de Marx, Engels, Lenine, Estaline, Mao Tsé-tung e outros autores

Sexta-feira, 17 de Outubro de 2014
O Capital 3.º Volume 3.ª Secção Lei da Baixa Tendencial da Taxa de Lucro cap XIV

(cap XIII)

Capítulo XIV
Causas que entravam a lei

Considerando o enorme desenvolvimento da produtividade do trabalho social, mesmo só nos últimos trinta anos, em comparação com os períodos precedentes; considerando em particular a enorme massa de capital fixo que, além das máquinas propriamente ditas, entra no conjunto do processo social da produção, a dificuldade que até ao presente ocupou os economistas – «como explicar a baixa da taxa de lucro» – cedeu lugar à pergunta inversa: «como explicar que a baixa da taxa de lucro não tenha sido mais importante ou mais rápida?». Foi preciso que operassem influências contrárias que entravassem e suprimissem o efeito da lei geral e lhe conferissem simplesmente o carácter de uma tendência; foi por isto que qualificámos a baixa da taxa de lucro geral como «baixa tendencial». Entre estas causas, as mais generalizadas são as seguintes:


I – Aumento do grau de exploração do trabalho
O grau de exploração do trabalho, a apropriação do sobretrabalho e da mais-valia, aumentaram, sobretudo pelo prolongamento do dia de trabalho e pela intensificação do trabalho. Estes dois pontos foram largamente desenvolvidos no 1.º volume, no estudo da produção da mais-valia absoluta e relativa. Existem na intensificação do trabalho numerosos elementos que implicam um acréscimo do capital constante com relação ao capital variável, portanto uma baixa da taxa de lucro (por exemplo, quando o operário tem a seu cuidado maior quantidade de máquinas). Como na maioria dos processos que servem para produzir mais-valia relativa, as mesmas causas que provocam uma elevação da taxa de mais-valia podem arrastar uma baixa desta, se considerarmos grandezas determinadas de capital total em função.
Existem ainda outros elementos da intensificação, como por exemplo a aceleração da velocidade das máquinas: no mesmo tempo, estas tratarão decerto mais matéria-prima; todavia, quanto ao capital fixo, se a aparelhagem se desgastar mais depressa, a relação entre o seu valor e o preço do trabalho que põe em obra, não é afectada de modo nenhum.
Mas é sobretudo o prolongamento do dia de trabalho (essa invenção da indústria) que faz aumentar a massa de sobretrabalho apropriado sem modificar essencialmente a relação entre a força de trabalho utilizada e o capital constante que ela faz funcionar, e que, na realidade, provoca antes uma baixa relativa deste último.
Por outro lado, já demonstrámos – e é esse o verdadeiro mistério da baixa tendencial da taxa de lucro – que os processos destinados a produzir mais-valia relativa tendem afinal de contas para isto: por um lado, para a conversão da maior parte possível de uma dada quantidade de trabalho em mais-valia e, por outro lado, para, sobretudo, a utilização do mínimo possível de trabalho com relação ao capital adiantado, de modo que as mesmas razões que permitem aumentar o grau de exploração do trabalho impedem que se explore tanto trabalho como antes com o mesmo capital total.
Eis as tendências antagónicas que, ao mesmo que impelem a um aumento da taxa de mais-valia, actuam no sentido de uma baixa da massa de mais-valia produzida por um dado capital e, portanto, de uma baixa da taxa de lucro. Também é oportuno mencionar a introdução massiva do trabalho das mulheres e das crianças, porque a família inteira é obrigada a fornecer ao capital uma quantidade de sobretrabalho maior do que antes, embora aumente a soma total do salário que recebe, o que, de resto, não é regra geral. Tudo o que favorece a produção de mais-valia relativa, sem aumento do capital utlizado, por simples aperfeiçoamento dos métodos, tem o mesmo efeito. É o que se passa na agricultura, onde, na verdade, o capital constante empregado não aumenta com relação ao capital variável, se considerarmos este último como indicador da força de trabalho empregada; é a massa do produto que aumenta com relação à força produtiva do trabalho (pouco importa que o seu produto entre no consumo dos operários ou nos elementos do capital constante), que é libertada das barreiras comerciais, de limitações arbitrárias, de entraves de todos os tipos, sem que esta libertação afecte primeiramente a relação entre capital variável e capital constante.
Poder-se-ia perguntar se, entre as causas que primeiro emperram e depois acabam por acelerar a baixa da taxa de lucro, estão compreendidos os sumentos de mais-valia acima do nível geral, altas temporárias repetidas que acontecem ora num ora noutro ramo de produção, para lucro do capitalista que explora as invenções, etc., antes da sua generalização. Há razões para responder afirmativamente a esta pergunta.
A massa de mais-valia engendrada por um capital de uma dada grandeza é o produto de dois factores: a taxa de mais-valia e o número de operários, ocupados a uma dada taxa. Depende, portanto, se for dada a taxa de mais-valia, do número dado de operários; de maneira geral, depende da proporção formada pela grandeza do capital variável e pela taxa da mais-valia! Ora viu-se que, em média, as mesmas causas que aumentam a taxa da mais-valia relativa fazem baixar a quantidade de força de trabalho empregada. Mas é claro que haverá aumento ou diminuição, consoante a relação em que se realizar este movimento antagónico e que a tendência para fazer baixar a taxa de lucro é notavelmente enfraquecida pela subida da taxa da mais-valia absoluta, proveniente do prolongamento do dia de trabalho.
Já vimos no estudo da taxa de lucro que, em geral, à baixa da taxa corresponde, pelo facto do aumento da quantidade de capital total empregado, o aumento da massa de lucro. Considerando o conjunto do capital variável da sociedade, a mais-valia que ele produz é igual ao lucro produzido. Paralelamente à massa absoluta, a taxa da mais-valia aumentou igualmente; a primeira, porque aumentou a massa de força de trabalho utilizada pela sociedade, a segunda porque aumentou o grau de exploração deste trabalho. Mas, com referência a um capital de uma dada grandeza, por exemplo 100, a taxa da mais-valia pode elevar-se, ao passo que, em média, baixa a sua massa; e isto porque a taxa é determinada pela proporção em que é posta em valor a fracção variável do capital, enquanto a massa é determinada pela grandeza relativa do capital variável, proporcionalmente ao capital total.
A subida da taxa da mais-valia – produzida em circunstâncias em que não se dá, como já indicámos, aumento relativo ou absoluto do capital constante com relação ao capital variável – é um dos factores determinantes da massa da mais-valia e, por isso, da taxa de lucro. Isto não suprime a lei geral. Mas tem como resultado constituir uma tendência, isto é, uma lei cuja realização foi detida, afrouxada, enfraquecida, por causas que a emperram. Como as mesmas causas que elevam a taxa da mais-valia – o prolongamento do tempo de trabalho é um resultado da grande indústria – tendem a reduzir a força de trabalho empregada por um dado capital, tendem ao mesmo tempo a diminuir a taxa do lucro e a afrouxar o movimento desta baixa.
Se for imposto a um operário o trabalho que racionalmente exigiria dois operários e se este facto se produzir em tais condições que este operário único tem de substituir três, claramente que ele produz sobretrabalho correspondente a dois ou três operários e a taxa da mais-valia aumenta proporcionalmente. Mas como não foi preciso esses operários, um só não fornece tanto como eles e assim a massa de mais-valia tem de baixar; baixa esta que é porém compensada ou limitada pela subida da taxa de mais-valia. Se toda a população proletária fosse ocupada a esta nova taxa de mais-valia, a massa de mais-valia aumentaria, embora a população permanecesse a mesma; com mais fortes razões, se a população aumentar. E, embora este facto se alie a uma diminuição relativa do número de operários com relação à grandeza do capital total, esta diminuição será atenuada pelo acréscimo da taxa de mais-valia.
Antes de terminar este ponto, é oportuno sublinhar mais uma vez que, para um capital de uma dada grandeza, a taxa de mais-valia pode elevar-se embora a massa baixe, e inversamente. A massa de mais-valia é igual à taxa multiplicada pelo número de operários; a taxa nunca é calculada sobre o capital total, mas apenas sobre o capital variável e calcula-se realmente por dia de trabalho. Pelo contrário, para um valor-capital de uma dada grandeza, a taxa de lucro nunca pode subir ou baixar sem que suba ou baixe também a massa da mais-valia.


II – Redução do salário abaixo do seu valor
Só mencionamos este facto empiricamente porque nada tem a ver com a análise geral do capital; faz parte do estudo da concorrência que não tratamos agora. É todavia uma das causas mais importantes que entravam a tendência para a baixa da taxa de lucro.


III – Baixa de preço dos elementos do capital constante
Tem aqui lugar tudo o que se disse na 1.ª secção deste volume sobre as causas que aumentam a taxa de lucro, permanecendo a taxa de mais-valia constante ou independente daquela, sobretudo o facto de o valor do capital constante não aumentar na mesma proporção que o seu volume material. A quantidade de algodão que trata um operário de fiação numa fábrica moderna aumentou numa proporção colossal com relação à que trataria um operário antigo. Mas o valor do algodão não aumentou na mesma proporção da sua massa. O mesmo se pode dizer sobre máquinas e outro capital fixo.
Em resumo, a mesma evolução, que faz aumentar a massa do capital constante com relação ao capital variável, faz baixar o valor dos seus elementos devido ao acréscimo da produtividade do trabalho, e impede assim que o valor do capital constante, que no entanto aumenta sem cessar, aumente na mesma proporção que o seu volume material (isto é, que o volume material dos meios de produção postos em acção pela mesma quantidade da força de trabalho). Num ou noutro caso, a massa dos elementos do capital constante pode até aumentar, ao passo que o seu valor permanece imutável ou até mesmo baixa.


IV – Depreciação do capital existente
A depreciação do capital existente (isto é, dos seus elementos materiais), que resulta do desenvolvimento industrial, liga-se ao que precede. É também uma das causas constantes que entravam a baixa da taxa de lucro, embora seja em certos casos susceptível de reduzir a massa de lucro pela redução da massa do capital produtivo de lucro. Também aqui se vê que as mesmas causas, que engendram a tendência para a baixa da taxa de lucro, moderam igualmente a realização desta tendência.


V – Sobrepopulação relativa
A criação de sobrepopulação é inseparável do desenvolvimento da produtividade do trabalho, que se traduz pela baixa da taxa de lucro, enquanto o desenvolvimento dessa produtividade a acelera. A sobrepopulação relativa é tanto mais chocante num país quanto mais desenvolvido for o modo de produção capitalista; é também a razão por que, em numerosos ramos da produção, subsiste uma subordinação, em grau maior ou menor, do trabalho ao capital; esta subsiste mais tempo do que parece à primeira vista implicar o estado geral do desenvolvimento; e é assim porque existe uma quantidade de assalariados disponíveis que se podem adquirir a baixo preço e porque muitos sectores da produção, pela sua natureza, opõem maior resistência do que outros à transformação do trabalho manual em trabalho mecânico.
Por outro lado, criam-se novos ramos de produção destinados sobretudo ao consumo de luxo, que têm precisamente por base a sobrepopulação relativa, libertada muitas vezes por uma preponderância do capital constante noutros sectores; e, por sua vez, estes sectores assentam num predomínio do elemento do trabalho vivo e só pouco a pouco é que vão sofrer a mesma evolução dos outros ramos de produção. Nos dois casos, o capital variável açambarca uma proporção considerável do capital total e o salário situa-se abaixo da média, de modo que a taxa e a massa da mais-valia são extraordinariamente elevadas nestes ramos de produção. Ora, como a taxa de lucro geral é constituída por igual repartição das taxas de lucro entre os ramos particulares de produção, ainda desta vez a mesma causa que fez surgir a tendência para a baixa da taxa de lucro suscita um contrapeso que paralisa mais ou menos o efeito desta tendência.


VI – Comércio externo
Como o comércio exterior faz baixar o preço dos elementos do capital constante e das subsistências necessárias em que se converte o capital variável, tem por efeito fazer subir a taxa de lucro, elevando a taxa da mais-valia e abaixando o valor do capital constante. De maneira geral, o objectivo é o alargamento da escala da produção. Assim, o comércio exterior acelera por um lado a acumulação, mas por outro também a queda do capital variável com relação ao capital constante e por isso a baixa da taxa de lucro. Igualmente, a extensão do comércio exterior, que era a base do modo de produção capitalista no seu início, tornou-se seu resultado à medida que progredia a produção capitalista, em razão da necessidade de dispor de um mercado sempre mais extenso. Aqui se verifica de novo a mesma ambivalência do efeito. (Ricardo nada viu sobre este aspecto do comércio exterior).
Eis outra pergunta que, pelo seu carácter especial, ultrapassa por assim dizer os limites do nosso estudo: será a taxa de lucro geral aumentada pela taxa de lucro mais elevada que rende o capital investido no comércio externo e sobretudo no comércio colonial?
Capitais investidos no comércio externo são capazes de dar uma taxa de lucro mais elevada porque se entra em concorrência com países cujas facilidades de produção mercantil são menores, de modo que o país mais adiantado vende as suas mercadorias acima do seu valor, embora as ceda mais barato do que os países concorrentes. Na medida em que o trabalho do país mais evoluído é posto em valor como trabalho de peso específico mais elevado, a taxa de lucro aumenta, sendo vendido o trabalho que não é pago como trabalho de qualidade superior. Pode ter-se a mesma situação com relação ao país para onde se expedem e de onde se recebem mercadorias, aquele que fornece mais trabalho materializado no estado natural do que recebe e, apesar de tudo, obtém a mercadoria mais barata do que ele mesmo a poderia produzir.
O mesmo se daria com um fabricante que, utilizando uma nova invenção antes da sua generalização, vendesse mais barato que os seus concorrentes e, contudo, acima do valor individual da sua mercadoria, isto é, pusesse em valor, como sobretrabalho, a produtividade especificamente superior do trabalho que empregasse; desta maneira realizaria um sobrelucro.
Quanto aos capitais investidos nas colónias, são capazes de render taxas de lucro mais elevadas porque, devido ao menor desenvolvimento, a taxa de lucro é de maneira geral mais elevada; e também devido à escravatura, à servidão, à exploração do trabalho.
Mas não se vê porque estas taxas de lucro mais elevadas, produzidas por capitais investidos em certos ramos e que eles transformam nos seus países de origem, não deveriam entrar, caso não houvesse o obstáculo dos monopólios, no sistema de igual repartição da taxa de lucro geral e não o aumentaria proporcionalmente. Não se vê porque não deveria ser assim, sobretudo porque os sectores de investimento de capitais estão sujeitos às leis da concorrência livre. Mas Ricardo coloca diante dos olhos a seguinte operação imaginária: graças ao preço mais elevado obtido no estrangeiro, compram-se ali mercadorias que, uma vez na metrópole, são vendidas no mercado interno; daqui pode resultar, mas só por algum tempo, uma posição particularmente vantajosa dessas esferas da produção, favorecidas com relação às outras. Esta miragem dissipa-se desde que se abstraia da forma monetária da troca. O país favorecido recebe em troca mais trabalho do que deu, embora esta diferença, este excesso (como em geral na troca entre capital e trabalho), seja metida ao bolso por uma classe. Portanto, se a taxa de lucro for mais elevada, porque assim é em geral no país colonial, este facto pode, se as condições naturais forem favoráveis, ir a par com a baixa de preço das mercadorias. Produz-se uma repartição igual, mas não ao nível antigo, como pensava Ricardo.
Mas o comércio externo favorece na metrópole o desenvolvimento do modo de produção capitalista e provoca assim a redução do capital variável com relação ao capital constante. E cria, por outro lado, com relação ao estrangeiro, uma sobreprodução, e acabará de novo por agir em sentido oposto.
Vemos assim que, em geral, as mesmas causas que provocam a baixa da taxa de lucro geral suscitam efeitos contrários que travam, afrouxam e paralisam parcialmente esta baixa. Não suprimem a lei mas enfraquecem o seu efeito. Caso assim não fosse, não seria a baixa da taxa de lucro geral que seria incompreensível, mas, inversamente, a lentidão relativa dessa baixa. É assim que a lei só actua sob a forma de tendência, cujo efeito só aparece de forma chocante em determinadas circunstancias e em longos períodos de tempo.
Antes de continuar, para evitarmos mal-entendidos, queremos ainda lembrar duas proposições já por várias vezes desenvolvidas.
Primeira: o mesmo processo que, na evolução do modo de produção capitalista, produz mercadorias a preços cada vez mais baixos, provoca uma alteração na composição orgânica do capital social empregado na produção dessas mercadorias e, por isso, a queda da taxa de lucro. É pois indispensável não confundir a diminuição do custo relativo da mercadoria, e até da parte desse custo que compreende o desgaste da aparelhagem, com o acréscimo do valor do capital constante comparado com o capital variável, embora, inversamente, qualquer diminuição de custo relativo do capital constante – permanecendo imutável o volume dos seus elementos materiais, ou até aumentando – seja um factor de subida da taxa de lucro, isto é, actue no sentido de uma diminuição correspondente do valor do capital constante, relativamente ao capital variável empregado em proporção cada vez mais fraca.
Segunda: nas mercadorias cuja totalidade abrange o produto do capital, o trabalho adicional vivo que elas contêm está em proporção decrescente com relação às matérias-primas tratadas e aos meios de trabalho que foram consumidos na produção. É pois uma quantidade cada vez mais fraca de trabalho vivo adicional que está nelas materializado, porque, com o desenvolvimento da produtividade social, a produção requer menos trabalho. Ora este facto não afecta a relação segundo a qual o trabalho vivo que a mercadoria contém se reparte em trabalho pago e não pago; antes pelo contrário, embora diminua a quantidade total de trabalho adicional vivo que ela contenha, a fracção que não é paga aumenta com relação àquela que é paga, por uma diminuição absoluta ou proporcional desta; porque o modo de produção que reduz a massa total de trabalho vivo acrescentado a uma mercadoria, é acompanhado de uma alta da mais-valia absoluta e relativa. A tendência de queda da taxa de lucro alia-se a uma subida tendencial da taxa de mais-valia, isto é, do grau de exploração do trabalho.
Não há maior insensatez do que explicar a queda da taxa de lucro por uma alta da taxa de salário, embora este caso possa dar-se excepcionalmente. Só compreendendo antes as condições que criam a taxa de lucro, se poderá depois, graças às estatísticas, estabelecer análises reais da taxa do salário em diferentes épocas e em diferentes países. A taxa de lucro não baixa porque o trabalho se torna menos produtivo, mas sim porque se torna mais produtivo. Os dois fenómenos – alta da taxa de mais-valia e baixa da taxa de lucro – são apenas formas particulares que, em regime capitalista, exprimem o acréscimo da produtividade do trabalho.


VII – Aumento do capital por acções
Aos seis pontos anteriores, pode ainda juntar-se o seguinte que no entanto não podemos aprofundar por agora. À medida que progride a produção capitalista, que vai de par de mais rápida acumulação, uma parte do capital já só é empregada como capital produtor de juros. Não no sentido vulgar – que todo o capitalista se contenta com os juros quando empresta capital, enquanto o capitalista industrial embolsa o seu lucro. Este facto, ao nível da taxa de juro geral, não interessa, porque o lucro é igual ao juro, como o lucro de qualquer tipo, como a renda, e a sua distribuição entre estas categorias é indiferente para o capitalista. Mas estes capitais, embora colocados em grandes empresas produtivas, não fornecem, feita a dedução de todos os gastos, mais do que juros maiores ou menores, os chamados dividendos. Não entram no sistema de igual repartição da taxa de lucro geral, porque rendem uma taxa de lucro inferior à taxa média; se nela entrassem, esta taxa desceria ainda muito mais. Sob um ponto de vista teórico, obtém-se uma taxa de lucro inferior à que parece existir e que determina realmente os capitalistas, porque é nestas empresas que o capital constante é mais elevado relativamente ao capital variável.

(Cap XV)


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O Capital 3.º Volume 3.ª Secção Lei da Baixa Tendencial da Taxa de Lucro cap XIII

