A mais-valia
Num certo grau de desenvolvimento da produção de mercadorias, a moeda transforma-se em capital. A forma de circulação das mercadorias era: M (mercadoria) — D (moeda) — M (mercadoria), quer dizer venda de uma mercadoria para compra de outra. A fórmula geral do capital é, pelo contrário, D — M — D, quer dizer, a compra para a venda (com lucro). É a este aumento do valor primitivo da moeda posta em circulação a que Marx chama mais-valia. Este aumento da moeda na circulação capitalista é um facto conhecido de todos. É precisamente este aumento que transforma a moeda em capital, enquanto relação social de produção particular, historicamente determinada. A mais-valia não pode provir da circulação de mercadorias, porque esta última não conhece senão a troca de equivalentes; não pode provir também de um aumento de preços, dado que as perdas e os lucros recíprocos dos comprsdores e dos vendedores se equilibrariam; ora, trata-se de um fenómeno social, médio, generalizado, e nunca de um fenómeno individual. Para obter a mais-valia, "era necessário que o possuidor da moeda tivesse a sorte de descobrir... no próprio mercado, uma mercadoria cujo valor de uso possuísse a virtude particular de ser fonte desse valor", uma mercadoria cujo processo de consumo fosse simultaneamente um processo de criação de valor. Ora, essa mercadoria existe: é a força de trabalho humano. O seu consumo é o trabalho, e o trabalho cria valor. O possuidor de moeda compra a força de trabalho pelo seu valor, determinado, como o de qualquer outra mercadoria, pelo tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção (quer dizer pelo custo do sustento do operário e da sua família). Tendo comprado a força de trabalho, o possuidor da moeda temo o direito de a consumir, quer dizer, de a obrigar a trabalhar todo o dia, digamos 12 horas. Ora, em 6 horas (tempo de trabalho necessário), o operário cria um produto que cobre as despesas do seu sustento, e durante as outras 6 horas (tempo de trabalho suplementar) ele cria um sobreproduto, não retribuído pelo capitalista e que é a mais-valia. Por conseguinte, do ponto de vista do processo de produção, há que distinguir duas partes do capital: o capital constante, gasto em meios de produção (máquinas, instrumentos de trabalho, matérias-primas, etc.), cujo valor passa tal qual (de uma só vez ou por parcelas) para o produto acabado, e o capital variável, empregue para pagar a força de trabalho. O valor deste capital não fica imutável; ele aumenta no processo de trabalho criando a mais-valia. Da mesma forma, é necessário, para exprimir o grau de exploração da força de trabalho pelo capital, comparar a mais-valia não ao capital total, mas unicamente ao capital variável. A taxa de mais-valia, nome dado por Marx a esta relação, será no nosso exemplo, de 6/6 ou de 100%.
O aparecimento do capital implica condições históricas prévias: 1) a acumulação de uma certa soma de moeda nas mãos de particulares, num estádio já relativamente avançado da produção mercantil; 2) a existência de operários livres sob dois pontos de vista: livres de qualquer coacção e restrição quanto à venda da sua força de trabalho, e livres porque despojados da terra e sem meios de produção em geral — são os operários expropriados, os operários proletários, que não podem subsistir senão vendendo a sua força de trabalho.
O aumento da mais-valia é possível graças a dois processos essenciais: o prolongamento da jornada de trabalho (mais-valia absoluta) e a redução do tempo de trabalho necessário (mais-valia relativa). Examinando o primeiro processo, Marx esboça um quadro grandioso da luta da classe operária pela redução da jornada de trabalho e da intervenção do poder do Estado para a prolongar (séculos XIV-XVII) ou para a diminuir (legislação de fábrica no século XIX). Desde a publicação de O Capital, a história do movimento operário em todos os países civilizados tem fornecido milhares e milhares de factos novos que ilustram este quadro.
Na sua análise da produção da mais-valia relativa, Marx estuda os três grandes stádios históricos do aumento da produtividade pelo capitalismo: 1) a cooperação simples; 2) a divisão do trabalho e a manufactura; 3) a maquinaria e a grande indústria. A análise profunda de Marx revela os traços fundamentais e típicos do desenvolvimento do capitalismo; é o que confirma entre outras coisas, o estudo da indústria artesanal dos Kustares na Rússia, a qual fornece uma documentação muito abundante ilustrando os dois primeiros destes três estádios. Quanto à acção revolucionária da grande indústria mecânica dscrita por Marx em 1867, ela manifestou-se, no decurso do meio século decorrido após esta data, em vários países novos (Rússia, Japão, etc.).
Seguidamente, o que é novo e extremamente importante em Marx, é a análise da acumulação do capital, ou seja a transformação de uma parte da mais-valia em capital e o seu emprego não para satisfazer as necessidads pessoais ou os caprichos do capitalista, mas para renovar a produção. Marx mostrou o erro de toda a economia política clásica anterior (desde Adam Smith), segundo a qual toda a mais-valia transformada em capital vai para o capital variável, quando na realidade ela decompõe-se em meios de produção mais capital variável. O aumento mais rápido da parte do capital constante (no seio do capital total) em relação ao aumento da parte de capital variável, é de uma importância considerável no processo de desenvolvimento do capitalismo e da sua transformação em socialismo.
Acelerando a substituição dos operários pela máquina e criando num pólo a riqueza e no outro a miséria, a acumulação do capital dá também origem ao que se chama exército industrial de reserva, excedente relativo de operários ou superpopulação capitalista, que reveste formas extremamente variadas e permite ao capital desenvolver muito rapidamente a produção.Esta possibilidade, combinada com o crédito e a acumulação do capital em meios de produção, dá-nos, entre outras coisas, a chave para compreender as crises de superprodução, que sobrevêm periodicamente nos países capitalistas, aproximadamente de dez em dez anos no início, e depois com intervalos maiores e menos precisos. É necessário distinguir entre a acumulação na base do capitalismo, e a acumulação dita primitiva — separação pela violência do trabalhador dos meios de produção, expulsão dos camponeses da sua terra, roubo das terras comunais, sistema colonial, dívida pública, tarifas alfandegárias proteccionistas, etc. A acumulação primitiva criou num pólo o proletariado livre e, no outro, o detentor da moeda, o capitalista.
A tendência histórica da acumulação capitalista é caracterizada por Marx neste célebre texto: "A expropriação do produtor directo é levada a cabo com um vandalismo implacável e sob o estímulo das paixões mais infames, sórdidas, mesquinhas e desenfreadas. a propriedade privada, fruto do trabalho pessoal (do camponês e do artesão), e alicerçada, por assim dizer, na fusão do trabalhador individual e independente com os seus meios de trabalho, é substituída pela propriedade capitalista, baseada na exploração da força de trabalho alheia, ainda que formalmente livre... Agora já não se trata de expropriar o trabalhador dono de uma economia independente, mas sim de expropriar o capitalista explorador de numerosos assalariados. No jogo das leis emergentes da própria produção capitalista, a centralização de capitais encarrega-se de cumprir esta expropriação. Um capitalista esmaga muitos outros. Paralelamente a esta centralização do capital ou expropriação de um grande número de capitalistas por um punhado deles, desenvolve-se numa escala cada vez maior a forma cooperativa do processo de trabalho, a aplicação da técnica e da ciência, a exploração planificada da terra, a transformação dos meios de trabalho em meios de trabalho só utilizáveis colectivamente, a economia de todos os meios de produção ao serem empregues como meios de produção de um trabalho colectivo, social, a absorção de todos os países pela rde do mercado mundial e, como consequência disto, o carácter internacional do regime capitalista. Conforme diminui progressivamente o número de magnates capitalistas que usurpam e monopolizam todos os benefícios deste processo de transformação, cresce a miséria, a opressão, a escravatura, a degradação, a exploração, mas também a revolta da classe operária, que cresce constantemente, se unifica e organiza devido ao mecanismo do próprio processo capitalista de produção. O monopólio do capital converte-se em entrave ao modo de produção que cresceu e prosperou com ele e sob os seus auspícios. A socialização do trabalho e a centralização dos meios de produção chegam a um ponto em que não podem manter-se mais no seu invólucro capitalista. Este invólucro despedaça-se. Chega a hora da propriedade privada capitalista. Os expropriadores são expropriados." (O Capital, Livro I)
Em seguida, o que é extremamente importante e novo, é a análise feita por Marx, no Livro II de O Capital, da reprodução do conjunto do capital social. ais uma vez, ele analisa não um fenómeno individual, mas um fenómeno geral, não uma fracção da economia social, mas a sua totalidade. Rectificando o erro dos clássicos mencionados anteriormente, Marx divide a produção social em duas grandes secções: 1) a produção dos meios de produção e 2) a produção dos artigos de consumo; após o que, trabalhando com números, ele estuda minuciosamente a circulação do conjunto do capital social, tanto na reprodução simples como no caso da acumulação. No Livro III de O Capital encontra-se resolvido, a partir da lei do valor, o problema da taxa média de lucro. A obra de Marx constitui um progresso considerável na ciência económica pelo facto de que a sua análise parte dos fenómenos económicos gerais, do conjunto da economia social e não de casos isolados ou do aspecto exterior e superficial da concorrência, aos quais se limitam frequentemente a economia política vulgar ou a moderna teoria da utilidade marginal. Marx analisa antes de tudo a origem da mais-valia e só depois examina a sua decomposição em lucro, juro e renda. O lucro é relação da mais-valia com o conjunto do capital empregue numa empresa. O capital de composição orgânica elevada (quer dizer onde o capital constante ultrapassa o capital variável numa proporção superior à média social) dá uma taxa de lucro inferior à média. O capital de composição orgânica baixa dá uma taxa de lucro superior à média. A concorrência entre os capitais, a sua livre passagem de um ramo a outro, conduzem novamente, nos dois casos, a taxa de lucro à taxa média. A soma dos valores de todas as mercadorias numa dada sociedade coincide com os preços das mercadorias, mas, em cada empresa, em cada ramo de produção tomado à parte, a concorrência faz com que as mercadorias sejam vendidas não pelo seu valor, mas pelo preço de produção, o qual é igual ao capital despendido acrescido de um lucro médio.
