(cap XIII)
Capítulo XIV
Causas que entravam a lei
Considerando o enorme desenvolvimento da produtividade do trabalho social, mesmo só nos últimos trinta anos, em comparação com os períodos precedentes; considerando em particular a enorme massa de capital fixo que, além das máquinas propriamente ditas, entra no conjunto do processo social da produção, a dificuldade que até ao presente ocupou os economistas – «como explicar a baixa da taxa de lucro» – cedeu lugar à pergunta inversa: «como explicar que a baixa da taxa de lucro não tenha sido mais importante ou mais rápida?». Foi preciso que operassem influências contrárias que entravassem e suprimissem o efeito da lei geral e lhe conferissem simplesmente o carácter de uma tendência; foi por isto que qualificámos a baixa da taxa de lucro geral como «baixa tendencial». Entre estas causas, as mais generalizadas são as seguintes:
I – Aumento do grau de exploração do trabalho
O grau de exploração do trabalho, a apropriação do sobretrabalho e da mais-valia, aumentaram, sobretudo pelo prolongamento do dia de trabalho e pela intensificação do trabalho. Estes dois pontos foram largamente desenvolvidos no 1.º volume, no estudo da produção da mais-valia absoluta e relativa. Existem na intensificação do trabalho numerosos elementos que implicam um acréscimo do capital constante com relação ao capital variável, portanto uma baixa da taxa de lucro (por exemplo, quando o operário tem a seu cuidado maior quantidade de máquinas). Como na maioria dos processos que servem para produzir mais-valia relativa, as mesmas causas que provocam uma elevação da taxa de mais-valia podem arrastar uma baixa desta, se considerarmos grandezas determinadas de capital total em função.
Existem ainda outros elementos da intensificação, como por exemplo a aceleração da velocidade das máquinas: no mesmo tempo, estas tratarão decerto mais matéria-prima; todavia, quanto ao capital fixo, se a aparelhagem se desgastar mais depressa, a relação entre o seu valor e o preço do trabalho que põe em obra, não é afectada de modo nenhum.
Mas é sobretudo o prolongamento do dia de trabalho (essa invenção da indústria) que faz aumentar a massa de sobretrabalho apropriado sem modificar essencialmente a relação entre a força de trabalho utilizada e o capital constante que ela faz funcionar, e que, na realidade, provoca antes uma baixa relativa deste último.
Por outro lado, já demonstrámos – e é esse o verdadeiro mistério da baixa tendencial da taxa de lucro – que os processos destinados a produzir mais-valia relativa tendem afinal de contas para isto: por um lado, para a conversão da maior parte possível de uma dada quantidade de trabalho em mais-valia e, por outro lado, para, sobretudo, a utilização do mínimo possível de trabalho com relação ao capital adiantado, de modo que as mesmas razões que permitem aumentar o grau de exploração do trabalho impedem que se explore tanto trabalho como antes com o mesmo capital total.
Eis as tendências antagónicas que, ao mesmo que impelem a um aumento da taxa de mais-valia, actuam no sentido de uma baixa da massa de mais-valia produzida por um dado capital e, portanto, de uma baixa da taxa de lucro. Também é oportuno mencionar a introdução massiva do trabalho das mulheres e das crianças, porque a família inteira é obrigada a fornecer ao capital uma quantidade de sobretrabalho maior do que antes, embora aumente a soma total do salário que recebe, o que, de resto, não é regra geral. Tudo o que favorece a produção de mais-valia relativa, sem aumento do capital utlizado, por simples aperfeiçoamento dos métodos, tem o mesmo efeito. É o que se passa na agricultura, onde, na verdade, o capital constante empregado não aumenta com relação ao capital variável, se considerarmos este último como indicador da força de trabalho empregada; é a massa do produto que aumenta com relação à força produtiva do trabalho (pouco importa que o seu produto entre no consumo dos operários ou nos elementos do capital constante), que é libertada das barreiras comerciais, de limitações arbitrárias, de entraves de todos os tipos, sem que esta libertação afecte primeiramente a relação entre capital variável e capital constante.
Poder-se-ia perguntar se, entre as causas que primeiro emperram e depois acabam por acelerar a baixa da taxa de lucro, estão compreendidos os sumentos de mais-valia acima do nível geral, altas temporárias repetidas que acontecem ora num ora noutro ramo de produção, para lucro do capitalista que explora as invenções, etc., antes da sua generalização. Há razões para responder afirmativamente a esta pergunta.
A massa de mais-valia engendrada por um capital de uma dada grandeza é o produto de dois factores: a taxa de mais-valia e o número de operários, ocupados a uma dada taxa. Depende, portanto, se for dada a taxa de mais-valia, do número dado de operários; de maneira geral, depende da proporção formada pela grandeza do capital variável e pela taxa da mais-valia! Ora viu-se que, em média, as mesmas causas que aumentam a taxa da mais-valia relativa fazem baixar a quantidade de força de trabalho empregada. Mas é claro que haverá aumento ou diminuição, consoante a relação em que se realizar este movimento antagónico e que a tendência para fazer baixar a taxa de lucro é notavelmente enfraquecida pela subida da taxa da mais-valia absoluta, proveniente do prolongamento do dia de trabalho.
Já vimos no estudo da taxa de lucro que, em geral, à baixa da taxa corresponde, pelo facto do aumento da quantidade de capital total empregado, o aumento da massa de lucro. Considerando o conjunto do capital variável da sociedade, a mais-valia que ele produz é igual ao lucro produzido. Paralelamente à massa absoluta, a taxa da mais-valia aumentou igualmente; a primeira, porque aumentou a massa de força de trabalho utilizada pela sociedade, a segunda porque aumentou o grau de exploração deste trabalho. Mas, com referência a um capital de uma dada grandeza, por exemplo 100, a taxa da mais-valia pode elevar-se, ao passo que, em média, baixa a sua massa; e isto porque a taxa é determinada pela proporção em que é posta em valor a fracção variável do capital, enquanto a massa é determinada pela grandeza relativa do capital variável, proporcionalmente ao capital total.
A subida da taxa da mais-valia – produzida em circunstâncias em que não se dá, como já indicámos, aumento relativo ou absoluto do capital constante com relação ao capital variável – é um dos factores determinantes da massa da mais-valia e, por isso, da taxa de lucro. Isto não suprime a lei geral. Mas tem como resultado constituir uma tendência, isto é, uma lei cuja realização foi detida, afrouxada, enfraquecida, por causas que a emperram. Como as mesmas causas que elevam a taxa da mais-valia – o prolongamento do tempo de trabalho é um resultado da grande indústria – tendem a reduzir a força de trabalho empregada por um dado capital, tendem ao mesmo tempo a diminuir a taxa do lucro e a afrouxar o movimento desta baixa.