Capítulo XIII
Natureza da lei

 Para um salário e dia de trabalho determinados, um capital variável, por exemplo de 100, representa a colocação no trabalho de um certo número de operários. Suponhamos que 100 libras é o salário de 100 operários por semana. Se estes 100 operários realizarem tanto trabalho para eles (isto é, para reproduzir o seu salário) como para o capitalista (isto é, para produzir mais-valia), o valor total que produzem será de 200£ e a mais-valia será de 100£. A taxa de mais-valia será pl/v= 100%. Mas, como vimos, esta taxa de mais-valia traduz-se por taxas de lucro muito diferentes, consoante o volume do capital constante c, portanto consoante o capital total C. A taxa de lucro é igual a pl/C.
Para uma taxa de mais-valia de 100%
se c= 50, v=100; p´=100:150= 66 2/3%
se c=100, v=100; p´=100:200= 50%
se c=200, v=100; p´=100:300= 33 1/3%
se c=300, v=100; p´=100:400= 25%
se c=400, v=100; p´=100:500= 20%
Permanecendo o mesmo grau de exploração, a mesma taxa de mais-valia traduzir-se-ia por uma taxa de lucro em decréscimo, porque o volume de valor do capital constante e, por isso, o conjunto do capital, cresce com o seu volume material, mesmo que o aumento não seja proporcional.
Se, além disto, admitirmos que esta modificação gradual da composição do capital não se produz apenas em esferas isoladas de produção mas que se encontra mais ou menos em todos (ou pelo menos nas esferas-chave da produção) e que traz modificações na composição orgânica média do conjunto do capital, será preciso que o acréscimo progressivo de capital constante com relação ao capital variável tenha como resultado uma baixa gradual da taxa de lucro, permanecendo a mesma a taxa de mais-valia ou ainda o grau de exploração do trabalho pelo capital restante.
Mostrámos que uma lei do modo de produção capitalista é esta: à medida que a produção se desenvolve, produz-se uma diminuição relativa do capital variável com relação ao capital constante, e, portanto, ao capital total posto em movimento. O que significa simplesmente: o mesmo número de operários, a mesma quantidade de força de trabalho, que fazia trabalhar um capital variável com um dado volume de valor, porá em movimento, no mesmo lapso de tempo, devido ao desenvolvimento dos métodos próprios da produção capitalista, uma quantidade sempre maior de meios de trabalho, de máquinas e de capital fixo de toda a espécie, tratará e consumirá produtivamente uma quantidade sempre maior de matérias-primas e auxiliares – por consequência, fará funcionar um capital constante de um volume de valor em perpétuo aumento.
A diminuição progressiva, relativa, do capital variável com relação ao capital constante – e, por isso, ao capital total – é idêntica ao crescimento progressivo da composição orgânica do capital social médio. É afinal uma outra maneira de exprimir o progresso da força produtiva social do trabalho que se traduz precisamente por este facto: utilizando mais máquinas, empregando mais capital fixo, o mesmo número de operários pode transformar em produtos maior quantidade de matérias-primas e auxiliares num mesmo lapso de tempo – isto é, com menos trabalho. A este acréscimo de volume do valor do capital constante – embora só traduza muito aproximadamente o acréscimo da massa real dos valores de uso que, materialmente, constituem este capital – corresponde uma diminuição crescente do custo do produto.
Com efeito, qualquer produto individual, considerado à parte, contém uma soma de trabalho menor do que a contida em estádios inferiores da produção, quando o capital desembolsado em trabalho era muito maior, proporcionalmente ao investido em meios de produção.
Assim, o quadro acima estabelecido como hipótese traduz bem a tendência real da produção capitalista. À medida que diminui progressivamente o capital variável com relação ao capital constante, eleva-se cada vez mais a composição orgânica do conjunto do capital, e a consequência imediata é que a taxa de mais-valia se traduz por uma taxa de lucro geral em baixa contínua, ficando sem mudança ou até aumentando o grau de exploração do restante trabalho.
(Veremos mais adiante porque é que esta baixa não se manifesta sob forma absoluta, mas sim sob forma de tendência para uma baixa progressiva.)
A tendência progressiva para a baixa da taxa geral de lucro é própria do modo de produção capitalista e exprime o progresso da produtividade social do trabalho. Decerto que poderia haver outras razões para uma baixa passageira da taxa de lucro, mas provámos que o progresso da produção capitalista implica necessariamente que a média taxa geral de mais-valia se traduz por uma baixa da taxa de lucro geral; é uma necessidade evidente que deriva da essência do modo de produção capitalista. Ao diminuir sem cessar a massa do trabalho vivo com relação à massa do trabalho materializado que põe em movimento, a fracção não paga deste trabalho vivo, que se concretiza em mais-valia, vê diminuir sem cessar a sua relação para o volume de valor do capital total; e esta relação da massa de mais-valia para o valor do capital total empregado constitui a taxa de lucro; esta baixa portanto continuamente.
Por mais simples que pareça esta lei, nenhum economista conseguiu, até hoje descobri-la, como veremos. Ao verificar o fenómeno, os economistas torturaram o espírito para chegarem a explicações contraditórias. Dada a importância desta lei para a produção capitalista, pode dizer-se que é o mistério cuja solução preocupa toda a economia política desde Adam Smith. E o que distingue as diversas escolas desde Smith é a diferença nas tentativas para chegar a uma solução. Mas se reflectirmos que a economia política andou às apalpadelas à roda da distinção entre capital constante e capital variável, sem nunca chegar a formulá-la com precisão, e que nunca apresentou a mais-valia separada do lucro, que o próprio lucro nunca foi por ela apresentado na sua pureza, distinguindo-o dos seus componentes promovidos à autonomia – lucro industrial, lucro comercial, juros, renda –, que nunca analisou a fundo as diferenças na composição orgânica do capital, como nunca analisou a fundo a formação da taxa de lucro geral – então já não há mistério algum no facto de lhe ter sempre escapado a solução deste enigma.
É de propósito que expomos esta lei antes de explicar como é que o lucro se decompõe em diferentes categorias promovidas respectivamente à autonomia. Porque esta exposição não depende dessa divisão do lucro em diversos elementos que cabem a diferentes categorias de pessoas, isto prova desde sempre que a lei, na sua generalidade, é independente de tal divisão e das relações recíprocas que regem as categorias de lucro dela resultantes. O lucro de que tratamos é simplesmente um outro nome da mais-valia, estudada na sua relação com o capital total, em vez de o ser na relação com o capital variável que lhe dá origem. A baixa da taxa de lucro traduz portanto a baixa da relação da própria mais-valia para o conjunto do capital adiantado e é por isso independente de qualquer repartição dessa mais-valia – seja qual for – entre categorias diferentes de beneficiários.
Vimos que, em certo nível do desenvolvimento capitalista, quando a composição do capital c com relação a v estava na proporção de 50 para 100, uma taxa de mais-valia de 100% traduzia-se por uma taxa de lucro de 66 2/3%; e vimos que, em nível mais elevado, quando a relação c:v era 400:100, a mesma taxa de mais-valia traduzia-se por uma taxa de lucro de 20% apenas. O que se aplica a diversos estádios sucessivos de desenvolvimento num país, pode aplicar-se também a diferentes estádios de desenvolvimento que existam simultânea e paralelamente em países diferentes. Num país não desenvolvido, em que a primeira composição do capital representa a média, a taxa de lucro geral seria de 66 2/3%, ao passo que seria de 20% num país em que produção estivesse em estádio muito mais elevado.
Poderia haver supressão e até reviravolta no desvio que separa as duas taxas nacionais de lucro se, no país menos desenvolvido, o trabalho fosse menos produtivo, se maior quantidade de trabalho se traduzisse por menor quantidade da mesma mercadoria, maior valor de troca por menor valor de uso; portanto, o operário deveria consagrar maior parte do seu tempo à reprodução dos seus próprios meios de subsistência ou do valor deles, e menor fracção à criação de mais-valia; forneceria menos sobretrabalho, de forma que a taxa de mais-valia seria mais baixa. Na hipótese do exemplo dado, se um operário trabalhasse no país menos desenvolvido 2/3 do dia para ele e 1/3 para o capitalista, a mesma força de trabalho seria paga por 133 1/3 e só forneceria um excedente de 66 2/3. Ao capital variável de 133 1/3 corresponderia um capital constante de 50. A taxa de mais-valia seria então de 66 2/3:133 1/3=50% e a taxa de lucro seria de 66 2/3:183 1/3=36,5% aproximadamente.
Até ao presente, ainda não estudámos os diversos elementos que nasceram da divisão do lucro; por isso evitaremos qualquer mal-entendido. Quando se comparam países de diferentes níveis de desenvolvimento – em particular países de desenvolvida produção capitalista – com outros em que o trabalho não está ainda formalmente sujeito ao capital, embora na realidade o operário seja explorado pelo capitalista (por exemplo na Índia onde o operário trabalha como camponês independente, a sua produção como tal não está ainda sujeita ao capital e, portanto, o usurário pode subtrair-lhe, sob forma de juros, não só todo o seu sobretrabalho mas até – para falar na linguagem do capitalista – uma parte do seu salário) seria grave erro querer medir a taxa de lucro nacional pelo nível da taxa nacional do juro. O juro inclui todo o lucro e até mais, em vez de exprimir apenas, como é o caso nos países de desenvolvida produção capitalista, uma parte alíquota da mais-valia ou do lucro produzidos; por outro lado, neste caso é exercida uma influência predominante sobre a taxa do juro por condições (empréstimos dos usurários aos grandes proprietários detentores de rendas) que nada têm a ver com o lucro e só indicam, pelo contrário, em que proporção e como, o usurário se apropria da renda.
Nos países em que o desenvolvimento da produção capitalista se situa em níveis desiguais e, por isso, a composição orgânica dos capitais é diferente, a taxa de mais-valia (um dos factores que determinam a taxa de lucro) pode ser mais elevada num país em que o dia de trabalho normal seja mais curto do que naquele em que seja mais longo. Em primeiro lugar se, em razão da sua maior intensidade, o dia de trabalho de 10 horas na Inglaterra for igual a um dia de trabalho de 14 na Áustria, sendo a mesma a repartição do dia de trabalho, 5 horas de sobretrabalho na Inglaterra pode representar no mercado mundial um valor superior a 7 horas na Áustria. Em segundo lugar, pode acontecer que, na Inglaterra, uma porção do dia de trabalho maior do que na Áustria constitua sobretrabalho.
A lei da baixa da taxa de lucro, que traduz manutenção da taxa de mais-valia ou até uma alta desta, significa por outros termos: sendo dada uma certa quantidade de capital social médio, por exemplo um capital de 100, a fracção deste que representa meios de trabalho não deixa de crescer e a que representa trabalho vivo não deixa de diminuir. Mas, como a massa total do trabalho vivo acrescido dos meios de produção baixa com relação ao valor deles, o trabalho não pago e a porção de valor que o representa baixam também com relação ao valor do capital total adiantado. Ou ainda: uma parte alíquota cada vez mais pequena do capital total investido converte-se em trabalho vivo; e este capital total absorve sempre menos sobretrabalho, proporcionalmente à sua grandeza, embora a relação entre trabalho pago e não pago venha a aumentar no mesmo tempo, o que é possível. Esta diminuição e este aumento relativos do capital variável e do capital constante – aumentando ambos aliás em valor absoluto – são apenas uma nova maneira de exprimir o aumento da produtividade do trabalho.
Suponhamos um capital de 100, composto de 80c+20v, este último termo igual a 20 operários. Seja uma taxa de mais-valia de 100%, o que significa que o operário trabalha para si meio dia e outro meio para o capitalista. Suponhamos que, num país menos desenvolvido, este capital é de 20c+80v em que este último termo significa 80 operários. Mas estes operários necessitam de 2/3 do dia de trabalho para eles e só trabalham 1/3 do tempo para o capitalista. Mantendo constantes todos os outros factores, os operários, no primeiro caso, produzirão um valor de 40 e, no segundo caso, de 120. O primeiro capital produz 80c+20v+20pl=120; taxa de lucro de 20%; o segundo, 20c+80v+40pl=140; taxa de lucro de 40%. Esta taxa é portanto dupla da primeira, embora no primeiro caso a taxa de mais-valia tenha sido de 100%, dupla do segundo em que só atingia 50%. Pelo contrário, um capital da mesma grandeza apropria-se do sobretrabalho de 20 operários no primeiro caso e de 80 no segundo.
A lei da baixa progressiva da taxa de lucro, ou diminuição relativa do sobretrabalho, de que se apropria o capitalista com relação à massa de trabalho materializado que o trabalho vivo põe em acção, não exclui de forma nenhuma que a massa de trabalho posta em movimento e explorada pelo capital social aumente em grandeza absoluta e não possa, por isso, aumentar a massa de sobretrabalho de que este se apropria; também não exclui que os capitais colocados às ordens dos capitalistas individuais comandem uma massa crescente de trabalho, e por isso de sobretrabalho, podendo até este aumentar, ao passo que não cresce o número de operários colocados sob o látego daqueles.
Consideremos uma dada população proletária, dois milhões por exemplo; consideremos, além disso, como dadas a duração e a intensidade do dia médio de trabalho, assim como o salário e, por consequência, a relação do trabalho necessário para o sobretrabalho: o trabalho total destes dois milhões de operários, assim como o seu sobretrabalho que se exprime em mais-valia, produzirão sempre a mesma grandeza de valor. Mas à medida que aumenta a massa de capital constante que este trabalho põe em acção – fixo e circulante –, vê-se diminuir a relação entre esta grandeza de valor e o valor daquele capital que aumenta com a massa deste, mesmo que este aumento não seja proporcional. Esta relação (e por isso a taxa de lucro) baixa, embora como antes o capital comande a mesma porção de trabalho vivo e absorva a mesma quantidade de sobretrabalho.
Se esta relação for modificada, não será porque a massa de trabalho diminua, mas porque aumenta a massa do trabalho já materializado que ele põe em movimento. A diminuição é relativa e não absoluta e não tem nada a ver com a grandeza absoluta do sobretrabalho e do trabalho posto em movimento. A baixa da taxa de lucro provém de uma baixa puramente relativa e não absoluta do elemento variável do conjunto do capital, por comparação com o seu elemento constante.
O raciocínio é válido para uma dada massa de sobretrabalho e de trabalho, é válido também para o aumento do número dos operários e portanto, para o acréscimo de trabalho sob as ordens do capital, em geral, e da sua parte não paga, o sobretrabalho, em particular. Se a população proletária passar de 2 milhões para 3 milhões e se, de igual maneira, o capital variável (que é gasto com ela em salário) passar de 2 milhões para 3 milhões e, pelo contrário, o capital constante passar de 4 para 15 milhões, nas condições da nossa hipótese (dia de trabalho e taxa de mais-valia constantes) a massa de sobretrabalho – de mais-valia – aumentará metade (50%), de 2 para 3 milhões. Nem por isso, apesar do acréscimo de 50% da massa absoluta de sobretrabalho e portanto de mais-valia, a relação entre capital variável e o capital constante deixa de descer de 2:4 para 3:15 e a relação entre a mais-valia e o capital total estabelece-se como segue (em milhões):
I. 4c+2v+2pl; C=6, p’=33,333%
II. 15c+3v+3pl; C=18, p’=16,667%
Ao passo que a massa de mais-valia aumentou metade, a taxa de lucro já não é metade do que era anteriormente. Mas o lucro é apenas a mais-valia relacionada ao capital social e a massa do lucro, a sua grandeza absoluta, é por isso, sob o ponto de vista social, igual à grandeza absoluta da mais-valia. A grandeza absoluta do lucro, a sua massa total, teria portanto aumentado 50%, apesar de uma diminuição enorme da relação desta para o capital total adiantado (por outros termos, apesar da enorme baixa da taxa de lucro geral). O número de operários empregados pelo capital (portanto a massa absoluta de trabalho que põe em movimento, e daqui a massa de mais-valia que produz, e daqui a massa de lucro), podem aumentar progressivamente, apesar da baixa progressiva da taxa de lucro. Mas não basta dizer que pode ser assim; na base da produção capitalista, é preciso que assim seja – abstraindo de passageiras oscilações.
Por essência, o processo de produção capitalista é, ao mesmo tempo, processo de acumulação. Já se mostrou que, à medida que progride a produção capitalista, a massa de valor tem de ser obrigatoriamente reproduzida, conservada, aumentada com o desenvolvimento da produtividade do trabalho, mesmo que a força de trabalho utilizada permaneça constante. Mas o desenvolvimento da produtividade social aumenta ainda mais a massa de valores de uso produzida, da qual os meios de produção constituem uma parte. E o trabalho adicional, cuja apropriação permite reconverter em capital a riqueza acrescentada, depende não do valor mas da massa dos meios de produção (incluídas as subsistências), nada tendo o operário a ver, no processo de trabalho, com o valor, mas com o valor de uso dos meios de produção.
Quanto à própria acumulação, e à concentração do capital que vai a par, é só um meio material de aumentar a força produtiva. Ora este aumento dos meios de produção implica o aumento da população operária; implica a criação de uma população de operários que corresponda ao excesso de capital e de maneira que, na totalidade, ultrapasse sem cessar as suas necessidades; implica portanto sobrepopulação operária.
Um excedente momentâneo de capital, com relação à população operária que ele faz trabalhar, teria um duplo efeito: por um lado, pela subida de salário provocaria a mitigação das condições dizimadoras e até aniquiladoras da progenitura dos operários e fomentaria os casamentos, fazendo aumentar gradualmente a população operária; por outro lado, o emprego dos métodos criadores de mais-valia relativa (introdução e aperfeiçoamento de máquinas), criando muito mais rapidamente ainda, de maneira artificial, uma sobrepopulação relativa que, por sua vez, constituiria terreno favorável a uma multiplicação rápida da população – porque, em regime de produção capitalista, a miséria faz nascer gente.
Da natureza do processo de acumulação capitalista – simples fase do processo de produção capitalista – resulta muito naturalmente que a massa acrescida de meios de produção destinados a serem convertidos em capital tem sempre à mão uma população operária explorável cujo aumento corresponde ao seu e até o ultrapassa. À medida que progridem os processos de produção e de acumulação, é preciso portanto que cresça a massa de sobretrabalho apropriável e apropriado e, por consequência, a massa absoluta do lucro de que se apropria o capital social. Mas estas mesmas leis que regem a produção e a acumulação fazem aumentar com a sua massa o valor do capital constante, segundo uma progressão crescente mais rápida do que a do capital variável convertido em trabalho vivo. Portanto, são as mesmas leis que provocam para o capital social uma subida absoluta da massa de lucro e uma baixa da taxa de lucro.
Abstrai-se completamente de a mesma grandeza de valor representar uma proliferação de valores de uso e de prazeres que aumenta progressivamente à medida que progride a produção capitalista, com o desenvolvimento correspondente da produtividade do trabalho social, à medida que se multiplicam os ramos de produção e portanto os produtos.
O desenvolvimento da produção e acumulação capitalistas determina processos de trabalho em escala e em dimensões cada vez maiores e, por isso, adiantamentos de capital crescentes em cada estabelecimento particular. Uma crescente concentração de capitais (acompanhada, ao mesmo tempo, embora em menor grau, por um aumento do número de capitalistas) é pois, paralelamente, uma das condições materiais e um dos resultados daquele desenvolvimento. A par destes fenómenos, agindo sobre eles e sofrendo-lhes a acção, produz-se uma expropriação progressiva dos produtores directos ou indirectos. Compreende-se então que os capitalistas individuais comandem exércitos de trabalhadores em crescente aumento (por mais forte que seja para eles a diminuição do capital variável com relação ao capital constante), que aumente a massa de mais-valia (e portanto do lucro) de que eles se apropriam, simultaneamente com a baixa das taxas de lucro e apesar dessa baixa. São precisamente as mesmas causas que concentram exércitos massivos de trabalhadores sob o comando dos capitalistas, que fazem dilatar em proporção crescente a massa do capital fixo utilizado e das matérias-primas e auxiliares com relação à massa do trabalho vivo, igualmente utilizado.
Além disto, basta mencionar que, para uma dada população operária, se a taxa de mais-valia aumenta, quer pelo prolongamento do dia de trabalho, quer pela intensificação deste, quer por uma diminuição de valor do salário, resultante do desenvolvimento da força produtiva do trabalho, a massa da mais-valia (e portanto a massa absoluta do lucro) têm de aumentar necessariamente, apesar da diminuição relativa do capital variável com relação ao capital constante.
Este mesmo desenvolvimento da produtividade do trabalho social, estas mesmas leis que se manifestam na baixa relativa do capital variável, comparado com o capital total, e na acumulação que por isso se encontra acelerada, ao passo que, por outro lado, por um choque de retorno, esta acumulação constitui o ponto de partida de um novo acréscimo de força produtiva e de uma nova baixa relativa do capital variável, este mesmo desenvolvimento (íamos dizendo) traduz-se – pondo de lado flutuações temporárias – pelo aumento crescente da massa total da força de trabalho empregada, pela subida crescente da massa absoluta da mais-valia e portanto do lucro.
Esta lei da dupla face, segundo a qual as mesmas causas provocam a diminuição da taxa de lucro e o aumento da massa absoluta de lucro, baseia-se no facto de, em dadas condições, aumentar a massa de sobretrabalho apropriada (portanto de mais-valia); e de lucro e mais-valia serem grandezas idênticas, considerando o conjunto do capital, ou o capital individual como simples parcela da totalidade do capital.
Consideremos a fracção alíquota do capital sobre a qual calculamos a taxa de lucro, por exemplo 100. Estes 100 representam a composição média do capital total, por exemplo 8oc+20v. Na segunda secção deste Volume já vimos que, nos diversos remos de produção, a taxa de lucro média não era determinada pela composição particular de cada capital, mas pela sua composição social média. A diminuição relativa da parte variável com relação à parte constante (portanto com relação ao capital total 100) provoca a baixa da taxa de lucro, ficando imutável a exploração do trabalho; provoca a baixa da grandeza relativa da mais-valia, isto é, da sua relação para o valor do capital total adiantado, 100.
Mas não é só esta grandeza relativa que baixa. A grandeza da mais-valia ou do lucro, absorvida pelo capital total 100, baixa em valor absoluto. Para uma taxa de mais-valia de 100%, um capital de 60c+40v produzirá mais-valia (portanto lucro) de 40; um capital de 70c+30v, um lucro de 30; com um capital de 80c+20v, o lucro desce para 20. Esta queda aplica-se à massa da mais-valia, e portanto ao lucro, e resulta do facto de o capital total 100 pôr em acção menos trabalho vivo em geral, se o grau de exploração ficar o mesmo, e porá também em acção menos sobretrabalho, produzindo portanto menos mais-valia. Se tomarmos como unidade de medida, para determinar a mais-valia, qualquer fracção alíquota do capital social, portanto do capital de composição orgânica social média – e sempre se faz isto quando se calcula o lucro – então haverá identidade entre a baixa relativa e a baixa absoluta da mais-valia. Nos casos pré-citados, a taxa de lucro baixa de 40% para 30% e 20% porque, de facto, a massa de mais-valia produzida pelo mesmo capital – e por consequência de lucro – desce em valor absoluto de 40 para 30 e para 20. Uma vez dada a grandeza de valor do capital com o qual se relaciona a mais-valia, suponhamos 100, qualquer diminuição da relação da mais-valia para esta grandeza invariável só pode ser uma outra forma de exprimir a baixa da grandeza absoluta da mais-valia e do lucro. Na realidade, trata-se de uma tautologia. Mas que há diminuição, isso resulta, como já demonstrámos, da natureza do desenvolvimento do processo de produção capitalista.
Por outro lado, as mesmas causas que produzem uma diminuição absoluta da mais-valia (e portanto do lucro) com relação a dado capital, e que, por consequência, fazem também baixar a taxa de lucro calculada em percentagem, provocam um acréscimo da massa absoluta da mais-valia (e portanto do lucro) de que se apropria o capital social (isto é, o conjunto dos capitalistas). Como é que esta lei irá então traduzir-se necessariamente, qual a sua única expressão possível, ou ainda, quais são as condições implicadas por esta contradição aparente?
A fracção alíquota 100 do capital social e qualquer fragmento de 100 unidades de um capital de composição orgânica social média, constituem uma dada grandeza; se para elas a diminuição da taxa de lucro coincide com a diminuição da grandeza absoluta deste, é precisamente porque o capital com o qual as relacionam e medem é uma grandeza constante; pelo contrário, a grandeza do capital social total, assim como a do capital que se encontra nas mãos dos capitalistas individuais, é uma grandeza variável que, para permanecer fiel às condições da nossa hipótese, tem que variar necessariamente na razão inversa da diminuição da fracção variável.
No primeiro exemplo, sendo a composição do capital 60c+40v, a mais-valia ou lucro é de 40 e a taxa de lucro é de 40%. Admitamos que neste estádio de composição o capital total era de um milhão. A mais-valia total (portanto o lucro total), elevar-se-ia a 400 000. Se mais tarde a composição do capital vier a ser de 80c+20v, para cada fracção de 100, a mais-valia ou lucro será de 20, permanecendo imutável o grau de exploração do trabalho. Mas a mais-valia ou lucro aumenta, como demonstrámos, apesar da baixa da taxa de lucro ou da produção da mais-valia, por fracção de capital de 100. Admitamos portanto que a massa de mais-valia tenha passado de 400 000 para 440 000; isto só foi possível porque, enquanto se estabelecia esta nova composição orgânica, aumentava simultaneamente o capital total, passando para 2 200 000. A massa do capital total posta em movimento elevou-se para 220%, ao passo que a taxa de lucro baixou 50%. Se o capital tivesse simplesmente duplicado, não teria podido produzir, com uma taxa de lucro de 20%, mais do que a massa de mais-valia ou lucro, igual à produzida pelo antigo capital de 1000 000 à taxa de lucro de 40%. Se se tivesse elevado a menos do dobro, teria produzido menos mais-valia ou lucro do que antes o capital de 1000 000; este, na sua composição anterior, passaria de 1000 000 para 1100 000 e assim faria subir a mais-valia de 400 000 para 440 000.
Manifesta-se aqui a mesma lei que já explicámos: à medida que se produz a baixa relativa do capital variável (isto é, à medida que se desenvolve a força produtiva social do trabalho), é precisa uma quantidade cada vez maior de capital total para pôr em acção a mesma quantidade de força de trabalho e absorver a mesma de sobretrabalho. Logo, a possibilidade de um excedente relativo de população operária vai exactamente a par do desenvolvimento da produção capitalista. A causa disto não é uma diminuição mas um aumento da força produtiva do trabalho social; este facto não resulta portanto de uma absoluta desproporção entre o trabalho e os meios de existência ou os meios de produção desses meios, mas de um desequilíbrio gerado, proveniente da forma capitalista de exploração do trabalho, entre o crescimento do capital e a necessidade relativamente decrescente que tem de uma população crescente.
Se a taxa de lucro baixar 50%, será reduzida a metade. Para que a massa de lucro fique a mesma, é preciso que o capital duplique. Diminuindo a taxa de lucro, para que a massa de lucro fique imutável, é preciso que o multiplicador que indica o acréscimo do capital total seja igual ao divisor que indica a baixa da taxa de lucro. Quando a taxa de lucro desce de 40 para 20 é preciso que, inversamente, o capital aumente na proporção de 20 para 40, para que o resultado fique o mesmo. Se a taxa de lucro tivesse descido de 40 para 8, seria preciso que o capital aumentasse de 8 para 40, isto é que quintuplicasse. Um capital de 1000 000 à taxa de 40% produz 400 000 e um capital de 5000 000 a 8% produziria também 400 000: isto para que o resultado ficasse o mesmo; se tivesse de ser mais elevado, seria preciso que o capital aumentasse em proporção maior do que baixava a taxa de lucro.
Por outros termos: para que, em valor absoluto, o elemento variável do capital total não fique só o mesmo mas aumente, embora a sua percentagem como fracção do capital diminua, é preciso que o capital total, proporcionalmente, aumente mais do que baixa a percentagem do capital variável; é preciso que aumente a ponto de ter necessidade, na sua nova composição, para a compra da força de trabalho, não só da antiga parte de capital variável mas de uma quantidade ainda maior. Se a fracção variável de um capital de 100 descer de 40 para 20, é preciso que o capital total se eleve a mais de 200 para poder empregar um capital variável superior a 40.
Mesmo que a massa explorada da população proletária permanecesse constante – aumentando apenas a duração e a intensidade do dia de trabalho – seria preciso que aumentasse a soma do capital utilizado, quanto mais não fosse para empregar a mesma quantidade de trabalho nas antigas condições de exploração, quando se modificasse a composição do capital.
Portanto, à medida que progride o modo de produção capitalista, um mesmo desenvolvimento da produtividade social do trabalho exprime-se, por um lado, na tendência para uma baixa progressiva da taxa de lucro e, por outro lado, num acréscimo constante da massa absoluta da mais-valia ou do lucro de que se apropriam os capitalistas. De modo que, à baixa relativa do capital variável e do lucro, corresponde a uma alta absoluta de um e de outro. Este duplo efeito, já o demonstrámos, só se pode explicar por um acréscimo do capital total cuja progressão é mais rápida que a baixa da taxa de lucro.
Para empregar um capital variável que tenha aumentado absolutamente, no caso de uma composição orgânica mais elevada ou de um aumento relativo mais forte do capital constante, não basta que o capital total aumente proporcionalmente a esta composição mais elevada, é preciso que cresça ainda mais depressa. Daqui resulta o seguinte: à medida que se desenvolve o modo de produção capitalista, uma quantidade de capital cada vez maior é necessária para ocupar a mesma força de trabalho e ainda é preciso mais para uma força de trabalho em aumento. O acréscimo da produtividade do trabalho provoca portanto necessariamente um excedente permanente de população proletária. Se o capital variável só constituir 1/6 do capital total, contra ½ anteriormente, será preciso para ocupar a mesma força de trabalho que o capital triplique; mas se quisermos ocupar o dobro da força de trabalho, será preciso que o capital sextuplique.
Dizer que a massa do lucro é determinada por dois factores – taxa de lucro e massa de capital empregado a essa taxa – é pura tautologia. Por isso, pretender que a massa do lucro pode aumentar, embora a taxa de lucro baixe simultaneamente, é apenas uma forma dessa tautologia, que nada adianta. Porque também é possível que o capital aumente sem que aumente a massa de lucro e até pode aumentar enquanto ela baixa. 100 a 25% dá 25, mas 400 a 5% só dá 20. Mas se as mesmas causas que fazem baixar a taxa de lucro favorecem a acumulação, isto é, a constituição de capital adicional que põe em acção trabalho suplementar e produz um acréscimo de mais-valia; se, por outro lado, a simples baixa da taxa de lucro implica aumento do capital constante e, por isso, do capital total – então todo este processo deixa de ser misterioso. Ver-se-á mais tarde a que falsidades se recorreu para escamotear a possibilidade do acréscimo da massa do lucro, simultaneamente com a diminuição da sua taxa.
Mostrámos que as mesmas causas que produzem uma baixa tendencial da taxa de lucro geral provocam uma acumulação acelerada do capital e, por isso, um acréscimo da grandeza absoluta ou ainda da massa total do sobretrabalho (mais-valia, lucro) de que ele se apropria. Assim como todos os fenómenos se apresentam às avessas na concorrência e, por isso, na consciência dos agentes que nela participam, o mesmo sucede com esta lei – refiro-me à conexão interna e necessária entre duas coisas que na aparência se contradizem. Vê-se bem o exemplo das proporções já expostas que um capitalista, dispondo de um capital considerável, tirará dele uma quantidade de lucro superior à obtida por um pequeno capitalista que parece realizar lucros elevados.
O mais superficial exame dos fenómenos da concorrência mostra que, em certas circunstâncias, o grande capitalista, quando quer conquistar lugar no mercado e afastar os concorrentes de menor importância, por exemplo em períodos de crise, utiliza na prática este sistema: baixa voluntariamente a sua taxa de lucro para afastar as firmas de menor envergadura.
O capital comercial, como veremos mais tarde em pormenor, revela fenómenos que fazem aparecer uma baixa de lucro como consequência da extensão do negócio e portanto do capital. Daremos ulteriormente a formulação verdadeiramente científica deste erro de interpretação. Chega-se a considerações do mesmo género quando se comparam taxas de lucros realizados em ramos particulares, consoante esses negócios são submetidos ao regime da livre concorrência ou do monopólio. A representação que se alberga nos cérebros dos agentes da concorrência, encontramo-la em Roscher quando diz que a baixa da taxa de lucro é «mais inteligente e mais humana». A diminuição da taxa de lucro é uma consequência do aumento do capital e do cálculo dos capitalistas, corolário desse aumento. Sabe-se que a massa de lucro que metem ao bolso é mais elevada do que com uma taxa menor. O raciocínio (excepto em Smith, do qual falaremos mais tarde) assenta numa incapacidade total de compreender a própria natureza da taxa de lucro geral e na representação simplista de que os preços são na realidade determinados pela adição de uma certa quantidade mais ou menos arbitrária de lucro ao verdadeiro valor da mercadoria. Por muito ingénuas que sejam estas noções, nem por isso deixam de ter a sua origem na imagem invertida que dá a concorrência das leis imanentes da produção capitalista.
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A lei segundo a qual a baixa da taxa de lucro, provocada pelo desenvolvimento da força produtiva, é acompanhada de um aumento da massa de lucro, traduz-se também pelo seguinte facto: a baixa do preço das mercadorias produzidas pelo capital é acompanhada de um acréscimo relativo das massas de lucro que elas contêm e cuja venda permite realizar.
O desenvolvimento da força produtiva e a elevação correspondente da composição orgânica do capital permitem fazer funcionar uma quantidade cada vez maior de meios de produção com o auxílio de uma quantidade de trabalho cada vez menos, e qualquer parte alíquota do produto total, qualquer mercadoria considerada à parte, ou ainda qualquer porção determinada da massa total das mercadorias produzidas, absorve menos trabalho vivo e contem menos trabalho materializado, quer no desgaste do capital fixo utilizado, quer nas matérias-primas e auxiliares consumidas.
Toda e qualquer mercadoria contém pois uma soma menor, quer em trabalho materializado em meios de produção, quer em trabalho novamente acrescido durante a produção. Por consequência, baixa o preço de qualquer mercadoria considerada à parte.
No entanto, a massa de lucro contida em qualquer mercadoria pode aumentar, se a taxa da mais-valia absoluta ou relativa se eleva; contém menos trabalho novamente acrescido, mas a fracção de trabalho que não é paga aumenta com relação à que é paga. Mas isto só se dá dentro de certos limites. Com o desenvolvimento da produção, a soma de trabalho vivo, novamente acrescido a cada mercadoria, diminui absolutamente e esta baixa toma proporções tão consideráveis que faz baixar também, em valor absoluto, a massa de trabalho não pago contida na mercadoria, seja qual for o seu aumento com relação à fracção paga.
A massa de lucro por mercadoria reduz-se consideravelmente com o desenvolvimento da força produtiva do trabalho, apesar do aumento da taxa da mais-valia; e, como também sucede para a taxa de lucro, essa diminuição é apenas atenuada pela baixa de preço dos elementos do capital constante e pelas outras circunstâncias expostas na primeira secção deste Volume, que fazem subir a taxa de lucro para uma dada taxa de mais-valia ou mesmo que se verifique uma baixa desta.
Dizer que baixa o preço das mercadorias isoladas, cuja soma constitui o produto total do capital, quer dizer que uma dada quantidade de trabalho realiza-se em maior quantidade de mercadorias, portanto cada mercadoria contém menos trabalho que antes. O mesmo se dá quando aumenta o preço de um dos elementos do capital constante, como a matéria-prima, etc.. Com excepção de casos isolados (por exemplo, quando a produtividade do trabalho provoca uma baixa uniforme de todos os elementos do capital constante e variável), vamos dar as razões por que a taxa de lucro baixa, apesar da subida da taxa de mais-valia:
1) porque mesmo uma parte não paga maior, da quantidade total menor de trabalho recentemente adicionado, é menor do que uma alíquota menor porção não paga do antigo valor maior;
2) porque a composição superior do capital traduz-se da seguinte maneira: em qualquer mercadoria a porção de valor que representa, no fim de contas, trabalho novamente acrescentado, baixa com relação à porção que representa matéria-prima, matéria auxiliar e desgaste de capital fixo. Esta modificação da relação entre diferentes componentes do preço da matéria isolada – diminuição da fracção do preço que representa trabalho vivo novamente acrescentado e aumento dos elementos que exprimem trabalho materializado anteriormente – é, no preço da mercadoria, a expressão da baixa do capital variável relativamente ao capital constante.
Assim como esta diminuição é absoluta para uma dada unidade do capital, digamos 100, assim também o é para qualquer mercadoria tomada à parte, como fracção alíquota do capital reproduzido. Mas se a taxa de lucro for calculada simplesmente sobre os elementos do preço das mercadorias isoladas, apresenta-se de forma diferente à realidade. E isto pela seguinte razão:
A taxa de lucro é calculada sobre o capital total utilizado, mas durante um determinado tempo, por exemplo um ano. A relação entre a mais-valia (ou o lucro obtido e realizado durante um ano) e o capital total, calculado em percentagem, é a taxa de lucro. Esta não é necessariamente igual a outra taxa de lucro para cujo cálculo se tivesse tomado como base não o ano mas o período de rotação do capital: é só quando este capital efectua uma rotação num ano que os dois resultados coincidem.
Por outro lado, o lucro obtido no decorrer de um ano é apenas a soma dos lucros obtidos sobre as mercadorias produzidas e vendidas nesse ano. Se calcularmos o lucro com relação ao custo de produção de mercadorias, obteremos uma taxa de lucro p/pr (p é o lucro realizado no decorrer do ano e pr a soma dos custos de produção das mercadorias produzidas e vendidas no mesmo período). Torna-se evidente que esta taxa de lucro p/pr não pode coincidir com a taxa real de lucro p/C, massa de lucro dividida pelo capital total, a não ser que pr=C, isto é, que o capital efectue exactamente a rotação no ano.
Consideremos um capital industrial em três estados diferentes:
I. O capital de 8000 libras produz e vende por ano 5000 mercadorias a 30 xelins cada uma. Efectua portanto uma rotação anual de 7500 libras. Na mercadoria faz um lucro de 10 xelins por unidade, ou seja 2500 libras por ano. Em cada unidade de mercadoria há pois 20 xelins de adiantamento de capital e 10 xelins de lucro; a taxa de lucro por unidade é portanto 10/20=50%. Na soma das 7500 libras que efectuaram a rotação, há 5000 libras de capital adiantado e 2500 de lucro. A taxa de lucro com relação à soma em rotação p/pr também é igual a 50%. Pelo contrário, calculada sobre o capital total, a taxa de lucro é p/C=2500/8000=31,25%.
II. Admitamos que o capital passa para 10 000 libras e que devido a maior produtividade, é capaz de produzir por ano 10 000 mercadorias ao custo de produção de 20 xelins por unidade, as quais se vendem, com o lucro de 4, a 24 xelins cada unidade. O preço do produto anual será portanto de 12 000 libras, das quais 10 000 de capital adiantado e 2000 de lucro; p/pr é por unidade 4/20 e a rotação anual é de 2000:10 000=20%, valor igual nos dois casos. E como o capital total é igual à soma dos custos de produção, isto é, 10 000 libras, a taxa de lucro real é também desta vez, igual a 20%.
III. Suponhamos que, aumentando a força produtiva do trabalho, o capital se eleva a 15 000 libras e que produz agora 30 000 mercadorias ao custo de produção de 13 xelins por unidade, que são vendidas com o lucro de 2 xelins, a 15 xelins por unidade. A rotação anual é pois de 30 000X15 xelins=22 500 libras, 19500 das quais de capital adiantado e 3000 de lucro. Neste caso p/pr=2/13=3000/19500=15 5/13%. Pelo contrário, p/C é igual a 3000:15 000=20%.
Vemos portanto que só no caso II – valor-capital em rotação igual ao capital total – a taxa de lucro calculada por mercadoria isolada ou pela soma em rotação, é a mesma que a taxa de lucro calculada sobre o capital total. No caso I – soma em rotação inferior ao capital total – a taxa de lucro calculada sobre o custo de produção da mercadoria é mais elevada; no caso III – capital total inferior à soma em rotação – a taxa de lucro é mais baixa que a taxa de lucro real, calculada sobre o capital total. Geralmente, na prática comercial, não se calcula com exactidão a rotação. Admite-se que o capital efectuou uma rotação desde que a soma dos preços das mercadorias atinge a do capital total empregado. Mas o capital só pode ter realizado uma rotação completa quando a soma dos custos de produção das mercadorias realizadas iguala a soma do capital total.
Uma vez mais se verifica quão importante é, na produção capitalista, não estudar em si, isoladamente, como simples mercadoria, a mercadoria tomada à parte ou o produto-mercadoria de qualquer período, mas considera-las como produto do capital adiantado e com relação ao capital total que produz esta mercadoria.
Embora seja preciso calcular a taxa de lucro, comparando a massa da mais-valia produzida e realizada, não só com a porção consumida de capital que reaparece nas mercadorias, mas também com a porção não consumida de capital acrescida à consumida, sendo a não consumida utilizada e continuando a desempenhar a sua função na produção – a massa do lucro, por sua vez, só pode ser igual à massa de lucro (ou de mais-valia) contida nas próprias mercadorias e que será realizada pela sua venda.
Se a produtividade da indústria aumenta, o preço da mercadoria diminui, porque contém menos trabalho pago e não pago. Admitamos que o mesmo trabalho produz o triplo de produto; caberá portanto menos 2/3 de trabalho a cada produto considerado isoladamente. E como o lucro só pode constituir uma parte da quantidade de trabalho contida na mercadoria isolada, é consequência que diminua a massa do lucro por mercadoria; e isto acontece dentro de certos limites, mesmo que a taxa de mais-valia aumente.
Em caso algum, a massa de lucro relacionada com o produto total fica abaixo da massa de lucro primitiva, desde que o capital empregue a mesma quantidade anterior de operários e no mesmo grau de exploração. (Pode produzir-se o mesmo se se empregarem menos operários elevando o grau de exploração). A massa de lucro por produto diminui na mesma proporção em que aumenta o número de produtos. A massa do lucro permanece a mesma; simplesmente reparte-se de outro modo na soma das mercadorias; mas este facto nada altera quanto à distribuição, entre operários e capitalistas, da quantidade de valor criado pelo trabalho novamente acrescido.
Se se empregar a mesma quantidade de trabalho, a massa de lucro só pode aumentar quando aumentar o sobretrabalho não pago; ou (permanecendo o mesmo grau de exploração) quando for maior o número de operários; ou ainda, quando estes dois factores se conjugarem. Em todos estes casos – que, segundo a nossa hipótese, supõem que o capital constante aumenta com relação ao capital variável e que aumenta a grandeza do capital total utilizado – a mercadoria isolada contém menor quantidade de lucro e a taxa de lucro baixa. Uma quantidade de trabalho adicional traduz-se por maior quantidade de mercadorias. O preço de cada mercadoria diminui.
Teoricamente, quando baixa o preço das mercadorias, por causa do aumento da produtividade (e portanto da multiplicação simultânea das mercadorias obtidas a menor preço), a taxa de lucro pode ficar a mesma se, por exemplo, aquele aumento exerce uma acção simultânea e uniforme sobre todos os componentes das mercadorias, de modo que o preço total diminui na proporção em que aumenta a produtividade e, por outro lado, a relação recíproca dos diversos componentes do preço da mercadoria permanece a mesma. A taxa de lucro pode também elevar-se se a subida da taxa da mais-valia vai a par de uma importante diminuição do valor dos elementos do capital constante e, em particular, do capital fixo.
Na realidade, como já vimos, a taxa de lucro baixa com o decorrer do tempo. Em caso nenhum, a queda do preço da mercadoria permite, por si só, tirar uma conclusão quanto à taxa de lucro. Tudo depende da grandeza da soma total do capital empregado na produção da mercadoria. Suponhamos por exemplo que um metro de tecido baixa de 3 para 1 xelim e 2/3; se soubermos que, antes da baixa, havia 1 xelim 2/3 de capital constante, 2/3 de salário, 2/3 de lucro e, depois da baixa, 1 xelim de capital constante, 1/3 de salário, e 1/3 de lucro, nem por isso se fica a saber se a taxa de lucro continuou a mesma ou não. Isso depende de uma incógnita: é preciso saber se aumentou o capital total adiantado e quanto, e quantos metros a mais foram produzidos num determinado lapso de tempo.
Resulta da natureza do modo de produção capitalista que, quando a produtividade do trabalho aumenta, o preço de qualquer mercadoria considerada à parte ou de determinada quantidade de mercadoria diminui, o volume de mercadorias aumenta, a massa de lucro por mercadoria e a taxa de lucro com relação à soma das mercadorias diminuem, ao passo que aumenta a massa de lucro calculada sobre a soma total das mercadorias. Estes fenómenos manifestam-se superficialmente da maneira seguinte: baixa da massa de lucro por mercadoria, baixa do preço desta, acréscimo da massa de lucro calculada sobre o volume total aumentado das mercadorias. Destes factos deduz-se facilmente a ideia de que o capitalista reduz, porque esse é o seu prazer, a parte de lucro por mercadoria, mas desforra-se produzindo maior número de mercadorias. Esta concepção assenta na ideia do lucro na venda (profit upon alienation) que deriva do conceito do capital comercial.
Já vimos no Volume I, na quarta e sétima secções, que o acréscimo da massa de mercadorias e a produção mais barata da mercadoria isolada – resultados do aumento da produtividade do trabalho – não afectam directamente, apesar da baixa de preço, a relação entre o trabalho pago e o não pago na mercadoria (quando as mercadorias em causa não são um elemento determinante do preço da força de trabalho).
Na concorrência tudo se apresenta sob um falso aspecto, às avessas, e é por isso que ao capitalista lhe parece que:
1.º - diminui o lucro em cada mercadoria, baixando o preço desta, mas que faz um lucro mais elevado porque vende maior massa de mercadorias;
2.º - fixa o preço da mercadoria e determina o preço do produto total por multiplicação, quando a operação primitiva é uma divisão e a multiplicação só aparece em segundo lugar e só pode ser exacta sob condição de supor aquela divisão.
Na realidade, o economista vulgar só traduz em linguagem de aparência teórica, as representações bizarras do capitalista prisioneiro da concorrência; tenta generalizá-las e esforça-se por inventar provas sobre a correcção de tais ideias.
Mas, de facto, a baixa dos preços das mercadorias e a alta da soma de lucro, realizado sobre uma quantidade maior de mercadorias produzidas a custo mais barato, são apenas outra manifestação da lei da baixa da taxa de lucro que vai a par com o aumento da massa de lucro.
Não é ocasião para estudar agora até que ponto o abaixamento da taxa de lucro pode coincidir com a alta dos preços, assim como o ponto já examinado quando do estudo da mais-valia relativa. O capitalista que emprega métodos de produção mais aperfeiçoados, mas ainda não generalizados, vende abaixo do preço de mercado mas acima do seu preço pessoal de produção. Assim, a taxa de lucro aumenta para ele até que a concorrência compense esta vantagem; depois vem um período de equilíbrio durante o qual se produz o segundo fenómeno, o acréscimo do capital investido; consoante o grau desse acréscimo, o capitalista será então capaz de ocupar em novas condições uma parte dos operários que ocupava antes (até talvez a sua totalidade, ou ainda mais) e obter o mesmo lucro ou superior.

