse colectiva dos povos modernos é a dívida pública[7]. Não há que admirar que quanto mais um povo se endivida mais enriquece, segundo a doutrina moderna. O crédito público, eis o credo do capital. Por isso a falta de fé na dívida pública, desde a incubação desta, tomou o lugar do pecado contra o Espírito Santo, outrora imperdoável[8].

A dívida pública opera como um dos agentes mais enérgicos da acumulação primitiva. Por artes mágicas, a dívida pública dota o dinheiro improdutivo com a virtude reprodutora e converte-o assim em capital, sem que para isso tenha que correr riscos ou perturbações, inseparáveis do seu emprego industrial, ou até da usura privada. Os credores públicos, em boa verdade, não dão nada porque o seu dinheiro metamorfoseado em fundos públicos de fácil transferência continua a funcionar nas suas mãos como outro tanto numerário. Mas, exceptuando a classe dos capitalistas ociosos, assim criada, exceptuando a fortuna improvisada dos financeiros intermediários entre o governo e a nação – como os traficantes, os comerciantes, os manufactureiros particulares, a quem uma boa parte de qualquer empréstimo é capital caído do céu – a dívida pública deu um empurrão às sociedades por acções, ao comércio de qualquer tipo de «papéis» negociáveis, às operações aleatórias, à agiotagem, em suma aos jogos de bolsa e à bancocracia moderna.

Desde o seu aparecimento, os grandes bancos, cheios de títulos nacionais, passaram a ser associações de especuladores estabelecidos ao lado dos governos e, graças aos privilégios que deles obtêm, capazes de lhes emprestar o dinheiro público. Por isso a acumulação da dívida pública não tem graduador mais infalível do que a alta sucessiva das acções dos bancos, cujo desenvolvimento integral data da fundação do Banco de Inglaterra em 1694. Este começou por emprestar todo o seu capital-dinheiro ao governo ao juro de 8 por cento; ao mesmo tempo foi autorizado pelo Parlamento a cunhar moeda do mesmo capital. E de novo emprestou a moeda ao público sob a forma de notas que lhe foi permitido pôr em circulação; descontou com elas as letras de câmbio; adiantou-as sobre mercadorias; empregou-as na compra de metais preciosos. Pouco depois, este dinheiro de crédito, do próprio fabrico do Banco de Inglaterra, torna-se o dinheiro com que o mesmo banco efectua os seus empréstimos ao Estado e paga pelo Estado os juros da dívida pública. Deu por um lado, não só para receber mais, como ainda, ao receber, ficou credor perpétuo da nação até ao pagamento do último cêntimo. E, pouco a pouco, tornou-se necessariamente no receptáculo dos tesouros metálicos do país e o grande centro em torno do qual gravita o crédito comercial. E ainda, ao mesmo tempo que deixaram de queimar bruxas, começaram a enforcar os falsificadores de notas.

É preciso ter lido os escritos daquele tempo, os de Bolingbroke por exemplo, para se compreender todo o efeito que produziu sobre os contemporâneos a súbita aparição desta engenhoca de bancocratas, financeiros, capitalistas, intermediários, agentes de câmbio, homens de negócios, linces, GATUNOS[9].

Com a dívida pública nasceu um sistema de crédito internacional que esconde muitas vezes uma das fontes da acumulação primitiva neste ou naquele povo. É assim que as rapinas e violências venezianas formaram uma das bases da riqueza da Holanda, a quem Veneza emprestou somas consideráveis. Por sua vez, a Holanda, decaída nos fins do século XVII da sua supremacia industrial e comercial, viu-se obrigada a fazer valer capitais enormes emprestando-os ao estrangeiro e, de 1701 a 1776, especialmente à Inglaterra, sua vitoriosa rival.

É o mesmo que se está a dar agora com a Inglaterra e os Estados Unidos: muito capital que aparece hoje nos Estados Unidos sem certificado de nascimento é o sangue das crianças das fábricas, capitalizado outrora na Inglaterra.

Como a dívida pública está baseada no rendimento público, o moderno sistema de impostos foi o corolário obrigatório dos empréstimos nacionais. Estes empréstimos, que dão ao Estado a possibilidade de despesas extraordinárias sem que os contribuintes se dêem conta delas imediatamente, arrastam atrás de si um aumento de impostos; por outro lado, a sobrecarga de impostos, causada pela acumulação de dívidas sucessivas contraídas, obriga os governos, em caso de novas despesas extraordinárias, a recorrer a novos empréstimos. O fisco moderno, cujos impostos sobre objectos de primeira necessidade acarretam o encarecimento destes, formava a princípio o eixo; hoje encerra em si um germe de progressão automática. A sobrecarga das taxas não é um incidente dessa progressão, mas o princípio. Assim, na Holanda, onde este sistema foi inaugurado, Witt exaltou-o nas suas Maximes como o mais próprio para tornar o salário submisso, frugal e industrioso. Mas a influência deletéria que exerce na classe operária ocupar-nos-á menos agora do que a expropriação forçada do camponês, dos artífices e de outros elementos da pequena classe média. Sobre isto não há duas opiniões, até mesmo entre os economistas burgueses. E essa acção expropriadora é ainda reforçada pelo sistema proteccionista que constitui uma das suas partes integrantes.