Se for imposto a um operário o trabalho que racionalmente exigiria dois operários e se este facto se produzir em tais condições que este operário único tem de substituir três, claramente que ele produz sobretrabalho correspondente a dois ou três operários e a taxa da mais-valia aumenta proporcionalmente. Mas como não foi preciso esses operários, um só não fornece tanto como eles e assim a massa de mais-valia tem de baixar; baixa esta que é porém compensada ou limitada pela subida da taxa de mais-valia. Se toda a população proletária fosse ocupada a esta nova taxa de mais-valia, a massa de mais-valia aumentaria, embora a população permanecesse a mesma; com mais fortes razões, se a população aumentar. E, embora este facto se alie a uma diminuição relativa do número de operários com relação à grandeza do capital total, esta diminuição será atenuada pelo acréscimo da taxa de mais-valia.
Antes de terminar este ponto, é oportuno sublinhar mais uma vez que, para um capital de uma dada grandeza, a taxa de mais-valia pode elevar-se embora a massa baixe, e inversamente. A massa de mais-valia é igual à taxa multiplicada pelo número de operários; a taxa nunca é calculada sobre o capital total, mas apenas sobre o capital variável e calcula-se realmente por dia de trabalho. Pelo contrário, para um valor-capital de uma dada grandeza, a taxa de lucro nunca pode subir ou baixar sem que suba ou baixe também a massa da mais-valia.
II – Redução do salário abaixo do seu valor
Só mencionamos este facto empiricamente porque nada tem a ver com a análise geral do capital; faz parte do estudo da concorrência que não tratamos agora. É todavia uma das causas mais importantes que entravam a tendência para a baixa da taxa de lucro.
III – Baixa de preço dos elementos do capital constante
Tem aqui lugar tudo o que se disse na 1.ª secção deste volume sobre as causas que aumentam a taxa de lucro, permanecendo a taxa de mais-valia constante ou independente daquela, sobretudo o facto de o valor do capital constante não aumentar na mesma proporção que o seu volume material. A quantidade de algodão que trata um operário de fiação numa fábrica moderna aumentou numa proporção colossal com relação à que trataria um operário antigo. Mas o valor do algodão não aumentou na mesma proporção da sua massa. O mesmo se pode dizer sobre máquinas e outro capital fixo.
Em resumo, a mesma evolução, que faz aumentar a massa do capital constante com relação ao capital variável, faz baixar o valor dos seus elementos devido ao acréscimo da produtividade do trabalho, e impede assim que o valor do capital constante, que no entanto aumenta sem cessar, aumente na mesma proporção que o seu volume material (isto é, que o volume material dos meios de produção postos em acção pela mesma quantidade da força de trabalho). Num ou noutro caso, a massa dos elementos do capital constante pode até aumentar, ao passo que o seu valor permanece imutável ou até mesmo baixa.
IV – Depreciação do capital existente
A depreciação do capital existente (isto é, dos seus elementos materiais), que resulta do desenvolvimento industrial, liga-se ao que precede. É também uma das causas constantes que entravam a baixa da taxa de lucro, embora seja em certos casos susceptível de reduzir a massa de lucro pela redução da massa do capital produtivo de lucro. Também aqui se vê que as mesmas causas, que engendram a tendência para a baixa da taxa de lucro, moderam igualmente a realização desta tendência.
V – Sobrepopulação relativa
A criação de sobrepopulação é inseparável do desenvolvimento da produtividade do trabalho, que se traduz pela baixa da taxa de lucro, enquanto o desenvolvimento dessa produtividade a acelera. A sobrepopulação relativa é tanto mais chocante num país quanto mais desenvolvido for o modo de produção capitalista; é também a razão por que, em numerosos ramos da produção, subsiste uma subordinação, em grau maior ou menor, do trabalho ao capital; esta subsiste mais tempo do que parece à primeira vista implicar o estado geral do desenvolvimento; e é assim porque existe uma quantidade de assalariados disponíveis que se podem adquirir a baixo preço e porque muitos sectores da produção, pela sua natureza, opõem maior resistência do que outros à transformação do trabalho manual em trabalho mecânico.
Por outro lado, criam-se novos ramos de produção destinados sobretudo ao consumo de luxo, que têm precisamente por base a sobrepopulação relativa, libertada muitas vezes por uma preponderância do capital constante noutros sectores; e, por sua vez, estes sectores assentam num predomínio do elemento do trabalho vivo e só pouco a pouco é que vão sofrer a mesma evolução dos outros ramos de produção. Nos dois casos, o capital variável açambarca uma proporção considerável do capital total e o salário situa-se abaixo da média, de modo que a taxa e a massa da mais-valia são extraordinariamente elevadas nestes ramos de produção. Ora, como a taxa de lucro geral é constituída por igual repartição das taxas de lucro entre os ramos particulares de produção, ainda desta vez a mesma causa que fez surgir a tendência para a baixa da taxa de lucro suscita um contrapeso que paralisa mais ou menos o efeito desta tendência.
VI – Comércio externo
Como o comércio exterior faz baixar o preço dos elementos do capital constante e das subsistências necessárias em que se converte o capital variável, tem por efeito fazer subir a taxa de lucro, elevando a taxa da mais-valia e abaixando o valor do capital constante. De maneira geral, o objectivo é o alargamento da escala da produção. Assim, o comércio exterior acelera por um lado a acumulação, mas por outro também a queda do capital variável com relação ao capital constante e por isso a baixa da taxa de lucro. Igualmente, a extensão do comércio exterior, que era a base do modo de produção capitalista no seu início, tornou-se seu resultado à medida que progredia a produção capitalista, em razão da necessidade de dispor de um mercado sempre mais extenso. Aqui se verifica de novo a mesma ambivalência do efeito. (Ricardo nada viu sobre este aspecto do comércio exterior).
Eis outra pergunta que, pelo seu carácter especial, ultrapassa por assim dizer os limites do nosso estudo: será a taxa de lucro geral aumentada pela taxa de lucro mais elevada que rende o capital investido no comércio externo e sobretudo no comércio colonial?
Capitais investidos no comércio externo são capazes de dar uma taxa de lucro mais elevada porque se entra em concorrência com países cujas facilidades de produção mercantil são menores, de modo que o país mais adiantado vende as suas mercadorias acima do seu valor, embora as ceda mais barato do que os países concorrentes. Na medida em que o trabalho do país mais evoluído é posto em valor como trabalho de peso específico mais elevado, a taxa de lucro aumenta, sendo vendido o trabalho que não é pago como trabalho de qualidade superior. Pode ter-se a mesma situação com relação ao país para onde se expedem e de onde se recebem mercadorias, aquele que fornece mais trabalho materializado no estado natural do que recebe e, apesar de tudo, obtém a mercadoria mais barata do que ele mesmo a poderia produzir.