(Cap XIV)


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Segunda-feira, 1 de Julho de 2013
Notas sobre a guerra – XXXI

Segundo parece, uma paragem passageira aconteceu na campanha do Loire. Esta acalmia proporciona-nos o vagar de confrontar os comunicados e as datas e de retirar destes materiais contraditórios e confusos uma exposição de acontecimentos reais, tão lúcida quanto possível nas circunstâncias actuais.

O exército do Loire iniciou a sua actividade, na qualidade de formação independente, em 15 de Novembro, data em que d’Aurelles de Paladines, comandava até então os 15º e 16º destacamento, foi promovido a chefe do novo exército. Não sabemos dizer quais as outras tropas que compunham ainda nessa época essa formação: esse exército recebia de facto contínuos reforços, pelo menos até ao fim de Novembro. Nessa altura compunha-se nominalmente pelos seguintes destacamentos: 15º (Pallières), 16º (Chanzy), 17º (Sonis), 18º (Bourbaki), 19º (Barral, segundo dados de origem prussiana) e 20º (Crouzat). Entre estes destacamentos o 19º nunca foi citado nas comunicações, tanto francesas como prussianas; não se poderia portanto supor que ele tivesse tomado parte nos combates. Para além destes destacamentos, havia ainda perto de Mans e no campo vizinho de Conlie o 21º destacamento (Jaurès) e o exército de Bretenha que, depois da demissão de Kératry, tinha sido igualmente confiado a Jaurès. Podemos acrescentar que no norte existe o 22º destacamento sob o comando de general Faidherbe, com Lille como base operacional. Não citamos na nossa enumeração o destacamento de cavalaria do general Michel, unido ao exército do Loire. Este destacamento, se bem que considerado muito numeroso, não pode ser classificado, em consequência da sua formação recente e dos seus elementos rudes, se não na cavalaria voluntária ou de amadores.

Este exército era constituído por elementos muito heterogéneos: desde os velhos soldados chamados novamente para as armas até aos recrutas inexperientes e aos voluntários que têm aversão a toda a disciplina; desde os sólidos batalhões como os Zuavos do papa até aos bandos que de batalhão não têm senão o nome. Se bem que tenha sido introduzida uma certa disciplina, o exército mostrava sempre no seu conjunto a impressão da extrema pressa que presidira à sua formação. «Se este exército tivesse ainda disposto de quatro semanas para a sua preparação, ter-se-ia tornado um adversário formidável», afirmavam os oficiais alemães que o tinham conhecido no campo de batalha. Descontando todos os recrutas inexperientes que não eram se não obstáculos, podemos considerar que os destacamentos de d’Aurelle (sem contar o 19º) contavam aproximadamente de 120 000 a 130 000 homens, dignos do nome de combatentes. As tropas concentradas perto de Mans podiam fornecer ainda 40 000 homens.

Estas forças tinham contra eles o exército do príncipe Frederico Carlos, que incluía as tropas do grão-duque de Mecklembourg; sabemos agora pelo capitão Hozier que provavelmente todas estas forças contavam no total menos de 90 000 homens. Mas graças à sua experiência militar, à sua organização e à direcção experimentada dos comandantes, estes 90 000 homens podiam travar combate com o dobro das tropas de categoria daquelas que se lhes opunham. Desta maneira as possibilidades eram quase iguais e, deste modo, prestava a maior honra ao povo francês que do nada formara em três meses um novo exército.

A campanha começa do lado dos franceses com o ataque contra von der Tann em Coulmiers e pela tomada de Orleães em 9 de Novembro. Em seguida o duque de Mecklembourg dirigiu-se em socorro de von der Tann, e as manobras de d’Aurelle em direcção de Dreux obrigam o duque de Mecklembourg a lançar todas as suas tropas nesta direcção e a marchar sobre Mans. Durante esta marcha as tropas irregulares francesas inquietaram os alemães como nunca o tinham feito no decorrer desta guerra. A população opunha a mais decidida resistência; os franco-atiradores atacavam as alas do inimigo; mas as tropas regulares restringiam-se a demonstrações e não aceitavam o combate. As cartas dos correspondentes alemães que acompanhavam o exército do duque de Macklembourg, o seu furor e a sua indignação contra estes malditos franceses, que aplicam obstinadamente na guerra os processos mais cómodos para eles e os menos cómodos para o adversário, são a melhor prova de que esta curta campanha nas proximidades de Mans foi magnificamente conduzida pelas forças defensivas. Os franceses obrigaram o duque de Mecklembourg a uma verdadeira caça aos patos selvagens, isto é, a perseguir um exército invisível e levaram-no assim até 25 milhas perto de Mans. Depois de ter avançado tanto, não ousou ir mais longe e voltou para o Sul. É provável que o plano inicial consistia evidentemente em infligir um terrível golpe no exército de Mans e em marchar em seguida para o Sul sobre Blois e contornar a ala esquerda do exército do Loire, enquanto que Frederico Carlos, chegado entretanto, tê-lo-ia atacado pela frente e por trás. Mas este plano malogrou-se como muitos outros posteriores. Abandonado o duque de Mecklembourg à sua sorte, d’Aurelle marchou contra Frederico Carlos, e em 24 de Novembro atacou diante de Ladon e Maizières o 10.º destacamento prussiano, e em 28, perto de Beaunela-Rolande, uma grande formação prussiana. É evidente que aqui d’Aurelle utilizou mal as suas tropas. Se bem que fosse a sua primeira tentativa para penetrar através do exército prussiano e abrir pela força caminho para Paris, ele não tinha sob o seu comando senão uma pequena parte das suas forças. Conseguiu apenas inspirara ao inimigo o respeito pelas suas tropas. Retirou-se para as posições fortificadas diante de Orleães e concentrou aí todas as suas tropas dispondo-as pela ordem seguinte, da direita para a esquerda: o 18.º destacamento na extrema-direita, em seguida os 20.º e 15.º, todos a Este do caminho de ferro Paris-Orleães; a Oeste desta linha o 16.º, e na extrema-esquerda o 17.º. se estas tropas tivessem sido concentradas a tempo, teriam podido, sem possibilidade de dúvidas, bater o exército de Frederico Carlos que contava então menos de 50 000 homens. Mas no momento em que d’Aurelle fortificava solidamente as suas posições, o duque de Mecklembourg dirigia-se novamente para o  Sul e unia-se com a ala direita do exército do seu primo que assumiu a partir de então o comando. Os 40 000 soldados do duque de Mecklemboug participavam assim na ofensiva contra d’Aurelle, enquanto que o exército francês do Mans, satisfeito com a glória «de ter repelido» o inimigo ficava tranquilamente nos seus quartéis a cerca de 60 milhas do lugar onde se decidia a sorte da campanha.

