(início)
Anos de preparação da revolução (1903/1905). Prenúncio de grande tempestade em toda parte. Fermentação e preparativos em todas as classes da sociedade. No estrangeiro, a imprensa dos emigrados expõe teoricamente todas as questões fundamentais da revolução. Representantes das três classes fundamentais, das três correntes políticas principais – a liberal-burguesa, a democrático-pequeno-burguesa (encoberta pelos rótulos de “social-democrática” e “socialista revolucionária”) e a proletária revolucionária – através de uma luta encarniçada de concepções programáticas e tácticas, prenunciam e preparam a futura luta de classes aberta. Todas as questões que motivaram a luta armada das massas em 1905/1907 e em 1917/1920 podem (e devem) ser encontradas, em forma embrionária, na imprensa daquela época. Entre essas três grandes áreas existia, é claro, uma série de formações intermédias, de transição, híbridas. Ou melhor: é na luta nos órgãos da imprensa, que os partidos políticos, as fracções e os grupos cristalizam as tendências ideológicas e políticas com carácter realmente de classe, que cada uma das classes forja para si a adequada arma ideológica e política para as batalhas iminentes.
Anos de revolução (1905/1907). Todas as classes agem abertamente. Todas as concepções programáticas e tácticas são testadas pela acção das massas. Luta grevista sem precedentes no mundo inteiro pela sua amplitude e dureza. Escalada da greve económica para a greve política e da greve política para a insurreição. As relações de liderança entre o proletariado dirigente e o campesinato vacilante e instável são testadas na prática. Nascimento, no processo espontâneo da luta, da forma soviética de organização. As controvérsias de então sobre o papel dos sovietes são uma antecipação da grande luta de 1917/1920. Sucessão de formas de luta parlamentares e não parlamentares, de tácticas de boicote ao parlamento e de participação no mesmo, e de formas legais e ilegais de luta, assim como as relações recíprocas e as ligações existentes entre elas – tudo isto marcado por uma extraordinária riqueza de conteúdo. Cada mês deste período equivale, do ponto de vista da aprendizagem dos fundamentos da ciência política – das massas e chefes, das classes e partidos –, a um ano de desenvolvimento “pacífico” e “constitucional”. Sem o “ensaio geral” de 1905, a vitória da Revolução de Outubro de 1917 teria sido impossível.
Anos de reacção (1907/1910). O czarismo ganhou. Foram esmagados todos os partidos revolucionários e da oposição. Desânimo, desmoralização, cisões, discórdia, deserções, pornografia em vez de política. Fortalecimento da tendência para o idealismo filosófico, o misticismo torna-se o disfarce de estado de espírito contra-revolucionário. Todavia, ao mesmo tempo, é esta grande derrota que ensina aos partidos revolucionários e à classe revolucionária uma verdadeira lição muito proveitosa, uma lição de dialéctica histórica, a da compreensão, da habilidade e da arte na condução da luta política. Os verdadeiros amigos manifestam-se na desgraça. Os exércitos derrotados passam por uma boa escola.
O czarismo vitorioso vê-se obrigado a destruir apressadamente as remanescências do regime pré-burguês e patriarcal na Rússia. O desenvolvimento burguês do país progride com notável rapidez. As ilusões à margem e acima das classes, as ilusões sobre a possibilidade de evitar o capitalismo dissipam-se. A luta de classes manifesta-se de modo absolutamente novo e com maior clareza.
Os partidos revolucionários têm de completar a sua edução. Aprenderam a atacar. Agora têm que compreender que essa ciência deve ser completada pela de saber recuar ordenadamente. É preciso compreender – e a classe revolucionária compreende-o pela sua própria amarga experiência – que não se pode triunfar sem saber atacar e como retirar correctamente. De todos os partidos revolucionários e da oposição derrotados, foram os bolcheviques que recuaram com maior ordem, com menores perdas no seu “exército”, conservando melhor o núcleo central, com cisões menos profundas e irreparáveis, menos desmoralização e com maior capacidade para reiniciar a acção de modo mais amplamente correcto e vigoroso. E se os bolcheviques conseguiram tal resultado foi exclusivamente porque desmascararam impiedosamente e expulsaram os revolucionários de boca, obstinados em não compreender que é necessário recuar, que é preciso saber recuar, que é necessário aprender a actuar legalmente nos parlamentos mais reaccionários e nas organizações sindicais, cooperativas, nas organizações de socorros mútuos e outras semelhantes, por mais reaccionárias que sejam.