O mesmo se daria com um fabricante que, utilizando uma nova invenção antes da sua generalização, vendesse mais barato que os seus concorrentes e, contudo, acima do valor individual da sua mercadoria, isto é, pusesse em valor, como sobretrabalho, a produtividade especificamente superior do trabalho que empregasse; desta maneira realizaria um sobrelucro.
Quanto aos capitais investidos nas colónias, são capazes de render taxas de lucro mais elevadas porque, devido ao menor desenvolvimento, a taxa de lucro é de maneira geral mais elevada; e também devido à escravatura, à servidão, à exploração do trabalho.
Mas não se vê porque estas taxas de lucro mais elevadas, produzidas por capitais investidos em certos ramos e que eles transformam nos seus países de origem, não deveriam entrar, caso não houvesse o obstáculo dos monopólios, no sistema de igual repartição da taxa de lucro geral e não o aumentaria proporcionalmente. Não se vê porque não deveria ser assim, sobretudo porque os sectores de investimento de capitais estão sujeitos às leis da concorrência livre. Mas Ricardo coloca diante dos olhos a seguinte operação imaginária: graças ao preço mais elevado obtido no estrangeiro, compram-se ali mercadorias que, uma vez na metrópole, são vendidas no mercado interno; daqui pode resultar, mas só por algum tempo, uma posição particularmente vantajosa dessas esferas da produção, favorecidas com relação às outras. Esta miragem dissipa-se desde que se abstraia da forma monetária da troca. O país favorecido recebe em troca mais trabalho do que deu, embora esta diferença, este excesso (como em geral na troca entre capital e trabalho), seja metida ao bolso por uma classe. Portanto, se a taxa de lucro for mais elevada, porque assim é em geral no país colonial, este facto pode, se as condições naturais forem favoráveis, ir a par com a baixa de preço das mercadorias. Produz-se uma repartição igual, mas não ao nível antigo, como pensava Ricardo.
Mas o comércio externo favorece na metrópole o desenvolvimento do modo de produção capitalista e provoca assim a redução do capital variável com relação ao capital constante. E cria, por outro lado, com relação ao estrangeiro, uma sobreprodução, e acabará de novo por agir em sentido oposto.
Vemos assim que, em geral, as mesmas causas que provocam a baixa da taxa de lucro geral suscitam efeitos contrários que travam, afrouxam e paralisam parcialmente esta baixa. Não suprimem a lei mas enfraquecem o seu efeito. Caso assim não fosse, não seria a baixa da taxa de lucro geral que seria incompreensível, mas, inversamente, a lentidão relativa dessa baixa. É assim que a lei só actua sob a forma de tendência, cujo efeito só aparece de forma chocante em determinadas circunstancias e em longos períodos de tempo.
Antes de continuar, para evitarmos mal-entendidos, queremos ainda lembrar duas proposições já por várias vezes desenvolvidas.
Primeira: o mesmo processo que, na evolução do modo de produção capitalista, produz mercadorias a preços cada vez mais baixos, provoca uma alteração na composição orgânica do capital social empregado na produção dessas mercadorias e, por isso, a queda da taxa de lucro. É pois indispensável não confundir a diminuição do custo relativo da mercadoria, e até da parte desse custo que compreende o desgaste da aparelhagem, com o acréscimo do valor do capital constante comparado com o capital variável, embora, inversamente, qualquer diminuição de custo relativo do capital constante – permanecendo imutável o volume dos seus elementos materiais, ou até aumentando – seja um factor de subida da taxa de lucro, isto é, actue no sentido de uma diminuição correspondente do valor do capital constante, relativamente ao capital variável empregado em proporção cada vez mais fraca.
Segunda: nas mercadorias cuja totalidade abrange o produto do capital, o trabalho adicional vivo que elas contêm está em proporção decrescente com relação às matérias-primas tratadas e aos meios de trabalho que foram consumidos na produção. É pois uma quantidade cada vez mais fraca de trabalho vivo adicional que está nelas materializado, porque, com o desenvolvimento da produtividade social, a produção requer menos trabalho. Ora este facto não afecta a relação segundo a qual o trabalho vivo que a mercadoria contém se reparte em trabalho pago e não pago; antes pelo contrário, embora diminua a quantidade total de trabalho adicional vivo que ela contenha, a fracção que não é paga aumenta com relação àquela que é paga, por uma diminuição absoluta ou proporcional desta; porque o modo de produção que reduz a massa total de trabalho vivo acrescentado a uma mercadoria, é acompanhado de uma alta da mais-valia absoluta e relativa. A tendência de queda da taxa de lucro alia-se a uma subida tendencial da taxa de mais-valia, isto é, do grau de exploração do trabalho.
Não há maior insensatez do que explicar a queda da taxa de lucro por uma alta da taxa de salário, embora este caso possa dar-se excepcionalmente. Só compreendendo antes as condições que criam a taxa de lucro, se poderá depois, graças às estatísticas, estabelecer análises reais da taxa do salário em diferentes épocas e em diferentes países. A taxa de lucro não baixa porque o trabalho se torna menos produtivo, mas sim porque se torna mais produtivo. Os dois fenómenos – alta da taxa de mais-valia e baixa da taxa de lucro – são apenas formas particulares que, em regime capitalista, exprimem o acréscimo da produtividade do trabalho.
VII – Aumento do capital por acções
Aos seis pontos anteriores, pode ainda juntar-se o seguinte que no entanto não podemos aprofundar por agora. À medida que progride a produção capitalista, que vai de par de mais rápida acumulação, uma parte do capital já só é empregada como capital produtor de juros. Não no sentido vulgar – que todo o capitalista se contenta com os juros quando empresta capital, enquanto o capitalista industrial embolsa o seu lucro. Este facto, ao nível da taxa de juro geral, não interessa, porque o lucro é igual ao juro, como o lucro de qualquer tipo, como a renda, e a sua distribuição entre estas categorias é indiferente para o capitalista. Mas estes capitais, embora colocados em grandes empresas produtivas, não fornecem, feita a dedução de todos os gastos, mais do que juros maiores ou menores, os chamados dividendos. Não entram no sistema de igual repartição da taxa de lucro geral, porque rendem uma taxa de lucro inferior à taxa média; se nela entrassem, esta taxa desceria ainda muito mais. Sob um ponto de vista teórico, obtém-se uma taxa de lucro inferior à que parece existir e que determina realmente os capitalistas, porque é nestas empresas que o capital constante é mais elevado relativamente ao capital variável.