A grande parte que toca à dívida pública e ao sistema correspondente do fisco, na capitalização da riqueza e na expropriação das massas, induziu muitos escritores, como William Cobbett, Doubleday e outros, a procurar aqui (erradamente), a primeira causa da miséria dos povos modernos.

O sistema proteccionista foi um meio artificial de fabricar fabricantes, de expropriar trabalhadores independentes, de converter em capital os instrumentos e condições materiais do trabalho, de abreviar à viva força a transição do modo tradicional da produção para o modo moderno. Os Estados europeus disputaram a palma do proteccionismo e, uma vez postos ao serviço dos fabricantes de mais-valia, não se contentaram em sangrar a frio os seus próprios povos, indirectamente pelos direitos protectores, directamente pelos prémios de exportação, pelos monopólios de venda interna, etc.. Nos países vizinhos colocados sobre a sua dependência, extirparam violentamente toda a espécie de indústria; foi assim que a Inglaterra matou a manufactura de lãs na Irlanda por meio de «ukases»[10] parlamentares. O processo de fabrico foi ainda simplificado no continente, onde Colbert fez escola. A fonte encantada, de onde o capital primitivo chegava direitinho aos fabricantes, sob a forma de adiantamentos e até de dádiva gratuita, foi muitas vezes o erário público. Disse Mirabeau: «Mas porquê ir procurar mais longe a causa da população e do brilho manufactureiro do Saxe antes da guerra? – Cento e oitenta milhões de dívidas feitas pelos reis»[11].

Regime colonial, dívida pública, exacções fiscais, protecção industrial, guerras comerciais – tudo rebentos do período manufactureiro propriamente dito, que tomaram um desenvolvimento gigantesco durante a primeira juventude da grande indústria. Quanto ao nascimento desse período, pode explicar-se perfeitamente por uma espécie de massacre dos inocentes: o roubo de crianças executado à grande. O recrutamento para as novas fábricas foi feito como na marinha real: por meio de recrutamento forçado.

Por mais encantado que Eden se mostrasse a respeito da expropriação do cultivador, cujo horror enche três séculos, fosse qual fosse o seu ar de complacência em face deste drama histórico, só «necessário» para estabelecer a agricultura capitalista e a «verdadeira proporção entre terras de cultivo e pastagens», falha a serena inteligência das fatalidades económicas quando se trata de roubo de crianças, de necessidade de as escravizar, para se poder transformar a exploração manufactureira em exploração mecânica e estabelecer a verdadeira relação entre capital e força operária.

«Talvez o público fizesse bem em examinar estas manufacturas, cujo êxito exige que se arranquem às choupanas e aos asilos, pobres crianças que, revezando-se por grupos, sofrerão a maior parte da noite e serão privadas de repouso; as quais, além disto, aglomeram indivíduos diferentes no sexo, na idade e nas inclinações, de modo que o contágio do exemplo conduz necessariamente à depravação e à libertinagem. Poderá dizer-se que aumenta a felicidade individual e nacional?»[12].

«As máquinas recentemente inventadas foram empregadas nas suas grandes fábricas, muito perto de cursos de água bastante fortes para moverem a roda hidráulica. De repente foram precisos milhares de braços nestes lugares afastados das cidades e houve necessidade de população. Dedos pequenos e ágeis, tal era o grito geral, e logo nasceu o costume de procurar pseudo-aprendizes nos asilos pertencentes às diversas paróquias de Londres, de Birmingham e de outras localidades. Milhares destes pobres pequenos abandonados, de sete a treze e catorze anos, foram assi expedidos para o Norte. O patrão (ladrão de crianças) encarregava-se de vestir, alimentar e alojar os seus aprendizes numa casa ad hoc muito perto da fábrica. Durante o trabalho, estavam sob as vistas dos vigilantes. O interesse destes guarda-chusmas era fazer andar as crianças a todo o transe porque, consoante a quantidade de produtos que soubessem tirar, aumentaria ou diminuiria a sua paga. Maus-tratos, tal era a consequência natural. Estes seres inocentes, sem abrigo nem amparo, que tinham sido entregues aos patrões como coisas, foram submetidos às mais pavorosas torturas. Cansados pelo excesso de trabalho, foram chibatados, agrilhoados, atormentados com os mais bem estudados refinamentos. Muitas vezes, quando a fome os torcia mais fortemente, o chicote mantinha-os a trabalhar. O desespero levou-os em alguns casos ao suicídio! Cometeram-se impunemente atrocidades sem nome e até assassínios! Os ganhos enormes arrecadados pelos fabricantes só lhes aguçavam os dentes. Imaginaram a prática do trabalho nocturno, isto é, depois de terem esgotado um grupo de trabalhadores na tarefa diurna, tinham outro grupo preparado para a tarefa nocturna. Os primeiros lançavam-se nas camas que os segundos acabavam de deixar no mesmo instante e vice-versa. Era tradição popular que as camas nunca arrefeciam!»[13].