Assim, o desvio entre o preço e o valor e a igualização do lucro, factos incontestáveis e conhecidos de todos, são perfeitamente explicados por Marx graças à lei do valor, porque a soma dos valores de todas as mercadorias é igual à soma dos seus preços. Todavia, a redução do valor (social) aos preços (individuais) não se opera de forma simples e directa, mas de uma maneira muito complexa: é muito natural que numa sociedade de produtores de mercadorias dispersos, que apenas estão ligados entre si pelo mercado, as leis só se possam exprimir sob uma forma média, social, geral, pela compensação recíproca dos desvios individuais de um e outro lado desta média.
O aumento da produtividade do trabalho requer um crescimento mais rápido do capital constante em relação ao capital variável. Ora sendo a mais-valia unicamente função do capital variável, compreende-se que a taxa de lucro ( a relação da mais-valia com o conjunto do capital, e não apenas com a sua parte variável) tenha tendência a baixar. Marx analisa minuciosamente esta tendência, assim como as circunstâncias que a mascaram ou contrariam. Passemos sobre os capítulos extremamente interessantes do Livro III consagrados ao capital usurário, ao capital comercial e ao capital financeiro, e abordemos o essencial: a teoria de renda da terra. Sendo a superfície do solo limitada e, nos países capitalistas, inteiramente ocupada pelos proprietários, o preço de produção dos produtos agrícolas é determinado a partir das despesas de produção num terreno não de qualidade média, mas da pior qualidade, e a partir não das condições médias de transporte para o mercado, mas das mais desfavoráveis. a diferença entre este preço e o preço de produção num terreno de qualidade superior (ou em melhores condições dá a renda diferencial. Pelo estudo detalhado desta renda, demonstrando que ela provém da diferença de fertilidade dos terrenos e da diferença dos investimentos de capital na agricultura, Marx põe a nu (ver igualmente a teoria da mais-valia, onde a crítica de Rodberthus merece uma atenção particular) o erro de Ricardo ao pretender que a renda diferencial só se obtém passando gradualmente dos melhores terrenos para os piores. Pelo contário, produzem-se casos inversos: terrenos de uma certa categoria transformam-se em terrenos de outra categoria (devido ao progresso da técnica agrícola, do crescimento das cidades, etc.), e a tritemente célebre lei dos rendimentos decrescentes da terra é um erro profundo que tende a culpar a natureza dos defeitos, das limitações e das contradições do capitalismo. Além do mais, a igualdade de lucro em todos os ramos da indústria e da economia nacional em geral supõem uma liberdade completa de concorrência, a livre transferência do capital de um ramo para o outro. Mas apropriedade privada da terra cria um monopólio e um obstáculo a esta livre transferência. Em virtude deste monopólio, os produtos da agricultura, onde a composição orgânica do capital é baixa e, por isso, a taxa de lucro individual é mais elevada, não entram no livre jogo de igualização das taxas de lucro; o proprietário pode usar do seu monopólio da terra para manter o preço acima da média, e este preço de monopólio engendra a renda absoluta. A renda diferencial não pode ser abolida no regime capitalista, a renda absoluta pode sê-lo, por exemplo, pela nacionalização da terra, logo que esta se torna propriedade do Estado. Esta passagem do solo para o Estado, minaria o monopólio dos proprietários privados e abriria o caminho a uma liberdade de concorrência mais consequente e mais completa na agricultura. Eis porque, diz Marx, os burgueses radicais formularam mais que uma vez na história, esta reivindicação burguesa progressista da nacionalização do solo, que assusta no entanto a maioria da burguesia, porque toca demasiado perto um outro monopólio, o qual nos nossos dias é particularmente importante e sensível: o monopólio dos meios de produção em geral (esta teoria do lucro médio produzido pelo capital e a renda absoluta foi exposta por Marx numa linguagem particularmente popular, concisa e clara na sua carta a Engels datada de 2 de Agosto de 1862 — ver Correspondência, t.III e também a sua carta de 9 de Agosto de 1862, ibid.) è também importante assinalar, a propósito da história da renda, a análise de Marx mostrando a transsformação da renda em trabalho (quando o camponês cria um sobreproduto trabalhando a terra do senhor) em renda natural ou em géneros (quando o camponês cria na sua própria terra um sobreproduto que entrega ao proprietário em virtude de uma coacção extra-económica), depois em renda em dinheiro (que não é mais que a renda em géneros convertida em dinheiro — na antiga Rússia, o obrok — como consequência do desenvolvimento da produção mercantil), e por fim em renda capitalista, logo que em vez do camponês, quem intervém na agricultura é o empresário, que faz cultivar a sua terra usando trabalho assalariado. A propósito desta análise da génese da renda capitalista, assinalemos alguns pensamentos profundos de Marx (particularmente importantes para os países atrasados, tais como a Rússia) sobre a evolução do capitalismo na agricultura. "A transformação da renda natural em renda em dinheiro vem acompanhada, e inclusivamente antecipada, pela criação de uma classe de jornaleiros não possuidores que trabalham em troca de um salário. Enquanto esta classe se constitui e porque apenas se manifesta esporadicamente, os camponeses em melhores condições e obrigados ao pagamento de obrok vão ganhando normalmente o hábito de explorar por sua própria conta os assalariados agrícoçoas, tal como, sob o regime feudal, os camponeses servos que possuíam bens dispunham eles próprios de outros servos. Daí a possibilidade dos camponeses abastados acumularem pouco a pouco certa fortuna e transformarem-se em futuros capitalistas. Entre os antigos camponeses possuidores de terras cria-se assim um viveiro de rendeiros capitalistas, cujo desenvolvimento é condicionado pelo desenvolvimento geral da produção capitalista fora da agricultura. (O Capital, III)... "Os acontecimentos que transformaram os camponeses em assalariados, e os seus meios de subsistência e de trabalho em elementos materiais do capital, fornecem a este último não só a força de trabalho necessária como também o seu mercado interno" (O Capital, I). A paupeização e a ruína da população dos campos desempenham, por seu turno, um papel importante na criação de um exército industrial de reserva à disposição do capital. Em todos os países capitalistas "uma parte da população dos campos encontra-se sempre sujeita a converter-se em população urbana manufactureira (quer dizer, não agrícola). O operário agrícola encontra-se constantemente reduzido ao mínimo de salário, e com um pé na lama do pauperismo" (O Capital, I). A propriedade privada do camponês sobre a terra que cultiva constitui a base da sua pequena produção, a condição para que esta prospere e adquira uma forma clássica. Mas esta pequena produção é única e exclusivamente compatível com o quadro primitivo e estreito da produção e da sociedade. Em regime capitalista, "a exploração dos camponeses não se distingue a não ser formalmente da exploração do proletariado industrial. O explorador é o mesmo: o capital. Os capitalistas individuais exploram os camponeses tomados individualmente através das hipotecas e da usura. A classe capitalista explora a classe camponesa através do imposto pago ao Estado" (As Lutas de Classes em França). "A courela do camponês não é mais que o pretexto que permite ao capitalista tirar da terra lucro, juro e renda e de deixar ao camponês o cuidado de ver como conseguirá obter o seu próprio salário" (O 18 de Brumário). Vulgarmente, o camponês entrega à sociedade capitalista, quer dizer à classe dos capitalistas, uma parte do seu salário e cai assim "ao nível do rendeiro irlandês, ainda que na aparência seja um proprietário privado" (As Lutas de Classes em França). Qual é "uma das razões que faz com que, nos países em que a propriedade parcelar predomina, o preço do trigo seja menos elevado do que nos países de modo de produção capitalista?" (O Capital, III). A razão é que o camponês entrega gratuitamente à sociedade (quer dizer à classe dos capitalistas) uma parte do seu sobreproduto. "Este preço pouco elevado (do trigo e dos outros produtos agrícolas) resulta portanto da pobreza dos produtores e não da produtividade do seu trabalho" (ibid.). Em regime capitalista, a pequena propriedade agrária, forma normal da pequena produção, degrada-se, estiola e perece. "Pela sua natureza, a propiedade parcelar é incompatível com o desenvolvimento das forças produtivas sociais do trabalho, as formas sociais do trabalho, a concentração social dos capitais, a criação de animais e grande escala e a aplicação crescente da ciência. A usura e o sistema fiscal acabam por a arruinar fatalmente. O capital investido na compra da terra é retirado à cultura: Os meios de produção são fragmentados ao infinito. Os produtores são disseminados" (as cooperativas, as associações de pequenos camponeses, que desempenham um papel progressivo burguês dos mais consideráveis, apenas podem enfraquecer esta tendência, mas não suprimi-la; não nos podemos esquecer que estas cooperativas dão muito aos camponeses abastados, e muito pouco ou quase nada à massa dos camponeses pobres, nem tão pouco que estas mesmas associações acabam por explorar o trabalho assalariado). " Um enorme desperdício da força humana; agravamento das condições de produção e encarecimento dos meios de produção: tal é a lei da (pequena) propriedade parcelar". Na agricultura como na indústria, o capitalismo só transforma o processo de produção à custa do martirológio dos produtores. "A disseminação dos trabalhadores agrícolas por grandes áreas, quebra a sua força de resistência, enquanto que a concentração aumenta a dos operários urbanos. Na agricultura moderna capitalista, da mesma forma que na indústria das cidades, o aumento da produtividade e o rendimento superior do trabalho compram-se ao preço da destruição e do esgotamento da força de trabalho. Por outro lado, todo o progresso da agricultura capitalista é umprogresso não somente na arte de explorar o trabalhador, mas ainda na arte de esgotar a terra... A produção capitalista não desenvolve portanto a técnica e a combinação do processo de produção social senão pelo esgotamento simultâneo das duas fontes de toda a riqueza: a terra e o homem" (O Capital, Livro I, fim do 13.º capítulo).
