de Marx, Engels, Lenine, Estaline, Mao Tsé-tung e outros autores

Quarta-feira, 14 de Abril de 2010
Anarquismo ou Socialismo? (Intróito e I Parte)

[1] A luta de classes é o eixo da actual vida social. Durante essa luta, cada classe inspira-se na sua própria ideologia. A burguesia tem a sua: é o chamado liberalismo. O proletariado também tem a sua ideologia: é, como o sabemos, o socialismo.

Não se pode considerar o liberalismo como qualquer coisa de uno e indivisível; comporta diversas tendências segundo as diversas categorias da burguesia.

O socialismo também não é uno e indivisível: também ele comporta diversas tendências.

Não nos ocuparemos aqui da análise do liberalismo: mais vale deixá-la para outra ocasião. Queremos simplesmente mostrar ao leitor o que é o socialismo e as suas correntes. A nosso ver é isso que o interessará mais.

O socialismo comporta três correntes principais: o reformismo, o anarquismo e o marxismo.

O reformismo (Bernstein e outros), que considera o socialismo simplesmente como um objectivo afastado e nada mais; que, na prática, nega a revolução socialista e procura instaurar o socialismo pela via pacífica; o reformismo que prega, não a luta de classes, mas a colaboração entre classes, ― esse reformismo desagrega-se diariamente; perde cada vez mais todas as aparências de socialismo e, em nossa opinião, é inútil analisá-lo aqui, nestes artigos, para definirmos o socialismo.

Coisa completamente distinta ao considerarmos o marxismo e o anarquismo: ambos são hoje reconhecidos como correntes socialistas; trava-se entre os dois uma dura batalha, ambos querendo aparecer aos olhos do proletariado como doutrinas autenticamente socialistas, e sem dúvida que a análise e a comparação destas duas tendências terão para o leitor muito maior interesse.

Não somos daqueles que, ao simples ouvir da palavra "anarquismo", voltam as costas com desprezo e dizem com fastio: "tenho mais que fazer do que ocupar-me dele; nem sequer vale a pena falarmos nisso!". Consideramos que tal "crítica" fácil é indigna e inútil.

Também não somos daqueles que se consolam com a ideia de que os anarquistas "não contam com o apoio das massas e que, por conseguinte, não são tão perigosos como isso." A questão não está em saber atrás de quem segue hoje a maior ou menor "massa"; trata-se da essência da doutrina. Se a "doutrina" dos anarquistas exprime a verdade, então acabará por vencer e reunirá as massas à sua volta. Mas se é inconsistente e se repousa sobre uma base incorrecta, não subsistirá por muito tempo e permanecerá suspensa no vazio. É, portanto, a inconsistência do anarquismo que se deve demonstrar.

Há quem julgue que o marxismo e o anarquismo têm os mesmos princípios; que, entre ambos, as únicas divergências são tácticas, de tal modo que, segundo essa opinião, é impossível contrapor uma corrente à outra.

Mas isso é um grave erro.

Consideramos os anarquistas como verdadeiros inimigos do marxismo. Por conseguinte, reconhecemos, também, que é precisa uma verdadeira luta contra verdadeiros inimigos. Por isso, é preciso examinar a "doutrina" dos anarquistas de uma ponta à outra e analisá-la em todos os seus aspectos.

A verdade é que o marxismo e o anarquismo repousam sobre princípios completamente divergentes, embora ambos se apresentem à luta arvorando a bandeira socialista. A pedra angular do anarquismo é o indivíduo, cuja libertação é, a seu ver, a condição principal da libertação das massas, da colectividade. Segundo o anarquismo, a libertação das massas é impossível, enquanto o indivíduo não se tiver libertado; consequentemente, tem por palavra de ordem: "tudo pelo indivíduo''. Em oposição, a pedra angular do marxismo são as massas, cuja libertação é, no seu ver, a condição principal para a libertação do indivíduo. Isto significa, segundo o marxismo, que a libertação do indivíduo é impossível enquanto as massas não o forem; consequentemente, tem por palavra de ordem: "tudo pelas massas".

Fica claro que estamos perante dois princípios que se negam mutuamente, e não de simples divergências tácticas.