Foi recebida em seguida a notícia inteiramente inesperada da saída de Trochu, em 30 de Novembro. Era preciso fazer um novo esforço para o suster. Em 1 de Dezembro d’Aurelle iniciou uma ofensiva  geral contra os prussianos, mas era demasiado tarde. Enquanto que os alemães lhe opunham todas as suas tropas, o seu 18.º destacamento, na extrema-direita, parece ter sido enviado numa falsa direcção e nunca ter tomado parte nas acções militares. Desta maneira d’Aurelle não pôde combater senão com quatro destacamentos. Isto significa que as suas forças reais não tinham provavelmente senão uma muito ligeira superioridade numérica sobre os efectivos inimigos. Foi batido e, parece, julgou-se derrotado antes mesmo de o ser na realidade. É assim que se explica a indecisão de que fez prova logo que, depois de ter dado em 3 de Dezembro à tarde ordem para retirar e atravessar o Loire, anulou-a na manhã seguinte e decidiu defender Orleães. Sabe-se onde isto conduz: ordem, contra-ordem, desordem. Como a ofensiva prussiana estava concentrada junto da sua ala esquerda e do seu centro, é de crer que os dois destacamentos da ala direita, devido às ordens contraditórias que tinham recebido, perderam a linha de retirada para Orleães e atravessaram o rio, o 20.º destacamento em Jargeau e o 18.º ainda mais a Este, em Sully. Uma pequena fracção deste destacamento encontrou-se provavelmente ainda mais afastada para Este, porque foi sinalizada em 7 de Dezembro em Nevoy, próximo de Gien, pelo 3.º destacamento prussiano que a perseguiu em direcção a Briare, sempre sobre a margem direita do rio. Orleães caiu em 4 de Dezembro à tarde nas mãos dos alemães que organizaram imediatamente a perseguição às tropas francesas. Enquanto que o 3.º destacamento alemão devia subir pela margem direita do Loire, o 10.º foi enviado a Vierzon e as tropas do duque de Mecklemboug dirigiam-se sobre a margem direita, para Blois. Antes de alcançar esta cidade, os alemães foram encontrados diante de Beaugency por uma pequena parte do exército do Mans, que finalmente se uniu com as tropas de Chanzy e opôs uma resistência firme e em parte eficaz. Mas esta resistência foi logo despedaçada porque o 9.º destacamento prussiano marchava pela margem esquerda do rio para Blois, onde cortaria a Chanzy a via de retirada para Tours. Este movimento de contorno atingia o seu objectivo. Chanzy escapou ao perigo mas Blois caiu nas mãos do inimigo. O degelo e as fortes chuvadas tinham desfeito as estradas, o que fez parar a perseguição ulterior.

O príncipe Frederico Carlos telegrafou para o quartel-general a informar que o exército do Loire tinha dispersado completamente em várias direcções, que o seu centro se afundara e que tinha deixado de existir como exército. Tudo isto soa bem, mas está muito longe da realidade. Mesmo depois das notícias alemãs, está fora de dúvida que as 77 peças formadas diante de Orleães eram todos canhões da marinha, abandonadas nas trincheiras. É possível que o número de prisioneiros se eleve a 10 000 e, se se juntar os feridos, a 14 000, e que eles estejam na maioria muito desmoralizados. Mas o estado dos bávaros que, em 5 de Dezembro, seguiam a estrada de Artenay para Chartres, inteiramente desorganizados, sem armas nem sacos, não era nada melhor. Durante a perseguição, em 5 de Dezembro e posteriormente, não foi efectuado qualquer saque. Se o exército foi batido não se compreende que uma cavalaria tão numerosa e tão activa como a cavalaria prussiana não tenha capturado um grande número de soldados deste exército. O menos que se pode dizer, é que há uma extraordinária falta de exactidão. O degelo não serve de desculpa: ele começou em 9 de Dezembro, e, por conseguinte, houve para a perseguição activa quatro ou cinco dias durante os quais os caminhos e os campos gelados estavam num estado plenamente favorável. O que fez para a ofensiva prussiana, não foi o degelo mas o facto das suas forças reduzidas de 90 000 para 60 000 homens, em consequência das perdas e da necessidade de deixar tropas para o serviço da guarnição, estarem quase exaustas. Os prussianos tinham quase atingido o limite para além do qual se tornava imprudente perseguir um inimigo mesmo batido. As incursões em grande escala na direcção do Sul são possíveis, mas não é nada provável que se proceda à ocupação de novos territórios. O exército do Loire está agora dividido em dois exércitos, um sob as ordens de Bourbaki e outro sobre as oredens de Chanzy. Estes dois exércitos terão bastante tempo e espaço para se reorganizarem e completarem os seus efectivos com batalhões novamente formados. Depois da sua separação em dois, o exército do Loire deixou de existir como tal; mas é na actual campanha o primeiro exército francês que não fez figura inglória. Ouviremos provavelmente falar dos dois exércitos que lhe sucederam.

Entretanto a Prússia manifesta indícios de exaustão. Chama-se para as armas os milicianos até aos quarenta anos e mais, enquanto que por lei estes homens estão livres do serviço militar logo que completem trinta e dois anos. As reservas instruídas do país estão esgotadas. Anuncia-se que novas recrutas, cujo número aproximado seria de 90 000 homens para a Alemanha do Norte, chegarão em Janeiro a França. Feitas as contas, isto formaria talvez mais ou menos os 150 000 homens de que tanto se fala mas que não se vê ainda; e quando eles chegarem realmente, a sua aparição modificará essencialmente o carácter do exército. O esgotamento das forças, causado pela actual campanha, é enorme e ir-se-á agravando sem parar. Quer-se a prova? O tom melancólico das cartas enviadas pelo exército e as listas das perdas fornecem-no-la. Estas listas revelam que as perdas principais não são sofridas nos grandes combates, mas nas pequenas escaramuças que custam a vida a um, dois, cinco homens. Com o tempo, o mais forte exército, corroído pelas vagas da guerra do povo, desagrega-se  e vai-se dissolvendo, e o que é de uma particular importância, sem nenhuma divisão visível da parte contrária. Enquanto Paris resistir, a situação dos franceses melhorará cada dia e a impaciência com que se espera em Versalhes a rendição de Paris é a melhor prova que esta cidade pode ainda ser perigosa para os seus sitiantes.

Publicado na Pall Mall Gazette, n.º 1824, Sábado, 17 de Dezembro de 1870


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Domingo, 30 de Junho de 2013
As possibilidades de êxito da guerra

A última derrota do exército francês do Loire e a retirada de Ducrot para lá do Marne (supondo que esta retirada tenha tido o carácter decisivo que se lhe atribuía no Sábado) fixam definitivamente o destino da primeira operação combinada empreendida para libertar Paris. Ela falhou completamente e o povo recomeça a perguntar se esta nova série de insucessos não demonstraria a incapacidade dos franceses em prosseguir com êxito a resistência e se não seria melhor cessar imediatamente o jogo, entregar Paris assinar a cedência da Alsácia e da Lorena.

O facto é que se perdeu totalmente qualquer recordação de uma guerra verdadeira. As guerras da Crimeia, da Itália e da Prússia contra a Áustria não eram todas senão guerras inteiramente de acordo com as guerras de governos que assinavam a paz logo que os seus mecanismos militares se avariavam ou se desgastavam. Da verdadeira guerra, daquela em que participa a própria nação, não a temos visto em toda a Europa já há algumas gerações. Vimo-la no Cáucaso, na Argélia, onde a luta durou mais de vinte anos, quase sem interrupção; poderíamos vê-la na Turquia, se a Turquia tivesse recebido dos seus aliados a autorização para se defender à sua maneira com os seus próprios meios. Com efeito os nossos acordos não deixam senão aos bárbaros o direito de autodefesa autêntica; consideramos que os Estados civilizados devem combater de acordo com o cerimonial e que não é próprio de uma verdadeira nação cometer a indelicadeza de continuar a luta após a nação oficial ser obrigada a render-se.

Ora, actualmente, os franceses tornam-se culpados desta indelicadeza. A despeito dos prussianos, que se consideram os melhores conhecedores da etiqueta militar, há três meses que os franceses continuam a lutar de verdade, depois do exército francês ter retirado oficialmente do campo de batalha; eles fizeram mesmo o que o seu exército oficial não teria podido fazer nunca durante esta campanha. Obtiveram um grande e muitos pequenos sucessos; apreenderam ao inimigo canhões, comboios de navios e prisioneiros. É verdade que acabam de sofrer vários reveses graves; mas estes reveses nada são em comparação com a sorte que estava normalmente destinada ao seu exército oficial em cada recontro com o mesmo inimigo. É verdade que a sua primeira tentativa para romper o cerco de Paris por meio de uma ofensiva combinada do interior e do exterior resultou num assinalável desaire. Mas resultará daí necessariamente que não lhes restam mais possibilidades de êxito para uma segunda tentativa?

Os dois exércitos franceses, o de Paris e o do Loire, lutaram bem, segundo o testemunho dos próprios alemães. Foram derrotados, é verdade, por forças numericamente inferiores, mas o que era de esperar por parte de tropas jovens, recentemente organizadas e obrigadas a defrontar veteranos. Segundo o correspondente do Daily News, que aí se encontrava, os seus movimentos tácticos debaixo de fogo eram rápidos e seguros; podia notar-se uma falta de precisão, esta falta foi comum a muitos exércitos franceses vitoriosos. Não há possibilidade de engano: estes exércitos demonstraram que eram verdadeiros exércitos, aos quais os seus inimigos guardavam o devido respeito. Sem dúvida alguma que são formados com os mais heterogéneos elementos. Existem batalhões de linha com um número variável de soldados antigos; existem unidades de valor militar variado, desde o batalhão bem treinado e armado, com bons quadros de oficiais, atá ao batalhão de novos recrutas sem a mais elementar preparação militar e desconhecendo o manejo das armas; existem franco-atiradores de todas as categorias: os bons, os maus e os médios; é provável que a maior parte deles pertençam a esta última categoria. Mas em todo ocaso existe um núcleo de bons batalhões de combate, à volta dos quais os outros se podem agrupar. Eles que participem em combates isolados apenas durante um mês, evitando as derrotas esmagadoras, e tornar-se-ão todos excelentes soldados. Com uma melhor estratégia, poderiam mesmo alcançar êxitos presentemente, e a única estratégia que se impõe de momento é adiar qualquer batalha decisiva, o que, em nossa opinião pode ser atingido.

Mas as tropas concentradas em Mans e próximo de Loire estão longe de representar toda a força armada da França. Existem ainda pelo menos 200 000 a 300 000 homens em vias de organização nos pontos mais afastados da retaguarda. Cada dia que passa, a sua capacidade combativa melhora. Durante um certo tempo pelo menos, por dia deve fornecer para a frente uma quantidade cada vez maior de novos soldados. Atrás deles muitos homens estão prontos a substituí-los nos campos de instrução. Os armamentos e as munições chegam diariamente em grandes quantidades. Graças ás fábricas modernas de canhões e de armas, graças ao telégrafo, aos barcos a vapor, ao domínio no mar, não há que temer a penúria sobre este aspecto. Basta pois um mês para que se produza igualmente uma grande mudança na capacidade combativa destes homens. Se eles pudessem ter dois meses à sua disposição, constituiriam um exército capaz de comprometer seriamente o repouso de Moltke.

Atrás destas forças mais ou menos regulares encontra-se um numeroso Lundstrum, a massa do povo, encurralado pelos Prussianos nesta guerra defensiva que, segundo as palavras do pai de rei Guilherme, sanciona todos os meios. Quando «Fritz» (1) avançava de Metz para Reims, de Reims para Sedan e de lá para Paris, não se falava de levantamento do povo. As derrotas dos exércitos imperiais eram aceites com uma espécie de entorpecimento; vinte anos de regime imperial tinham lançado as massas numa submissão obtusa e passiva à direcção oficial. Aqui e ali encontravam-se camponeses que tinham participado em verdadeiros combates, como o de Bazeilles, mas eram excepções. Ora, logo que os prussianos se instalaram à volta de Paris e submeteram as localidades vizinhas ao sistema ao sistema humilhante das requisições, praticado sem piedade alguma, logo que eles se puseram a fuzilar os franco-atiradores e a incendiar as aldeias onde estes últimos tinham encontrado auxílio, quando enfim recusaram as propostas de paz dos franceses e declararam a sua intenção de empreender uma guerra de conquista, tudo mudou. Por todo o lado à sua volta, eclodiu um guerra de guerrilhas provocada pelas suas próprias brutalidades, e agora basta entrar-lhes num novo distrito para suscitar por todo o lado um levantamento em massa. Leiam nos jornais a reportagem sobre o avanço dos exércitos de Mecklembourg e do príncipe Frederico-Carlos e compreendereis imediatamente a influência extraordinária que exerce sobre os movimentos destes exércitos esta invencível insurreição do povo que ora se apaga ora reaparece, mas que embaraça sempre. Mesmo a cavalaria numerosa, à qual os franceses não têm quase nada com que se opor, é neutralizada em larga escala por esta hostilidade geral, activa e passiva, da população.

Examinemos agora a situação dos prussianos: das divisões, dispostas em redor de Paris, não poderão certamente retirar nenhuma, porque Trochu ficará em condições de repetir todos os dias as suas saídas em massa. Quanto ás divisões de Manteuffeul na Normandia e na Picardia, terão ainda para nais algum tempo de despachar muito trabalho; além disso poderão ser solicitadas algures. As duas divisões e meia de Werder não podem fazer para lá de Dijon senão incursões e isto continuará assim pelo menos enquanto Belford não capitular. Não se pode retirar um único soldado das unidades encarregadas de guardar a comprida e estreita linha de comunicação formada pelo caminho de ferro de Nancy-Paris. O 7º regimento tem bastante que fazer, encarregado que está de fornecer guarnições ás fortalezas da lorena e de continuar o cerco a Longwy e a Montmédy. Para as operações de campo contra a França central e meridional, não restam senão onze divisões de infantaria de Frederico-Carlos e do duque  de Mecklembourg, seguramente não mais de 150 000 homens, incluindo a cavalaria.

Desta maneira os prussianos empregavam cerca de 4 divisões para ocupar a Alsácia e a Lorena, para guardar duas compridas linhas de comunicação até Paris e Dijon e para atacar Paris. E no entanto eles não controlam directamente talvez mesmo um oitavo e, indirectamente, seguramente não mais de um quarto do território francês. Para todo o resto do país não dispõem senão de 15 divisões, das quais 4 se encontram debaixo do comando de Manteuffel. O seu avanço eventual dependerá inteiramente da energia da resistência popular que eles possam encontrar. Mas como todas as suas comunicações passam por Versalhes-não tendo a campanha de Frederico-Carlos aberto a nova linha por Troyes-e como estas comunicações atravessam em pleno centro o país rebelde, as tropas em questão deveram dispersar as suas forças numa larga frente, deixar na retaguarda destacamentos para guardar as estradas e para manter a população submissa. Elas atingirão assim rapidamente o limite em que as suas forças diminuirão ao ponte de serem contrabalançadas pelas forças francesas opositoras e neste caso as possibilidades de êxito são de novo­ favoráveis aos franceses. Ou melhor ainda estes exércitos alemães deverão operar em grandes colunas móveis, percorrendo o país de lés a lés, sem o ocupar definitivamente. Neste caso as tropas regulares francesas poderiam, recuando à sua frente durante algum tempo, encontrar em seguida bastantes ocasiões oportunas para os atacar de flanco e à retaguarda.

Alguns destacamentos móveis, como os que Blucher enviava em 1813 para contornar as alas dos franceses, seriam muito úteis se fossem empregados para destruírem a linha de comunicação dos alemães. Esta linha é vulnerável em quase toda a sua extensão, de Paris a Nancy. Alguns destacamentos, cada um composto por um por dois esquadrões de cavalaria e por um certo número de atiradores especiais, atacam esta linha, destroem a via, os túneis e as pontes, surpreendem os comboios, etc., e poderiam forçar a chamar a cavalaria alemã de frente tal com ela é particularmente perigosa. Os franceses, é verdade, não possuem quase nada do verdadeiro «ímpeto do hussardo».   

Tudo isto, bem entendido, na hipótese de Paris se continuar a aguentar bem. Até ao momento do presente, exceptuando a fome, nada há que possa forçar a capital a render-se. O Daily News inseriu no seu número de ontem o comunicado de um dos seus correspondentes que se encontra em Paris. Ele dissipa, se é verídico, todas as apreensões. Existem ainda na capital 25 000 cavalos fora os que pertencem ao exército de Paris. Se se avaliar o peso médio de cada um 500 kg, isso equivale a 6 250 g de carne por habitante ou seja um pouco mais de 100 g por dia durante dois meses. Juntemos a isto o pão e o vinho ad libitum (2), assim como uma importante quantidade de salgados e de outros víveres, e é claro que Paris pode perfeitamente aguentar-se até ao começo de Fevereiro. Isso daria à França dois meses que tem agora para ela mais importância do que dois anos em tempo de paz. Supondo uma direcção mais ou menos inteligente e enérgica tanto no centro como na província, os franceses poderiam nessa altura libertar Paris e ao mesmo tempo desocupar a França.

Mas se Paris cai? Teremos de examinar esta eventualidade, quando ela se tornar mais provável. De qualquer forma, a França passou sem paris durante mais de dois meses e pode continuar a luta sem ela. Evidentemente que a queda de Paris poderia desmoralizar os franceses e minar o espírito de resistência, mas os revesses dos últimos setes dias poderiam desde já produzir esse efeito. Contudo nenhum destes acontecimentos deve produzir necessariamente tais consequências. Se os franceses fortificarem algumas posições boas de manobras como Nevers, situada na confluência do Loire e do Allier, se construírem fortes avançados em redor de Lyon para a tornar assim tão sólida como Paris, a guerra pode continuar mesmo depois da queda de Paris, mas o momento para se falar disso ainda não chegou.

Por consequência, cometemos a ousadia de declarar que se o espírito de resistência do povo não enfraqueceu, a posição dos franceses mesmo depois das últimas derrotas permanece ainda muito forte. Enquanto a França possuir o domínio no mar para se reabastecer em armas e uma quantidade suficiente de homens para a guerra, e como desenvolveu um trabalho de organização durante tês meses os primeiros e mais difíceis com a perspectiva de ter ainda um mês de espera, senão dois, e tudo isto num momento que os prussianos deixam já transparecer indícios de esgotamento, seria uma traição evidente capitular. E quem é que sabe o que pode acontecer, as complicações que podem surgir na Europa, durante este intervalo de tempo? Custe o que custar, os franceses devem continuar a luta.

Publicado in Pall Mall Gazette, nº 1816, quinta-feira, 8 de Dezembro de 1870.



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Sábado, 29 de Junho de 2013
A situação militar em França

Ontem chamávamos a atenção para o facto de que a seguir à capitulação de Sedan, as perspectivas da França tinham melhorado sensivelmente. A própria que da de Metz que liberta cerca de 150 000 soldados alemães actualmente já não é a fulminante catástrofe que parecia ser a princípio. Se voltamos hoje a abordar esta questão, é para melhor demonstrar através de alguns detalhes de ordem militar a justeza deste ponto de vista.

A deslocação dos exércitos alemães em 24 de Novembro, tanto quanto é possível estabelecê-la, apresentava-se assim:

Investida de Paris: 3.º exército (os 2.º, 5.º, 6.º corpos do exército, o 2.º corpo bávaro, a 21.ª divisão, uma divisão de Wurtemberg e uma divisão da guarda da Landwehr) e 4.º exército (os 4.º e 12.º corpos, mais um corpo da guarda), no total 17 divisões.

Exército de observação cobrindo a investida: ao Norte, primeiro exército (1.º e 8.º corpos); a Oeste e Sudoeste, o exército do duque de Mecklemburgo (17.ª e 22.ª divisões e 1.º corpo bávaro); no Sul o 2.º exército (os 3.º, 9.º e 19.º corpos e uma divisão da Landwehr, uma parte da qual foi cruelmente maltratada por Ricciotti Garibaldi em Châtillon); no total 15 divisões.

Forças com destino especial: no Sueste da França, o 14.º corpo (Werder, composto por duas divisões e meia) e o 15.º corpo; em Metz e em Thionville, 7.º corpo; na linha de comunicação, pelo menos uma divisão e meia da Landwehr; ao todo, 8 divisões pelo menos.

Sobre estas 40 divisões de infantaria, as 17 primeiras estão presentemente diante de Paris. Da imobilidade das 8 últimas divisões pode-se concluir que elas chegam exactamente para a missão que lhes foi confiada. Apenas sobram para as missões militares 15 divisões formando 3 exércitos de observação e não representando com a cavalaria e a artilharia senão uma força global de cerca de 200 000 combatentes no máximo.

Ora, até 9 de novembro, parecia que não existiam obstáculos tão sérios que pudessem impedir esta massa de homens de invadir a maior parte das regiões centrais e mesmo o Sul da França. E se presentemente o exército do Loire nos inspira mais respeito do que, confessamos, anteriormente, isso não é devido apenas ao facto de d’Aurelle se ter mostrado capaz de comandar bem as suas tropas. São sobretudo as medidas enérgicas, tomadas por Moltke contra a marcha antecipada do exército do Loire sobre Paris, que fazem com que este exército apareça sob um aspecto absolutamente diferente. Moltke não só julgou necessário concentrar prestes a agir contra ele, mesmo arriscando-se a levantar de facto o cerco a Paris, uma grande parte das forças mantendo o cerco ao Sul da capital, mas também alterou bruscamente a direcção do movimento dos dois exércitos vindos de Metz, de maneira a aproximá-los mais de Paris e a concentrar todas as tropas alemãs em redor desta cidade. Presentemente soubemos que foram tomadas medidas para cercar de barreiras defensivas o depósito de armamentos. Seja qual for a opinião de algumas pessoas, Moltke vê manifestamente o exército do Loire não como um amontoado de pessoas armadas, mas como um verdadeiro exército sério e temível.

A incerteza que anteriormente reinava em relação ao carácter deste exército era devida em grande parte às comunicações dos correspondentes ingleses presentes em Tours. Não havia manifestamente entre eles nenhum homem de guerra capaz de se aperceber dos traços característicos que distinguem um exército de uma multidão de pessoas armadas. Todos os dias se recebiam as mais contraditórias informações em relação à disciplina, aos progressos da instrução, aos efectivos, ao armamento, ao equipamento, à artilharia, ao transporte, em poucas palavras em relação a todos os dados essenciais susceptíveis de servir de base para se formar uma opinião. Conhecemos todas as enormes dificuldades que foi preciso ultrapassar para formar este novo exército: a falta de oficiais, de armamentos, de cavalos, de material de toda a espécie e sobretudo a falta de tempo. As informações que nos chegavam diziam respeito a maior parte a estas dificuldades e era assim que o exército do Loire era geralmente subestimado pelas pessoas cujas simpatias não ofuscam o julgamento.

Presentemente estes correspondentes são unânimes em elogiar este exército. Eles acham que ele possui melhores oficiais, que está mais bem disciplinado do que aqueles que pereceram em Sedan e em Metz. Sem dúvida, isso é verdade até certo ponto. O moral que anima este exército é manifestamente superior em muito ao que foi constatado nos exércitos bonapartistas. Sente-se a resolução em cumprir o seu dever para com a pátria, em agir de acordo, em se submeter às ordens dadas acerca deste ponto. Em seguida este exército voltou a aprender algumas coisas muito importantes que o exército de Luís Napoleão tinha esquecido por completo: o serviço de guarda, a arte de cobrir os flancos e a retaguarda contra os ataques imprevistos, de operara o reconhecimento do inimigo, de surpreender inesperadamente os seus destacamentos, de obter informações e de fazer prisioneiros. O correspondente do Times junto do duque de Mecklembourg dá provas disto. Presentemente são os prussianos que já não chegam a saber onde se encontra o inimigo e devem agir por cálculo: anteriormente acontecia precisamente o contrário. O exército que aprendeu isto, aprendeu muito. Todavia não devemos esquecer que o exército do Loire, do mesmo modo que os seus irmãos, os exércitos do Norte e do Oeste, deve ainda mostrar a sua bravura numa grande batalha contra um exército igual em número. Mas no fim de contas ele permite ter esperança, e algumas circunstâncias levam a crer que seria menos seriamente afectado por uma grave derrota do que os jovens exércitos colocados neste caso.