O socialismo
Vê-se pelo que foi dito antes, que se Marx concluiu que é inevitável a transformação da sociedade capitalista em sociedade socialista, foi inteira e exclusivamente a partir das leis económicas do movimento da sociedade moderna. A socialização do trabalho, que progride sempre mais rapidamente sob mil formas diversas, e que durante o meio século passado após a morte de Marx, se manifestou sobretudo pela extensão da grande indústria, dos cartéis, dos sindicatos e dos trusts capitalistas, e também pelo enorme crescimento do volume e do poder do capital financeiro, eis a principal base material do inevitável advento do socialismo. O motor intelectual e moral, o agente físico desta transformação é o proletariado educado pelo próprio capitalismo. A luta do proletariado contra a burguesia, revestindo formas diversas e cada vez mais ricas de conteúdo, torna-se inevitavelmente uma luta política, tendente à conquista do poder político (ditadura do proletariado). A socialização da produção não pode deixar de culminar com a transformaçã dos meios de produção em propriedade social, numa expropriação dos expropriadores. O enorme aumento da produtividade do trabalho, a reduça~da jornada de trabalho, a substituição dos vestígios e das ruínas da pequena propriedade, primitiva e disseminada, pelo trabalho colectivo aperfeiçoado: tais são as consequências directas desta transformação. O capitalismo rompe definitivamente a ligação da agricultura com a indústria, mas prepara ao mesmo tempo, pelo seu desenvolvimento a um nível superior, elementos novos desta ligação: a união da indústria com a agricultura na base de uma aplicação consciente da ciência, de uma coordenação do trabalho colectivo, de uma nova repartição da população (pondo termo ao isolamento do campo, ao seu estado de abandono e incultura, e também com a aglomeração anti-natural de gigantescas massas humanas nas grandes cidades). As formas superiores do capitalismo moderno preparam um novo tipo de relações familiares, novas condições quanto à situação da mulher e à educação das novas gerações: o trabalho das mulheres e das crianças, a dissolução da família patriacal pelo capitalismo, tomam inevitavelmente, na sociedade moderna, as formas mais terríveis, mais desastrosas e mais repugnantes. Todavia, "a grande indústria, graças ao papel decisivo que ela atribui às mulheres, aos adolescentes e às crianças, fora do círculo doméstico, em processos de produção socialmente organizados, não deixa por isso mesmo criar a nova base económica sobre a qual se elevará uma forma superior de família e das relações entre os sexos. É também absurdo considerar como absoluto e definitivo o modo germano-cristão da família assim como os seus modos oriental, grego e romano, os quais formam aliás entre si uma série progressiva. A própria composição do trabalho colectivo por indivíduos dos dois sexos e das mais diversas idades, fonte de corrupção e escravatura sob o regime capitalista, traz em si os germes duma nova evolução social". (O Capital, Livro I, fim do 13.º capítulo). O sistema da fábrica mostra-nos "o gérmen da educação do futuro, a educação que unirá para todas as crianças acima de uma certa idade o trabalho produtivo com a instrução e a ginástica, e isto não somente como meio de aumentar a produção social, mas como única método de criar homens completos" (ibid.). É sobre a mesma base histórica que o socialismo de Marx coloca os problemas da nacionalidade e do Estado, não somente para explicar o passado, mas também para prever corajosamente o futuro e empreender uma acção audaciosa com vista à sua realização. As nações são um produto e uma forma inevitáveis da época burguesa da evolução das sociedades. A classe operária não teria podido fortificar-se, aguerrir-se e formar-se, sem se organizar no quadro da nação, sem ser nacional (embora de modo algum no sentido burguês da palavra). Mas o desenvolvimento do capitalismo destrói incessantemente as barreiras nacionais, dstrói o isolamento nacional, substitui os antagonismos nacionais pelos antagonismos de classe. É por isso que, nos países capitalistas desenvolvidos, é perfeitamente verdade que "os operários não têm pátria" e que, nos países civilizados, pelo menos a sua "acção comum é uma das primeiras condições da emancipação do proletariado" (Manifesto do Partido Comunista). O Estado, quer dizer, esta violência organizada, surgiu inevitavelmente num certo grau de evolução da sociedade quando esta, dividida em classes irreconciliáveis, não teria podido subsistir sem um poder pretensamente colocado acima da sociedade e atá certo ponto separado dela. Nascido dos antagonismos de classe, o Estado torna-se "o Estado da classe mais poderosa, a que domina do ponto de vista económico, e que, graças a ele, se torna também a classe politicamente dominante e adquire assim novos meios de oprimir e explorar a classe oprimida. É assim que o Estado antigo era antes de tudo o Estado dos proprietários de escravos para dominar os escravos, como o Estado feudal foi o órgão da nobreza para dominar os camponeses servos e sujeitos à corveis, e como o Estado representativo moderno é o instrumento da exploração do trabalho assalariado pelo capital" (F. Engels: A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, onde expõe as suas ideias e as de Marx). Mesmo a forma mais livre e a mais progressiva do Estado burguês, a república democrática, não elimina de forma alguma este facto, mas modifica-lhe unicamente o aspecto (ligação do governo com a Bolsa, corrupção directa e indirecta dos funcionários e da imprensa, etc.). O socialismo, levando à supressão das classes, conduz por isso mesmo à supressão do Estado. "O primeiro acto no qual o Estado surge realmente como representante de toda a sociedade — a tomada de posse dos meios de produção em nome da sociedade —, é ao mesmo tempo o seu último acto como Estado. A intervenção de um poder de Estado nas relações sociais torna-se supérflua num sector após outro e cessa naturalmente. O governo das pessoas dá lugar à administração das coisas e à direcção das operações de produção. O Estado não é "abolido, extingue-se" (F. Engels: Anti-Dühring). "A sociedade, que reorganizará a produção na base de uma associação livre e igualitária dos produtores, relegará toda a máquina do Estado para onde será doravante o seu lugar: no museu das antiguidades, ao lado da roda e do machado de bronze" (F. Engels: A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado).
Finalmente, no que respeita à posição do socialismo de Marx em relação ao pequeno campesinato, que existirá ainda na época em que os expropriadores serão expropriados, importa mencionar esta declaração de Engels, que exprime o pensamento de Marx: "Quando estivermos no poder, não podemos sonhar em expropriar pela força os pequenos camponeses (seja com ou sem indemnização), como seremos obrigados a fazer com os grandes proprietários da terra. O nosso dever para com o camponês é, em primeiro lugar, fazer passar a sua propriedade e a sua exploração individuais a exploração cooperativa, não pela força mas sim pelo exemplo e pondo à sua disposição a ajuda da sociedade. E aqui os meios não nos faltam para fazer entrever ao pequeno camponês as vantagens que lhe saltarão aos olhos desde esse dia" (F. Engels: A Questão Camponesa na França e na Alemanha, edit. Aléveiéva, p.17. A traduça~russa contém erros. Ver original na Neue Zeit).