A finalidade de nossos artigos é confrontar esses dois princípios opostos, comparar o marxismo com o anarquismo e esclarecer, dessa forma, as suas qualidades e os seus defeitos. Nesse sentido parece-nos útil dar a conhecer ao leitor o plano destes artigos.

Primeiramente caracterizaremos o marxismo, referindo, de passagem, os pontos de vista dos anarquistas sobre o marxismo e, depois, passaremos à crítica do anarquismo propriamente dito. A saber: exporemos o método dialéctico, os pontos de vista dos anarquistas sobre esse método e a nossa crítica; a teoria materialista, os pontos de vista dos anarquistas e a nossa crítica (aqui trataremos, também, da revolução socialista, da ditadura socialista, do programa mínimo e, em geral, da táctica); a filosofia dos anarquistas e a nossa crítica; o socialismo dos anarquistas e a nossa crítica; a táctica e a organização dos anarquistas; finalizando, apresentaremos as nossas conclusões.

Procuraremos demonstrar que os anarquistas, como defensores de um socialismo de pequenas comunidades, não são autênticos socialistas.

Procuraremos, igualmente, demonstrar que os anarquistas, na medida em que negam a ditadura do proletariado, também não são autênticos revolucionários.

Ponhamos, pois, mãos à obra.

I - O Método Dialéctico

 "No universo tudo se transforma... A vida transforma-se, as forças produtivas crescem, as antigas relações sociais desmoronam-se..." Karl Marx

 

O marxismo não é apenas a teoria do socialismo, é uma concepção integral do mundo, um sistema filosófico do qual decorre, logicamente, o socialismo proletário de Marx. Esse sistema filosófico tem o nome de materialismo dialéctico.

Assim, para expor o marxismo é necessário expor o materialismo dialéctico.

Por que se chama esse sistema de materialista dialéctico?

Porque o seu método é dialéctico e a sua teoria materialista.

O que é o método dialéctico?

Diz-se que a vida social se encontra em estado de incessante movimento e desenvolvimento. Está certo: não se pode considerar a vida como algo imutável e estático; a vida nunca pára num dado nível, encontra-se em movimento eterno, num processo eterno de destruição e criação. É por isso que existe sempre na vida um novo e um velho, algo que cresce e algo que morre, o elemento revolucionário e o elemento contra-revolucionário.

O método dialéctico afirma que é preciso encarar a vida tal como ela é na realidade. Já vimos que a vida se encontra em movimento perpétuo; portanto, devemos considerar a vida no seu movimento e perguntar: para onde vai a vida? Já vimos que a vida apresenta um quadro de incessante destruição e criação; assim, o nosso dever é considerar a vida na sua destruição e na sua criação e colocar a questão: o que é que se destrói e o que é que se cria na vida?

Na vida, o que nasce e cresce dia a dia é invencível; não se pode deter o seu avanço incessante. Isto é, se, por exemplo, o proletariado nasce como classe e cresce a diariamente, por fraco e pouco numeroso que seja hoje, acabará por vencer, não obstante a situação presente. Por quê? Porque cresce, porque se fortalece e avança. Em contrapartida, o que na existência envelhece e caminha para a sepultura, há-de sofrer inevitavelmente a derrota, mesmo que hoje represente uma força gigantesca. Quer dizer que se, por exemplo, a burguesia perde paulatina e progressivamente terreno, por mais forte e numerosa que seja hoje, não conseguirá evitar a derrota. Porquê? Porque, como classe, desagrega-se, enfraquece, envelhece e converte-se numa carga inútil para a existência da vida.

Disso deriva, precisamente, a conhecida tese dialéctica: tudo o que realmente existe, isto é, tudo o que cresce diariamente, é racional: e tudo o que se desagrega diariamente, é irracional, e, portanto, não escapará à derrota.

Por exemplo: no período de 1880 a 1890 surgiu uma grande discussão entre os intelectuais revolucionários russos. Os populistas sustentavam que a força principal capaz de se encarregar da "libertação da Rússia" era a pequena burguesia dos campos e da cidade. Porquê? perguntavam os marxistas. Porque – respondiam os populistas – a pequena burguesia dos campos e da cidade forma hoje a maioria e, além disso, é pobre e vive na miséria.