É um facto que as ferocidades e as crueldades dos prussianos, em vez de esmagar a resistência do povo, redobraram-na de energia, ao ponto dos próprios prussianos, ao que parece, terem compreendido o seu erro: presentemente já não ouvimos falar de aldeias incendiadas, nem de massacres de camponeses. Mas esta conduta feroz já produziu o seu efeito e a guerrilha toma cada dia uma extensão maior. Quando lemos no Times uma informação sobre o avanço do duque de Mecklembourg em direcção a Le Mans, de onde ressalta que o inimigo não se vê, que nenhum exército regular opõe resistência, que apenas as alas estão expostas aos ataques de cavaleiros e de franco-atiradores, que as informações são deficientes acerca da disposição das tropas francesas e que as tropas prussianas marcham compactas, por meio de grandes destacamentos, recordamo-nos involuntariamente das expedições de Napoleão em Espanha ou das tropas de Bazaine no México. Desde que o espírito da resistência popular desperte, não se vai longe mesmo com exércitos de 200 000 homens quando se trata de ocupar um país inimigo. Eles atingem bem depressa o limite para além do qual os seus destacamentos se tornam mais fracos do que as forças defensivas. É da energia da resistência do povo que depende a rapidez com a qual este limite será atingido. Assim, mesmo um exército batido encontrará rapidamente um seguro refúgio contra a perseguição do inimigo, conquanto a população deste país se levante, o que pode acontecer actualmente em França. E se a população das regiões ocupadas pelo inimigo se levantar ou se apenas as linhas de comunicação do inimigo forem ininterruptamente interceptadas, o limite para além do qual a invasão se torna impotente, então será ainda mais rapidamente atingido. Não nos admiraríamos absolutamente nada, por exemplo, que o duque de Mecklembourg se reconhecesse demasiado avançado, a menos que não receba uma poderosa ajuda do príncipe Frederico Carlos. Actualmente tudo depende, evidentemente, de Paris. Se Paris dispuser ainda de um mês (e as informações acerca do estado das provisões no interior da cidade não excluem de modo nenhum esta possibilidade), a França poderá ainda criar um exército combatente bastante forte para, com a ajuda da resistência popular, fazer levantar o cerco por meio de um ataque vitorioso contra as linhas de comunicação dos prussianos. Aparentemente, o mecanismo da organização do exército funciona bastante bem em França neste momento. Existem mais homens que o necessário; graças aos recursos da indústria contemporânea e à rapidez dos modernos meios de comunicação, os armamentos chegam em quantidades inesperadas; só da América foram recebidas 400 000 espingardas; os materiais de artilharia são fabricados em França com uma rapidez nunca vista até hoje. Encontram-se mesmo oficiais ou formam-se de uma maneira ou de outra. Em suma, o esforço sem precedentes feito pela França a seguir a Sedan para reorganizar a sua defesa nacional, para garantir a vitória não necessita senão de uma coisa – o tempo. Se Pais aguentar ainda, nem que seja um mês, isso contribuirá grandemente para o sucesso. Se, pelo contrário Paris não dispuser de provisões para este período de tempo Trochu poderia tentar penetrara na linha da ofensiva com as forças que se encontrarão apropriadas para esta operação. Ora actualmente seria demasiado ousado afirmar que ele não pudesse triunfar. Em caso de o seu empreendimento ser coroado de sucesso, os alemães necessitariam ainda, para garantir a tranquilidade em Paris, de uma guarnição completa de pelo menos 3 corpos do exército prussiano, se bem que Trochu tivesse libertado um maior número de franceses do que a rendição de Paris alemães. O que os franceses fizeram defendendo Paris, os alemães jamais o poderiam ter feito tomando esta fortaleza e defendendo-a contra sitiantes franceses. Seriam necessários tantos homens para abafar a resistência popular no seio da cidade, quantos para ocupar as muralhas a repelir os ataques do exterior. Por consequência a queda de Paris, pode, mas não deve necessariamente acarretar a derrota da França.

O momento não é nada propício para levantar hipóteses acerca da probabilidade desta ou daquela eventualidade militar. Conhecemos apenas superficialmente um único facto: os efectivos dos exércitos prussianos. Quanto aos efectivos e à capacidade combativa real das tropas francesas não temos a este respeito senão escassas informações. Ainda mais, existem actualmente em acção factores morais que escapam a qualquer cálculo e de que podemos apenas dizer que são todos favoráveis à França e desfavoráveis à Alemanha. Uma coisa parece incontestável: hoje mais do que nunca a seguir à queda de Sedan as forças em luta tendem a equilibrar-se, e um reforço relativamente fraco dos franceses em tropas instruídas poderia assegurar definitivamente este equilíbrio.

Publicado no Pall Mall Gazette, n.º 1806, Sábado, 26 de Novembro de 1870


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Terça-feira, 23 de Fevereiro de 2010
Do socialismo utópico ao socialismo científico - I O socialismo utópico

O socialismo moderno é, em primeiro lugar e pelo seu conteúdo, o fruto do reflexo na inteligência, por um lado, dos antagonismos de classe imperantes na sociedade moderna entre possuidores e desapossados, capitalistas e operários assalariados, e, por outro, da anarquia que reina na produção. Na teoria, porém, o socialismo começa por se apresentar inicialmente como uma continuação, mais desenvolvida e mais consequente, dos princípios proclamados pelos grandes pensadores franceses do século XVIII. Como qualquer nova teoria, embora com raiz nos factos materiais económicos, teve de ligar-se, ao nascer, às ideias básicas pré-existentes.  

Os grandes homens que em França iluminaram os cérebros para a Revolução que se havia de desencadear, adoptaram uma atitude resolutamente revolucionária. Não reconheciam autoridade exterior de nenhuma espécie. A religião, a concepção da natureza, a sociedade, a organização do Estado, tudo eles submeteram à crítica mais impiedosa; tudo quanto existia devia justificar a sua existência ante o foro da razão ou renunciar a existir. A tudo se aplicava, como única medida, a razão pensante. Era a época em que, segundo Hegel, "o mundo girava sobre a cabeça" [1], primeiro no sentido em que o cérebro humano e os princípios estabelecidos pelo seu pensamento pretendiam servir de base a toda a acção e associação humanas e, mais tarde, no sentido mais lato de que a realidade em contradição com esses princípios era de facto invertida de cima a baixo. Todas as formas anteriores de sociedade e de Estado, todas as velhas ideias tradicionais foram atiradas ao lixo como irracionais; até então o mundo deixara-se governar por preconceitos; todo o passado não merecia senão comiseração e desprezo. Só agora despontava a aurora, o reino da razão; daqui por diante a superstição, a injustiça, o privilégio e a opressão seriam substituídos pela verdade eterna, pela eterna justiça, pela igualdade baseada na natureza e nos direitos inalienáveis do homem.
Sabemos hoje que esse império da razão não era mais que um império idealizado pela burguesia; que a justiça eterna tomou corpo na justiça burguesa; que a igualdade se reduziu à igualdade burguesa em face da lei; que se proclamou como um dos direitos mais fundamentais do homem... a propriedade burguesa; e que o Estado da razão, o "Contrato Social" de Rousseau, veio ao mundo, e somente podia vir, sob a forma da República democrática burguesa. Os grandes pensadores do século XVIII, como todos os seus predecessores, não podiam romper  as  fronteiras que a sua própria época lhes impunha.
Porém, ao lado do antagonismo entre a nobreza feudal e a burguesia que se erigia em representante de todo o resto da sociedade, mantinha-se de pé o antagonismo universal entre exploradores e explorados, entre ricos ociosos e pobres que trabalhavam. E foi exactamente esse facto que permitiu aos representantes da burguesia arvorarem-se em representantes, não de uma dada classe, mas de toda a humanidade sofredora. Mais ainda: desde o momento em que nasceu, a burguesia trazia nas suas entranhas a sua própria antítese, pois os capitalistas não podem existir sem os operários assalariados, e na mesma medida em que os mestres de ofícios das corporações medievais se convertiam em burgueses modernos, os oficiais e os jornaleiros não agremiados transformavam-se em proletários. E se, em termos gerais, a burguesia podia arrogar-se o direito de representar, nas suas lutas com a nobreza, além dos seus interesses, os das diferentes classes trabalhadoras da época, ao lado de todo o movimento burguês eclodiam movimentos independentes da classe que era a precursora mais ou menos desenvolvida do proletariado moderno. Tal foi, na época da Reforma e das guerras camponesas na Alemanha, a tendência dos anabaptistas e de Thomas Münzer; na grande Revolução Inglesa, a dos levellers [2], e na Revolução Francesa, a de Babeuf. Estas sublevações revolucionárias de uma classe ainda incipiente são acompanhadas, por sua vez, pelas correspondentes manifestações teóricas: nos séculos XVI e XVII [3] aparecem as descrições utópicas de uma sociedade ideal; no século XVIII, teorias já abertamente comunistas, como as de Morelly e Mabley. A reivindicação da igualdade não se limitava já aos direitos políticos, mas tornava-se extensiva às condições sociais de vida de cada indivíduo; já não se pretendia abolir privilégios de classe, mas destruir as próprias diferenças entre classes. Um comunismo ascético, ao modo espartano, que renunciava a todos os gozos da vida, tal foi a primeira forma de manifestação da nova teoria. Mais tarde vieram os três grandes socialistas utópicos: Saint-Simon, no qual a tendência burguesa continua ainda a afirmar-se, até certo ponto, ao lado da orientação proletária; Fourier e Owen, este último, num país onde a produção capitalista estava mais desenvolvida e sob a influência das contradições geradas por ela, expondo de forma sistemática uma série de medidas, em relação directa com o materialismo francês, orientadas no sentido de abolir as diferenças entre classes.
Traço comum aos três é o facto de não se considerarem como representantes dos interesses do proletariado que, entretanto, surgira produzido pela história. Da mesma maneira que os enciclopedistas - que não se propunham emancipar uma classe determinada, mas, de chofre, toda a humanidade -, eles pretendem instaurar o reino da razão e da justiça eterna. Mas entre o seu reino e o dos enciclopedistas medeia um abismo. Na sua opinião, o mundo burguês, organizado segundo os princípios dos enciclopedistas, era irracional e injusto e, por conseguinte, devia ser condenado tanto quanto o tinham sido o regime feudal e todas as formas de sociedade precedentes. Se até agora a razão e a justiça verdadeiras não tinham governado o mundo era simplesmente porque ninguém havia penetrado devidamente nelas. Faltava o homem genial, que agora se ergue ante a humanidade com a verdade, por fim, descoberta. O facto de esse homem aparecer só agora, e não antes, o facto de que a verdade tenha sido por fim descoberta, e não antes, não é, segundo eles, um acontecimento inevitável, imposto pela evolução do desenvolvimento histórico, e sim porque o simples acaso assim o determinou. Poderia ter surgido quinhentos anos antes, poupando assim à humanidade cinco séculos de erros, lutas e sofrimentos.
Vimos como os filósofos franceses do século XVIII, que abriram o caminho à Revolução, apelavam à razão como único juiz de tudo o que existia. Devia-se instaurar um Estado racional, uma sociedade ajustada à razão, e tudo quanto era contrário à razão eterna deveria ser abolido sem nenhuma piedade. Vimos também que essa razão eterna, na realidade, não era mais que o senso comum do homem idealizado da classe média que, precisamente então, se convertia em burguês. Por isso, quando a Revolução Francesa empreendeu a construção dessa sociedade e desse Estado da razão, as novas instituições, por mais racionais que fossem em comparação com as antigas, não podiam, contudo, considerar-se como absolutamente racionais. O Estado da razão falira completamente. O "Contrato Social" de Rousseau tomara corpo na época do Terror, e a burguesia, perdida a fé na sua própria habilidade política, refugiou-se, primeiro na corrupção do Directório e, por último, debaixo da protecção do despotismo napoleónico. A prometida paz eterna convertera-se numa interminável guerra de conquistas. A sociedade da razão também não teve melhor sorte. O antagonismo entre pobres e ricos, longe de dissolver-se no bem-estar geral, agravara-se com a abolição dos privilégios das corporações e de outros que o atenuavam, e da actividade dos estabelecimentos eclesiásticos de beneficência, que o adocicavam. A "libertação da propriedade" dos entraves feudais, que agora se convertia em realidade, vinha a ser para o pequeno-burguês e para o pequeno camponês a liberdade de vender, a esses mesmos poderosos senhores, a sua pequena propriedade, esmagada pela concorrência do grande capital e da grande propriedade latifundiária, com o que se transformava na "libertação" do pequeno burguês e do pequeno camponês de toda a propriedade. O ascenso da indústria sobre bases capitalistas converteu a pobreza e a miséria das massas trabalhadoras em condição de existência da sociedade. O pagamento à vista transformava-se, cada vez mais, segundo a expressão de Carlyle, no único elo de união social. A estatística criminal crescia de ano para ano. Os vícios feudais que outrora eram exibidos impudicamente à luz do dia não desapareceram, mas foram relegados, por um momento, para o fundo do cenário; em troca, floresceram exuberantemente os vícios burgueses, até então superficialmente ocultos. O comércio foi degenerando, cada vez mais, em trapaça. A "Fraternidade" do lema revolucionário tomou corpo nas deslealdades e na inveja da concorrência; a opressão violenta cedeu lugar à corrupção; e a espada, como principal alavanca do poder social, foi substituída pelo dinheiro. O direito de pernada [4] passou do senhor feudal ao fabricante burguês. A prostituição desenvolveu-se em proporções até então desconhecidas. O próprio matrimónio continuou sendo o que já era: a forma reconhecida pela lei, o manto com que se cobria a prostituição, completado ademais com uma abundância de adultérios. Numa palavra, comparadas com as brilhantes promessas dos pensadores do século XVIII, as instituições sociais e políticas instauradas pelo "triunfo da razão" redundaram em tristes e decepcionantes caricaturas. Só faltavam os homens que pusessem em relevo essa decepção, e esses homens surgiram nos primeiros anos do século XIX. Em 1802, vieram à luz as Cartas de Genebra de Saint-Simon; em 1808, Fourier publicou a sua primeira obra, embora as bases de sua teoria datassem já de 1799; e a 1 de Janeiro de 1800, Robert Owen assumiu a direcção da empresa New Lanark.
No entanto, naquela época, o modo capitalista de produção, e com ele o antagonismo entre a burguesia e o proletariado, encontrava-se ainda muito pouco desenvolvido. A grande indústria, que acabava de nascer em Inglaterra, era ainda desconhecida em França. E só a grande indústria desenvolve os conflitos que transformam numa necessidade imperiosa a subversão do modo de produção e a eliminação do seu carácter capitalista - conflitos que eclodem não só entre as classes engendradas por essa grande indústria, mas também entre as forças produtivas e as formas de distribuição por ela criadas. Por outro lado, só ela fornece também, com o gigantesco desenvolvimento das forças produtivas, os meios para solucionar esses conflitos. Nas vésperas do século XIX, os conflitos que brotavam da nova ordem social mal começavam a desenvolver-se, e menos ainda, naturalmente, os meios que levavam à sua solução. Se as massas desapossadas de Paris conseguiram dominar por um momento o poder durante o regime do Terror, e assim levar ao triunfo a revolução burguesa, inclusive contra a própria burguesia, foi só para demonstrar até que ponto era impossível manter por muito tempo esse poder nas condições da época. O proletariado, que apenas começava a destacar-se no seio das massas dos que nada possuíam, como tronco de uma nova classe, ainda totalmente incapaz de desenvolver uma acção política própria, não representava mais que um estrato social oprimido e sofredor que, na incapacidade de se valer a si mesmo, no melhor dos casos, podia receber ajuda externa, vinda de cima.
Esta situação histórica informou também as doutrinas dos fundadores do socialismo. As suas teorias incipientes não fazem mais do que reflectir o estado incipiente da produção capitalista, a incipiente condição de classe do proletariado. Pretendia-se tirar da cabeça a solução dos problemas sociais, latentes ainda nas condições económicas pouco desenvolvidas da época. A sociedade não encerrava senão males, que a razão pensante era chamada a remediar.
Tratava-se, por isso, de descobrir um sistema novo e mais perfeito da ordem social, para implantá-lo na sociedade vindo de fora, por meio da propaganda e, sendo possível, com o exemplo mediante experiências-modelo. Esses novos sistemas sociais estavam condenados a mover-se no reino da utopia; quanto mais detalhados e minuciosos, mais degeneravam em puras fantasias.
Dado isto, não nos deteremos mais neste aspecto, já definitivamente incorporado ao passado. Deixemos às mentes mesquinhas, como a de Dühring, o cuidado de resolverem solenemente essas fantasias, hoje divertidas, para fazerem valer a superioridade do seu raciocínio sobre o fundo desse "cúmulo de disparates". Quanto a nós, admiramos os germes geniais das ideias e as ideias geniais que brotam por toda parte sob esse invólucro de fantasia que os filisteus são incapazes de ver.
Saint-Simon era filho da grande Revolução Francesa, que estalou quando ele não tinha ainda trinta anos. A Revolução foi o triunfo do Terceiro Estado, isto é, da grande massa activa da nação, a cargo da qual corriam a produção e o comércio, sobre os estratos até então ociosos e privilegiados da sociedade: a nobreza e o clero. Mas logo se viu que o triunfo do Terceiro Estado não era mais que o triunfo de uma parte muito pequena dele, a conquista do poder político pelo sector socialmente privilegiado dessa classe: a burguesia possuidora. Esta burguesia desenvolvia-se rapidamente, aproveitando o próprio processo da revolução, especulando com as terras confiscadas à aristocracia e à Igreja, vendendo-as logo em seguida, e lesando a nação por meio das verbas destinadas ao exército. Foi precisamente o governo destes escroques que, sob o Directório, levou a França e a Revolução à beira da ruína, dando com isso a Napoleão o pretexto para o golpe de Estado. Por isso, na ideia de Saint-Simon, o antagonismo entre o Terceiro Estado e os estratos privilegiados da sociedade tomou a forma de um antagonismo entre "trabalhadores" e "ociosos". Os "ociosos" eram não só os antigos privilegiados, mas também todos aqueles que viviam de rendimentos, sem intervir na produção nem no comércio. Os "trabalhadores" não eram somente os operários assalariados, mas também os fabricantes, os comerciantes e os banqueiros. Que os ociosos haviam perdido a capacidade para dirigir intelectual e politicamente era um facto indisfarçável, selado em definitivo pela Revolução. Para Saint-Simon, as experiências da época do Terror haviam demonstrado, por sua vez, que os não possuidores tão pouco tinham essa capacidade. Então, quem haveria de dirigir e governar? Segundo Saint-Simon, a ciência e a indústria, unidas por um novo laço religioso, um "novo cristianismo", forçosamente místico e hierarquizado, chamado a restaurar a unidade das ideias religiosas destruída pela Reforma. Mas a ciência era os sábios académicos; e a indústria era, em primeiro lugar, os burgueses activos, os fabricantes, os comerciantes e os banqueiros. E embora esses burgueses tivessem de transformar-se numa espécie de funcionários públicos, de homens da confiança de toda a sociedade, sempre conservariam frente aos operários uma posição de comando e economicamente privilegiada. Os banqueiros seriam chamados em primeiro lugar para regular toda a produção social por meio de uma regulamentação do crédito. Esta concepção correspondia perfeitamente a uma época em que a grande indústria, e com ela o antagonismo entre a burguesia e o proletariado, mal começava a despontar em França. Mas Saint-Simon insiste muito especialmente neste ponto: o que o preocupa, sempre e em primeiro lugar, é a sorte da "classe mais numerosa e mais pobre" da sociedade ("la classe la plus nombreuse et plus paurre").
Nas suas Cartas de Genebra, já Saint-Simon formulava a tese de que "todos os homens devem trabalhar"[5]. Na mesma obra já se expressava a ideia de que o reinado do Terror era o governo das massas não possuidoras. "Vede - grita-lhes - o que se passou na França quando os vossos camaradas subiram ao poder: provocaram a fome". Mas conceber a Revolução Francesa como uma luta de classes, e não só entre a nobreza e a burguesia, mas entre a nobreza, a burguesia e os não possuidores, era, em 1802, uma descoberta verdadeiramente genial.
Em 1816, Saint-Simon declara que a política é a ciência da produção e prediz já a total absorção da política pela economia. E se aqui não faz senão aparecer em germe a ideia de que a situação económica é a base das instituições políticas, proclama já claramente a transformação do governo político sobre os homens numa administração das coisas e na direcção dos processos da produção, que não é senão a ideia da "abolição do Estado", que tanto alarde levanta ultimamente. E, elevando-se ao mesmo plano de superioridade sobre os seus contemporâneos, declara, em 1814, imediatamente, depois da entrada das tropas coligadas em Paris, e reitera em 1815, durante a Guerra dos Cem Dias, que a aliança da França com a Inglaterra e, em segundo lugar, a destes países com a Alemanha é a única garantia do desenvolvimento próspero e da paz na Europa. Para aconselhar aos franceses de 1815 uma aliança com os vencedores de Waterloo era necessário possuir tanto valentia quanto capacidade para ver longe na história.
 O que em Saint-Simon é amplitude de visão genial, que lhe permite conter já, em germe, quase toldas as ideias não estritamente económicas dos socialistas posteriores, em Fourier é a crítica engenhosa autenticamente francesa, mas nem por isso menos profunda, das condições sociais existentes. Fourier pega a burguesia pela palavra dos inflamados profetas do antes e interesseiros aduladores do depois da revolução. Põe a nu, impiedosamente, a miséria material e moral do mundo burguês, e compara-a com as fascinantes promessas dos velhos enciclopedistas, com a imagem que eles faziam da sociedade em que a razão reinaria sozinha, de uma civilização que faria felizes todos os homens e de uma ilimitada capacidade humana de perfeição. Desmascara as brilhantes frases dos ideólogos burgueses da época, demonstra como a essas frases grandiloquentes corresponde, por toda parte, a mais cruel das realidades e derrama a sua sátira mordaz sobre esse ruidoso fracasso da fraseologia. Fourier não é apenas um crítico; o seu espírito sempre jovial faz dele um satírico, um dos maiores satíricos de todos os tempos. A especulação criminosa desencadeada com o refluxo da onda revolucionária e o espírito mesquinho do comércio francês naqueles anos aparecem pintados nas suas obras com traços magistrais e encantadores. Mas mais magistral ainda é a crítica que ele faz das relações entre os sexos e da posição da mulher na sociedade burguesa. É ele o primeiro a proclamar que o grau de emancipação da mulher numa sociedade é o barómetro natural pelo qual se mede a emancipação geral. Contudo, onde Fourier mais sobressai é na forma como concebe a história da sociedade. Fourier divide toda a história anterior em quatro fases ou etapas de desenvolvimento: selvagismo, barbárie, patriarcado e civilização. Esta última fase coincide com o que hoje chamamos sociedade burguesa, isto é, com o regime social implantado desde o século XVI; e demonstra que a "ordem civilizada eleva a uma forma complexa, ambígua, equívoca e hipócrita todos aqueles vícios que a barbárie praticava no meio da maior simplicidade". Para ele a civilização move-se num "círculo vicioso", num ciclo de contradições, que reproduz constantemente sem poder superá-las, conseguindo sempre precisamente o contrário do que deseja ou alega querer conseguir. E assim nos encontramos, por exemplo, com o facto de que "na civilização, a pobreza brota da própria abundância". Fourier, como se vê, usa a dialéctica com a mesma maestria do seu contemporâneo Hegel. Contrariamente à fraseologia corrente sobre a ilimitada capacidade humana de perfeição, ele põe em relevo, com igual dialéctica, que toda a fase histórica tem uma vertente ascendente e outra descendente, e projecta essa concepção sobre o futuro de toda a humanidade. E assim como Kant introduziu na ciência da natureza o desaparecimento futuro da Terra, Fourier introduz no estudo da história a ideia do futuro desaparecimento da humanidade.
Enquanto o vendaval da revolução varria o solo da França, desenvolvia-se na Inglaterra um processo revolucionário mais tranquilo, mas nem por isso menos poderoso. O vapor e as máquinas-ferramenta convertiam a manufactura na grande indústria moderna, revolucionando com isso todas as bases da sociedade burguesa. O vagar do ritmo de desenvolvimento no período da manufactura convertia-se à fulgurância do ritmo da produção. A uma velocidade cada vez mais acelerada, ia-se dando a divisão da sociedade em grandes capitalistas e proletários que nada possuíam e, entre estas duas classes, surgia, no lugar da antiga classe média tranquila e estável, uma massa instável de artesãos e pequenos comerciantes, a parte mais flutuante da população, que levava agora uma existência sem nenhuma segurança. O novo modo de produção apenas começava a galgar a sua fase ascensional; era ainda o modo de produção normal, regular, o único possível naquelas circunstâncias. E, no entanto, já dava origem a toda uma série de graves calamidades sociais: amontoamento, nos bairros mais sórdidos das grandes cidades, de uma população arrancada à sua terra; dissolução de todos os laços tradicionais dos costumes, da submissão patriarcal e da família; prolongamento abusivo do trabalho, que sobretudo entre as mulheres e as crianças assumia proporções aterradoras; desmoralização em massa da classe trabalhadora, lançada de súbito em condições de vida totalmente novas - do campo para a cidade, da agricultura para a indústria, de uma situação estável para outra constantemente variável e insegura. É nestas circunstâncias, que se ergue como reformador um fabricante de 29 anos, um homem cuja pureza quase infantil tocava as raias do sublime e que era, simultaneamente, um condutor de homens como poucos. Roberto Owen assimilara os ensinamentos dos filósofos materialistas do século XVIII, segundo os quais o carácter do homem é, por um lado, produto da sua organização inata e, por outro, fruto das circunstâncias que o envolvem durante a vida, sobretudo durante o período do seu desenvolvimento. A maioria dos homens da sua classe não via na revolução industrial senão caos e confusão e uma ocasião propícia para pescar no rio revolto e enriquecer depressa. Owen, porém, viu nela o terreno adequado para pôr em prática a sua tese favorita, introduzindo ordem no caos. Já em Manchester, dirigindo uma fábrica de mais de 500 operários, tentara, não sem êxito, aplicar na prática a sua teoria. De 1800 a 1829 orientou no mesmo sentido, embora com maior liberdade de iniciativa e com um êxito que lhe valeu fama na Europa, a grande fábrica de fios de algodão de New Lanark, na Escócia, da qual era sócio e gerente. Uma população operária que foi crescendo paulatinamente até 2500 almas, recrutada no princípio entre os elementos mais heterogéneos, a maioria dos quais muito desmoralizada, converteu-se nas suas mãos em colónia-modelo, na qual não se conheciam a embriaguez, a polícia, os juízes de paz, os processos, os asilos para pobres nem a beneficência pública. Para isso bastou dar aos seus operários condições mais humanas de vida, consagrando um cuidado especial à educação da prole. Owen foi o criador dos jardins-de-infância, que funcionaram pela primeira vez em New Lanark. As crianças eram enviadas à escola desde os dois anos, e sentiam-se ali tão bem que só com dificuldade eram levadas para casa. Enquanto nas fábricas dos seus concorrentes os operários trabalhavam treze e catorze horas diárias, em New Lanark a jornada de trabalho era de dez horas e meia. Quando uma crise algodoeira obrigou ao encerramento da fábrica por quatro meses, os operários de New Lanark, que ficaram sem trabalho, continuaram a receber as suas diárias na íntegra. E contudo a empresa elevara para o dobro o seu valor, tendo rendido aos seus proprietários, até ao último dia, enormes lucros.  
Owen, entretanto, não estava satisfeito com o que conseguira. A existência que se propusera dar aos seus operários distava ainda muito de ser, a seus olhos, digna de um ser humano. "Aqueles homens eram meus escravos". As circunstânc ias relativamente favoráveis em que os colocara estavam ainda muito longe de permit ir- lhes desenvolver racionalmente e em todos os aspectos o carácter e a inteligência, e muito menos desenvolver livremente as suas energias. "E, contudo, a parte produtora daquela população de 2.500 almas dava à sociedade uma soma de riqueza real que, apenas meio século antes, teria exigido o trabalho de 600.000 homens juntos. Eu perguntava a mim próprio: onde vai parar a diferença entre a riqueza consumida por essas 2.500 pessoas e a que precisaria ser consumida pelas 600 000?" A resposta era clara: essa diferença era investida em abonar os proprietários da empresa com 5 por cento de juros sobre o capital de instalação, aos quais vinham somar-se mais de 300 000 libras esterlinas de lucros. E o caso de New Lanark era, só que em proporções maiores, o de todas as fábricas da Inglaterra. "Sem essa nova fonte de riqueza criada pelas máquinas, teria sido impossível levar adiante as guerras travadas para derrubar Napoleão e manter de pé os princípios da sociedade aristocrática. E, no entanto, esse novo poder era obra da classe operária."[6] A ela deviam pertencer também, portanto, os seus frutos. As novas e gigantescas forças produtivas, que até ali só haviam servido para que alguns enriquecessem e as massas fossem escravizadas, lançavam, segundo Owen, as bases para uma reconstrução social e estavam destinadas a trabalhar somente para o bem-estar colectivo, enquanto propriedade colectiva de todos os membros da sociedade.
Foi por este caminho puramente prático - resultante dos cálculos de um homem de negócios - que surgiu o comunismo oweniano, conservando sempre esse carácter prático. Assim, em 1823, Owen propõe um sistema de colónias comunistas para combater a miséria reinante na Irlanda e apresenta, em apoio da sua proposta, um orçamento completo de despesas de instalação, gastos anuais e rendas prováveis. Deste modo, também nos seus planos definitivos da sociedade do futuro, os detalhes técnicos são calculados com um domínio tal da matéria, incluindo projectos, desenhos de frente e de perfil, que uma vez aceite o método oweniano de reforma da sociedade, pouco se poderia objectar, mesmo um técnico experimentado, contra os pormenores da sua organização.
O avanço para o comunismo constitui um momento crucial na vida de Owen. Enquanto se limitara a actuar só como filantropo, não colhera senão riquezas, aplausos, honra e fama. Era o homem mais popular da Europa. Não só os homens da sua classe e posição social, mas também os governantes e os príncipes o escutavam e aprovavam. Porém, no momento em que formulou as suas teorias comunistas, virou-se a página. Eram precisamente três os grandes obstáculos que, segundo ele, se erguiam no seu caminho de reforma social: a propriedade privada, a religião e a forma actual do casamento. E não ignorava ao que se expunha atacando-os: à execração de toda a sociedade oficial e à perda da sua posição social. Mas isso não deteve os seus ataques implacáveis contra aquelas instituições, e ocorreu o que ele previa. Desterrado pela sociedade oficial, ignorado completamente pela imprensa, arruinado pelas suas fracassadas experiências comunistas na América, às quais sacrificou toda a sua fortuna, dirigiu-se à classe operária, no seio da qual actuou ainda durante trinta anos. Todos os movimentos sociais, todos os progressos reais registados na Inglaterra em interesse da classe trabalhadora, estão ligados ao nome de Owen. Assim, em 1819, depois de cinco anos de grandes esforços, conseguiu que fosse votada a primeira lei limitando o trabalho da mulher e da criança nas fábricas. Foi ele quem presidiu ao primeiro congresso em que as trade-unions de toda a Inglaterra se fundiram numa grande organização sindical única. Foi também ele quem criou, como medidas de transição, para que a sociedade pudesse organizar-se de maneira integralmente comunista, de um lado, as cooperativas de consumo e de produção - que serviram, pelo menos, para demonstrar na prática que o comerciante e o fabricante não são indispensáveis -, e de outro lado, os mercados operários, estabelecimentos de troca dos produtos do trabalho por meio de créditos de trabalho e cuja unidade era a hora de trabalho de produção; estes estabelecimentos tinham necessariamente que fracassar, mas anteciparam-se em muito aos bancos proudhonianos de troca, diferenciando-se deles por não pretenderem ser a panaceia universal para todos os males sociais, mas pura e simplesmente um primeiro passo para uma transformação muito mais radical da sociedade.