A táctica da luta de classes do proletariado
Tendo discernido já nos anos 1844-1845, uma das principais lacunas do antigo materialismo, que não tinha sabido compreender as condições, nem apreciar o alcance da actividade prática revolucionária, marx dedica durante toda a sua vida, paralelamente aos seus trabalhos teóricos, uma atenção constante às questões da táctica da luta de classes do proletriado. Todas as obras de marx fornecem a esse respeito uma rica documentação, em particular a sua correspondência com Engels, publicada em 1913, em quatro volumes. Esta documentação está ainda longe de estar inteiramente recolhida, classificada, estudada e analisada. É por isso, que nos devemos aqui limitar às observações mais breves e mais gerais, sublinhando que, sem este aspecto, Marx considerava com razão o materialismo como incompleto, unilateral e esclerosado. A tarefa essencial da táctica do proletariado era definida por Marx em função da sua concepção materialista e dialéctica do mundo. Só o estudo objectivo do conjunto das relações de todas as classes, sem excepção, de uma dada sociedade, e por conseguinte, o conhecimento do grau objectivo do desenvolvimento desta última e das correlações entre ela e as outras sociedades, pode servir de base a uma táctica justa da classe de vanguarda. Por outro lado, todas as classes e todos os países são considerados, sob um aspecto não estático mas dinâmico, quer dizer, não num estado de imobilidade mas no seu movimento (movimento cujas leis derivam das condições económicas de existência de cada classe). O movimento é por sua vez considerado do ponto de vista não apenas do passado, mas também do futuro, e não segundo a concepção vulgar dos evolucionistas, que unicamente se apercebem das modificações lentas, mas sim de uma forma dialéctica: "Nos grandes desenvolvimentos históricos, escrevia Marx a Engels, vinte anos não são mais do que um dia, ainda que, seguidamente, possam vir dias que concentrem neles vinte anos" (Correspondência, t. III).
A cada etapa da evolução, em cada momento, a táctica do proletariado deve ter em conta esta dialéctica objectivamente inevitável da história da humanidade: por um lado, aproveitando as épocas de estagnação política, quer dizer de desenvolvimento dito pacífico, avançando a passo de tartaruga, para aumentar a consciência, a força e a combatividade da classe de vanguarda; por um lado, orientando todo este trabalho para o objectivo final desta classe e tornando-o capaz de cumprir praticamente as grandes tarefas nas grandes jornadas que concentram em si vinte anos. Duas teses de Marx são particularmente importantes a este respeito. Uma, na Miséria de Filosofia, que diz respeito à luta económica e às organizações económicas do proletariado. A primeira está assim enunciada: "A grande indústria concentra num só local uma multidão de pessoas desconhecidas umas das outras. A concorrência divide-os em função dos seus interesses. Mas a continuidade do salário, é o interesse comum que têm contra o seu patrão, reunindo-os num mesmo pensamento de resistência-coligação... As coligações primeiro isoladas, formam-se em grupos e, face ao capital sempre unido, a subsistência da associação torna-se mais importante para eles que a do próprio salário... Nesta luta — verdadeira guerra civil — reúnem-se e desenvolvem-se todos os elementos necessários à batalha que há-de vir. Uma vez chegada a este ponto, a associação toma um carácter político". Temos aqui o programa e a táctica da luta económica e do movimento sindical para dezenas de anos, para todo o período de preparação das forças do proletariado para a batalha que há-de vir. Há que relacionar tudo isto com as numerosas indicações de Marx e Engels, baseadas na experiência do movimento operário inglês, que mostram como a prosperidade industrial suscita tentativas de "comprar o proletariado" (Correspondência, t. I), de o retirar da luta; como esta prosperidade em geral "desmoraliza os operários" (II); como o proletarido inglês se "aburguesa" e como "a nação mais burguesa de todas" (a nação inglesa) "parece querer finalmente possuir ao lado da burguesia uma aristocracia burguesa e um proletariado burguês" (II); como a sua "energia revolucionária" desaparece (III); como será necessário esperar mais ou menos tempo para que "os operários ingleses se desembaracem da sua visível contaminação burguesa" (III); como o "ardor dos cartistas" faz falta ao movimento operário inglês (1866, III); como os líderes operários ingleses se tornam uma espécie de intermediários "entre a burguesia radical e o operariado" (alusão a Holyoake, IV); como, devido ao monopólio da Inglaterra e enquanto este monopólio subsistir, "nada há a fazer com os operários ingleses" (IV). A táctica da luta económica, em relaçáo com a marcha geral (e com o resultado) do movimento operário, é examinada aqui de um ponto de vista notavelmente vasto, universal, dialéctico e autenticamente revolucionário.
O Manifesto do Partido Comunista enunciou o princípio fundamental do marxismo no que diz respeito à táctica da luta política: "Os comunistas combatem pelos interesses e objectivos imediatos da classe operária, mas ao mesmo tempo... defendem... o provir desse movimento". Partindo daí, Marx defende em 1848-1849, o partido da revolução agrária da Polónia, quer dizer, o Partido que fez, em 1846, a insurreição de Cracóvia. Em 1848-1849, Marx defende a democracia revolucionária extrema na Alemanha e nunca mais alterou o que disse nessa altura a propósito da táctica. Ele considerava a burguesia alemã como um elemento desde o princípio inclinado a trair o povo (somente a aliança com os camponeses poderia permitir à burguesia atingir inteiramente os seus fins) e a estabelecer um compromisso com o representante coroado da velha sociedade. Eis a análise final feita por Marx sobre a situação da classe da burguesia alemã na época da revolução democrática burguesa. Esta análise é, além do mais, um modelo de análise materialista que considera a sociedade no seu movimento, sem se limitar ao movimento voltado para o passado: "... sem fé em si próprio, sem fé no povo, rosnando contra os grandes, tremendo diante dos pequenos; ... receando o furacão universal;... sem energia, plagiando em todos os sentidos; ... sem iniciativa; ... velho sobre o qual pesa a maldição, condenado a dirigir de acordo com os seus interesses senis os primeiros ímpetos de um povo jovem e robusto..." (Nova Gazeta Renana, V, A Herança Literária, t. III). Cerca de vinte anos depois, numa carta a Engels (III), Marx escrevia que a revolução de 1848 tinha falhado porque a burguesia tinha preferido a paz na escravatura perante a perspectiva de combater pela liberdade. logo que a época das revoluções de 1848-1849 se encerrou, Marx levantou-se contra qualquer tentativa de brincar às revoluções (luta contra Shapper-Willich), exigindo que se soubesse trabalhar na nova época que preparava, sob uma paz aparente, novas revoluções. O juízo seguinte de Marx sobrea situação na Alemanha em 1856, na época da mais negra reacção, mostra com que espírito ele entendia que o trabalho devia ser cumprido: "Na Alemanha tudo dependerá da possibilidade de fazer apoiar a revolução proletária por reedição da guerra camponesa" (Correspondência, II). Enquanto a revolução democrática (burguesa) não terminou na Alemanha, Marx dedicou toda a sua atenção, no que diz respeito à táctica do proletariado socialista, ao desenvolvimento da energia democrática do campesinato. Considerava que a atitude de Lassale era "objectivamente... uma traição em relação a todo o movimento operário em proveito da Prússia" (III), designadamente porque favorecia os grandes proprietários de terras e o nacionalismo prussiano. "Num país essencialmente agrícola, é uma baixeza — escrevia Engels a Marx em 1865, a propósito de um projecto de declaração comum na imprensa — atacar, em nome do proletariado industrial, unicamente a burguesia, sem sequer fazer alusão à exploração patriacal, exploração à vergastada, do proletariado rural pela grande nobreza feudal" (III). No período de 1864-1870, quando terminava na Alemanha a época da revolução democrática burguesa, época em que as classes exploradoras da Prússia e da Áustria disputavam entre si os meios de terminar esta revolução pelo topo, Marx não se limitava a condenar Lassale pelas suas complacências para com Bismark, mas corrigia também Liebknecht, que caía na austrofilia e defendia o particularismo. Marx exigia uma táctica revolucionária que combatesse tão implacavelmente Bismark como os austrófilos, uma táctica que não se adaptasse ao vencedor, o fidalgo prussiano, mas que renovasse imediatamente a luta revolucionária contra ele, igualmente no terreno criado pelas vitórias militares da Prússia (Correspondência, III). Na célebre Mensagem da Internacional datada de 9 de Setembro de 1870, Marx alertava o proletariado francês contra a insurreição prematura; mas quando apesar de tudo ela se deu (1871), saudou com entusiasmo a iniciativa revolucionária das massas tomando o céu de assalto (carta de Marx a Kugelman). A derrota do movimento revolucionário nesta situação como em muitas outras foi, à luz do materialismo dialéctico de Marx, um mal menor, do ponto de vista da marcha geral e do desenlace da luta proletária, comparado com o que teria sido o abandono da posição ocupada, a capitulação sem combate; uma tal capitulação teria desmoralizado o proletariado, minado a sua combatividade. Apreciando no seu justo valor o emprego de meios legais de luta em período de estagnação política e de dominação da legalidade burguesa, Marx condenou vigorosamente em 1877-1878, após a promulgação da lei de excepção contra os socialistas, a frase revolucionária dum Most; mas reprovou com igual energia, senão mais, o oportunismo que se tinha então apoderado momentaneamente do Partido social-democrata oficial, o qual não tinha sabido dar imediatamente provas de firmeza, de tenacidade, espírito revolucionário e vontade, em resposta à lei de excepção, passando à luta ilegal (Correspondência, t. IV, ver igualmente as cartas de Marx a Sorge).