Anos de ascenso (1910/1914). A princípio, o ascenso foi incrivelmente lento, em seguida, depois dos acontecimentos do Lena em 1912, um pouco mais rápido. Vencendo dificuldades inauditas, os bolcheviques arrojaram os mencheviques, cujo papel como agentes da burguesia no movimento operário foi admiravelmente compreendido depois de 1905 por toda a burguesia e aos quais, por isso mesmo, ela apoiou de mil maneiras contra os bolcheviques. Mas estes nunca teriam conseguido isso, se não tivessem aplicado uma táctica justa, combinando o trabalho ilegal com a utilização obrigatória das “oportunidades legais”. Na mais reaccionária das Dumas, os bolcheviques conquistaram toda a bancada operária.
Primeira guerra imperialista mundial (1914/1917). O parlamentarismo legal, com um “parlamento” ultra-reaccionário, presta os mais úteis serviços ao partido do proletariado revolucionário, aos bolcheviques. Os deputados bolcheviques são deportados para a Sibéria. Todos os matizes das concepções do social-imperialismo, do social-chauvinismo, do social-patriotismo, do internacionalismo inconsequente e do consequente, do pacifismo e o repúdio revolucionário das ilusões pacifistas, encontram a mais plena expressão na imprensa dos emigrados. Os imbecis sabichões e as velhas comadres da II Internacional, que franziam o cenho com desdém e arrogância ante a abundância de “fracções” no socialismo russo e ante a luta encarniçada que havia entre elas, quando a guerra suprimiu em todos os países avançados a tão alardeada “legalidade”, foram incapazes de organizar, ainda que apenas aproximadamente, um intercâmbio livre (ilegal) de ideias e uma elaboração livre (ilegal) de concepções justas, como os revolucionários russos organizaram na Suíça e noutros países. É precisamente por isso que tanto os social-patriotas declarados como os “kautskianos” de todos os países se revelaram os piores traidores do proletariado. E se o bolchevismo foi capaz de triunfar em 1917/1920, uma das causas fundamentais dessa vitória foi que desmascarou impiedosamente, já desde fins de 1914, a vileza, a infâmia e a abjecção do social-chauvinismo e do “kautskismo” (ao qual correspondem o longuetismo na França, as ideias dos chefes do Partido Trabalhista Independentee dos fabianos na Inglaterra, de Turati na Itália, etc.) e as massas foram-se convencendo cada vez mais, por experiência própria, da justeza das concepções dos bolcheviques.
Segunda revolução russa (Fevereiro-Outubro de 1917). O incrível grau de decrepitude e obsolescência do czarismo criou contra ele (com ajuda dos reveses e sofrimentos de uma guerra infinitamente penosa) uma tremenda força destruidora. Em poucos dias, a Rússia converteu-se numa república burguesa democrática, mais livre – em condições de guerra – do que qualquer outro país. Os chefes dos partidos da oposição e revolucionários começaram a formar governo como na maior parte das repúblicas “puramente parlamentares”, e o título de chefe de um partido de oposição no parlamento, mesmo no mais reaccionário jamais havido, facilitou o papel ulterior como chefe na revolução
Em poucas semanas, os mencheviques e os “socialistas revolucionários” assimilaram com perfeição todos os métodos e processos, argumentos e sofismas dos heróis europeus da II Internacional, dos ministerialistas e de outro lixo oportunista. Tudo que hoje lemos sobre os Scheidemann e os Noske, Kautsky e Hilferding, Renner e Austerlitz, Otto Bauer e Fritz Adler, Turati e Longuet, sobre os fabianos e os chefes do Partido Trabalhista Independente da Inglaterra nos parece (e é, na realidade) uma repetição monótona de um assunto antigo e conhecido. Já vimos tudo isso no exemplo dos mencheviques. A História pregou uma partida, obrigando os oportunistas de um país atrasado a manifestarem-se antes dos oportunistas de uma série de países avançados.