As concepções dos utópicos dominaram durante muito tempo as ideias socialistas do século XIX, e em parte ainda as dominam hoje. Rendiam-lhes homenagem, até há muito pouco tempo, todos os socialistas franceses e Ingleses e a eles se deve também o incipiente comunismo alemão, incluindo o de Weitling. Para todos eles, o socialismo é a expressão da verdade absoluta, da razão e da justiça, e basta revelá-lo para, graças à sua virtude, ele conquistar o mundo. E, como a verdade absoluta não está sujeita a condições de espaço e de tempo nem ao desenvolvimento histórico da humanidade, só o acaso pode decidir quando e onde essa descoberta se revelará. Acrescente-se a isso que a verdade absoluta, a razão e a justiça variam com os fundadores de cada escola; e como o carácter específico da verdade absoluta, da razão e da justiça está condicionado, por sua vez, em cada um deles, pela inteligência pessoal, condições de vida, estado de cultura e disciplina mental, resulta que, nesse conflito de verdades absolutas, a única solução é que elas se vão acomodando umas às outras. Assim, era inevitável que surgisse uma espécie de socialismo eclético e medíocre, como o que, com efeito, continua imperando ainda nas cabeças da maior parte dos operários socialistas da França e da Inglaterra: uma mistura extraordinariamente variada e cheia de matizes, composta de desabafos críticos, princípios económicos e das imagens sociais do futuro menos discutíveis dos diversos fundadores de seitas, mistura tanto mais fácil de compor quanto mais os ingredientes individuais iam perdendo, na torrente da discussão, os seus contornos subtis e agudos, como as pedras limadas pela corrente de um rio. Para converter o socialismo em ciência era necessário, antes de tudo, situá-lo no terreno da realidade.

 (a seguir)  


[1] Referência à seguinte passagem de Hegel sobre a Revolução Francesa: "A Ideia, o conceito de direito, fez-se valer de chofre, sem que a velha armação da Injustiça lhe pudesse opor qualquer resistência. Sobre a ideia do direito baseou-se agora, portanto, uma Constituição, e é sobre esse fundamento que se deve basear tudo no futuro. Desde que o Sol ilumina o firmamento e os planetas giram em torno daquele, ninguém havia percebido que o homem se ergue sobre a cabeça, isto é, sobre a ideia, construindo de acordo com ela a realidade. Anaxágoras foi o primeiro a dizer que ónus, a razão, governa o mundo: mas só agora o homem acabou de compreender que o pensamento deve governar a realidade espiritual. Era, pois, uma esplêndida aurora. Todos os seres pensantes celebraram a nova época. Uma sublime emoção reinava naquela época, um entusiasmo do espírito abalava o mundo, como se, pela primeira vez, se conseguisse a reconciliação do mundo com a divindade". Hegel Philosophie der Geschichte. 1840, pág. 535) [Hegel, Filosofia da História, 1840 pág. 535]. Não terá chegado o momento de aplicar a essas doutrinas subversivas e atentatórias da sociedade, do finado professor Hegel, a lei contra os socialistas? (Nota de Engels)
[2] Levellers (niveladores): nome que se dava aos elementos plebeus da cidade e do campo que durante a revolução de 1648 apresentavam na Inglaterra as reivindicações democráticas mais radicais. 
[3] Engels refere-se aqui às obras dos representantes do comunismo utópico Tomas Morus (século XVI) e Campanella (Século XVII).
[4] "Direito de pernada": direito que tinha o senhor feudal à primeira noite com as nubentes do seu feudo.   
[5] Cartas de um habitante de Genebra aos seus contemporâneos - Paris, 1802.
[6] De The Revolution In Mind and Practice [A Revolução no Espírito e na Prática, um memorial dirigido a todos os republicanos vermelhos, comunistas e socialistas da Europa", e enviado ao governo provisório francês de 1848, mas também "à rainha Vitória e seus conselheiros responsáveis". (Nota de Engels)

 



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Do socialismo utópico ao socialismo científico - II A dialéctica

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Entretanto, junto à filosofia francesa do século XVIII, e por trás dela, surgira a moderna filosofia alemã, cujo ponto culminante foi Hegel. O seu principal mérito foi restaurar a dialéctica como forma suprema de pensamento. Os antigos filósofos gregos eram todos dialécticos inatos, espontâneos, e a cabeça mais universal de todos eles - Aristóteles - chegara já a estudar as formas mais substanciais do pensamento dialéctico. Em troca, a nova filosofia, embora tendo um ou outro brilhante defensor da dialéctica (como por exemplo, Descartes e Spinoza) caía cada vez mais, sob a influência principalmente dos ingleses, na chamada maneira metafísica de pensar, que também dominou quase totalmente entre os franceses do século XVIII, ao menos nas suas obras especificamente filosóficas. Fora do campo estritamente filosófico, eles criaram também obras-primas de dialéctica; bastará citar O Sobrinho de Rameau, de Diderot, e o estudo de Rousseau sobre a origem da desigualdade entre os homens. Resumiremos aqui, sucintamente, os traços essenciais de ambos os métodos discursivos.       

Quando nos detemos a pensar sobre a natureza, sobre a história humana, ou sobre a nossa própria actividade espiritual, deparamo-nos, em primeiro plano, com a imagem de uma trama infinita de interligações e influências recíprocas, em que nada permanece o que era, nem como nem onde era, mas tudo se move e se transforma, nasce e morre. Vemos, pois, antes de tudo, a imagem de conjunto, na qual os detalhes passam ainda mais ou menos para o segundo plano; fixamo-nos mais no movimento, nas transições, no encadeamento, do que no que se move, se transforma e se encadeia. Essa concepção do mundo, primitiva, ingénua, mas essencialmente exacta, é a dos filósofos gregos antigos, e aparece claramente expressa pela primeira vez em Heraclito: tudo é e não é, pois tudo flui, tudo se acha sujeito a um processo constante de transformação, de incessante nascimento e morte. Mas essa concepção, por mais exactamente que reflicta o carácter geral do quadro que nos é oferecido pelos fenómenos, não basta para explicar os elementos isolados que formam esse quadro total; sem conhecê-los, a imagem geral não adquirirá um sentido claro. Para penetrar nesses detalhes temos que arrancá-los do seu tronco histórico ou natural e investigá-los separadamente, cada um por si, no seu carácter, causas e efeitos especiais, etc. Tal é a missão primordial das ciências naturais e da história, ramos de investigação que os gregos clássicos situavam, por motivos muito justificados, num plano puramente secundário, pois primariamente era preciso acumular os materiais científicos necessários. Enquanto não se reúne uma certa quantidade de materiais naturais e históricos não se pode proceder ao exame crítico, à comparação e, consequentemente, à divisão em classes, ordens e espécies. Por isso, os rudimentos das ciências naturais exactas não foram desenvolvidos senão a partir dos gregos do período alexandrino [1] e, mais tarde, na Idade Média, pelos árabes; a ciência autêntica da natureza só foi iniciada na segunda metade do século XV e, desde então, não fez senão progredir aceleradamente. A análise da natureza nas suas diversas partes, a classificação dos diversos processos e objectos naturais em determinadas categorias, a pesquisa interna dos corpos orgânicos de acordo com as suas diferentes estruturas anatómicas, foram o fundamento dos gigantescos progressos realizados no conhecimento científico da natureza durante os últimos quatrocentos anos. Estes métodos de investigação, porém, transmitiram-nos, em simultâneo, o hábito de enfocar as coisas e os processos da natureza isoladamente, subtraídos à dinâmica do grande todo; portanto, não dinâmica, mas estaticamente; não como substancialmente variáveis, mas como consistências fixas; não na vida, mas na morte. Por isso, esse método de observação, ao transplantar-se, com Bacon e Locke, das ciências naturais para a filosofia, determinou a estreiteza específica característica dos últimos séculos: o método metafísico da especulação.
Para o metafísico, as coisas e as suas imagens no pensamento, os conceitos, são objectos de investigação isolados, fixos, rígidos, focalizados um após o outro, de per si, como algo dado e perene. Pensa só em antíteses, sem meio-termo possível; para ele, das duas uma: sim, sim; não, não; o que for além disso, sobra. Para ele, uma coisa existe ou não existe; um objecto não pode ser ao mesmo tempo o que é e outro diferente. O positivo e o negativo excluem-se em absoluto. A causa e o efeito revestem-se também, aos seus olhos, da forma de uma rígida antítese. À primeira vista, este método discursivo parece-nos extremamente razoável, porque é o do chamado senso comum. Mas o próprio senso comum - personagem muito respeitável dentro de casa, entre quatro paredes - vive peripécias verdadeiramente maravilhosas quando se aventura pelos caminhos amplos da investigação; e o método metafísico de pensar, por muito justificado e até necessário que seja em muitas zonas do pensamento, mais ou menos extensas segundo a natureza do objecto de que se trate, tropeça sempre, cedo ou tarde, com uma barreira, ultrapassada a qual se converte num método unilateral, limitado, abstracto e se perde em insolúveis contradições, pois, absorvido pelos objectos concretos, não consegue perceber o seu encadeamento; preocupado com a existência, não atenta nem na origem nem na caducidade; obcecado pelas árvores, não consegue ver a floresta. Na realidade de cada dia, sabemos, por exemplo, e podemos dizer com toda certeza se um animal existe ou não; porém, pesquisando mais detidamente, verificamos que às vezes o problema se complica consideravelmente, como sabem muito bem os juristas, que tanto e tão inutilmente se têm atormentado a descobrir um limite racional a partir do qual a morte de um filho no ventre materno deva ser considerada um assassinato; também não é fácil determinar rigidamente o momento da morte, uma vez que a fisiologia demonstrou que a morte não é um fenómeno repentino, instantâneo, mas um processo muito longo. Do mesmo modo, todo o ser orgânico é, a qualquer instante, ele mesmo e outro; a todo o instante, assimila matérias absorvidas do exterior e elimina outras do seu interior; a todo instante, morrem certas células e nascem outras no seu organismo; e no transcurso de um período mais ou menos demorado a matéria de que é formado renova-se totalmente, e novos átomos vêm ocupar o lugar dos antigos, donde todo o ser orgânico é, ao mesmo tempo, ele mesmo e um outro diferente. Da mesma maneira, observando as coisas detidamente, verificamos que os dois pólos de uma antítese, o positivo e o negativo, são tão inseparáveis quanto antitéticos um do outro e que, apesar de todo o seu antagonismo, se penetram reciprocamente; e vemos que a causa e o efeito são representações que só funcionam, como tais, na aplicação ao caso concreto, mas que, examinando esse caso concreto na sua interligação com o universo, se juntam e se diluem na ideia de uma trama universal de acções e reacções, onde as causas e os efeitos mudam constantemente de lugar e onde o que agora ou aqui é efeito adquire em seguida ou ali o carácter de causa, e vice-versa.
Nenhum destes fenómenos e métodos discursivos se encaixa no quadro das especulações metafísicas. Ao contrário, para a dialéctica, que focaliza a substância das coisas e das respectivas imagens conceptuais nas conexões, nas suas ligações, no seu movimento, no processo de nascimento e caducidade, fenómenos como os expostos não são mais que outras tantas confirmações do seu modo genuíno de proceder. A natureza é a pedra de toque da dialéctica, e as modernas ciências naturais oferecem-nos, para essa prova, um acervo de dados extraordinariamente copioso e enriquecido cada dia que passa, demonstrando com isso que a natureza se move, em última instância, pelos caminhos dialécticos e não pelas veredas metafísicas, que não se move na eterna monotonia de um ciclo constantemente repetido, mas percorre uma verdadeira história. Aqui é necessário citar Darwin, que foi quem, com a prova de que toda a natureza orgânica existente, plantas e animais, e entre eles, como é lógico, o homem, é produto de um processo de desenvolvimento de milhões de anos, assestou na concepção metafísica da natureza o golpe mais rude. Até hoje, porém, os naturalistas que souberam pensar dialecticamente podem ser contados com os dedos, e esse conflito entre os resultados descobertos e o método discursivo tradicional põe a nu a ilimitada confusão que reina presentemente na teoria das ciências naturais e que constitui o desespero de mestres e discípulos, de autores e leitores.
Só seguindo o caminho da dialéctica, sem perder de vista as inumeráveis acções e redacções gerais do devenir e do perecer, das mudanças de avanço e retrocesso, chegamos a uma concepção exacta do universo, do seu desenvolvimento e do desenvolvimento da humanidade, assim como da imagem projectada por esse desenvolvimento nas cabeças dos homens. E foi esse, com efeito, o sentido em que começou a trabalhar, desde o primeiro momento, a moderna filosofia alemã. Kant iniciou a carreira de filósofo dissolvendo o sistema solar estável de Newton e a sua duração eterna - depois de recebido o primeiro impulso - num processo histórico: no dos nascimentos do Sol e de todos os planetas a partir de uma massa nebulosa em rotação.  Daí, deduziu que essa origem implicava também, necessariamente, a morte futura do sistema solar. Meio século depois esta teoria foi confirmada matematicamente por Laplace e, ao fim de outro meio século, o espectroscópio veio demonstrar a existência no espaço de massas ígneas de gás em diferentes graus de condensação.
A filosofia alemã moderna encontrou a sua culminância no sistema de Hegel, no qual, pela primeira vez - e aí está seu grande mérito - se concebe o mundo da natureza, da história e do espírito como um processo, isto é, em constante movimento, mudança, transformação e desenvolvimento, tentando além disso ressaltar a intima conexão que preside esse processo de movimento e desenvolvimento. Contempla-o desse ponto de vista, a história da humanidade já não aparecia como um caos inóspito de violências absurdas, todas igualmente condenáveis diante do foro da razão filosófica hoje já madura, e boas para serem esquecidas quanto antes, mas como o processo de desenvolvimento da própria humanidade, que cabia agora ao pensamento acompanhar nas suas etapas graduais e através de todos os desvios, demonstrando a existência das leis internas que orientam tudo aquilo que à primeira vista poderia parecer obra cega do acaso.
Não importava que o sistema de Hegel não resolvesse o problema que se propunha. O seu mérito, que marca época, consistiu em tê-lo proposto. Não em vão, trata-se de um problema que nenhum homem sozinho pôde resolver. E embora Hegel fosse, como Saint-Simon, a cabeça mais universal do seu tempo, o seu horizonte achava-se circunscrito, em primeiro lugar, pela limitação inevitável dos seus próprios conhecimentos e, em segundo lugar, pelos conhecimentos e concepções da sua época, também limitados em ex-tensão e profundidade. Deve acrescentar-se a isto uma terceira circunstância. Hegel era idealista; isto é, para ele as ideias da sua cabeça não eram imagens mais ou menos abstractas dos objectos ou fenómenos da realidade, pois essas coisas e seu desenvolvimento afiguravam-se-lhe, ao contrário, como projecções realizadas da "Ideia", que já existia, não se sabe como, antes de existir o mundo. Assim, tudo foi posto de cabeça para baixo, e a concatenação real do Universo apresentava-se completamente às avessas. Logo, por mais exactas e mesmo geniais que fossem várias das conexões concretas concebidas por Hegel, era inevitável, pelos motivos que acabamos de apontar, que muitos dos seus detalhes tivessem um carácter amaneirado, artificial, construído; numa palavra, falso. O sistema de Hegel foi um aborto gigantesco, mas o último do seu género. De facto, o mesmo continuava a sofrer de uma contradição interna incurável; pois, enquanto por um lado partia do pressuposto inicial da concepção histórica, segundo a qual a história humana é um processo de desenvolvimento que não pode, pela sua própria natureza, encontrar o remate intelectual na descoberta daquilo a que chamam verdade absoluta, por outro lado é-nos apresentado exactamente como a soma e a síntese dessa verdade absoluta. Um sistema universal e definitivamente plasmado do conhecimento da natureza e da história é incompatível com as leis fundamentais do pensamento dialéctico - que não exclui, antes implica, que o conhecimento sistemático do mundo exterior na sua totalidade possa progredir gigantescamente de geração em geração.
A consciência da total inversão em que incorria o idealismo alemão levou necessariamente ao materialismo; mas não, atente-se bem, àquele materialismo puramente metafísico e exclusivamente mecânico do século XVIII. Em oposição à simples repulsa, ingenuamente revolucionária, de toda a história anterior, o materialismo moderno vê na história o processo de desenvolvimento da humanidade, cujas leis dinâmicas têm por missão descobrir. Contrariamente à ideia da natureza que imperava entre os franceses do século XVIII, assim como em Hegel, em que esta era concebida como um todo permanente e invariável, que se movia dentro de ciclos estreitos, com corpos celestes eternos, tal como Newton os representava, e com espécies invariáveis de seres orgânicos, como ensinara Linneu, o materialismo moderno resume e compendia os novos progressos das ciências naturais, segundo os quais a natureza tem também a sua história no tempo, e os mundos, assim como as espécies orgânicas que em condições propícias os habitam, nascem e morrem, e os ciclos, no grau em que são admissíveis, tomam dimensões infinitamente mais grandiosas. Em ambos os casos, o materialismo moderno é substancialmente dialéctico e não precisa já de uma filosofia superior às demais ciências. Desde o momento em que cada ciência tem que prestar contas da posição que ocupa no quadro universal das coisas e do conhecimento dessas coisas, já não há lugar para uma ciência especialmente consagrada ao estudo do encadeamento universal. Da filosofia anterior, com existência própria só permanece de pé a teoria do pensamento e as suas leis: a lógica formal e a dialéctica. Tudo o resto se dissolve na ciência positiva da natureza e da história.
No entanto, enquanto essa revolução na concepção da natureza só se pôde impor na medida em que a pesquisa fornecia à ciência os materiais positivos correspondentes, já há muito tempo se tinham revelado certos factos históricos que imprimiram uma reviravolta decisiva à concepção da história. Em 1831, estala em Lyon a primeira insurreição operária, e de 1838 a 1842 atinge o auge o primeiro movimento operário nacional: o dos cartistas ingleses. A luta de classes entre o proletariado e a burguesia passou a ocupar o primeiro plano da história dos países europeus mais avançados, ao mesmo ritmo que neles se desenvolvia, por um lado, a grande indústria e, por outro, o domínio político recém-conquistado pela burguesia. Os factos refutavam cada vez mais rotundamente as doutrinas burguesas da identidade de interesses entre o capital e o trabalho e da harmonia universal e o bem-estar geral das nações como fruto da livre concorrência. Não havia como passar por alto esses factos, nem tão pouco era possível ignorar o socialismo francês e inglês, sua expressão teórica, por mais imperfeita que fosse. Mas a velha concepção idealista da história, que ainda não havia sido removida, não conhecia lutas de classes baseadas em interesses materiais, nem conhecia interesses materiais de qualquer espécie; para ela a produção, bem como todas as relações económicas, só existiam acessoriamente, como um elemento secundário dentro da "história da civilização". Os novos factos obrigaram à revisão de toda a história anterior, vendo-se então que, com excepção do Estado primitivo, toda a história anterior era a história das lutas de classes, e que essas classes sociais em luta entre si eram em todas as épocas fruto das relações de produção e de troca, isto é, das relações económicas da sua época; que a estrutura económica da sociedade em cada época da história constitui, portanto, a base real que permite explicar, em última análise, toda a superstrutura integrada pelas instituições jurídicas e políticas, assim como pela ideologia religiosa, filosófica, etc., de cada período histórico. Hegel libertara da metafísica a concepção da história, tornando-a dialéctica; mas a sua interpretação da história era essencialmente idealista. Agora, o idealismo fora expulso do seu último reduto, a concepção da história - substituída por uma concepção materialista da história, com o que se abria o caminho para explicar a consciência dos homens a partir da sua existência, e não esta pela consciência daqueles, como era tradicional até então. 
Desse modo o socialismo já não aparecia como a descoberta casual de um qualquer génio, mas como o produto necessário da luta entre as duas classes formadas pela história: o proletariado e a burguesia. A sua missão já não era elaborar um sistema o mais perfeito possível de sociedade, mas investigar o processo histórico económico do qual brotavam, necessariamente, essas classes e o seu antagonismo, descobrindo os meios para a solução desse conflito na situação económica assim criada. Mas o socialismo tradicional era incompatível com essa nova concepção materialista da história, tanto quanto a concepção da natureza do materialismo francês não podia ajustar-se à dialéctica e às novas ciências naturais. Com efeito, o socialismo anterior criticava o modo de produção capitalista existente e as suas consequências, mas não conseguia explicá-lo nem podia, portanto, destruí-lo ideologicamente; nada mais lhe restava senão repudiá-lo, pura e simplesmente, como mau. Quanto mais violentamente clamava contra a exploração da classe operária, inseparável desse modo de produção, menos estava em condições de indicar claramente em que consistia e como nascia essa exploração. Do que se tratava era, por um lado, de expor esse modo capitalista de produção nas suas conexões históricas e como necessário para uma determinada época da história da sociedade, demonstrando com isso também a necessidade da sua queda e, por outro lado, pôr a nu as suas características internas, ainda ocultas. Isso tornou-se evidente com a descoberta da mais-valia. Descoberta que veio revelar que o regime capitalista de produção e a exploração do operário, que dele deriva, tinham por forma fundamental a apropriação do trabalho não pago; que o capitalista, mesmo quando compra a força de trabalho do seu operário por todo o seu valor, pelo valor que representa como mercadoria, dela retira sempre mais valor do que aquele que ela lhe custa e que essa mais-valia é, em última análise, a origem da massa cada vez maior do capital acumulado nas mãos das classes possuidoras. O processo da produção capitalista e o da produção de capital estavam assim explicados.
Essas duas grandes descobertas - a concepção materialista da história e a revelação do segredo da produção capitalista através da mais-valia - nós as devemos a Karl Marx. Graças a elas o materialismo converte-se numa ciência, que só nos resta desenvolver em todos os seus pormenores e conexões.
(a seguir)