Escrito de Julho a Novembro de 1914. Publicado pela primeira vez em 1915 no Dicionário Enciclopédico Granat, 7.ª edição, tomo 28
Assinado: V. Iline
Prefácio
O artigo, que agora surge em brochura, foi redigido por mim em 1913 (tanto quanto me lembro) para o Dicionário Granat. Seguia-se-lhe uma nota bibliográfica bastante extensa, que indicava sobretudo obras em línguas estrangeiras, a qual não figura nesta edição. Além disso, a Redacção do Dicionário tinha, por seu lado, suprimido o fim do artigo onde expunha a táctica revolucionária de Marx, devido à censura. Lamentavelmente, é-me impossível reconstituir aqui essa passagem, visto o raascunho ter ficado, entre outros papéis meus, em Cracóvia ou na Suiça. Lembro-me unicamente que no fim do artigo reproduzia, entre outras, uma passagem de uma carta de Marx a Engels datada de 16 de Abril de 1856, em que ele escrevia: Na Alemanha tudo dependerá da possibilidade de fazer apoiar a revolução proletária por uma reedição da guerra camponesa. Então tudo irá bem. Eis o que não compreenderam, depois de 1905, os nossos mencheviques, que acabaram agora por trair completamente a causa do socialismo passando-se para o lado da burguesia.
Moscovo, 14 de Maio de 1918.
Karl Marx
Karl Marx nasceu a 5 de Maio de 1818, em Treves (Prússia renana). seu pai, um advogado judeu, converteu-se em 1824 ao protestantismo. A família abastada e culta, não era revolucionária. Após ter terminado o liceu em Treves, Marx matricula-se na Universidade de Bona e em seguida na de Berlim; aí estuda direito, mas sobretudo história e filosofia. Em 1841, conclui oa seus estudos defendendo uma tese de doutoramento sobre a filosofia de Epicuro. Nesta época, as suas concepções faziam ainda de Marx um hegeliano idealista. Em Berlim, fez parte do círculo dos hegelianos de esquerda (englobando entre outros Bruno Bauer), que procuravam extrair da filosofia de Hegel conclusões ateias e revolucionárias.
Ao sair da Universidade, Marx fixa-se em Bona, onde esperava tornar-se professor. Mas a política reccionária de um governo que tinha retirado a Ludwig Feuerbach a regência de uma cadeira em 1832, que em 1836 lhe recusou de novo o acesso à Universidade e que em 1841 proíbiu o jovem professor Bruno Bauer de fazer conferências em Bona, obrigou Marx a renunciar à carreira universitária. Nesta época o desenvolvimento das ideias dos hegelianos de esquerda fazia progressos muito rápidos na Alemanha. Ludwig Feuerbach começa, sobretudo a partir de 1836, a criticar a teologia e a orientar-se para o materialismo que acaba por adoptar inteiramente em 1841(A Essência do Cristianismo); em 1843 surgem os seus Princípios da Filosofia do Futuro. Há que ter vivido pessoalmente a acção libertadora destes livros, escrevia mais tarde Engels a propósito destas obras de Feuerbach. Nós (quer dizer os hegelianos de esquerda, incluindo Marx) tornámo-nos imediatamente feuerbachianos. Nesta época os burgueses radicis da Renânia, que tinham certos pontos de contacto com os hegelianos de esquerda, fundaram em Colónia um jornal de oposição, a Gazeta Renana (que apareceu a partir de 1 de Janeiro de 1842). Marx e Bruno Bauer entraram para ele como principais colaboradores e em Outubro de 1842, Marx torna-se redactor-chefe; troca então Bona por Colónia. Sob a direcção de Marx, a tendência democrática revolucionária do jornal afirma-se cada vez mais, e o governo, após ter submetido o jornal a uma dupla e mesmo tripla censura, decide mais tarde, a partir de 1 de Janeiro de 1843, suspendê-lo completamente. Nesta altura Marx viu-se obrigado a abandonar o seu posto de redactor antes do encerramento, mas a sua saída não salvou o jornal, que foi proibido em Março de 1843. Entre os artigos mais importantes que Marx publicou na Gazeta Renana, além dos que são indicados mais adiante (ver Bibliografia), Engels cita um artigo sobre a situação dos vinhateiros do vale do Mosela. a actividade de jornalista mostrou a Marx que os seus conhecimentos sobre economia política eram insuficientes, por isso dedicou-se a estudar com ardor esta ciência.
Em 1843, Marx casa-se em Kreuznach com Jenny von Westphalen, uma amiga de infância, com a qual se tinha comprometido quando prosseguia ainda os seus estudos. A sua mulher descendia de uma família aristocrática e reaccionária da Prússia. O irmão mais velho de Jenny von Westphalen foi ministro do interior da Prússia numa das épocas mais reaccionárias: 1850-1858. No Outono de 1843, marx encontrava-se em Paris para editar no estrangeiro uma revista radical com Arnold Ruge (1802-1880, hegeliano de esquerda preso de 1825 a 1830, emigrado desde 1848 e bismarckiano a partir de 1866-1870). Assim que surgiu o primeiro fascículo desta revista, intitulada Os Anais Franco-Alemães, logo a publicação foi interrompida devido às dificuldades de difus~so clandestina na Alemanha e a divergências com Ruge. Nos artigos publicados nesta revista, Marx aparece-nos já como um revolucionário que proclama a necessidade da crítica implacável de tudo o que existe e, em particular, a crítica das armas, que apele às massas e ao proletariado.
Em setembro de 1844, Friedrich Engels vai a Paris por alguns dias e torna-se desde logo o amigo mais íntimo de Marx. Ambos tomam parte na vida intensa que tinham na época os grupos revolucionários de Paris (era então particularmente importante a doutrina de Proudhon, com a qual Marx categoricamente ajustou contas na Miséria da Filosofia, editada em 1847) e combatendo com afinco as diversas doutrinas do socialismo pequeno-burguês, elaboram a teoria e a táctica do socialismo proletário revolucionário, ou comunismo (marxismo). Ver mais adiante (Bibliografia) as obras de Marx desta época, 1844-1848. Em 1845, a pedido do governo prussiano, Marx foi expulso de Paris como revolucionário perigoso, instalando-se em Bruxelas. Na Primavera de 1847, Marx e Engels filiaram-se numa sociedade secreta, a Liga dos Comunistas, e desempenharam um papel de primeiro plano no II Congresso desta Liga (Londres, Novembro de 1847). A pedido do Congresso eles redigiram o célebre Manifesto do Partido Comunista, publicado em Fevereiro de 1848. Esta obra expõe com uma clareza e um vigor notáveis a nova concepção do mundo: o materialismo consequente aplicado à vida social; a dialéctica, a ciência mais vasta e mais profunda da evolução; a teoria da luta de classes e do papel revolucionário atribuído pela história universal ao proletariado, criador de uma sociedade nova, a sociedade comunista.
Assim que estalou a revolução de 1848, Marx foi expulso da Bélgica. Regressa a Paris, que deixará após a revolução de Março para regressar à Alemanha e fixar-se em Colónia. Foi lá que apareceu de 1 de Junho de 1848 a 19 de Maio de 1849, a Nova Gazeta Renana, da qual Marx foi redactor-chefe. A nova teoria encontra-se brilhantemente confirmada pelo curso dos acontecimentos revolucionários 1848-1849, como viriam a confirmá-lo seguidamente os movimentos proletários e democráticos em todos os países do mundo. A contra-revolução vitoriosa fez comparecer Marx primeiro em tribunal (foi absolvido em 9 de Fevereiro de 1849) e posteriormente expulsou-o da Alemanha (16 de Maio de 1849). Marx voltou a Paris, donde foi igualmente expulso após a manifestação de 13 de Junho de 1849, e depois a Londres, onde acabou por viver atá ao fim dos seus dias.