Se todos os heróis da II Internacional fracassaram e envergonham-se sobre a questão do papel e da importância dos sovietes e do Estado soviético, se eles se cobriram de ignomínia com singular “brilhantismo” e se os chefes dos três grandes partidos que se separaram agora da II Internacional (Partido Social-Democrata Independente da Alemanha, Partido Longuetista da França e Partido Trabalhista Independente da Inglaterra) atolaram-se nessa questão, se todos eles se tornaram escravos dos preconceitos da democracia pequeno-burguesa (bem no espírito dos pequeno-burgueses de 1848, que se chamavam “social-democratas”), também é verdade que já vimos tudo isso no exemplo dos mencheviques. A história fez esse gracejo: os Sovietes surgiram na Rússia em 1905, foram falsificados em Fevereiro-Outubro de 1917 pelos mencheviques – que fracassaram por não terem compreendido o papel e a importância dos Sovietes – e hoje emergiu no mundo inteiro a ideia do Poder Soviético, ideia que se difunde com uma velocidade extraordinária entre o proletariado de todos os países. Enquanto isso, os antigos heróis da II Internacional fracassam em toda parte, por não terem sabido compreender, do mesmo modo que os nossos mencheviques, o papel e a importância dos Sovietes. A experiência demonstrou que, em algumas questões essenciais da revolução proletária, todos os países terão de fazer, inevitavelmente, o que a Rússia tem feito.
Contrariamente às opiniões que não raro se expendem agora na Europa e na América, os bolcheviques começaram com muita prudência e não prepararam de modo algum com facilidade a sua vitoriosa luta contra a república burguesa parlamentar (de facto) e contra os mencheviques. No início do período citado, não conclamámos ao derrube do governo, mas explicámos a impossibilidade de fazê-lo sem modificar previamente a composição e o estado de espírito dos Sovietes. Não proclamámos o boicote ao parlamento burguês, a Assembleia Constituinte, mas, pelo contrário, dissemos, e a partir da Conferência Abril (1917) do nosso partido passámos a dizê-lo oficialmente em nome do partido, que uma república burguesa com uma Constituinte era preferível à mesma república sem Constituinte, mas que a república “operário-camponesa” soviética é melhor que qualquer república democrático-burguesa, parlamentar. Sem essa preparação prudente, completa, sensata e prolongada não teríamos podido alcançar nem manter a vitória de Outubro de 1917.
Em primeiro lugar, e acima de tudo, na luta contra o oportunismo que, em 1914, se transformou definitivamente em social-chauvinismo e se bandeou definitivamente para o lado da burguesia contra o proletariado. Foi, naturalmente, o principal inimigo do bolchevismo dentro do movimento operário. Este continua a ser o principal inimigo numa escala internacional. O bolchevismo prestou e presta a este inimigo a maior atenção. Esse aspecto da actividade dos bolcheviques já é muito bem conhecido no estrangeiro.