Os marxistas replicavam: é certo que a pequena burguesia do campo e da cidade constitui hoje a maioria, e, realmente, é pobre; mas será essa a questão? A pequena burguesia já há muito tempo que é a maioria mas, até agora, nunca manifestou, a não ser com a ajuda do proletariado, qualquer iniciativa na luta pela "liberdade". Porquê? Porque a pequena burguesia, enquanto classe, não cresce; pelo contrário, desagrega-se diariamente, dividindo-se em burguesia e proletariado. Por outro lado, naturalmente, não é a pobreza que tem, no caso, a importância decisiva: os "vagabundos" são ainda mais pobres que a pequena burguesia mas ninguém defenderá que possam encarregar-se da "libertação da Rússia''.

Como se vê, não se trata de saber que classe constitui hoje a maioria ou que classe é mais pobre, mas sim de saber qual a classe que se fortalece e qual aquela que se desagrega.

E como o proletariado é a única classe que cresce e se fortalece incessantemente, que impulsiona a vida social e agrupa à sua volta todos os elementos revolucionários, o nosso dever é reconhecê-lo como força principal do movimento actual, juntarmo-nos às suas fileiras e fazer das suas aspirações progressistas as nossas próprias aspirações.

Era assim que os marxistas respondiam.

Evidentemente, os marxistas encaravam a vida de um modo dialéctico, enquanto os populistas raciocinavam de um modo metafísico e concebiam a vida social como qualquer coisa imóvel.

Eis como o método dialéctico considera o desenvolvimento da vida.

Mas há movimento e movimento. Houve movimento na vida social durante as "jornadas de Dezembro", quando o proletariado, erguendo a cabeça, assaltou os depósitos de armas e empreendeu o ataque contra a reacção. Mas, também, temos de chamar movimento social ao movimento dos anos anteriores, quando o proletariado, em condições de evolução "pacífica", se limitava a desencadear uma greve aqui e outra acolá e a criar pequenos sindicatos.

É claro que o movimento assume formas diferentes.

Pois bem, o método dialéctico afirma que o movimento assume duas formas: a forma evolutiva e a forma revolucionária.

O movimento é evolutivo, quando os elementos progressistas, no processo espontâneo do seu trabalho quotidiano, introduzem, na velha ordem das coisas, mudanças pequenas, quantitativas.

O movimento é revolucionário, quando os elementos progressistas se unem, se compenetram de uma ideia comum e se lançam contra o campo inimigo, para extirpar a velha ordem de coisas e introduzir, na vida, mudanças qualitativas, instaurar uma nova ordem de coisas.

A evolução prepara a revolução e cria-lhe um terreno favorável; a revolução coroa a evolução e abre caminho para prosseguir uma nova evolução.

Processos semelhantes ocorrem igualmente na vida da natureza. A história da ciência mostra que o método dialéctico é um método autenticamente científico: começando na astronomia e acabando na sociologia, em toda a parte se confirma a ideia de que, no mundo, nada é eterno, tudo muda, tudo se desenvolve. Por conseguinte, tudo na natureza deve ser encarado do ponto de vista do movimento, do desenvolvimento. E isso significa que o espírito da dialéctica penetra toda a ciência contemporânea.

Quanto às formas do movimento, no que se refere ao facto de que, segundo a dialéctica, as pequenas mudanças quantitativas, levam, no fim de contas, às grandes mudanças qualitativas, essa lei também vigora, com igual intensidade, na história da natureza. A "tabela periódica dos elementos", de Mendeléiev, mostra claramente e com grande evidência como, na história da natureza, as mudanças qualitativas surgem das mudanças quantitativas. É testemunho disso, na biologia, a teoria do neo-lamarckismo, à qual o neo-darwinismo cede lugar.

Nem precisamos referir outros factos, exaustivamente esclarecidos que foram por F. Engels, no Anti-Dühring.

Tal é o conteúdo do método dialéctico.

 

 ¤ ¤ ¤ 

Como consideram os anarquistas o método dialéctico?