As condições de vida na emigração eram extremamente penosas, como o revela a correspondência entre Marx e Engels (editada em 1913). Marx e a sua família estavam esmagados pela miséria; sem o apoio constante e devotado de Engels, não só Marx não teria podido acabar O Capital como teria mesmo fatalmente sucumbido à miséria. Além disso, as doutrinas e as correntes predominantes do socialismo pequeno-burguês obrigavam Marx a conduzir permanentemente uma luta implacável e por vezes a ter que repelir os ataques pessoais mais furiosos e mais despropositados (como fez na sua obra Herr Vogt). Mantendo-se à margem dos círculos de emigrados, Marx elaborou uma série de trabalhos históricos (ver Bibliografia) a sua teoria materialista. Aplicando-se sobretudo ao estudo da economia política, ele revoluciona esta ciência (ver mais adiante a Doutrina de Marx) nas suas obras Contribuição para a Crítica da Economia Política (1859) e O Capital (Livro I, 1867).
O recrudescimento dos movimentos democráticos, no fim dos anos 50 e durante os anos 60, leva Marx a retomar uma actividade prática. Em 28 de Setembro de 1864 foi fundada em Londres a célebre I Internacional, a Associação Internacional dos Trabalhadores. Marx era a alma desta associação; é igualmente o autor da sua primeira Mensagem e de um grande número de resoluções, declarações e manifestos. Unindo o movimento operário de diversos países, procurando orientar na via de uma actividade comum as diferentes formas de socialismo não proletário, pré-marxista (Mazzini, Proudhon, Bakunine, o trade-unionismo liberal inglês, as oscilações de direita dos lassalianos da Alemanha, etc.), combatendo as teorias de todas estas seitas e escolas, Marx forja uma táctica única para a luta proletária da classe operária nos diversos países. Após a queda da Comuna de Paris em 1871, sobre a qual ele tece uma apreciação revolucionária tão profunda, tão justa, tão brilhante e tão eficaz ( A Guerra Civil em França, 1871) e na sequência da cisão da Internacional provocada pelos bakuninistas, foi impossível a esta última subsistir na Europa. Após o Congresso de 1872 em Haia, Marx faz aprovar a transferência do Conselho Geral da Internacional para Nova Iorque. A Internacional tinha cumprido a sua missão histórica e cedia o lugar a uma época de crescimento infinitamente mais considerável do movimento operário em todos os países, caracterizado pelo seu desenvolvimento em extensão, pela formação de partidos socialistas operários de massa, no quadro dos diversos Estados nacionais.
A sua actividade intensa na Internacional e os seus trabalhos teóricos, que exigiam esforços ainda maiores, abalaram definitivamente a saúde de Marx. Continuou a renovar a economia política e a redigir O Capital, reunindo para esse fim uma quantidade de documentos novos e estudando diversas línguas (o russo por exemplo). Mas a doença impede-o de terminar O Capital.
A sua mulher morre a 2 de Dezembro de 1881. A 14 de Março de 1883, Marx adormeceu tranquilamente na sua poltrona, no seu último sono. Foi a enterrar junto de sua mulher no cemitério de Highgate, em Londres. Muitos dos filhos de Marx morreram muito jovens, em Londres, na altura em que a família vivia numa grande miséria. As suas três filhas casaram-se com socialistas de Inglaterra e de França; são elas, Eléonore Eveling, Laura Lafargue e Jenny Longuet, cujo filho é membro do partido socialista fancês.
A doutrina de Marx
O marxismo é o sistema de ideias e da doutrina de Marx. Marx continuou e completou as três principais correntes de ideias do século XIX, que pertencem aos três países mais avançados da humanidade: a filosofia clássica alemã, a economia política clásica inglesa e o socialismo francês, ligado às doutrinas revolucionárias francesas em geral. A lógica e a unidade notáveis das ideias de Marx (qualidades reconhecidas inclusive pelos adversários), cujo conjunto constitui o materialismo e o socialismo científico contemporâneos como teoria e programa do movimento operário de todos os países civilizados, obrigam-nos a fazer preceder a exposição do conteúdo essencial do marxismo, a doutrina económica de Marx, dum breve resumo da sua concepção geral do mundo.
O materialismo filosófico
Desde 1844-1845, época em que se formaram as suas ideias, que Marx era materialista; ele sofreu, em particular, a influência de Feuerbach, cujas únicas fraquezas, aos seus olhos, residiam na insuficiência de lógica e de amplitude do seu materialismo. Para Marx, a importância histórica de Feuerbach, que fez época, resultava de sua ruptura decisiva com o idealismo de Hegel e da sua adesão ao materialismo que já "no século XVIII, nomesdamente em França, representava não só uma luta contra as instituções políticas existentes, mas também contra a religião e a teologia, e em geral... contra a metafísica (tomada no sentido de especulação embriagante por oposição à filosofia razoável)" (A Sagrada Família, em Herança Literária). "Para hegel, escrevia Marx, o movimento do pensamento, que ele personifica sob o nome de ideia, é o demiurgo (o criador) da realidade... Para mim, pelo contrário, o movimento do pensamento não é mais que o reflexo do movimento real traduzido e transposto para o cérebro humano" (O Capital, Livro I, posfácio da segunda edição). em perfeito acordo com esta filosofia materialista de Marx, F. Engels expondo-a no Anti-Dühring do qual Marx havia lido o manuscrito, escrevia: "A unidade do mundo consiste no seu Ser... A unidade real do mundo consiste na sua materialidade, e esta prova-se... por um longo e laborioso desenvolvimento da filosofia e das ciências da natureza... O movimento é o modo de existência da matéria. Nunca nem em parte alguma, houve matéria sem movimento nem movimento sem matéria... mas se nos interrogamos em seguida sobre o que são e donde provêm o pensamento e a consciência, concluímos que eles são produtos do cérebro do homem e ele mesmo um produto da natureza, que se desenvolveu num determinado ambiente natural; pelo que chegamos à conclusão lógica de que os produtos do cérebro humano, que, em última análise, são também produtos da natureza, não estão em contradição mas em conformidade com o conjunto da natureza. Hegel era idealista, o que quer dizer que em vez de considerar as ideias do seu espírito como reflexos (no original: Abbilder, por vezes Engels fala de reprodução) mais ou menos abstractos dos objectos e dos fenómenos naturais, considerava pelo contrário os objectos e o seu desenvolvimento como imagens de uma ideia existindo não se sabe bem onde e anterior à existência do mundo". No seu Ludwig Feuerbach, livro em que expõe as suas próprias ideias e as de Marx sobre a filosofia de Feuerbach, e que não mandou imprimir senão depois de ter relido uma vez mais o velho manuscrito de 1844-1845, escrito em colaboração com Marx, sobre Hegel, Feuerbach e a concepção materialista da história, Engels escreve: "A grande questão fundamental de toda a filosofia, especialmente da filosofia moderna, é a questão... da relação entre o pensamento e o ser, entre o espírito e a natureza... a questão de saber qual é o elemento primordial, o espírito ou a natureza... Conforme respondiam desta ou daquela maneira a esta questão, assim os filósofos se dividiam em dois grandes campos. Os que afirmavam o carácter primordial do espírito em relação à natureza, e que admitiam por consequência, em última instância, uma criação do mundo, qualquer que fosse a sua espécie... formavam o campo do idealismo. Os outros, que consideravam a natureza como o elemento primordial, pertenciam às diversas escolas do materialismo". Qualquer outro emprego das noções de idealismo e de materialismo (no sentido filosófico) só cria confusão. Marx repelia categoricamente não sómente o idealismo, sempre ligado duma forma ou doutra à religião, mas também os pontos de vista de Hume e de Kant, particularmente difundidos nos nossos dias, o agnosticismo, o criticismo, o positivismo sobre os seus diferentes aspectos, considerando este género de filosofia como uma concessão reaccionária ao idealismo e, no melhor dos casos, como uma forma envergonhada de aceitar o materialismo às escondidas, renegando-o publicamente. Veja-se a propósito, além das obras de Engels e de Marx que acabámos de citar, a carta de Marx a Engels datada de 12 de Dezembro de 1868, onde ele fala de uma intervenção do célebre naturalista T. Huxley. Constatando que este último se mostra mais materialista do que habitualmente e que tinha reconhecido que, enquanto observamos e pensamos na base da realidade, nunca podemos sair do materialismo, Marx censurou-o de ter aberto uma porta escusa ao agnosticismo e à teoria de Hume. Importa sobretudo reter a concepção de Marx sobre a relação entre a liberdade e a necessidade: "A necessidade só é cega na medida em que não é compreendida... A liberdade é a consciência da necessidade" (F. Engels no Anti-Dühring); por outras palavras, a liberdade consiste em reconhecer a existência das leis objectivas da natureza e da transformação dialéctica da necessidade em liberdade (da mesma forma que a transformação da "coisa em si", não conhecida ainda, mas susceptível de o ser, numa "coisa para si", da "essência das coisas" em "fenómenos"). Segundo Marx e Engels, o defeito essencial do antigo materialismo, incluindo o de Feuerbach (e com mais razão ainda do materialismo vulgar de Büchner, Vogt, Moleschott), consistia no seguinte: 1) este materialismo era essencialmente mecanicista e não tinha em conta os últimos progressos da química e da biologia (nos nossos dias conviria acrescentar ainda: da teoria eléctrica da matéria); 2) o antigo materialismo não era nem histórico nem dialéctico (mas metafísico no sentido de anti-dialéctico) e não aplicava o ponto de vista da evolução de uma forma sistemática e generalizada; 3) concebia a essência do homem como uma abstracção e não como o conjunto de todas as relações sociais (concretamente determinadas pela história) e por conseguinte o que fazia era interpretar o mundo quando na realidade se tratava de o transformar, quer dizer que não compreendia o alcance da actividade prática revolucionária.