Quanto a outro inimigo do bolchevismo no movimento operário, a coisa já é bem diferente. Pouco se sabe, no estrangeiro, que o bolchevismo cresceu, formou-se e temperou-se, durante muitos anos, na luta contra o revolucionarismo pequeno-burguês, parecido com o anarquismo, ou que adquiriu dele alguma coisa, afastando-se, em tudo o que é essencial, das condições e exigências de uma consequente luta de classes do proletariado. A teoria marxista provou – e a experiência de todas as revoluções e movimentos revolucionários europeus confirmaram-no totalmente – que o pequeno proprietário, o pequeno patrão (tipo social que em muitos países europeus tem uma escala de massas muito ampla), que sofre sob o capitalismo uma opressão contínua e, amiúde, um agravamento terrivelmente brusco e rápido de precárias condições de vida, não sendo difícil arruinar-se, passa facilmente para uma posição ultra-revolucionária, mas é incapaz de manifestar serenidade, organização, disciplina e firmeza. O pequeno-burguês “enfurecido” pelos horrores do capitalismo é, como o anarquismo, um fenómeno social comum a todos os países capitalistas. São bem conhecidas a inconstância e a esterilidade de tais revolucionários, tanto como a facilidade com que se transformam rapidamente em submissão, apatia, fantasias, e mesmo num entusiasmo “frenético” por uma qualquer outra tendência burguesa “na moda”. Contudo, o reconhecimento teórico, abstracto, de tais verdades não é suficiente para proteger um partido revolucionário de antigos erros, que sempre acontecem por motivos inesperados, com ligeiras variações de forma – com aparência ou contornos nunca vistos anteriormente em ambientes sem precedentes –, mais ou menos originais.
O anarquismo é frequentemente uma espécie de expiação dos pecados oportunistas do movimento operário. Estas duas anomalias completam-se reciprocamente. Se o anarquismo exerceu na Rússia uma influência relativamente insignificante nas duas revoluções (1905 e 1917) e durante a sua preparação, não obstante a população pequeno-burguesa ser aqui mais numerosa que nos países europeus, isso se deve, em parte, sem dúvida, ao bolchevismo, que sempre lutou impiedosa e inconciliavelmente contra o oportunismo. Digo “em parte” porque o que mais contribuiu para debilitar o anarquismo na Rússia foi a possibilidade que teve no passado (década de 70 do século XIX) de alcançar um desenvolvimento extraordinário, revelando no final com profundidade a sua incapacidade de servir como teoria dirigente da classe revolucionária.
Ao surgir em 1903, o bolchevismo herdou a tradição de luta implacável contra o revolucionarismo pequeno-burguês, semi-anarquista (ou capaz de “namoricar” o anarquismo), tradição que sempre existira na social-democracia revolucionária e que se consolidou particularmente no nosso país em 1900/1903, quando foram estabelecidas as bases do partido de massas do proletariado revolucionário da Rússia. O bolchevismo fez sua e continuou a luta contra o partido que mais fielmente representava as tendências do revolucionarismo pequeno-burguês (isto é, o partido dos “socialistas revolucionários”) em três pontos principais. Em primeiro lugar, esse partido, que repudiava o marxismo, obstinava-se em não querer compreender (talvez fosse mais justo dizer que não podia compreender) a necessidade de levar em conta, com estrita objectividade, as forças de classe e as relações mútuas antes de empreender qualquer acção política. Em segundo lugar, esse partido via um sinal particular de “revolucionarismo” ou de “esquerdismo” no reconhecimento do terror individual, dos atentados, que nós, marxistas, rejeitávamos categoricamente. É claro que condenávamos o terror individual exclusivamente por conveniência; as pessoas capazes de condenar “por princípio” o terror da grande revolução francesa ou, de modo geral, o terror de um partido revolucionário vitorioso, assediado pela burguesia do mundo inteiro, já foram fustigadas e ridicularizadas por Plekhanov em 1900/1903, quando este era marxista e revolucionário. Em terceiro lugar, ser “esquerdista” consistia, para os “socialistas revolucionários”, em rir dos pecados oportunistas, relativamente leves, da social-democracia alemã, ao mesmo tempo que imitavam os ultra-oportunistas desse mesmo partido, em questões como a agrária ou a da ditadura do proletariado.