(Cap XV)
Capítulo XIII
Natureza da lei
Para um salário e dia de trabalho determinados, um capital variável, por exemplo de 100, representa a colocação no trabalho de um certo número de operários. Suponhamos que 100 libras é o salário de 100 operários por semana. Se estes 100 operários realizarem tanto trabalho para eles (isto é, para reproduzir o seu salário) como para o capitalista (isto é, para produzir mais-valia), o valor total que produzem será de 200£ e a mais-valia será de 100£. A taxa de mais-valia será pl/v= 100%. Mas, como vimos, esta taxa de mais-valia traduz-se por taxas de lucro muito diferentes, consoante o volume do capital constante c, portanto consoante o capital total C. A taxa de lucro é igual a pl/C.
Para uma taxa de mais-valia de 100%
se c= 50, v=100; p´=100:150= 66 2/3%
se c=100, v=100; p´=100:200= 50%
se c=200, v=100; p´=100:300= 33 1/3%
se c=300, v=100; p´=100:400= 25%
se c=400, v=100; p´=100:500= 20%
Permanecendo o mesmo grau de exploração, a mesma taxa de mais-valia traduzir-se-ia por uma taxa de lucro em decréscimo, porque o volume de valor do capital constante e, por isso, o conjunto do capital, cresce com o seu volume material, mesmo que o aumento não seja proporcional.
Se, além disto, admitirmos que esta modificação gradual da composição do capital não se produz apenas em esferas isoladas de produção mas que se encontra mais ou menos em todos (ou pelo menos nas esferas-chave da produção) e que traz modificações na composição orgânica média do conjunto do capital, será preciso que o acréscimo progressivo de capital constante com relação ao capital variável tenha como resultado uma baixa gradual da taxa de lucro, permanecendo a mesma a taxa de mais-valia ou ainda o grau de exploração do trabalho pelo capital restante.
Mostrámos que uma lei do modo de produção capitalista é esta: à medida que a produção se desenvolve, produz-se uma diminuição relativa do capital variável com relação ao capital constante, e, portanto, ao capital total posto em movimento. O que significa simplesmente: o mesmo número de operários, a mesma quantidade de força de trabalho, que fazia trabalhar um capital variável com um dado volume de valor, porá em movimento, no mesmo lapso de tempo, devido ao desenvolvimento dos métodos próprios da produção capitalista, uma quantidade sempre maior de meios de trabalho, de máquinas e de capital fixo de toda a espécie, tratará e consumirá produtivamente uma quantidade sempre maior de matérias-primas e auxiliares – por consequência, fará funcionar um capital constante de um volume de valor em perpétuo aumento.
A diminuição progressiva, relativa, do capital variável com relação ao capital constante – e, por isso, ao capital total – é idêntica ao crescimento progressivo da composição orgânica do capital social médio. É afinal uma outra maneira de exprimir o progresso da força produtiva social do trabalho que se traduz precisamente por este facto: utilizando mais máquinas, empregando mais capital fixo, o mesmo número de operários pode transformar em produtos maior quantidade de matérias-primas e auxiliares num mesmo lapso de tempo – isto é, com menos trabalho. A este acréscimo de volume do valor do capital constante – embora só traduza muito aproximadamente o acréscimo da massa real dos valores de uso que, materialmente, constituem este capital – corresponde uma diminuição crescente do custo do produto.
Com efeito, qualquer produto individual, considerado à parte, contém uma soma de trabalho menor do que a contida em estádios inferiores da produção, quando o capital desembolsado em trabalho era muito maior, proporcionalmente ao investido em meios de produção.
Assim, o quadro acima estabelecido como hipótese traduz bem a tendência real da produção capitalista. À medida que diminui progressivamente o capital variável com relação ao capital constante, eleva-se cada vez mais a composição orgânica do conjunto do capital, e a consequência imediata é que a taxa de mais-valia se traduz por uma taxa de lucro geral em baixa contínua, ficando sem mudança ou até aumentando o grau de exploração do restante trabalho.
(Veremos mais adiante porque é que esta baixa não se manifesta sob forma absoluta, mas sim sob forma de tendência para uma baixa progressiva.)
A tendência progressiva para a baixa da taxa geral de lucro é própria do modo de produção capitalista e exprime o progresso da produtividade social do trabalho. Decerto que poderia haver outras razões para uma baixa passageira da taxa de lucro, mas provámos que o progresso da produção capitalista implica necessariamente que a média taxa geral de mais-valia se traduz por uma baixa da taxa de lucro geral; é uma necessidade evidente que deriva da essência do modo de produção capitalista. Ao diminuir sem cessar a massa do trabalho vivo com relação à massa do trabalho materializado que põe em movimento, a fracção não paga deste trabalho vivo, que se concretiza em mais-valia, vê diminuir sem cessar a sua relação para o volume de valor do capital total; e esta relação da massa de mais-valia para o valor do capital total empregado constitui a taxa de lucro; esta baixa portanto continuamente.
Por mais simples que pareça esta lei, nenhum economista conseguiu, até hoje descobri-la, como veremos. Ao verificar o fenómeno, os economistas torturaram o espírito para chegarem a explicações contraditórias. Dada a importância desta lei para a produção capitalista, pode dizer-se que é o mistério cuja solução preocupa toda a economia política desde Adam Smith. E o que distingue as diversas escolas desde Smith é a diferença nas tentativas para chegar a uma solução. Mas se reflectirmos que a economia política andou às apalpadelas à roda da distinção entre capital constante e capital variável, sem nunca chegar a formulá-la com precisão, e que nunca apresentou a mais-valia separada do lucro, que o próprio lucro nunca foi por ela apresentado na sua pureza, distinguindo-o dos seus componentes promovidos à autonomia – lucro industrial, lucro comercial, juros, renda –, que nunca analisou a fundo as diferenças na composição orgânica do capital, como nunca analisou a fundo a formação da taxa de lucro geral – então já não há mistério algum no facto de lhe ter sempre escapado a solução deste enigma.
É de propósito que expomos esta lei antes de explicar como é que o lucro se decompõe em diferentes categorias promovidas respectivamente à autonomia. Porque esta exposição não depende dessa divisão do lucro em diversos elementos que cabem a diferentes categorias de pessoas, isto prova desde sempre que a lei, na sua generalidade, é independente de tal divisão e das relações recíprocas que regem as categorias de lucro dela resultantes. O lucro de que tratamos é simplesmente um outro nome da mais-valia, estudada na sua relação com o capital total, em vez de o ser na relação com o capital variável que lhe dá origem. A baixa da taxa de lucro traduz portanto a baixa da relação da própria mais-valia para o conjunto do capital adiantado e é por isso independente de qualquer repartição dessa mais-valia – seja qual for – entre categorias diferentes de beneficiários.