[1] O período alexandrino de desenvolvimento da ciência abrange desde o século III antes da nossa era até o século VII da nossa era, recebendo o seu nome da cidade de Alexandria, no Egipto, um dos mais importantes centros das relações económica internacional daquela época. No período alexandrino adquiriram grande desenvolvimento várias ciências: as matemáticas (com Euclides e Arquimedes), a geografia, a astronomia, a anatomia, etc


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Do socialismo utópico ao socialismo científico - III O materialismo histórico

(início)

A concepção materialista da história parte da tese de que a produção, e com ela a troca dos produtos, é a base de toda a ordem social; de que em todas as sociedades que desfilam pela história, a distribuição dos produtos, e juntamente com ela a divisão social dos homens em classes ou camadas de classe, é determinada pelo que a sociedade produz, como produz e pelo modo de trocar os seus produtos. Por conseguinte, as causas profundas de todas as transformações sociais e de todas as revoluções políticas não devem ser procuradas nas cabeças dos homens nem na ideia que eles façam da verdade eterna ou da  justiça absoluta, mas nas transformações operadas no modo de produção e de troca; devem ser procuradas não na filosofia, mas na economia da época que se analisa. Quando se revela à compreensão dos homens que as instituições sociais vigentes são irracionais e injustas, que a razão se converteu em insensatez e a bênção em praga [1], isso não é mais que um indício de que nos métodos de produção e nas formas de distribuição se operaram silenciosamente transformações com as quais já não concorda a ordem social, talhada segundo o padrão das condições económicas anteriores. Isto significa, ao mesmo tempo, que nas novas relações de produção existem forçosamente - em estado mais ou menos desenvolvido - os meios necessários para eliminar os males descobertos. E esses meios não devem ser tirados da cabeça de ninguém, mas a cabeça é que tem de descobri-los nos factos materiais da produção, tal qual eles existem na realidade.

Qual é, por conseguinte, a posição do socialismo moderno?
A ordem social vigente - verdade reconhecida hoje por quase todo o mundo - é obra da classe dominante dos tempos modernos: a burguesia. O modo de produção característico da burguesia, ao qual desde Marx se dá o nome de modo capitalista de produção, era incompatível com os privilégios locais e dos estados, como o era com os vínculos interpessoais da ordem feudal. A burguesia lançou por terra a ordem feudal e levantou sobre suas ruínas o regime da sociedade burguesa, o império da livre concorrência, da liberdade de domicílio, da igualdade de direitos dos possuidores de mercadorias, e tantas outras maravilhas burguesas. Agora já podia desenvolver-se livremente o modo capitalista de produção. E ao chegarem o vapor e a nova maquinaria, transformando a antiga manufactura na grande indústria, as forças produtivas criadas e postas em movimento sob o comando da burguesia desenvolveram-se com uma velocidade inaudita e em proporções até então desconhecidas. Mas, do mesmo modo que no seu tempo a manufactura e o artesanato, que continuava a desenvolver-se sob a sua influência, se chocavam com os entraves feudais das corporações, a grande indústria, ao chegar a um nível de desenvolvimento mais alto, já não cabe no estreito marco em que é contida pelo modo de produção capitalista. As novas forças produtivas transbordam já da forma burguesa em que são exploradas, e esse conflito entre as forças produtivas e o modo de produção não é um conflito nascido na cabeça do homem – algo como o conflito entre o pecado original do homem e a Justiça divina – mas com as raízes nos factos, na realidade objectiva fora de nós, independente da vontade ou da actividade dos próprios homens que o provocam. O socialismo moderno não é mais que o reflexo desse conflito material na consciência, a sua projecção sob a forma de ideias, desde logo na mente da classe que sofre directamente as suas consequências: a classe operária.
Em que consiste esse conflito? Antes de sobrevir a produção capitalista, isto é, na Idade Média, dominava, com carácter geral, a pequena indústria, baseada na propriedade privada do trabalhador sobre os seus meios de produção: no campo, a agricultura corria a cargo de pequenos lavradores, livres ou vassalos; nas cidades, a indústria achava-se nas mãos dos artesãos. Os meios de trabalho - a terra, os instrumentos agrícolas, a oficina, as ferramentas - eram meios de trabalho individual, destinados unicamente ao uso individual e, portanto, forçosamente, mesquinhos, diminutos, limitados. Mas isso mesmo levava a que pertencessem, em geral, ao próprio produtor. O papel histórico do modo capitalista de produção e seu portador, a burguesia, consistiu precisamente em concentrar e desenvolver esses dispersos e mesquinhos meios de produção, transformando-os nas poderosas alavancas produtoras dos tempos actuais. Esse processo, que a burguesia vem desenvolvendo desde o século XV e que passa historicamente por três etapas – a cooperação simples, a manufactura e a grande indústria – é minuciosamente exposto por Marx na secção quarta de O Capital. Mas a burguesia, como fica também demonstrado nessa obra, não podia converter aqueles primitivos meios de produção em poderosas forças produtivas sem transformá-los de meios individuais de produção em meios sociais – só manejáveis por uma colectividade de homens. A roca, o tear manual e o martelo do ferreiro foram substituídos pela máquina de fiar, pelo tear mecânico e pelo martelo movido a vapor; a oficina individual deu o lugar à fábrica, que impõe a cooperação de centenas e milhares de operários. E, com os meios de produção, transformou-se a própria produção, deixando esta de ser uma cadeia de actos individuais para se converter numa cadeia de actos sociais; e os produtos transformaram-se em produtos sociais. O fio, as telas, os artigos de metal que agora tiram da fábrica eram produto do trabalho colectivo de um grande número de operários, por cujas mãos tinha que passar sucessivamente para sua elaboração. Já ninguém podia dizer: isso foi feito por mim, esse produto é meu.
Mas onde a produção tem por forma principal um regime de divisão social do trabalho criado paulatinamente, por impulso elementar, sem sujeição a plano algum, também imprime aos produtos a forma de mercadoria, cuja troca, compra e venda permitem aos diferentes produtores individuais satisfazerem as suas diversas necessidades. E isso era o que acontecia na Idade Média. O camponês, por exemplo, vendia ao artesão os produtos da terra, comprando-lhe em troca os artigos elaborados na sua oficina. Nessa sociedade de produtores isolados, de produtores de mercadorias, veio a introduzir-se mais tarde o novo modo de produção. Em vez daquela divisão elementar do trabalho, sem plano nem sistema, que imperava no seio de toda a sociedade, o novo modo de produção implantou a divisão planificada do trabalho dentro de cada fábrica; ao lado da produção individual surgiu a produção social. Os produtos de ambas eram vendidos no mesmo mercado e, portanto, a preços aproximadamente iguais. Mas a organização planificada podia mais que a divisão elementar do trabalho; as fábricas em que o trabalho estava organizado socialmente elaboravam os seus produtos mais baratos do que os pequenos produtores isolados. A produção individual foi pouco a pouco sucumbindo em todos os campos e a produção social revolucionando todo o antigo modo de produção. Contudo, esse carácter revolucionário passava despercebido; tão despercebido que, pelo contrário, se implantava com a única e exclusiva finalidade de aumentar e fomentar a produção de mercadorias. Nasceu directamente ligado a certos sectores de produção e troca de mercadorias que já vinham funcionando: o capital comercial, a indústria artesanal e o trabalho assalariado. E já que surgia como uma nova forma de produção de mercadorias, mantiveram-se em pleno vigor sob ela as formas de apropriação da produção de mercadorias.      
Na produção de mercadorias, tal como se havia desenvolvido na Idade Média, não podia surgir o problema de saber a quem pertenciam os produtos do trabalho. O produtor individual criava-os, geralmente, com matérias-primas de sua propriedade, produzidas não poucas vezes por ele mesmo, com os seus próprios meios de trabalho e elaborados com seu próprio trabalho manual ou o da sua família. Não necessitava, portanto, de apropriar-se deles, pois já eram seus pelo simples facto de os produzir. A propriedade dos produtos baseava-se, pois, no trabalho pessoal. E mesmo naqueles casos em que se empregava a ajuda alheia, esta era, em regra, acessória, e recebia frequentemente, além do salário, outra compensação: o aprendiz e o oficial das corporações não trabalhavam menos pelo salário e pela comida do que para aprenderem a chegar a ser mestres algum dia. É da concentração dos meios de produção em grandes oficinas e manufacturas, que sobrevém a sua transformação em meios de produção realmente sociais. Entretanto, esses meios de produção e seus produtos sociais foram considerados como se continuassem a ser o que eram antes: meios de produção e produtos individuais. E se até aqui o proprietário dos meios de trabalho se apropriara dos produtos, porque eram, geralmente, produtos seus e a ajuda constituía uma excepção, agora o proprietário dos meios de trabalho continuava a apoderar-se do produto, embora este já não fosse um produto seu, mas fruto exclusivo do trabalho alheio. Desse modo, os produtos, agora criados socialmente, não passavam a ser propriedade daqueles que haviam posto realmente em marcha os meios de produção e eram realmente seus criadores, mas do capitalista. Os meios de produção e a produção foram convertidos essencialmente em factores sociais. E, no entanto, viam-se submetidos a uma forma de apropriação que pressupõe a produção privada individual, isto é, aquela em que cada qual é dono do seu próprio produto e, como tal, comparece com ele no mercado. O modo de produção vê-se sujeito a essa forma de apropriação apesar de destruir o pressuposto sobre o qual repousa [2].Nessa contradição, que imprime ao novo modo de produção o seu carácter capitalista, encerra-se em germe, todo o conflito dos tempos actuais. E quanto mais o novo modo de produção se impõe e impera em todos os campos fundamentais da produção e em todos os países economicamente importantes, afastando a produção individual, salvo parcelas insignificantes, maior é a evidência com que se revela a incompatibilidade entre a produção social e a apropriação  capitalista.       
Os primeiros capitalistas já se encontraram, como ficou dito, com a forma do trabalho assalariado. Mas como excepção, como ocupação secundária, como simples ajuda, como ponto de transição. O lavrador que saía de quando em vez para ganhar uma diária, tinha os seus dois palmos de terra própria, graças aos quais, em caso extremo, podia viver. Os regulamentos das corporações velavam para que os oficiais de hoje se convertessem amanhã em mestres. Mas, logo que os meios de produção adquiriram um carácter social e se concentraram nas mãos dos capitalistas, tudo  mudou. Os meios de produção e os produtos do pequeno produtor individual foram sendo cada vez mais depreciados, até que a esse pequeno produtor não ficou outro recurso senão ganhar um salário pago pelo capitalista. O trabalho assalariado, que antes era excepção e mera ajuda, passou a ser regra e forma fundamental de toda a produção, e o que antes era ocupação acessória converte-se em ocupação exclusiva do operário. O operário assalariado temporário transformou-se em operário assalariado para toda a vida. Ademais, a multidão desses para sempre assalariados vê-se engrossada em proporções gigantescas pela derrocada simultânea da ordem feudal, pela dissolução das mesnadas [3] dos senhores feudais, a expulsão dos camponeses das suas terras, etc. Realizara-se o divórcio completo entre os meios de produção concentrados nas mãos dos capitalistas, e os produtores que nada possuíam além da sua própria força de trabalho. A  contradição entre a produção social e a apropriação capitalista reveste-se pela formação do antagonismo entre o proletariado e a burguesia.           
Vimos que o modo de produção capitalista se introduziu numa sociedade de produtores de mercadorias, de produtores individuais, cujo vínculo social era o intercâmbio dos seus produtos. Mas toda a sociedade baseada na produção de mercadorias apresenta a particularidade de que nela os produtores perdem o comando sobre as suas próprias relações sociais. Cada qual produz para si, com os meios de produção de que consegue dispor, e para as necessidades do seu intercâmbio privado. Ninguém sabe qual a quantidade de artigos do mesmo tipo que os demais lançam no mercado, nem de que quantidade o mercado necessita; ninguém sabe se o seu produto individual corresponde a uma procura efectiva, nem se poderá cobrir os gastos, nem sequer, em geral, se conseguirá vendê-lo. A anarquia impera na produção social. Mas a produção de mercadorias tem, como toda a forma de produção, as suas leis características, próprias e inseparáveis dela; e essas leis abrem caminho apesar da anarquia, na própria anarquia e através dela. Tomam corpo na única forma de enlace social que subsiste: na troca; e impõem-se aos produtores individuais sob a forma das leis imperativas da concorrência. No princípio, esses produtores ignoram-nas, e é preciso que uma larga experiência as vá revelando pouco a pouco. Impõem-se, pois, sem os produtores, e mesmo contra eles, como leis naturais cegas que presidem a esse modo de produção. O produto impera sobre o produtor.
Na sociedade medieval, e sobretudo nos seus primeiros séculos, a produção destinava-se principalmente ao consumo próprio, a satisfazer apenas as necessidades do produtor e sua família. E onde, como acontecia no campo, subsistiam relações pessoais de vassalagem, contribuía também para satisfazer as necessidades do senhor feudal. Não se produzia, pois, nenhuma troca, nem os produtos revestiam, portanto, o carácter de mercadorias. A família do lavrador produzia quase todos os objectos de que necessitava: utensílios, roupas e víveres. Só começou a produzir mercadorias quando começou a criar um excedente de produtos, depois de cobrir as suas próprias necessidades e os tributos em espécie que devia pagar ao senhor feudal; esse excedente, lançado no intercâmbio social, no mercado, para venda, converteu-se em mercadoria. Os artesãos das cidades, por certo, tiveram que produzir para o mercado desde o primeiro momento. Mas também elaboravam eles próprios a maior parte dos produtos de que necessitavam para o seu consumo; tinham as suas hortas e pequenos campos, apascentavam o seu gado nos campos comunais, que lhes forneciam também madeira e lenha; as suas mulheres fiavam o linho e a lã, etc. A produção para a troca, a produção de mercadorias, achava-se no seu início. Por isso o intercâmbio era limitado, o mercado era reduzido, o modo de produção era estável. Face ao exterior imperava o exclusivismo local; no interior, a associação local: a Marca [4]  no campo, as corporações nas cidades.      
Mas ao estender-se a produção de mercadorias e, sobretudo, ao aparecer o modo capitalista de produção, as leis da produção de mercadorias, que até aqui haviam apenas dado sinais de vida, passam a funcionar de maneira aberta e poderosa. As antigas associações começam a perder força, as antigas fronteiras vão caindo por terra, os produtores vão-se convertendo mais e mais em produtores de mercadorias independentes e isolados. A anarquia na produção social sai à luz do dia e agudiza-se cada vez mais. Mas o instrumento principal com que o modo de produção capitalista fomenta essa anarquia na produção social é precisamente o inverso da anarquia: a crescente organização da produção com carácter social, dentro de cada estabelecimento de produção. Por esse meio, põe fim à velha estabilidade. Onde se implanta num ramo industrial, não tolera a seu lado nenhum dos velhos métodos. Onde se apodera da indústria artesanal, ela  destrói-a e aniquila-a. O terreno do trabalho transforma-se num campo de batalha. As grandes descobertas geográficas e as empresas de colonização que as acompanham multiplicam os mercados e aceleram o processo de transformação da oficina do artesão em manufactura. E a luta não eclode somente entre os produtores locais isolados; as contendas locais adquirem envergadura nacional, e surgem as guerras comerciais dos séculos XVII e XVIII. Até que, por fim, a grande indústria e a implantação do mercado mundial dão carácter universal à luta, ao mesmo tempo que lhe imprimem uma inaudita violência. Tanto entre os capitalistas individuais como entre industrias ou países inteiros, a primazia das condições – natural ou artificialmente criadas – da produção decide a luta pela existência. O que sucumbe é esmagado sem piedade. É a luta darwinista pela existência individual transplantada, com redobrada fúria, da natureza para a sociedade. As condições naturais de vida do animal convertem-se no ponto culminante do desenvolvimento humano. A contradição entre a produção social e a apropriação capitalista manifesta-se agora como antagonismo entre a organização da produção dentro de cada fábrica e a anarquia da produção no seio de toda a sociedade.
O modo de produção capitalista move-se nessas duas formas de contradição a ele inerentes, descrevendo sem apelo aquele "círculo vicioso" já revelado por Fourier. Mas o que Fourier não podia ver ainda na sua época é que esse círculo se vai reduzindo gradualmente, que o movimento se desenvolve em espiral e tem de chegar necessariamente ao seu fim, como o movimento de satélites decaindo para o centro. É a força propulsora da anarquia social da produção que converte a imensa maioria dos homens, cada vez mais marcadamente, em proletários, e essas massas proletárias serão, por sua vez, as que, afinal, porão fim à anarquia da produção. É a força propulsora da anarquia social da produção que converte a capacidade infinita de aperfeiçoamento das máquinas num preceito imperativo, que obriga todo o capitalista industrial a melhorar continuamente a sua maquinaria, sob pena de perecer. Mas melhorar a maquinaria equivale a tornar supérflua uma massa de trabalho humano. E assim como a implantação e o aumento quantitativo da maquinaria trouxeram consigo a substituição de milhões de operários manuais por um número reduzido de operários mecânicos, o seu aperfeiçoamento determina a eliminação de um número cada vez maior de operários das máquinas e, em última instância, a criação de uma massa de operários disponíveis que ultrapassa a necessidade média de ocupação do capital, de um verdadeiro exército industrial de reserva, como eu já o chamara em 1845[5], de um exército de trabalhadores disponíveis para as épocas em que a indústria trabalha a pleno vapor e que, logo nas crises que sobrevêm necessariamente depois desses períodos, é lançado às ruas, constituindo a todo o momento uma grilheta amarrada aos pés da classe operária na sua luta pela existência contra o capital e um regulador para manter os salários no nível baixo correspondente às necessidades do capitalista. Assim, para dizê-lo como Marx, a maquinaria converteu-se na mais poderosa arma do capital contra a classe operária, um meio de trabalho que arranca constantemente os meios de vida das mãos do operário, acontecendo que o produto do próprio operário passa a ser o instrumento da sua escravização. Desse modo, a economia nos meios de trabalho leva consigo, desde o primeiro momento, o mais impiedoso desperdício da força de trabalho e a espoliação das condições normais da própria função de trabalhar. E a maquinaria, o recurso mais poderoso que se pôde criar para reduzir a jornada de trabalho, converte-se no mais infalível recurso para transformar a vida inteira do operário e da sua família numa grande jornada disponível para a valorização do capital; ocorre, assim, que o excesso de trabalho de uns é a condição determinante da carência de trabalho de outros, e que a grande indústria, lançando-se pelo mundo inteiro, em desaforada correria, à conquista de novos consumidores, reduz na sua própria casa o consumo das massas a um mínimo de fome e mina com isso o seu próprio mercado interno. "A lei que mantém constantemente o excesso relativo de população ou exército industrial de reserva em equilíbrio com o volume e a intensidade da acumulação do capital amarra o operário ao capital com laços mais fortes do que as cunhas com que Vulcano cravou Prometeu no rochedo. Isso dá origem a que à acumulação de capital corresponda uma igual acumulação de miséria. A acumulação de riqueza num dos pólos determina no pólo oposto, no pólo da classe que produz o seu próprio produto como capital, uma acumulação igual de miséria, de sofrimento, de escravidão, de ignorância,  embrutecimento e degradação moral." (Marx, O Capital, t. 1, cap. XXIII). E esperar do modo capitalista de produção uma distribuição diferente dos produtos seria o mesmo que esperar que os dois eléctrodos de uma bateria, quando ligados a ela, não decompusessem a água nem libertassem oxigénio no pólo positivo e hidrogénio no pólo negativo.
Vimos que a capacidade de aperfeiçoamento da maquinaria moderna, levada ao seu extremo, converte-se, em virtude da anarquia da produção na sociedade, num preceito imperativo que obriga os capitalistas industriais, cada qual por si, a melhorarem incessantemente a sua maquinaria, a tornarem sempre mais poderosa a sua força de produção. Não menos imperativo é o preceito em que se converte para ele a mera possibilidade efectiva de dilatar a sua órbita de produção. A enorme força de expansão da grande indústria, ao lado da qual a expansão dos gases é uma brincadeira de crianças, revela-se hoje diante dos nossos olhos como uma necessidade qualitativa e quantitativa de expansão que zomba de todos os obstáculos que se lhe deparam. Esses obstáculos são os que lhe opõem o consumo, a exportação, os mercados de que os produtos da grande indústria necessitam. Mas a capacidade extensiva e intensiva de expansão dos mercados obedece, por sua vez, a leis muito diferentes e que actuam de uma maneira muito menos enérgica. A expansão dos mercados não pode desenvolver-se ao mesmo ritmo que a da produção. O choque torna-se inevitável, e como é impossível outra solução que não seja destruir o próprio modo capitalista de produção, esse choque torna-se periódico. A produção capitalista engendra um "novo círculo vicioso".      
Com efeito, desde 1825, ano em que estalou a primeira crise geral, não se passam dez anos seguidos sem que em todo o mundo industrial e comercial, a produção e a troca de todos os povos civilizados e dos de países mais ou menos bárbaros ligados a eles, saia dos eixos. O comércio é paralisado, os mercados são saturados de mercadorias, os produtos apodrecem nos armazéns abarrotados, sem encontrar saída; a marcha do dinheiro acelera-se, o andar converte-se em trote, o trote industrial em galope e, finalmente, em corrida desenfreada, num steeple-chase [6] da indústria, do comércio, do crédito, da especulação, para terminar, por fim, depois dos saltos mais arriscados... no fosso de outra crise. E assim sucessivamente. Cinco vezes se repete a mesma história desde 1825, e presentemente (1877) estamos a vivê-la pela sexta vez. O carácter destas crises é tão nítido e tão marcante que Fourier as abrangia todas ao descrever a primeira, dizendo que era uma crise pletórica, uma crise nascida da superabundância.      
Nas crises estala, em explosões violentas, a contradição entre a produção social e a apropriação capitalista. A circulação de mercadorias é momentaneamente paralisada. O meio de circulação, o dinheiro, converte-se num obstáculo para a circulação; todas as leis da produção e da circulação das mercadorias são  viradas do avesso. O conflito económico atinge o seu ponto culminante: o modo de produção rebela-se contra o modo de distribuição.     
O  facto da  organização social da produção dentro das fábricas se ter desenvolvido até chegar a um ponto em que passou a ser inconciliável com a  anarquia – coexistente com ela e acima dela – na produção social é um dado que se revela palpável aos próprios capitalistas pela concentração violenta dos capitais, produzida durante as crises à custa da ruína de numerosos grandes e, sobretudo, pequenos capitalistas. Todo o mecanismo do modo de produção falha, esgotado pelas forças produtivas que ele mesmo criou. Já não consegue transformar em capital essa massa de meios de produção que permanecem inactivos, e precisamente por isso permanece também inactivo o exército industrial de reserva. Meios de produção, meios de vida, operários em disponibilidade: todos os elementos da produção e da riqueza geral existem em excesso. Mas a "superabundância converte-se em fonte de miséria e de penúria" (Fourier), já que é exactamente ela que impede a transformação dos meios de produção e de vida em capital, pois na sociedade capitalista os meios de produção não podem pôr-se em movimento senão transformando-se previamente em capital, em meio de exploração da força de trabalho humana. Esse imprescindível carácter de capital dos meios de produção ergue-se como um espectro entre eles e a classe operária. É isso que impede que engrenem a alavanca material e a alavanca pessoal da produção; é o que não permite aos meios de produção funcionar nem aos operários trabalhar e viver. De um lado, o modo capitalista de produção revela, pois, a sua própria incapacidade para continuar a dirigir as suas forças produtivas. Por outro lado, essas forças produtivas compelem, com uma intensidade cada vez maior, no sentido de que se resolva a contradição, de que sejam redimidas da sua condição de capital, e lhes seja efectivamente reconhecido o seu carácter social.      
É essa rebelião das forças produtivas, cada vez mais imponentes, contra a sua condição de propriedade do capital, essa necessidade cada vez mais imperiosa de que se reconheça o seu carácter social, que obriga a própria classe capitalista a considerá-las cada vez mais abertamente como forças produtivas sociais, na medida em que isso é possível dentro das relações capitalistas. Tanto os períodos de elevada pressão industrial, com uma desmedida expansão do crédito, como o próprio crash, com o desmoronamento de grandes empresas capitalistas, estimulam essa forma de socialização de grandes massas de meios de produção que encontramos nas diferentes categorias de sociedades anónimas. Alguns desses meios de produção e de comunicação já são por si tão gigantescos que excluem, como ocorre com as ferrovias, qualquer outra forma de exploração capitalista. Ao chegar a uma determinada fase de desenvolvimento tal forma já não basta; os grandes produtores nacionais de um ramo industrial unem-se para formar um trust, um consórcio destinado a regular a produção; determinam a quantidade total que deve ser produzida, dividem-na entre eles e impõem, desse modo, um preço de venda de antemão fixado. Porém, como esses trusts se desmoronam ao sobrevirem os primeiros ventos maus nos negócios, conduzem com isso a uma socialização ainda mais concentrada; todo o ramo industrial se converte numa única grande sociedade anónima, e a concorrência interna dá lugar ao monopólio interno dessa sociedade única; assim aconteceu já em 1890 com a produção inglesa de álcalis, que na actualidade, depois da fusão de todas as quarenta e oito grandes fábricas do país, é explorada por uma só sociedade com direcção única e um capital de 120 milhões  de  marcos.       
Nos trusts, a livre concorrência transforma-se em monopólio e a produção sem plano da sociedade capitalista capitula ante a produção planificada e organizada da nascente sociedade socialista. É claro que, no momento, em proveito e benefício dos capitalistas. Mas aqui a exploração torna-se tão patente, que tem forçosamente de ser derrubada. Nenhum povo toleraria uma produção dirigida pelos trusts, uma exploração tão descarada da colectividade por uma pequena quadrilha de cortadores de cupões.
De um modo ou de outro, com ou sem trusts, o representante oficial da sociedade capitalista, o Estado, tem que acabar por tomar a seu cargo o comando da produção [7]. A necessidade a que corresponde essa transformação de certas empresas em propriedade do Estado começa a manifestar-se nas grandes empresas de transportes e comunicações, tais como o correio, o telégrafo e as ferrovias.
Além da incapacidade da burguesia para continuar a dirigir as forças produtivas modernas revelada pelas crises, a transformação das grandes empresas de produção e transporte em sociedades anónimas, em trusts e em propriedade do Estado demonstra que a burguesia já não é indispensável para o desempenho dessas funções. Hoje, as funções sociais do capitalista estão todas a cargo de empregados assalariados, e toda a actividade social do capitalista está reduzida a cobrar rendas, cortar cupões e jogar na bolsa, onde capitalistas de toda a espécie arrebatam, uns aos outros, os seus capitais. E se antes o modo de produção capitalista deslocava os operários, agora desloca também os capitalistas, lançando-os, do mesmo modo que aos operários, entre a população excedente; embora, por enquanto, ainda não no exército industrial de reserva.        
Porém, as forças produtivas não perdem a condição de capital ao converterem-se em propriedade das sociedades anónimas, dos trusts ou do Estado. No que se refere aos trusts e às sociedades anónimas, isto é palpavelmente claro. Por seu turno, o Estado moderno não é mais que uma organização criada pela sociedade burguesa para defender as condições exteriores gerais do modo de produção capitalista contra os ataques, tanto dos operários como de capitalistas isolados. O Estado moderno, qualquer que seja a forma que assuma, é uma máquina essencialmente capitalista, é o Estado dos capitalistas, o capitalista colectivo ideal. E quanto mais forças produtivas detenha tanto mais se converterá em capitalista colectivo e maior quantidade de cidadãos explorará. Os operários continuam assalariados, proletários. A relação capitalista, longe de ser abolida com essas medidas, acentua-se. Mas, ao chegar ao cume, esboroa-se. A propriedade do Estado sobre as forças produtivas não é a solução do conflito, mas encerra já no seu seio o meio formal, o instrumento para chegar à solução.         
Essa solução só pode consistir em reconhecer de um modo efectivo a natureza social das forças produtivas modernas e, portanto, em harmonizar o modo de produção, apropriação e troca com o carácter social dos meios de produção. Para tal, não há senão um caminho: que a sociedade, abertamente e sem rodeios, tome posse dessas forças produtivas, que já não admitem outra direcção a não ser a sua. Assim procedendo, o carácter social dos meios de produção e dos produtos, que hoje se volta contra os próprios produtores, rompendo periodicamente as fronteiras do modo de produção e de troca, e só pode impor-se com uma força e uma eficácia tão destruidoras quanto o impulso cego das leis naturais, será posto em vigor com plena consciência pelos produtores e converter-se-á, de causa constante de perturbações e cataclismos periódicos, na alavanca mais poderosa da própria produção.
As forças activas da sociedade actuam, enquanto não as conhecemos e contamos com elas, exactamente como as forças da natureza: de modo cego, violento e destruidor. Mas, uma vez conhecidas, logo que se saiba compreender a sua acção, as tendências e os efeitos, está nas nossas mãos sujeitá-las cada vez mais à nossa vontade e, por meio delas, alcançar os fins propostos. Tal é o que ocorre, muito especialmente, com as gigantescas forças modernas da produção. Enquanto resistirmos obstinadamente a compreender a sua natureza e o seu carácter – e a essa compreensão se opõem o modo capitalista de produção e os seus defensores –, essas forças actuarão apesar de nós, e dominar-nos-ão, como bem salientámos. Em troca, assim que penetramos na sua natureza, essas forças, postas nas mãos dos produtores associados, converter-se-ão de tiranos demoníacos em servas submissas. É a mesma diferença que há entre o maléfico poder da electricidade nos raios da tempestade e o benéfico poder da força eléctrica dominada no telégrafo e no arco voltaico; a diferença que há entre o fogo destruidor e o fogo posto ao serviço do homem. No dia em que as forças produtivas da sociedade moderna se submeterem a um regime congruente com a sua natureza por fim conhecida, a anarquia social da produção dará lugar à regulamentação colectiva e organizada da produção, de acordo com as necessidades da sociedade e do indivíduo. E o regime capitalista de apropriação, em que o produto escraviza primeiro quem o cria e, em seguida, quem dele se apropria, será substituído pelo regime de apropriação do produto que o carácter dos modernos meios de produção reclama: de um lado, a apropriação directamente social, como meio para manter e ampliar a produção; do outro, a apropriação directamente individual, como meio de vida e de proveito.       
O modo capitalista de produção, ao converter cada vez mais em proletários a imensa maioria dos indivíduos de cada país, cria a força que, se não quiser perecer, está obrigada a fazer essa revolução. E, ao forçar cada vez mais a conversão dos grandes meios socializados de produção em propriedade do Estado, ele já indica, por si mesmo, o caminho pelo qual deve produzir-se essa revolução. O proletariado toma nas suas mãos o Poder do Estado e principia por converter os meios de produção em propriedade do Estado. Mas, nesse mesmo acto, destrói-se a si próprio como proletariado, destruindo toda diferença e todo o antagonismo entre classes, e com isso o próprio Estado como tal. A sociedade, que se movera até então entre antagonismos de classe, precisou do Estado, ou seja, de uma organização da classe exploradora correspondente para manter as condições externas de produção e, portanto, particularmente, para manter pela força a classe explorada nas condições de opressão (a escravidão, a servidão ou a vassalagem e o trabalho assalariado) determinadas pelo modo de produção existente. O Estado era o representante oficial de toda a sociedade, a sua síntese num corpo social visível; mas representava toda a sociedade tal como o era só na sua época: na antiguidade era o Estado dos cidadãos esclavagistas, na Idade Média o da nobreza feudal; no nosso tempo, o da burguesia. Quando o Estado se converter, finalmente, em representante efectivo de toda a sociedade, tornar-se-á por si mesmo supérfluo. Quando já não existir nenhuma classe social que precise ser submetida; quando desaparecerem, juntamente com a dominação de classe, juntamente com a luta pela existência individual engendrada pela actual anarquia da produção, os choques e os excessos resultantes dessa luta, nada mais haverá para reprimir, nem haverá necessidade, portanto, dessa força especial de repressão que é o Estado.        
O primeiro acto em que o Estado se manifesta efectivamente como representante de toda a sociedade – a posse dos meios de produção em nome da sociedade – é, ao mesmo tempo, o seu último acto independente enquanto Estado. A intervenção da autoridade do Estado nas relações sociais tornar-se-á supérflua num campo após outro da vida social e cessará por si mesma. O governo sobre as pessoas é substituído pela administração das coisas e pela direcção dos processos de produção. O Estado não será "abolido", extingue-se. É partindo daí que se pode julgar o valor do falado "Estado popular livre" no que diz respeito à sua justificação provisória como palavra de ordem de agitação e no que se refere à sua falta de fundamento científico. É também partindo daí que deve ser considerada a exigência dos chamados anarquistas de que o Estado seja abolido da noite para o dia.
Desde que existe historicamente o modo capitalista de produção, houve indivíduos e seitas inteiras diante dos quais se projectou mais ou menos vagamente, como ideal futuro, a apropriação de todos os meios de produção pela sociedade. Mas, para que isso fosse realizável, para que se convertesse numa necessidade histórica, era preciso que ocorressem as condições efectivas para a sua realização. Para que esse progresso, como todos os progressos sociais, seja viável, não basta ser compreendido pela razão que a existência de classes é incompatível com os valores da justiça, da igualdade, etc.; não basta a simples vontade de abolir essas classes – são necessárias determinadas condições económicas novas. A divisão da sociedade numa classe exploradora e outra explorada, numa classe dominante e outra oprimida, era uma consequência necessária do anterior desenvolvimento incipiente da produção. Enquanto o trabalho global da sociedade produzir apenas o estritamente necessário para cobrir as necessidades mais elementares de todos, e talvez um pouco mais; enquanto, por isso, o trabalho absorver todo o tempo, ou quase todo o tempo, da imensa maioria dos membros da sociedade, esta divide-se, necessariamente, em classes. Junto à grande maioria constrangida a não fazer outra coisa senão suportar a carga do trabalho, forma-se uma classe que se exime do trabalho directamente produtivo e a cujo cargo correm os assuntos gerais da sociedade: a direcção dos trabalhos, os negócios públicos, a justiça, as ciências, as artes, etc.. É, pois, a lei da divisão do trabalho que serve de base à divisão da sociedade em classes. O que não impede que essa divisão da sociedade em classes se realize por meio de violência e espoliação, astúcia e logro; nem quer dizer que a classe dominante, uma vez entronizada, se abstenha de consolidar o seu poderio à custa da classe trabalhadora, transformando o seu papel social de direcção numa maior exploração das massas.
Vemos, pois, que a divisão da sociedade em classes tem uma razão histórica de existir, mas só dentro de determinados limites de tempo e sob determinadas condições sociais. É condicionada pela insuficiência da produção, e será varrida quando se desenvolverem plenamente as modernas forças produtivas. Com efeito, a abolição das classes sociais pressupõe um tal grau de desenvolvimento histórico que a existência, já não dessa ou daquela classe dominante concreta, mas de uma classe dominante qualquer que ela seja e, portanto, das próprias diferenças de classe, representa um anacronismo. Pressupõe, por conseguinte, um grau culminante no desenvolvimento da produção em que a apropriação dos meios de produção e dos produtos e, portanto, do poder político, do monopólio da cultura e da direcção espiritual por uma determinada classe da sociedade, não só se tornou de facto supérflua, mas constitui económica, política e intelectualmente uma barreira levantada ante o progresso. Pois bem, já se chegou a esse ponto. Hoje, a bancarrota política e intelectual da burguesia não é mais um segredo nem para ela mesma e a sua bancarrota económica é um fenómeno que se repete periodicamente de dez em dez anos. Em cada uma dessas crises a sociedade asfixia-se, afogada pela massa das suas próprias forças produtivas e dos seus produtos, que não pode aproveitar e, impotente, vê-se diante da absurda contradição de os seus produtores não terem o que consumir, precisamente por falta de consumidores. A força expansiva dos meios de produção faz saltar as amarras com que o modo de produção capitalista os atou. Só essa libertação dos meios de produção pode permitir o desenvolvimento ininterrupto e cada vez mais rápido das forças produtivas e, com isso, o crescimento praticamente ilimitado da produção. Mas não é tudo. A apropriação social dos meios de produção não só elimina os obstáculos artificiais hoje antepostos à produção, mas põe termo também ao desperdício e à devastação das forças produtivas e dos produtos, uma das consequências inevitáveis da produção actual e que alcança o ponto culminante durante as crises. Ademais, ao acabar com o esbanjamento estúpido que representa o luxo das classes dominantes e dos seus representantes políticos, ela porá em circulação para a colectividade toda uma massa de meios de produção e de produtos. Pela primeira vez, surge agora, e de um modo efectivo, a possibilidade de assegurar a todos os membros da sociedade, através de um sistema de produção social, uma existência que, além de satisfazer plenamente e cada dia mais abundantemente as suas necessidades materiais, lhes assegura o livre e completo desenvolvimento das suas capacidades físicas e intelectuais [8].
Com a tomada de posse pela sociedade dos meios de produção, cessa a produção de mercadorias e, com ela, o domínio do produto sobre os produtores. A anarquia reinante no seio da produção social cede o lugar a uma organização planificada e consciente. Cessa a luta pela existência individual e, assim, em certo sentido, o homem sai definitivamente do reino animal e sobrepõe-se às condições animais de existência, para submeter-se a condições de vida verdadeiramente humanas. As condições que cercam o homem e até agora o dominam, colocam-se, a partir desse instante, sob o seu domínio e comando e o homem, ao tomar-se dono e senhor das suas próprias relações sociais, converte-se pela primeira vez em senhor consciente e efectivo da natureza. As leis da sua própria actividade social, que até agora se erguiam frente ao homem como leis naturais, como poderes estranhos que o subjugavam, são agora aplicadas por ele com pleno conhecimento de causa e, portanto, submetidas ao seu poderio. A própria existência social do homem, que até aqui era enfrentada como algo imposto pela natureza e a história, é de agora em diante obra sua. Os poderes objectivos e estranhos que até aqui vinham imperando na história colocam-se sob o controlo do próprio homem. Só a partir de então, ele começa a traçar a sua história com plena consciência do que faz. E só daí em diante as causas sociais postas em acção por ele começam a produzir predominantemente, e cada vez em maior medida, os efeitos desejados. É o salto da humanidade do reino da necessidade para o  reino da liberdade. 
 