A História, diga-se de passagem, confirmou hoje, em grande escala, na escala histórico-mundial, a opinião que sempre defendemos, isto é, que a social-democracia revolucionária alemã (devemos levar em conta que, já em 1900/1903, Plekhanov reclamava a expulsão de Bernstein do partido e que os bolcheviques, mantendo sempre essa tradição, desmascaravam em 1913 toda a vilania, a baixeza e a traição de Legien) estava mais próxima que ninguém do partido que o proletariado revolucionário necessitava para triunfar. Agora, em 1920, depois de todos os rompimentos e crises ignominiosos da época da guerra e dos primeiros anos que a sucederam, vê-se com clareza que, de todos os partidos ocidentais, a social-democracia revolucionária alemã é quem deu os melhores dirigentes e que também mais rapidamente recuperou, se corrigiu e se fortaleceu. Isso também se verifica no partido dos espartaquistas e na ala esquerda, proletária, do “Partido Social-Democrata Independente da Alemanha”, que mantém uma luta firme contra o oportunismo e a cobardia dos Kautsky, Hilferding, Ledebour e Crispien. Se dermos agora uma olhada num período histórico completamente encerrado, que vai da Comuna de Paris à primeira República Socialista Soviética, veremos delinear-se com relevo absolutamente definido e indiscutível a posição do marxismo diante do anarquismo. Em última análise, o marxismo demonstrou ter razão, e se os anarquistas assinalaram com justeza o carácter oportunista das concepções sobre o Estado que imperavam na maioria dos partidos socialistas, deve-se dizer, em primeiro lugar, que esse oportunismo provinha de uma deformação e até mesmo de uma ocultação consciente das ideias de Marx a respeito do Estado (no meu livro O Estado e a Revolução registei que Bebel manteve no fundo de uma gaveta durante 36 anos, de 1875 a 1911, a carta em que Engels denunciava com singular realce, vigor, franqueza e clareza o oportunismo das concepções social-democratas em voga sobre o Estado); e, em segundo lugar, que a rectificação dessas ideias oportunistas e o reconhecimento do poder soviético e da sua superioridade sobre a democracia parlamentar burguesa partiram com maior amplitude e rapidez precisamente das tendências mais marxistas existentes no seio dos partidos socialistas da Europa e da América.
Houve dois momentos em que luta do bolchevismo contra os desvios “esquerdistas” do seu próprio partido adquiriu dimensões particularmente consideráveis: em 1908, em torno da participação num “parlamento” ultra-reaccionário e nas associações operárias legais, regidas por leis reaccionárias, e em 1918 (paz de Brest), em torno da admissibilidade de um “compromisso”.
Em 1908, os bolcheviques “de esquerda” foram expulsos do partido, em virtude de seu empenho em não querer compreender a necessidade de participar num “parlamento” ultra-reaccionário. Os “esquerdistas”, entre os quais havia muitos excelentes revolucionários que depois foram (e continuam a ser) honrosamente membros do Partido Comunista, apoiavam-se, principalmente, na feliz experiência do boicote de 1905. Quando o czar anunciou, em Agosto de 1905, a convocação de um “parlamento” consultivo, os bolcheviques, contra todos os partidos da oposição e contra os mencheviques, declararam o boicote a esse parlamento, que foi liquidado, com efeito, pela revolução de Outubro de 1905. Naquela ocasião, o boicote foi justo, não porque seja certo abster-se, de modo geral, de participar nos parlamentos reaccionários, mas porque foi levada em conta, acertadamente, a situação objectiva, que levava à rápida transformação das greves de massas em greves políticas e, sucessivamente, em greve revolucionária e em insurreição. Além disso, o motivo da luta era, nessa época, saber se se devia deixar nas mãos do czar a convocação da primeira instituição representativa, ou se se devia tentar arrancá-la das mãos das antigas autoridades. Como não havia, nem podia haver, a plena certeza de que a situação objectiva era semelhante e que o seu desenvolvimento havia de realizar-se no mesmo sentido e com igual ritmo, o boicote deixou de ser correcto.