Vimos que, em certo nível do desenvolvimento capitalista, quando a composição do capital c com relação a v estava na proporção de 50 para 100, uma taxa de mais-valia de 100% traduzia-se por uma taxa de lucro de 66 2/3%; e vimos que, em nível mais elevado, quando a relação c:v era 400:100, a mesma taxa de mais-valia traduzia-se por uma taxa de lucro de 20% apenas. O que se aplica a diversos estádios sucessivos de desenvolvimento num país, pode aplicar-se também a diferentes estádios de desenvolvimento que existam simultânea e paralelamente em países diferentes. Num país não desenvolvido, em que a primeira composição do capital representa a média, a taxa de lucro geral seria de 66 2/3%, ao passo que seria de 20% num país em que produção estivesse em estádio muito mais elevado.
Poderia haver supressão e até reviravolta no desvio que separa as duas taxas nacionais de lucro se, no país menos desenvolvido, o trabalho fosse menos produtivo, se maior quantidade de trabalho se traduzisse por menor quantidade da mesma mercadoria, maior valor de troca por menor valor de uso; portanto, o operário deveria consagrar maior parte do seu tempo à reprodução dos seus próprios meios de subsistência ou do valor deles, e menor fracção à criação de mais-valia; forneceria menos sobretrabalho, de forma que a taxa de mais-valia seria mais baixa. Na hipótese do exemplo dado, se um operário trabalhasse no país menos desenvolvido 2/3 do dia para ele e 1/3 para o capitalista, a mesma força de trabalho seria paga por 133 1/3 e só forneceria um excedente de 66 2/3. Ao capital variável de 133 1/3 corresponderia um capital constante de 50. A taxa de mais-valia seria então de 66 2/3:133 1/3=50% e a taxa de lucro seria de 66 2/3:183 1/3=36,5% aproximadamente.
Até ao presente, ainda não estudámos os diversos elementos que nasceram da divisão do lucro; por isso evitaremos qualquer mal-entendido. Quando se comparam países de diferentes níveis de desenvolvimento – em particular países de desenvolvida produção capitalista – com outros em que o trabalho não está ainda formalmente sujeito ao capital, embora na realidade o operário seja explorado pelo capitalista (por exemplo na Índia onde o operário trabalha como camponês independente, a sua produção como tal não está ainda sujeita ao capital e, portanto, o usurário pode subtrair-lhe, sob forma de juros, não só todo o seu sobretrabalho mas até – para falar na linguagem do capitalista – uma parte do seu salário) seria grave erro querer medir a taxa de lucro nacional pelo nível da taxa nacional do juro. O juro inclui todo o lucro e até mais, em vez de exprimir apenas, como é o caso nos países de desenvolvida produção capitalista, uma parte alíquota da mais-valia ou do lucro produzidos; por outro lado, neste caso é exercida uma influência predominante sobre a taxa do juro por condições (empréstimos dos usurários aos grandes proprietários detentores de rendas) que nada têm a ver com o lucro e só indicam, pelo contrário, em que proporção e como, o usurário se apropria da renda.
Nos países em que o desenvolvimento da produção capitalista se situa em níveis desiguais e, por isso, a composição orgânica dos capitais é diferente, a taxa de mais-valia (um dos factores que determinam a taxa de lucro) pode ser mais elevada num país em que o dia de trabalho normal seja mais curto do que naquele em que seja mais longo. Em primeiro lugar se, em razão da sua maior intensidade, o dia de trabalho de 10 horas na Inglaterra for igual a um dia de trabalho de 14 na Áustria, sendo a mesma a repartição do dia de trabalho, 5 horas de sobretrabalho na Inglaterra pode representar no mercado mundial um valor superior a 7 horas na Áustria. Em segundo lugar, pode acontecer que, na Inglaterra, uma porção do dia de trabalho maior do que na Áustria constitua sobretrabalho.
A lei da baixa da taxa de lucro, que traduz manutenção da taxa de mais-valia ou até uma alta desta, significa por outros termos: sendo dada uma certa quantidade de capital social médio, por exemplo um capital de 100, a fracção deste que representa meios de trabalho não deixa de crescer e a que representa trabalho vivo não deixa de diminuir. Mas, como a massa total do trabalho vivo acrescido dos meios de produção baixa com relação ao valor deles, o trabalho não pago e a porção de valor que o representa baixam também com relação ao valor do capital total adiantado. Ou ainda: uma parte alíquota cada vez mais pequena do capital total investido converte-se em trabalho vivo; e este capital total absorve sempre menos sobretrabalho, proporcionalmente à sua grandeza, embora a relação entre trabalho pago e não pago venha a aumentar no mesmo tempo, o que é possível. Esta diminuição e este aumento relativos do capital variável e do capital constante – aumentando ambos aliás em valor absoluto – são apenas uma nova maneira de exprimir o aumento da produtividade do trabalho.
Suponhamos um capital de 100, composto de 80c+20v, este último termo igual a 20 operários. Seja uma taxa de mais-valia de 100%, o que significa que o operário trabalha para si meio dia e outro meio para o capitalista. Suponhamos que, num país menos desenvolvido, este capital é de 20c+80v em que este último termo significa 80 operários. Mas estes operários necessitam de 2/3 do dia de trabalho para eles e só trabalham 1/3 do tempo para o capitalista. Mantendo constantes todos os outros factores, os operários, no primeiro caso, produzirão um valor de 40 e, no segundo caso, de 120. O primeiro capital produz 80c+20v+20pl=120; taxa de lucro de 20%; o segundo, 20c+80v+40pl=140; taxa de lucro de 40%. Esta taxa é portanto dupla da primeira, embora no primeiro caso a taxa de mais-valia tenha sido de 100%, dupla do segundo em que só atingia 50%. Pelo contrário, um capital da mesma grandeza apropria-se do sobretrabalho de 20 operários no primeiro caso e de 80 no segundo.
A lei da baixa progressiva da taxa de lucro, ou diminuição relativa do sobretrabalho, de que se apropria o capitalista com relação à massa de trabalho materializado que o trabalho vivo põe em acção, não exclui de forma nenhuma que a massa de trabalho posta em movimento e explorada pelo capital social aumente em grandeza absoluta e não possa, por isso, aumentar a massa de sobretrabalho de que este se apropria; também não exclui que os capitais colocados às ordens dos capitalistas individuais comandem uma massa crescente de trabalho, e por isso de sobretrabalho, podendo até este aumentar, ao passo que não cresce o número de operários colocados sob o látego daqueles.