Com o desenvolvimento da produção capitalista durante o período manufactureiro, a opinião pública europeia perdeu o seu último farrapo de consciência e de pudor. As nações gloriavam-se cinicamente de todas as infâmias apropriadas para acelerar a acumulação de capital. Leiam-se por exemplo os ingénuos Annales du Commerce do honesto A. Anderson. Este bom homem admira-se do rasgo de génio da política inglesa: quando da Paz de Utrecht, a Inglaterra arrancou à Espanha, pelo tratado de Amiens, o privilégio de fazer, entre a África e a América espanhola, o mercado de escravos pretos, que, até então, só tinha feito entre a África e as suas possessões da Índia Oriental. A Inglaterra conseguiu assim, até 1743, trazer quatro mil e oitocentos pretos por ano da América espanhola. Isto serviu-lhe ao mesmo tempo para cobrir com um véu oficial as proezas do seu contrabando. Foi o mercado de escravos pretos que fez os alicerces da grandeza de Liverpool; para esta cidade, o tráfico de carne humana constituiu o método de acumulação primitiva. As notabilidades de Liverpool cantaram as virtudes do comércio de escravos «que desenvolve o espírito de empreendimento até à paixão, faz marinheiros sem igual, e rende dinheiro à farta»[14] . Liverpool empregava no comércio da escravatura 15 navios em 1730, 53 em 1751, 74 em 1760, 96 em 1770 e 132 em 1792.

Ao mesmo tempo que a indústria introduzia na Inglaterra a escravatura das crianças, os Estados Unidos transformavam o tratamento mais ou menos patriarcal dos pretos em sistema de exploração mercantil. Criou-se, par pedestal da escravatura dissimulada dos assalariados na Europa, a escravatura desenfreada no novo mundo[15].

Tantœ molis erat! (tão difícil foi!). Eis o preço por que temos pago as nossas conquistas; eis o que custou libertar as «leis naturais e eternas» da produção capitalista, consumar o divórcio entre o trabalhador e as condições de trabalho, transformar estas em capital, a massa do povo em assalariados, em labouring poor – obra-prima de arte, criação sublime da história moderna[16]. Se, como diz Augier, foi «com manchas de sangue numa das faces que o dinheiro veio ao mundo»[17], o capital chegou até nós suando sangue e lama por todos os poros[18].

(cap XXXII)

[1] Termo empregado em oposição ao capitalista agrícola.

[2] TH. HODGSKIN: The natural and artificial Rights of Property contrasted.

[3] DR. JOHN AIKIN.

[4] WILLIAM HOWITT: Colonisation and Christianity.

[5] THOMAS STAMFORD RAFFLES, último governador de Java: The History of Javaand its dependences. Compilação de Charles Comte: Traité de Législationé preciso estudar o que faz o burguês por toda a parte onde pode modelar o mundo à sua imagem»).

[6] Ainda em 1866 mais de um milhão de hindus morreu de fome, só na província de Orissa!

[7] WILLIAM COBBETT nota muito bem que todas as coisas públicas são reais (do Rei), mas a dívida é nacional.

[8] Mémoires du Comte de Bussy-Rabutin.

[9] «Se ao tártaros inundassem hoje a Europa, seria o cabo dos trabalhos fazê-los compreender o que é um financeiro de agora», MONTESQUIEU: Esprit des lois, t. IV.

[10] Do russo «ukasasi»: indicar.

[11] MIRABEAU: De la monarchie prussienne.

[12] F.M. EDEN: The State of the Poor.

[13] JOHN FIELDEN: The curse of the factory system. DR. AIKIN: Description of the Country. GISBORNE: Enquiry into the Duties of Men.

[14] DR. AIKIN: ob cit.

[15] HENRY BROUGHAM: An Inquiry into the colonial policy of the EUropean powers

[16] A expressão labouring poor foi mesmo uma expressão legal. E das leis passou à economia política (Culpeper, J. Child, Adam Smith, Eden). «As leis do comércio são leis da natureza e consequentemente de Deus», EDMOND BURKE: Thoughts and Details on Scarcity.

[17] MARIE AUGIER: Du crédit public.

[18] «O capital evita o tumulto e é por natureza tímido. Isto é verdade mas não é toda a verdade. Aborrece a falta de lucro ou um lucro mínimo, como a natureza tem horror ao vácuo. Faça-se o lucro conveniente, e o capital ganha coragem: 10% garantidos e empregam-no por toda a parte; 20% e ele aquece; 50%, mostra uma temeridade louca; 100%, pisa a pés todas as leis humanas; 300%, não há crime que não ouse cometer, até com risco da forca. Se a desordem e a discórdia derem lucro, anima-as, como se prova pelo contrabando e a escravatura dos pretos»… F. J. DUNNING, Trades’ Unions and Strikes: their Philosophy and Intention, Londres 1860, pp. 35, 36.


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