É sabido de todos que Hegel foi o fundador do método dialéctico. Marx depurou e melhorou esse método. Naturalmente que essa circunstância também é conhecida pelos anarquistas. Sabem que Hegel era conservador, e aproveitam a oportunidade para atacar fortemente Hegel de ser partidário da "restauração", "demonstrando", com paixão, que "Hegel é o filósofo da restauração..., que exalta o constitucionalismo burocrático na sua forma absoluta, que a ideia geral da sua filosofia da História está subordinada e serve à tendência filosófica da época da restauração", etc.

O mesmo "demonstra" o conhecido anarquista Kropotkine nas suas obras (ver, por exemplo, a sua Ciência e Anarquismo, em russo).

E com Kropotkine fazem coro, em uníssono, todos os Kropotkineianos, começando em Tcherkezichvili e acabando em Ch. G. (ver os números de Nobati).

E nesse ponto estão certos, ninguém os contesta; pelo contrário: todos concordamos em que Hegel não era revolucionário. Marx e Engels, pessoalmente, foram os primeiros a demonstrar na Crítica da Crítica Crítica que as concepções históricas de Hegel se opõem radicalmente à soberania do povo. Mas, apesar disso, os anarquistas "demonstram" e insistem em "demonstrar" todos os dias que Hegel foi um partidário da "restauração". Porque o fazem? Provavelmente para desacreditar Hegel e dar a entender ao leitor que sendo Hegel "reaccionário" o seu método também não pode deixar de ser "detestável" e anti-científico.

É deste modo que os anarquistas julgam poder refutar o método dialéctico.

Afirmamos nós que, dessa maneira, só demonstram a própria ignorância. Pascais e Leibnitz não eram revolucionários, mas o método matemático que descobriram é hoje reconhecido como um método científico. Mayer e Helmholtz não eram revolucionários, mas as suas descobertas no domínio da física servem de base à ciência. Nem Lamarck nem Darwin foram revolucionários, mas foi o seu método evolucionista que pôs de pé a biologia... Por que razão não se pode reconhecer o facto de que, apesar do seu conservadorismo, Hegel tenha conseguido elaborar um método científico, denominado dialéctico?

Não; desse modo os anarquistas só conseguem demonstrar a sua própria ignorância.

Prossigamos. Na opinião dos anarquistas "a dialéctica é metafísica" e, como "querem emancipar a ciência da metafísica e a filosofia da teologia", encontram aí a razão precisa para repelirem o método dialéctico (ver Nobati[2] , nº. 3 e 9, Ch. G.; ver, também, Ciência e Anarquismo, de Kropotkine).

Ah! Estes anarquistas! Como diz o ditado: "paga o justo pelo pecador." A dialéctica amadureceu na luta contra a metafísica e, nessa luta, cobriu-se de glória; mas, na opinião dos anarquistas, a dialéctica é metafísica!

A dialéctica afirma que nada é eterno no mundo, que tudo é transitório e mutável: muda a natureza, muda a sociedade, mudam os usos e costumes, mudam os conceitos de justiça, e até a própria verdade muda; é por isso mesmo que a dialéctica considera tudo de um modo crítico, é por isso mesmo que nega a verdade eterna e, por conseguinte, nega também os abstractos "princípios dogmáticos imutáveis que, uma vez descobertos, basta decorá-los'' (ver F. Engels, Ludwig Feüerbach).

A metafísica, por sua vez, afirma justamente o contrário. Para ela o mundo é qualquer coisa de eterno e imutável (ver F. Engels, Anti-Dühring), o mundo foi determinado de uma vez para sempre por alguém ou alguma coisa. É por isso que os metafísicos têm sempre na boca a "justiça eterna" e a "verdade imutável".

Proudhon, o "pai" dos anarquistas, dizia que no mundo existe uma justiça imanente estabelecida de uma vez para sempre, que deve ser colocada na base da sociedade futura. Essa a razão pela qual Proudhon era chamado metafísico. Marx combateu Proudhon usando o método dialéctico; demonstrou que, uma vez que tudo muda no mundo, é inevitável que a "justiça" também mude; por conseguinte, a "justiça imanente" é um delírio metafísico (ver K. Marx, Miséria da Filosofia). Mas os discípulos georgianos do metafísico Proudhon não se cansam de repetir: "a dialéctica de Marx é metafísica!"