Consideremos uma dada população proletária, dois milhões por exemplo; consideremos, além disso, como dadas a duração e a intensidade do dia médio de trabalho, assim como o salário e, por consequência, a relação do trabalho necessário para o sobretrabalho: o trabalho total destes dois milhões de operários, assim como o seu sobretrabalho que se exprime em mais-valia, produzirão sempre a mesma grandeza de valor. Mas à medida que aumenta a massa de capital constante que este trabalho põe em acção – fixo e circulante –, vê-se diminuir a relação entre esta grandeza de valor e o valor daquele capital que aumenta com a massa deste, mesmo que este aumento não seja proporcional. Esta relação (e por isso a taxa de lucro) baixa, embora como antes o capital comande a mesma porção de trabalho vivo e absorva a mesma quantidade de sobretrabalho.
Se esta relação for modificada, não será porque a massa de trabalho diminua, mas porque aumenta a massa do trabalho já materializado que ele põe em movimento. A diminuição é relativa e não absoluta e não tem nada a ver com a grandeza absoluta do sobretrabalho e do trabalho posto em movimento. A baixa da taxa de lucro provém de uma baixa puramente relativa e não absoluta do elemento variável do conjunto do capital, por comparação com o seu elemento constante.
O raciocínio é válido para uma dada massa de sobretrabalho e de trabalho, é válido também para o aumento do número dos operários e portanto, para o acréscimo de trabalho sob as ordens do capital, em geral, e da sua parte não paga, o sobretrabalho, em particular. Se a população proletária passar de 2 milhões para 3 milhões e se, de igual maneira, o capital variável (que é gasto com ela em salário) passar de 2 milhões para 3 milhões e, pelo contrário, o capital constante passar de 4 para 15 milhões, nas condições da nossa hipótese (dia de trabalho e taxa de mais-valia constantes) a massa de sobretrabalho – de mais-valia – aumentará metade (50%), de 2 para 3 milhões. Nem por isso, apesar do acréscimo de 50% da massa absoluta de sobretrabalho e portanto de mais-valia, a relação entre capital variável e o capital constante deixa de descer de 2:4 para 3:15 e a relação entre a mais-valia e o capital total estabelece-se como segue (em milhões):
I. 4c+2v+2pl; C=6, p’=33,333%
II. 15c+3v+3pl; C=18, p’=16,667%
Ao passo que a massa de mais-valia aumentou metade, a taxa de lucro já não é metade do que era anteriormente. Mas o lucro é apenas a mais-valia relacionada ao capital social e a massa do lucro, a sua grandeza absoluta, é por isso, sob o ponto de vista social, igual à grandeza absoluta da mais-valia. A grandeza absoluta do lucro, a sua massa total, teria portanto aumentado 50%, apesar de uma diminuição enorme da relação desta para o capital total adiantado (por outros termos, apesar da enorme baixa da taxa de lucro geral). O número de operários empregados pelo capital (portanto a massa absoluta de trabalho que põe em movimento, e daqui a massa de mais-valia que produz, e daqui a massa de lucro), podem aumentar progressivamente, apesar da baixa progressiva da taxa de lucro. Mas não basta dizer que pode ser assim; na base da produção capitalista, é preciso que assim seja – abstraindo de passageiras oscilações.
Por essência, o processo de produção capitalista é, ao mesmo tempo, processo de acumulação. Já se mostrou que, à medida que progride a produção capitalista, a massa de valor tem de ser obrigatoriamente reproduzida, conservada, aumentada com o desenvolvimento da produtividade do trabalho, mesmo que a força de trabalho utilizada permaneça constante. Mas o desenvolvimento da produtividade social aumenta ainda mais a massa de valores de uso produzida, da qual os meios de produção constituem uma parte. E o trabalho adicional, cuja apropriação permite reconverter em capital a riqueza acrescentada, depende não do valor mas da massa dos meios de produção (incluídas as subsistências), nada tendo o operário a ver, no processo de trabalho, com o valor, mas com o valor de uso dos meios de produção.
Quanto à própria acumulação, e à concentração do capital que vai a par, é só um meio material de aumentar a força produtiva. Ora este aumento dos meios de produção implica o aumento da população operária; implica a criação de uma população de operários que corresponda ao excesso de capital e de maneira que, na totalidade, ultrapasse sem cessar as suas necessidades; implica portanto sobrepopulação operária.
Um excedente momentâneo de capital, com relação à população operária que ele faz trabalhar, teria um duplo efeito: por um lado, pela subida de salário provocaria a mitigação das condições dizimadoras e até aniquiladoras da progenitura dos operários e fomentaria os casamentos, fazendo aumentar gradualmente a população operária; por outro lado, o emprego dos métodos criadores de mais-valia relativa (introdução e aperfeiçoamento de máquinas), criando muito mais rapidamente ainda, de maneira artificial, uma sobrepopulação relativa que, por sua vez, constituiria terreno favorável a uma multiplicação rápida da população – porque, em regime de produção capitalista, a miséria faz nascer gente.
Da natureza do processo de acumulação capitalista – simples fase do processo de produção capitalista – resulta muito naturalmente que a massa acrescida de meios de produção destinados a serem convertidos em capital tem sempre à mão uma população operária explorável cujo aumento corresponde ao seu e até o ultrapassa. À medida que progridem os processos de produção e de acumulação, é preciso portanto que cresça a massa de sobretrabalho apropriável e apropriado e, por consequência, a massa absoluta do lucro de que se apropria o capital social. Mas estas mesmas leis que regem a produção e a acumulação fazem aumentar com a sua massa o valor do capital constante, segundo uma progressão crescente mais rápida do que a do capital variável convertido em trabalho vivo. Portanto, são as mesmas leis que provocam para o capital social uma subida absoluta da massa de lucro e uma baixa da taxa de lucro.
Abstrai-se completamente de a mesma grandeza de valor representar uma proliferação de valores de uso e de prazeres que aumenta progressivamente à medida que progride a produção capitalista, com o desenvolvimento correspondente da produtividade do trabalho social, à medida que se multiplicam os ramos de produção e portanto os produtos.