* * *
Para terminar, resumamos brevemente a nossa trajectória de desenvolvimento:
1.    Sociedade medieval: Pequena produção individual. Meios de produção adaptados ao uso individual e, portanto, primitivos, torpes, mesquinhos, de eficácia mínima. Produção para o consumo imediato, seja do próprio produtor, seja do seu senhor feudal. Só nos casos em que fica um excedente de produtos, depois de ser coberto aquele consumo, é que esse excedente é posto à venda e lançado no mercado. Portanto, a produção de mercadorias encontra-se ainda nos seus alvores, mas já encerra, em embrião, a anarquia da produção social.
2.    Revolução capitalista: Transformação da indústria, iniciada por meio da cooperação simples e da manufactura. Concentração dos meios de produção, até então dispersos, em grande oficinas, transformando-se assim de meios de produção do indivíduo em meios de produção sociais, metamorfose que não afecta, em geral, a forma de troca. Ficam de pé as velhas formas de apropriação. Aparece o capitalista: na sua qualidade de proprietário dos meios de produção, apropria-se também dos produtos e converte-os em mercadorias. A produção transforma-se num acto social; a troca e, com ela, a apropriação, continuam sendo actos individuais: o produto social é apropriado pelo capitalista individual. Contradição fundamental, da qual  derivam todas as contradições em que se move a sociedade actual e que a grande indústria evidencia claramente:
 
A.    Divórcio do produtor com os meios de produção. Condenação do operário a ser assalariado por toda a vida. Oposição entre a burguesia e o proletariado.
B.    Relevo crescente e eficácia acentuada das leis que presidem à produção de mercadorias. Concorrência desenfreada. Contradição entre a organização social dentro de cada fábrica e a anarquia social reinante na produção como um todo.
C.    Por um lado, aperfeiçoamento da maquinaria, que a concorrência transforma num preceito imperativo para cada fabricante e que equivale a um afastamento cada dia maior de operários: exército industrial de reserva. Pelo outro, expansão ilimitada da produção, que a concorrência impõe também como norma incoercível a todos os fabricantes. De ambos os lados, um desenvolvimento inaudito das forças produtivas, excesso da oferta sobre a procura, superprodu- ção, abarrotamento dos mercados, crise em cada dez anos, círculo vicioso: superabundância aqui de meios de produção e de produtos e, ali de operários sem trabalho e sem meios de vida. Mas essas duas alavancas da produção e do bem-estar social não podem combinar-se, porque a forma capitalista da produção impede que as forças produtivas actuem e os produtos circulem, a não ser que se convertam previamente em capital, o que lhes é vedado precisamente pela sua própria superabundância. A contradição aprofunda-se até se transformar em contra-senso: o modo de produção revolta-se contra a forma de troca. A burguesia revela-se incapaz para continuar a dirigir as suas próprias forças sociais produtivas.
D.    Reconhecimento parcial do carácter social das forças produtivas, arrancado aos próprios capitalistas. Apropriação dos grandes organismos de produção e de transporte, primeiro por sociedades anónimas, em seguida pelos trusts e, mais tarde, pelo Estado. A burguesia revela-se uma classe supérflua; todas as suas funções sociais são executadas agora por empregados assalariados.
3.    Revolução proletária, solução das contradições: o proletariado toma o poder político e, por meio dele, converte em propriedade pública os meios sociais de produção, que escapam das mãos da burguesia. Com esse acto, liberta os meios de produção da condição de capital que tinham até então e dá ao seu carácter social plena liberdade para se impor. A partir de agora já é possível uma produção social segundo um plano previamente elaborado. O desenvolvimento da produção transforma em anacronismo a sobrevivência de classes sociais diversas. À medida que desaparece a anarquia da produção social, vai desaparecendo também, gradualmente, a autoridade política do Estado. Os homens, por fim donos da sua própria existência social, tornam-se senhores da natureza, senhores de si mesmos, homens livres.
 

Realizar esse acto, que libertará o mundo, é a missão histórica do proletariado moderno. E o socialismo científico, expressão teórica do movimento proletário, destina-se a pesquisar as condições históricas e, com isso, a própria natureza desse acto, infundindo assim à classe chamada a fazer essa revolução, à classe hoje oprimida, a consciência das condições e da natureza da sua própria acção.



[1] Palavras de Mefistófeles no Fausto de Goethe. 
[2] Não precisamos explicar que, ainda quando a forma de apropriação permanece invariável, o carácter da apropriação sofre uma revolução pelo processo que descrevemos, em não menor grau que a própria produção. A apropriação do produto próprio e a apropriação do produto alheio são, evidentemente, duas formas muito diferentes de apropriação. E advertimos de passagem que o trabalho assalariado, no qual se contém já o germe de todo o modo capitalista de produção, é muito antigo; coexistiu durante séculos inteiros, em casos isolados e dispersos, com a escravidão. Contudo, esse germe só pôde desenvolver-se até formar o modo capitalista de produção quando surgiram as premissas históricas adequadas. (Nota de Engels)
[3] Mesnadas: tropas mercenárias que serviam aos senhores feudais nas guerras
[4] A Marca é o nome dado à antiga comuna germânica baseada na comunidade da terra. Muitos traços dessa comunidade conservaram-se até aos nossos dias, não só nos países germânicos, mas também nos países ocidentais conquistados pelos germânicos (Nota de Engels).
[5] Em A Situação da Classe Operária na Inglaterra, pág. 109 (Nota de Engels).
[6] Corrida de obstáculos.
[7] E digo que tem de tomar a seu cargo, pois a nacionalização só representará um progresso económico, um passo adiante para a conquista pela sociedade de todas as forças produtivas, embora essa medida seja levada a cabo pelo Estado actual, quando os meios de produção ou de transporte superarem já efectivamente os marcos directores de uma sociedade anónima, quando, portanto, a medida da nacionalização for já  economicamente inevitável. Contudo, recentemente, desde que Bismarck empreendeu o caminho da nacionalização, surgiu uma espécie de falso socialismo, que degenera de quando em vez num tipo especial de socialismo, submisso e servil, que em todo acto de nacionalização, mesmo nos adoptados por Bismarck, vê uma medida socialista. Se a nacionalização da indústria do fumo fosse socialismo, seria necessário incluir Napoleão e Metternich entre os fundadores do socialismo. Quando o Estado belga, por motivos políticos e financeiros perfeitamente vulgares decidiu construir por sua conta as principais linhas férreas do país, ou quando Bismarck, sem que nenhuma necessidade económica o levasse a isso, nacionalizou as linhas mais importantes da rede ferroviária da Prússia, pura e simplesmente para assim poder manejá-las e aproveitá-las melhor em caso de guerra, para converter o pessoal das ferrovias em gado eleitoral submisso ao Governo e, sobretudo, para encontrar uma nova fonte de rendas isenta de fiscalização pelo Parlamento, todas essas medidas não tinham, nem directa nem indirectamente, nem consciente nem inconscientemente, nada de socialistas. De outro modo, seria necessário também classificar entre as instituições socialistas a Real Companhia de Comércio Marítimo, a Real Manufactura de Porcelanas e até os alfaiates do exército, sem esquecer a nacionalização dos prostíbulos, proposta muito seriamente, aí por volta do ano 34, sob Frederico Guilherme III, por um homem muito esperto (Nota de Engels)  
[8] Algumas cifras darão ao leitor uma noção aproximada da enorme força expansiva que, mesmo sob a pressão capitalista, os modernos meios de produção desenvolvem. Segundo os cálculos de Giffen, a riqueza global da Grã-Bretanha e Irlanda ascendia, em números redondos, a
1814
 2 200 milhões de £
 44 000 milhões de marcos
1865
 6 100 milhões de £
 122 000 milhões de marcos
1875 
 8 500 milhões de £
 170 000 milhões de marcos.
Para dar uma ideia do que representa a delapidação dos meios de produção e de produtos desperdiçados durante a crise, direi que no segundo congresso dos industriais alemães, realizado em Berlim, em 21 de Fevereiro de 1878, calculou-se em 455 milhões de marcos as perdas globais representadas pelo último crash, somente para a indústria siderúrgica alemã. (Nota de Engels)


publicado por portopctp às 19:11
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