O boicote dos bolcheviques ao “parlamento” em 1905, enriqueceu o proletariado revolucionário com uma experiência política extraordinariamente preciosa, mostrando que, na combinação das formas de luta legais e ilegais, parlamentares e extraparlamentares, é, às vezes, conveniente e até obrigatório saber renunciar às formas parlamentares. Mas transportar cegamente, por simples imitação, sem espírito critico, essa experiência para outras condições, para outra situação, é o maior dos erros. O que já constituíra um erro, embora pequeno e facilmente corrigível[1], foi o boicote dos bolcheviques à “Duma” em 1906. Os boicotes de 1907, 1908 e anos seguintes, foram erros muito mais sérios e dificilmente reparáveis, quando, por um lado, não era acertado esperar que a onda revolucionária se reerguesse com muita rapidez e se transformasse em insurreição e, por outro, o conjunto da situação histórica originada pela renovação da monarquia burguesa impunha a necessidade de se combinar o trabalho legal com o ilegal. Hoje, quando se considera retrospectivamente esse período histórico já encerrado por completo, cuja ligação com os períodos posteriores já se manifestou plenamente, torna-se particularmente claro que os bolcheviques não teriam podido conservar (já não digo consolidar, desenvolver e fortalecer) o núcleo sólido do partido revolucionário do proletariado em 1908/1914, se não houvessem defendido, na mais árdua luta, a combinação obrigatória de formas legais de luta com ilegais, a participação obrigatória num parlamento ultra-reaccionário e numa série de instituições regidas por leis reaccionárias (associações de socorro mútuo, etc.).
Em 1918, as coisas não chegaram à cisão. Os comunistas “de esquerda” só constituíram, na ocasião, um grupo especial, ou “fracção”, dentro de nosso Partido, e por pouco tempo. No mesmo ano, os mais destacados representantes do “comunismo de esquerda”, Rádek e Bukharin, por exemplo, reconheceram abertamente o erro. Achavam que a paz de Brest era um compromisso com os imperialistas, inaceitável por princípio e funesto para o partido do proletariado revolucionário. Tratava-se, realmente, de um compromisso com os imperialistas; mas era precisamente um compromisso duma espécie que era obrigatório naquelas circunstâncias.
Hoje, quando ouço, por exemplo, os “socialistas revolucionários” atacarem a nossa táctica de assinar a paz de Brest, ou uma observação como a que me foi feita pelo camarada Landsbury durante uma conversa: “Os chefes das nossas trade-unions inglesas dizem que é aceitável o compromisso para eles, uma vez que os bolcheviques também o admitiram”, respondo habitualmente, antes de tudo, com uma comparação simples e “popular”:
Imagine que o automóvel no qual viaja é detido por bandidos armados. Dá-lhes o dinheiro, o documento de identidade, o revólver e o automóvel. Em troca disso, escapa da agradável companhia dos bandidos. Trata-se, evidentemente, de um compromisso. Do ut des (“dou” o dinheiro, as armas e o automóvel, “para que me dês” a possibilidade de seguir em paz). Dificilmente, porém, se encontraria um homem sensato capaz de declarar que esse compromisso é “inadmissível por princípio”, ou de denunciar quem o assumiu como cúmplice dos bandidos (ainda que esses bandidos, de posse do automóvel e das armas, possam utilizá-los para novas pilhagens). O nosso compromisso com os bandidos do imperialismo alemão foi semelhante a este.
Mas quando os mencheviques e os socialistas revolucionários na Rússia, os partidários de Scheidemann (e, em grande parte, os kautskistas) na Alemanha, Otto Bauer e Friedrich Adler (sem falar dos Srs. Renner e outros) na Áustria, os Renaudel, Longuet & C.ª em França, os fabianos, os “independentes” e os “trabalhistas” na Inglaterra assumiram, em 1914/1918 e em 1918/1920, com os bandidos da sua própria burguesia e, às vezes, com os da burguesia “aliada”, compromissos contra o proletariado revolucionário do seu próprio país, esses senhores agiram como cúmplices do banditismo.