A dialéctica
Marx e Engels viam na dialéctica de Hegel, doutrina mais vasta, mais rica e mais profunda da evolução, uma imensa aquisição da filosofia clássica alemã. Qualquer outro enunciado do princípio do desenvolvimento, da evolução, parecia-lhes unilateral, pobre, deformante e mutilante da marcha real da evolução na natureza e na sociedade (mitas vezes marcada por saltos, catástrofes e revoluções). "Marx e eu fomos certamente dos poucos a salvarmos (do idealismo, incluindo o hegelianismo) a dialéctica consciente para a integrar na concepção materialista da natureza. A natureza é o banco de ensaio da dialéctica e devemos dizer para honra da ciência moderna da natureza que ela forneceu para este banco de ensaio uma rica colheita de factos (isto foi escrito antes da descoberta do rádio, dos electrões, da transformação dos elementos, etc.) que aumenta todos os dias, provando assim que na natureza as coisas se movimentam, em última análise, dialecticamente e não metafisicamente".
"A grande ideia fundamental — escrevia Engels — segundo a qual o mundo não deve ser considerado como um conjunto de coisas acabadas, mas como um conjunto de processos onde as coisas, aparentemente imutáveis, assim como os seus reflexos intelectuais no nosso cérebro, os conceitos, passam por uma transformação ininterrupta de devir e perecer; esta a grande ideia fundamental, sobretudo a partir de Hegel, penetrou tão profundamente na consciência comum, que dificilmente encontrará quem a discuta na sua forma geral. Mas reconhecê-la em palavras e aplicá-la na realidade, em detalhe, em cada domínio submetido à investigação, são duas coisas diferentes". "Nada subsiste de definitivo, de absoluto, de sagrado perante ela (a filosofia dialéctica); ela mostra a caducidade de todas as coisas e em todas as coisas, e nada subsiste perante ela a não ser o processo ininterrupto do devir e do perecer, da ascensão sem fim do inferior ao superior, de que ela própria não é mais que o reflexo no cérebro pensante". Portanto, segundo Marx, a dialéctica é a "ciência das leis gerais do movimento, tanto do mundo exterior como do pensamento humano".
É este o aspecto revolucionário da filosofia de Hegel que Marx adoptou e desenvolveu. O materialismo dialéctico nada tem a ver com uma filosofia planando acima das outras ciências. A parte que subsiste da antiga filosofia é a doutrina do pensamento e as suas leis — a lógica formal e a dialéctica. Ora, na concepção de Marx, como na de Hegel, a dialéctica abrange aquilo a que chamamos teoria do conhecimento ou gnoseologia, que deve igualmente considerar o seu objecto do ponto de vista histórico, estudando e generalizando a origem e o desenvolvimento do conhecimento, a passagem da ignorância ao conhecimento.
Na nossa época, a ideia de desenvolvimento, de evolução, penetrou quase totalmente na consciência social, mas por outras vias que não a da filosofia de Hegel. No entanto, esta ideia tal como a formularam Marx e Engels, apoiando-se em Hegel, é muito mais vasta e rica de conteúdo que a ideia corrente de evolução. Uma evolução que parece reproduzir os stádios já conhecidos, mas sob uma outra forma, num grau mais elevado (negação da negação); um desenvolvimento por assim dizer em espiral e não em linha recta; um desenvolvimento por saltos, por catástrofes, por revoluções, por soluções de continuidade; um desenvolvimento que é a transformação da quantidade em qualidade, impulsos internos do desenvolvimento provocados pela contradição, pelo choque das diversas forças e tendências agindo sobre um determinado corpo, no quadro de um dado fenómeno ou no seio de uma dada sociedade; a interdependência e a ligação estreita, indissolúvel, de todos os aspectos de cada fenómeno (com a particularidade da história colocar constantemente a descoberto novos aspectos), ligação que determina o processo universal do movimento, processo único, regido por leis, tais são alguns dos traços da dialéctica, muito mais rica de conteúdo que a habitual doutrina da evolução 8ver a carta de Marx a Engels datada de 8 de Janeiro de 1868, onde ele troça das "tricotomias rígidas" de Stein, que seria absurdo confundir com a dialéctica materialista).
A concepção materialista da história
Ao verificar que o antigo materialismo era inconsequente, incompleto e unilateral, marx concluiu que era necessário colocar a ciência da sociedade em concordância... com a base materialista, e reconstruir esta ciência apoiando-se sobre esta base. Se, de um modo geral, o materialismo explica a consciência pelo ser e não o inverso, esta doutrina, aplicada à sociedade humana, exigia que se explicasse a consciência social pelo ser social. "A tecnologia, diz Marx, põe a nu a relação activa do homem com a natureza, o processo de produção da sua vida material e, por consequência, a origem das relações sociais e das ideias ou concepções intelectuais que daí decorrem" (O Capital, Livro I). Encontramos uma formulação completa das teses fundamentais do materialismo aplicadas à sociedade humana e à sua história no prefácio de Marx à sua obra Contribuição para a Crítica da Economia Política, onde ele se exprime da seguinte forma:
"Na produção social da sua existência, os homens estabelecem entre si relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um grau de desenvolvimento determinado das suas forças produtivas materiais.
O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura económica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política à qual correspondem formas de consciência social determinadas. O modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; mas sim, contrariamente, o seu ser social que determina a sua consciência. Num certo estádio do seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que é apenas a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais até aí se tinham movido. De formas de desenvolvimento das forças produtivas que eram, estas relações convertem-se em entraves dessas mesmas forças produtivas. Abre-se então uma época de revolução social. A transformação da base económica revoluciona mais ou menos rapidamente toda a imensa superestrutura erigida sobre ela. Quando se consideram tais transformações, há que distinguir sempre entre a alteração material produzida nas condições de produção económicas — que podemos verificar de uma forma cientificamente rigorosa — e as alterações produzidas nas formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, nas formas ideológicas sob as quais os homens tomam consciência deste conflito e o conduzem até ao fim.
Assim como não ajuizamos um indivíduo pela ideia que ele faz de si próprio, também não podemos ajuizar uma determinada época de alterações pela consciência que ela tem de si própria; pelo contrário, é necessário explicar essa consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito que existe entre as forças produtivas sociais e as relações de produção...". "De uma maneira geral, a sucessão dos modos de produção asiático, da antiguidade, feudal e burguês moderno pode ser considerado como um progresso da formação social económica" (ver o formulado que Marx dá na sua carta a Engels datada de 7 de Julho de 1866: "a nossa teoria da determinação da organização do trabalho pelos meios de produção").
A descoberta da concepção materialista da história, ou mais exactamente, a aplicação consequente e a extensão do materialismo ao domínio dos fenómenos sociais, eliminou os dois defeitos essenciais das teorias históricas anteriores. Em primeiro lugar, estas últimas, apenas consideravam no melhor dos casos os móbeis ideológicos da actividade histórica dos homens, sem investigarem a origem destes móbeis, sem apreenderem as leis objectivas que presidem ao desenvolvimento da produção material; e, em segundo lugar, as teorias anteriores negligenciavam precisamente a acção das massas da população, enquanto que o materilismo histórico permite, pela primeira vez, estudar com a precisão das ciências naturais as condições sociais da vida das massas e as alterações operadas nestas condições. A sociologia e a historiografia anteriores a Marx acumulavam no melhor dos casos, factos em bruto, recolhidos ao acaso, e só expunham certos aspectos do processo histórico. O marxismo rasgou o caminho ao estudo global e universal do processo do nascimento, do desenvolvimento e do declínio das formações económicas e sociais, examinando o conjunto das tendências contraditórias, reconduzindo-as às condições de existência e de produção, claramente determinadas, das diversas classes da sociedade, eliminando o subjectivismo e a arbitrariedade na escolha das ideias dominantes, ou na sua interpretação, descobrindo a origemde todas as ideias e das diferentes tendências, sem excepção, que se manifestam no estado das forças produtivas materiais. Os homens são os artífices da sua própria história, mas o que é que determina os actos dos homens e mais precisamente das massas humanas? Qual é a causa dos conflitos entre as ideias e as aspirações contraditórias? Qual é a resultante de todos estes conflitos no conjunto das sociedades humanas? quais as condições objectivas da produção da vida material sobre as quais se baseia toda a actividade histórica dos homens? Qual é a lei que preside ao desenvolvimento destas condições? Marx dedicou a sua atenção a todos estes problemas e traçou a via para o estudo científico da história concebida como um processo único, regido por leis, qualquer que seja a sua prodigiosa variedade e o seu carácter contraditório.