A metafísica reconhece diferentes dogmas nebulosos, como, por exemplo, o "incognoscível", a "coisa em si", e, no fim de contas, degenera numa teologia oca. Ao contrário de Proudhon e Spencer, Engels combateu esses dogmas com o método dialéctico (ver Ludwig Feüerbach). Mas os anarquistas – discípulos de Proudhon e Spencer – dizem-nos que Proudhon e Spencer são sábios e que Marx e Engels são metafísicos!

Das duas, uma: ou os anarquistas andam a brincar ou não sabem o que dizem.

Em todo o caso, uma coisa é certa: os anarquistas confundem o sistema metafísico de Hegel com o seu método dialéctico.

Nem é necessário dizer que o sistema filosófico de Hegel, que se apoia na ideia imutável, é metafísico do princípio ao fim. Mas, também, é evidente que o método dialéctico de Hegel, que nega toda a ideia imutável, é científico e revolucionário do princípio ao fim.

É por isso que Karl Marx ao mesmo tempo que submetia o sistema metafísico de Hegel a uma crítica arrasadora, exaltava o seu método dialéctico, que, nas palavras de Marx, "não se curva diante de nada e é, pela sua essência, crítico e revolucionário" (ver O Capital, t. I, Posfácio).

É por isso que Engels vê uma grande diferença entre o método de Hegel e seu sistema:

"Quem der primazia ao sistema de Hegel, pode ser bastante conservador em ambos os terrenos; quem, pelo contrário, considere como primordial o método dialéctico, pode figurar, tanto na religião como na política, na oposição mais extrema." (ver Ludwig Feüerbach). 

Os anarquistas não vêem essa diferença e proclamam sem reflectir que "a dialéctica é metafísica".

Prossigamos. Os anarquistas dizem que o método dialéctico é "uma amálgama de argúcias", "um método de sofismas", "um salto mortal da lógica" (ver o Nobati, nº. 8, Ch. G.), um método "por meio do qual se demonstram com igual facilidade a verdade e a mentira'' (ver Nobati, nº. 4, de V. Tcherkezichvili).

Assim, segundo a opinião dos anarquistas, o método dialéctico prova de igual forma a verdade e a mentira.

À primeira vista, pode parecer que a acusação lançada pelos anarquistas tenha algum fundamento. Ouça-se, por exemplo, o que diz Engels de quem segue o método metafísico:

"... diz: “sim, sim; não, não; o que passar disso pertence ao diabo”. Para ele, ou uma coisa existe, ou não existe: uma coisa não pode ser ao mesmo tempo ela própria e outra coisa diferente. O positivo e o negativo excluem-se reciprocamente em absoluto..." (ver Anti-Dühring, Introdução).

Como?! – gritam os anarquistas. É possível, por acaso, que um mesmo objecto seja ao mesmo tempo bom e mau?! Eis, claramente, um "sofisma" um "jogo de palavras" que significa apenas que "quereis demonstrar com a mesma facilidade a verdade e a mentira"!...

Entremos, então, no fundo da questão.

Hoje reivindicamos uma república democrática. Podemos dizer que a república democrática é boa em todos os sentidos ou que é totalmente má? Não, não podemos. Porquê? Porque a república democrática só é boa num aspecto, ao destruir a ordem feudal, mas em troca é má noutro aspecto, ao fortalecer a ordem burguesa. É precisamente por isso que afirmamos: é na medida em que destrói a ordem feudal que a república democrática é boa e lutamos por ela; e é na medida em que fortalece a ordem burguesa, que a república democrática é má e lutamos contra ela.

Daqui se conclui que uma só e mesma república democrática é ao mesmo tempo "boa" e "má", simultaneamente "sim" e "não".

O mesmo se pode dizer da jornada de trabalho de 8 horas, pois ao mesmo tempo que é "boa" no que fortalece o proletariado, é "má" no que reforça o sistema do trabalho assalariado.

Eram precisamente factos desta índole que Engels tinha em vista, quando caracterizava o método dialéctico com as palavras acima citadas.

Mas os anarquistas não compreendem. E uma ideia completamente clara como esta é, para eles, um "sofisma" nebuloso.