A conclusão é clara: rejeitar compromissos “por princípio”, negar a legitimidade de qualquer compromisso em geral, constitui uma infantilidade que é inclusive difícil de se levar a sério. Um político que queira ser útil ao proletariado revolucionário deve saber distinguir os casos concretos de compromissos que são mesmo inadmissíveis, que são uma expressão de oportunismo e de traição, e dirigir contra esses compromissos concretos toda a força da critica, todo o esforço de um desmascaramento implacável e de uma guerra sem quartel, não permitindo aos velhos manobradores do “negócio” socialista e aos jesuítas parlamentares que se livrem de responsabilidades por meio de prelecções sobre “compromissos em geral”. Os senhores “chefes” das trade-unions inglesas, assim como os da Sociedade Fabiana e do Partido Trabalhista “Independente”, pretendem, exactamente desse modo, eximir-se da responsabilidade da traição que cometeram, por haverem assumido um compromisso que, na realidade, nada mais é que oportunismo, deslealdade e traição da pior espécie.
Há compromissos e compromissos. É preciso saber analisar a situação e as circunstâncias concretas de cada compromisso, ou de cada variedade de compromissos. É preciso aprender a distinguir o homem que entregou aos bandidos a bolsa e as armas para diminuir o mal causado por eles e facilitar a sua captura e execução, daquele que dá aos bandidos a bolsa e as armas para participar da divisão do saque. Em política, nem sempre é assim tão fácil como neste pequeno exemplo de simplicidade infantil. Seria, porém, apenas charlatão quem pretendesse inventar para os operários uma fórmula que, antecipadamente, apresentasse soluções adequadas para todas as circunstâncias da vida, ou quem prometesse que na política do proletariado revolucionário nunca surgirão dificuldades nem situações complicadas.
A fim de não deixar margem a interpretações falsas, tentarei esboçar, ainda que em poucas palavras, algumas orientações, para a análise de compromissos concretos.
O partido que acertou com o imperialismo alemão o compromisso de firmar a paz de Brest vinha elaborando na prática o seu internacionalismo desde fins de 1914. Esse partido não receou proclamar a derrota da monarquia czarista e condenar a “defesa da pátria”, na guerra entre dois predadores imperialistas. Os deputados desse partido no parlamento foram deportados para a Sibéria, em vez de seguirem o caminho que leva às pastas ministeriais num governo burguês. A revolução, ao derrubar o czarismo e proclamar a república democrática, submeteu esse partido a uma nova e importante prova: não ajustou nenhum acordo com os imperialistas do “seu” país, mas preparou o seu derrube e derrubou-os. Tomando o poder político, não deixou pedra sobre pedra nem da propriedade agrária nem da propriedade capitalista. Depois de publicar a invalidade dos tratados secretos dos imperialistas, esse partido propôs a paz a todos os povos e só cedeu ante a violência dos bandidos de Brest quando os imperialistas anglo-franceses frustraram a paz e depois dos bolcheviques terem feito tudo o que era humanamente possível para acelerar a revolução na Alemanha e noutros países. A total justeza de semelhante compromisso, assumido por tal partido nessas circunstâncias, torna-se dia a dia mais clara e evidente para todos.
Os mencheviques e socialistas revolucionários da Rússia (do mesmo modo que todos os chefes da II Internacional no mundo inteiro, em 1914/1920) começaram pela traição, justificando directa ou indirectamente a “defesa da pátria”, isto é, a defesa da sua burguesia espoliadora. Persistiram na traição coligando-se com a burguesia do seu país e lutando a seu lado contra o proletariado revolucionário do seu próprio país. A sua união na Rússia com Kerenski e os cadetes e, depois, com KoIchak e Denikin, assim como a aliança dos seus correligionários estrangeiros com a burguesia dos respectivos países, foi uma deserção para o campo da burguesia, contra o proletariado. O seu compromisso com os bandidos do imperialismo consistiu, do princípio ao fim, em tornar-se cúmplices do banditismo imperialista.
(a seguir)
[1] Pode-se dizer, da política e dos partidos – com as variações correspondentes – o mesmo que dos indivíduos. Inteligente não é aquele que não comete erros. Não há, nem pode haver, homens que não cometam erros. Inteligente é aquele que comete erros não muito graves e sabe corrigi-los acertada e rapidamente. (Nota do autor)
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