A luta de classes
Todos sabem que em qualquer sociedade, as aspirações de parte dos seus membros se opõem às dos outros, que a vida social está cheia de contradições, que a história nos rrevela a luta entre os povos e as sociedades, assim como no seu próprio seio, e que nos mostra, além disso, uma sucessão de períodos de revolução e de reacção, de paz e de guerra, de estagnação e de progresso rápido ou de decadência. o marxismo deu o fio condutor que, neste labirinto e neste caos aparente, permite descobrir a existência de leis: a teoria da luta de classes. Só o estudo do conjunto das tendências de todos os membros de uma sociedade ou de um grupo permite definir com uma precisão científica o resultado destas tendências. Ora as aspirações contraditórias nascem da diferença de situação e de condições de vida das classes nas quais se decompõem todas as sociedades. "A história de todas as sociedades até aos nossos dias, escreve Marx no Manifesto do Partido Comunista (exceptuando a história da comunidade primitiva, acrescentará mais tarde Engels), é a história da luta de classes. Homens livres e escravos, patrícios e plebeus, senhores e servos, mestres e oficiais, numa palavra: opressores e oprimidos, em oposição constante, travaram uma luta ininterrupta, ora aberta, ora dissimulada, uma luta que acabava sempre pela transformação revolucionária de toda a sociedade ou pela destruição das classes beligerantes... a sociedade burguesa moderna, que saiu das ruínas da sociedade feudal, não aboliu os antagonismos de classe. Apenas substituiu as velhas classes, as velhas condições de opressão, as velhas formas de luta por outras novas. entretanto, o carácter distintivo da nossa época, da época da burguesia, é de ter simplificado os antagonismos de classe. A sociedade divide-se cada vez mais em dois vastos campos inimigos, em duas grandes classes diametralmente opostas: a burguesia e o proletariado". Depois da grande revolução francesa, a história da Europa, em numerosos países, revelou com particular evidência esta causa real dos acontecimentos: a luta de classes. Já na época da Restauração, viu-se aparecer em França um certo número de historiadores (Thierry, Guizot, Mignet, Thiers) que, na sua síntese dos acontecimentos, não puderam impedir-se de reconhecer que a luta de classes era achave que permitia compreender toda a história de França. Quanto à época moderna, a da vitória completa da burguesia, das instituições representativas, do sufrágio alargado (senão universal), da imprensa diária barata que penetra nas grandes massas, etc., mostrou ainda com mais evidência (embora por vezes sob uma forma muito unilateral, pacífica e constitucional) que a luta de classes é a força motriz dos acontecimentos. a seguinte passagem do Manifesto do Partido Comunista mostra que Marx exigia da ciência social a análise objectiva da situação de cada classe no seio da sociedade moderna, em conexão com as condições de desenvolvimento de cada uma delas: "De todas as classes que actualmente se opõem à burguesia, só o proletariado é uma classe verdadeiramente revolucionária. as outras classes periclitam e perecem com o desenvolvimento da grande indústria; o proletariado, pelo contrário, é o seu produto mais autêntico. As classes médias — pequenos fabricantes, retalhistas, artesãos, camponeses —, todas combatem a burguesia porque ela é uma ameaça para a sua existência enquanto classes médias. Não são, pois, revolucionárias, mas conservadoras; mais ainda, elas são reaccionárias: procuram fazer andar para trás a roda da história. São revolucionárias unicamente quando têm diante de si a perspectiva da sua passagem iminente ao proletariado: então, elas defendem os seus interesses futuros e não os seus interesses actuais; abandonam o seu próprio ponto de vista para adoptarem o do proletariado". Em numerosas obras históricas (ver Bibliografia), mrx dá exemplos brilhantes e profundos de historiografia materialista, de análise da siyuação de cada classe particular e por vezes dos diversos grupos e camadas no seio de uma classe, mostrando até à evidência porquê e como toda a luta de classe é uma luta política. A passagem que acabamos de citar ilustra claramente a complexidade da rede de relações sociais e das transições duma classe para outra, do passado para o futuro, que Marx estuda a fim de determinar exactamente a resultante da evolução histórica.
A teoria de marx encontra a sua confirmação e a sua aplicação mais profunda, mais completa e mais detalhada na sua doutrina económica.
A doutrina económica de Marx
"O objectivo final desta obra, diz Marx no seu prefácio de O Capital, é descobrir a lei económica do movimento da sociedade moderna". quer dizer da sociedade capitalista, da sociedade burguesa. O estudo das relações de produção de uma dada sociedade, historicamente determinada no seu nascimento, desenvolvimento e declínio, tal é o conteúdo da doutrina económica de Marx. O que domina na sociedade capitalista é a produção de mercadorias; por isso a análise de Marx começa pela análise da mercadoria.
O valor
A mercadoria é, em primeiro lugar, uma coisa que satisfaz uma determinada necessidade do homem; em segundo lugar, é uma coisa que se troca por outra. A utilidade de uma coisa faz dela um valor de uso. O valor de troca (ou simplesmente valor) é, antes de tudo, a relação ou proporção em que se troca um certo número de valores de uso de uma espécie por um determinado número de valores de uso de outra espécie: A experiência quotidiana mostra-nos que milhões e milhares de milhões de trocas estabelecem constantemente relações de equivalência entre os mais diversos e dissemelhantes valores de uso. O que há então de comum entre estas coisas diferentes, continuamente equiparadas umas às outras num determinado sistema de relações sociais? O que têmde comum é o facto de serem produtos do trabalho. Trocando produtos, os homens estabelecem relações de equivalência entre os mais variados géneros de trabalho. A produção de mercadorias é um sistema de relações sociais no qual os diversos produtores criam produtos variados (divisão social do trabalho) e os tornam equivalentes no momento de troca. Por conseguinte, o que é comum a todas as mercadorias não é o trabalho concreto de um ramo de produção determinado, não é o trabalho de um género particular, mas o trabalho humano abstracto, o trabalho humano em geral. Numa dada sociedade, toda a força de trabalho representada pela soma dos valores de todas as mercadorias é uma só e a mesma força de trabalho humano: milhões de trocas o demonstram. Cada mercadoria tomada à parte só representa, portanto, uma certa porção do tempo de trabalho socialmente necessário. A grandeza do valor é determinada pela quantidade de trabalho socialmente necessário ou pelo tempo de trabalho socialmente necessário à produção de uma dada mercadoria, de um dado valor de uso. Ao compararem entre si, na troca, os seus diversos produtos, os homens não fazem mais do que comparar diversos tipos de trabalho como modalidades de trabalho humano. Não o sabem, mas é assim. O valor é uma relação entre duas pessoas, disse um velho economista; ele devia simplesmente ter acrescentado: uma relação escondida sob um invólucro material. É unicamente partindo do sistema das relações sociais de produção de uma determinada formação histórica, relações que se manifestam no fenómeno de massa de troca, que se repete milhares de milhões de vezes, que podemos compreender o que é o valor. Enquanto valores, todas as mercadorias não são mais que trabalho humano cristalizado. Após uma análise aprofundada do duplo carácter do trabalho incorporado nas mercadorias, Marx passa a examinar a forma do valor e da moeda. Assim a principal tarefa a que se entrega é a de investigar a origem da forma monetária do valor, de estudar o processo histórico do desenvolvimento da troca, começando pelos actos de troca particulares e fortuitos (forma simples, particular ou acidental do valor: uma quantidade determinada de uma mercadoria é trocada por uma quantidade determinada de outra mercadoria) para passar à forma geral do valor, em que várias mercadorias diferentes são trocadas por uma só e mesma mercadoria, terminando pela forma monetária do valor, onde o ouro surge como essa mercadoria determinada, ou seja, como o equivalente geral. Produto supremo do desenvolvimento da troca e da produção mercantil, a moeda esbate, dissimula o carácter social do trabalho individual, o elo social entre os diversos produtores unidos pelo mercado. Marx submete a uma an´lise extremamente detalhada as diversas funções da moeda, e importa sublinhar que também aqui (como nos primeiros capítulos de O Capital) a forma abstracta da exposição, que por vezes parece puramente dedutiva, reproduz na realidade uma documentação extremamente rica sobre a história do desenvolvimento da troca e da produção mercantil. "O dinheiro pressupõe certo desenvolvimento das trocas de mercadorias. As diversas funções do dinheiro como simples equivalente ou meio de circulação, meio de pagamento, de entesouramento e moeda nacional, etc., indicam por sua vez, pela predominância desta ou daquela função, fases muito diversas do processo social de produção (O Capital, Livro I)".
Continua
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