O desenvolvimento da produção e acumulação capitalistas determina processos de trabalho em escala e em dimensões cada vez maiores e, por isso, adiantamentos de capital crescentes em cada estabelecimento particular. Uma crescente concentração de capitais (acompanhada, ao mesmo tempo, embora em menor grau, por um aumento do número de capitalistas) é pois, paralelamente, uma das condições materiais e um dos resultados daquele desenvolvimento. A par destes fenómenos, agindo sobre eles e sofrendo-lhes a acção, produz-se uma expropriação progressiva dos produtores directos ou indirectos. Compreende-se então que os capitalistas individuais comandem exércitos de trabalhadores em crescente aumento (por mais forte que seja para eles a diminuição do capital variável com relação ao capital constante), que aumente a massa de mais-valia (e portanto do lucro) de que eles se apropriam, simultaneamente com a baixa das taxas de lucro e apesar dessa baixa. São precisamente as mesmas causas que concentram exércitos massivos de trabalhadores sob o comando dos capitalistas, que fazem dilatar em proporção crescente a massa do capital fixo utilizado e das matérias-primas e auxiliares com relação à massa do trabalho vivo, igualmente utilizado.
Além disto, basta mencionar que, para uma dada população operária, se a taxa de mais-valia aumenta, quer pelo prolongamento do dia de trabalho, quer pela intensificação deste, quer por uma diminuição de valor do salário, resultante do desenvolvimento da força produtiva do trabalho, a massa da mais-valia (e portanto a massa absoluta do lucro) têm de aumentar necessariamente, apesar da diminuição relativa do capital variável com relação ao capital constante.
Este mesmo desenvolvimento da produtividade do trabalho social, estas mesmas leis que se manifestam na baixa relativa do capital variável, comparado com o capital total, e na acumulação que por isso se encontra acelerada, ao passo que, por outro lado, por um choque de retorno, esta acumulação constitui o ponto de partida de um novo acréscimo de força produtiva e de uma nova baixa relativa do capital variável, este mesmo desenvolvimento (íamos dizendo) traduz-se – pondo de lado flutuações temporárias – pelo aumento crescente da massa total da força de trabalho empregada, pela subida crescente da massa absoluta da mais-valia e portanto do lucro.
Esta lei da dupla face, segundo a qual as mesmas causas provocam a diminuição da taxa de lucro e o aumento da massa absoluta de lucro, baseia-se no facto de, em dadas condições, aumentar a massa de sobretrabalho apropriada (portanto de mais-valia); e de lucro e mais-valia serem grandezas idênticas, considerando o conjunto do capital, ou o capital individual como simples parcela da totalidade do capital.
Consideremos a fracção alíquota do capital sobre a qual calculamos a taxa de lucro, por exemplo 100. Estes 100 representam a composição média do capital total, por exemplo 8oc+20v. Na segunda secção deste Volume já vimos que, nos diversos remos de produção, a taxa de lucro média não era determinada pela composição particular de cada capital, mas pela sua composição social média. A diminuição relativa da parte variável com relação à parte constante (portanto com relação ao capital total 100) provoca a baixa da taxa de lucro, ficando imutável a exploração do trabalho; provoca a baixa da grandeza relativa da mais-valia, isto é, da sua relação para o valor do capital total adiantado, 100.
Mas não é só esta grandeza relativa que baixa. A grandeza da mais-valia ou do lucro, absorvida pelo capital total 100, baixa em valor absoluto. Para uma taxa de mais-valia de 100%, um capital de 60c+40v produzirá mais-valia (portanto lucro) de 40; um capital de 70c+30v, um lucro de 30; com um capital de 80c+20v, o lucro desce para 20. Esta queda aplica-se à massa da mais-valia, e portanto ao lucro, e resulta do facto de o capital total 100 pôr em acção menos trabalho vivo em geral, se o grau de exploração ficar o mesmo, e porá também em acção menos sobretrabalho, produzindo portanto menos mais-valia. Se tomarmos como unidade de medida, para determinar a mais-valia, qualquer fracção alíquota do capital social, portanto do capital de composição orgânica social média – e sempre se faz isto quando se calcula o lucro – então haverá identidade entre a baixa relativa e a baixa absoluta da mais-valia. Nos casos pré-citados, a taxa de lucro baixa de 40% para 30% e 20% porque, de facto, a massa de mais-valia produzida pelo mesmo capital – e por consequência de lucro – desce em valor absoluto de 40 para 30 e para 20. Uma vez dada a grandeza de valor do capital com o qual se relaciona a mais-valia, suponhamos 100, qualquer diminuição da relação da mais-valia para esta grandeza invariável só pode ser uma outra forma de exprimir a baixa da grandeza absoluta da mais-valia e do lucro. Na realidade, trata-se de uma tautologia. Mas que há diminuição, isso resulta, como já demonstrámos, da natureza do desenvolvimento do processo de produção capitalista.
Por outro lado, as mesmas causas que produzem uma diminuição absoluta da mais-valia (e portanto do lucro) com relação a dado capital, e que, por consequência, fazem também baixar a taxa de lucro calculada em percentagem, provocam um acréscimo da massa absoluta da mais-valia (e portanto do lucro) de que se apropria o capital social (isto é, o conjunto dos capitalistas). Como é que esta lei irá então traduzir-se necessariamente, qual a sua única expressão possível, ou ainda, quais são as condições implicadas por esta contradição aparente?
A fracção alíquota 100 do capital social e qualquer fragmento de 100 unidades de um capital de composição orgânica social média, constituem uma dada grandeza; se para elas a diminuição da taxa de lucro coincide com a diminuição da grandeza absoluta deste, é precisamente porque o capital com o qual as relacionam e medem é uma grandeza constante; pelo contrário, a grandeza do capital social total, assim como a do capital que se encontra nas mãos dos capitalistas individuais, é uma grandeza variável que, para permanecer fiel às condições da nossa hipótese, tem que variar necessariamente na razão inversa da diminuição da fracção variável.
No primeiro exemplo, sendo a composição do capital 60c+40v, a mais-valia ou lucro é de 40 e a taxa de lucro é de 40%. Admitamos que neste estádio de composição o capital total era de um milhão. A mais-valia total (portanto o lucro total), elevar-se-ia a 400 000. Se mais tarde a composição do capital vier a ser de 80c+20v, para cada fracção de 100, a mais-valia ou lucro será de 20, permanecendo imutável o grau de exploração do trabalho. Mas a mais-valia ou lucro aumenta, como demonstrámos, apesar da baixa da taxa de lucro ou da produção da mais-valia, por fracção de capital de 100. Admitamos portanto que a massa de mais-valia tenha passado de 400 000 para 440 000; isto só foi possível porque, enquanto se estabelecia esta nova composição orgânica, aumentava simultaneamente o capital total, passando para 2 200 000. A massa do capital total posta em movimento elevou-se para 220%, ao passo que a taxa de lucro baixou 50%. Se o capital tivesse simplesmente duplicado, não teria podido produzir, com uma taxa de lucro de 20%, mais do que a massa de mais-valia ou lucro, igual à produzida pelo antigo capital de 1000 000 à taxa de lucro de 40%. Se se tivesse elevado a menos do dobro, teria produzido menos mais-valia ou lucro do que antes o capital de 1000 000; este, na sua composição anterior, passaria de 1000 000 para 1100 000 e assim faria subir a mais-valia de 400 000 para 440 000.