Naturalmente, os anarquistas são livres de perceber ou não estes factos; até podem não reparar na areia de uma costa arenosa: estão no seu direito. Mas, então, deixem em paz o método dialéctico, o qual, ao contrário do anarquismo, não olha a vida com os olhos fechados, sente o pulsar da vida e afirma abertamente: na medida em que a vida muda e está em movimento, cada fenómeno vital comporta duas tendências, uma positiva e outra negativa, das quais devemos defender a primeira e repelir a segunda.

Prossigamos. Para os nossos anarquistas, "o desenvolvimento dialéctico é um desenvolvimento catastrófico, pelo qual, primeiro se destrói totalmente o passado e, depois, se consolida o futuro de maneira completamente à parte,... Os cataclismos de Cuvier eram engendrados por causas desconhecidas, mas as catástrofes de Marx e Engels são engendradas pela dialéctica" (ver Nobati, nº. 8, Ch. G.).

Noutro sítio o mesmo autor escreve: "O marxismo baseia-se no darwinismo, com o qual mantém uma atitude acrítica (ver Nobati, n.º 6).

Prestemos atenção!

Cuvier nega a evolução darwiniana, admitindo somente os cataclismos; ora, um cataclismo é uma explosão inesperada, "engendrada por causas desconhecidas". Os anarquistas defendem que os marxistas apoiam Cuvier e, por conseguinte, rejeitam o darwinismo.

Darwin nega os cataclismos de Cuvier e reconhece somente a evolução gradual. Mas eis que estes mesmos anarquistas afirmam que " o marxismo se baseia no darwinismo, com o qual mantém uma atitude acrítica ", isto é: os marxistas negam os cataclismos de Cuvier.

Numa palavra, os anarquistas acusam os marxistas de seguirem Cuvier e, ao mesmo tempo, atiram-lhes à cara que seguem Darwin e não Cuvier.

Ei-la, a anarquia! Fornece a lenha para a sua própria fogueira! É claro que o Ch. G. do número 8 do Nobati esqueceu o que dizia o Ch. G. do número 6.

Qual dos dois tem razão? O do número 8 ou o do número 6?

Vejamos os factos. Diz Marx:

"Num certo estádio do seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que não é senão a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade... Abre-se, assim, uma época de revolução social". Mas "nenhuma formação social desaparece sem que se tenham desenvolvido todas as forças produtivas que pode comportar..."(ver K. Marx, Contribuição à Crítica da Economia Política, Prefácio).

Se aplicarmos esta tese de Marx à actual vida social, conclui-se que entre as forças produtivas modernas, que têm um carácter social, e a forma de apropriação dos produtos, que tem um carácter privado, existe um conflito fundamental que deve conduzir à revolução socialista, (ver F. Engels, Anti-Dühring, cap. II da terceira parte).

Como se vê, segundo Marx e Engels, não são as "causas desconhecidas" de Cuvier, que geram a revolução, mas causas sociais completamente determinadas e vitais, chamadas "desenvolvimento das forças produtivas".

Como se vê, segundo Marx e Engels, a revolução produz-se quando as forças produtivas estão suficientemente maduras, e não de modo inesperado, como pensava Cuvier.

É evidente que nada existe de comum entre os cataclismos de Cuvier e o método dialéctico de Marx.

Por outro lado, o darwinismo rejeita não só os cataclismos de Cuvier, como também a compreensão dialéctica do desenvolvimento, o que implica rejeitar a revolução, enquanto que, do ponto de vista do método dialéctico, a evolução e a revolução, as mudanças quantitativas e qualitativas, são duas formas necessárias de um único e mesmo movimento.

É evidente que também não se pode afirmar que "o marxismo... mantém perante o darwinismo uma atitude acrítica".

Daqui se conclui que o Nobati se engana nos dois casos, no n.º 6 e no n.º 8.

Por fim, os anarquistas acusam-nos de que "a dialéctica... não dá possibilidade de sair ou irromper de si próprio, nem de saltar para além de si mesmo" (ver Nobati, nº. 8, Ch. G.).

Isso, senhores anarquistas, é a verdade nua e crua; neste ponto, respeitáveis contraditores, tendes toda a razão: realmente, o método dialéctico não permite, de modo nenhum, tal possibilidade. E porquê? Porque "sair ou irromper de si próprio, e saltar para além de si mesmo" são assuntos para cabras montesas, enquanto que o método dialéctico foi criado para as pessoas.

Eis o segredo!...

Tais são, em suma, as opiniões dos anarquistas sobre o método dialéctico.

É evidente que os anarquistas não compreendem o método dialéctico de Marx e Engels; inventaram uma dialéctica própria e é contra esta que combatem com tanta tenacidade.

Só nos resta rir diante deste espectáculo, porque não se pode deixar de rir quando se vê alguém a lutar contra a sua própria fantasia, a refutar as próprias elucubrações e, ao mesmo tempo, a afirmar com convicção que está a arrasar o adversário.

(a seguir)



[1] Nos fins de 1905 e nos começos de 1906, na Geórgia, um grupo de anarquistas dirigido por um partidário de Kropotkine, o famoso anarquista V. Tcherkezichvili e os seus adeptos Mikhako Tsérétéli (Baton), Chalva Goguélia (Ch. G.) etc., lançou uma furiosa campanha contra os social-democratas. O grupo editava vários jornais em Tiflis: o Nobati, o Moucha, etc. Os anarquistas não tinham qualquer apoio no proletariado, mas obtiveram algum sucesso entre os elementos marginais e pequeno-burgueses. Estaline levantou-se contra eles numa série de artigos com o título genérico: Anarquismo ou Socialismo? Os quatro primeiros artigos apareceram no Akhali Tskhovréba em Junho-Julho de 1906. A publicação dos outros artigos foi interrompida, pois o jornal foi proibido. Em Dezembro de 1906 e Janeiro de 1907, os artigos que tinham aparecido no Akhali Tskhovréba foram reimpressos no Akhali Droéba, mas sob uma forma ligeiramente modificada. A redacção do jornal fez preceder estes artigos da seguinte nota: “Nos últimos tempos, o sindicato dos empregados pediu-nos que publicássemos artigos sobre o anarquismo, o socialismo e outras questões análogas (ver o Akhali Droéba, n.º 3). Este desejo foi igualmente expresso por outros camaradas. Acedemos com prazer a estes pedidos. No que respeita a estes artigos, devemos lembrar que parte deles já apareceram na imprensa da Geórgia (por razões independentes do desejo do autor estes artigos não puderam ser terminados). Contudo, parece-nos útil publicá-los integralmente e pedimos ao autor que lhes desse um estilo ao alcance de todos, o que este fez com prazer”. Foi assim que apareceram duas variantes das quatro primeiras partes de Anarquismo ou Socialismo? O seguimento deste estudo foi publicado no Tchvéni Tskhovéba em Fevereiro de 1907 e no Dro em Abril de 1907. A primeira versão dos artigos Anarquismo ou Socialismo? Publicada no Akhali Tskhovréba vem em anexo no 1.º tomo das obras de J. Estaline.

Akhali Tskhovréba (Vida Nova), diário bolchevique, surgido em Tiflis de 20 de Junho a 14 de Julho de 1906, sob a direcção de Estaline. Os colaboradores permanentes da Akhali Tskhovréba eram M. Davitachvili, G. Telia, G. Kikodzé e outros. Só foram publicados vinte números.

Akhali Droéba (Tempo Novo), semanário legal dos sindicatos, surgido em Tiflis de 14 de Novembro de 1906 a 8 de Janeiro de 1907, sob a direcção de J. Estaline, M. Tskhakaia e M. Davitachvili. Proibido por ordem do governador de Tiflis.

Tchvéni Tskhovéba (A Nossa Vida), diário bolchevique, surgido legalmente em Tiflis a partir de 18 de Fevereiro de 1907, sob a direcção de Estaline. Só foram publicados 13 números. A 6 de Março de 1907 o jornal foi proibido por “tendência extremista”.

Dro (O Tempo), diário bolchevique, surgido em Tiflis, depois da proibição da Tchvéni Tskhovéba, de 11 de Março a 15 de Abril de 1907, sob a direcção de Estaline. Faziam igualmente parte da redacção do jornal M. Tskhakaia e M. Davitachvili. Foram publicados 31 números.

[2] Nobati (O Apelo), jornal semanário dos anarquistas de Geórgia, surgido em Tiflis em 1906.


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