Manifesta-se aqui a mesma lei que já explicámos: à medida que se produz a baixa relativa do capital variável (isto é, à medida que se desenvolve a força produtiva social do trabalho), é precisa uma quantidade cada vez maior de capital total para pôr em acção a mesma quantidade de força de trabalho e absorver a mesma de sobretrabalho. Logo, a possibilidade de um excedente relativo de população operária vai exactamente a par do desenvolvimento da produção capitalista. A causa disto não é uma diminuição mas um aumento da força produtiva do trabalho social; este facto não resulta portanto de uma absoluta desproporção entre o trabalho e os meios de existência ou os meios de produção desses meios, mas de um desequilíbrio gerado, proveniente da forma capitalista de exploração do trabalho, entre o crescimento do capital e a necessidade relativamente decrescente que tem de uma população crescente.
Se a taxa de lucro baixar 50%, será reduzida a metade. Para que a massa de lucro fique a mesma, é preciso que o capital duplique. Diminuindo a taxa de lucro, para que a massa de lucro fique imutável, é preciso que o multiplicador que indica o acréscimo do capital total seja igual ao divisor que indica a baixa da taxa de lucro. Quando a taxa de lucro desce de 40 para 20 é preciso que, inversamente, o capital aumente na proporção de 20 para 40, para que o resultado fique o mesmo. Se a taxa de lucro tivesse descido de 40 para 8, seria preciso que o capital aumentasse de 8 para 40, isto é que quintuplicasse. Um capital de 1000 000 à taxa de 40% produz 400 000 e um capital de 5000 000 a 8% produziria também 400 000: isto para que o resultado ficasse o mesmo; se tivesse de ser mais elevado, seria preciso que o capital aumentasse em proporção maior do que baixava a taxa de lucro.
Por outros termos: para que, em valor absoluto, o elemento variável do capital total não fique só o mesmo mas aumente, embora a sua percentagem como fracção do capital diminua, é preciso que o capital total, proporcionalmente, aumente mais do que baixa a percentagem do capital variável; é preciso que aumente a ponto de ter necessidade, na sua nova composição, para a compra da força de trabalho, não só da antiga parte de capital variável mas de uma quantidade ainda maior. Se a fracção variável de um capital de 100 descer de 40 para 20, é preciso que o capital total se eleve a mais de 200 para poder empregar um capital variável superior a 40.
Mesmo que a massa explorada da população proletária permanecesse constante – aumentando apenas a duração e a intensidade do dia de trabalho – seria preciso que aumentasse a soma do capital utilizado, quanto mais não fosse para empregar a mesma quantidade de trabalho nas antigas condições de exploração, quando se modificasse a composição do capital.
Portanto, à medida que progride o modo de produção capitalista, um mesmo desenvolvimento da produtividade social do trabalho exprime-se, por um lado, na tendência para uma baixa progressiva da taxa de lucro e, por outro lado, num acréscimo constante da massa absoluta da mais-valia ou do lucro de que se apropriam os capitalistas. De modo que, à baixa relativa do capital variável e do lucro, corresponde a uma alta absoluta de um e de outro. Este duplo efeito, já o demonstrámos, só se pode explicar por um acréscimo do capital total cuja progressão é mais rápida que a baixa da taxa de lucro.
Para empregar um capital variável que tenha aumentado absolutamente, no caso de uma composição orgânica mais elevada ou de um aumento relativo mais forte do capital constante, não basta que o capital total aumente proporcionalmente a esta composição mais elevada, é preciso que cresça ainda mais depressa. Daqui resulta o seguinte: à medida que se desenvolve o modo de produção capitalista, uma quantidade de capital cada vez maior é necessária para ocupar a mesma força de trabalho e ainda é preciso mais para uma força de trabalho em aumento. O acréscimo da produtividade do trabalho provoca portanto necessariamente um excedente permanente de população proletária. Se o capital variável só constituir 1/6 do capital total, contra ½ anteriormente, será preciso para ocupar a mesma força de trabalho que o capital triplique; mas se quisermos ocupar o dobro da força de trabalho, será preciso que o capital sextuplique.
Dizer que a massa do lucro é determinada por dois factores – taxa de lucro e massa de capital empregado a essa taxa – é pura tautologia. Por isso, pretender que a massa do lucro pode aumentar, embora a taxa de lucro baixe simultaneamente, é apenas uma forma dessa tautologia, que nada adianta. Porque também é possível que o capital aumente sem que aumente a massa de lucro e até pode aumentar enquanto ela baixa. 100 a 25% dá 25, mas 400 a 5% só dá 20. Mas se as mesmas causas que fazem baixar a taxa de lucro favorecem a acumulação, isto é, a constituição de capital adicional que põe em acção trabalho suplementar e produz um acréscimo de mais-valia; se, por outro lado, a simples baixa da taxa de lucro implica aumento do capital constante e, por isso, do capital total – então todo este processo deixa de ser misterioso. Ver-se-á mais tarde a que falsidades se recorreu para escamotear a possibilidade do acréscimo da massa do lucro, simultaneamente com a diminuição da sua taxa.
Mostrámos que as mesmas causas que produzem uma baixa tendencial da taxa de lucro geral provocam uma acumulação acelerada do capital e, por isso, um acréscimo da grandeza absoluta ou ainda da massa total do sobretrabalho (mais-valia, lucro) de que ele se apropria. Assim como todos os fenómenos se apresentam às avessas na concorrência e, por isso, na consciência dos agentes que nela participam, o mesmo sucede com esta lei – refiro-me à conexão interna e necessária entre duas coisas que na aparência se contradizem. Vê-se bem o exemplo das proporções já expostas que um capitalista, dispondo de um capital considerável, tirará dele uma quantidade de lucro superior à obtida por um pequeno capitalista que parece realizar lucros elevados.
O mais superficial exame dos fenómenos da concorrência mostra que, em certas circunstâncias, o grande capitalista, quando quer conquistar lugar no mercado e afastar os concorrentes de menor importância, por exemplo em períodos de crise, utiliza na prática este sistema: baixa voluntariamente a sua taxa de lucro para afastar as firmas de menor envergadura.
O capital comercial, como veremos mais tarde em pormenor, revela fenómenos que fazem aparecer uma baixa de lucro como consequência da extensão do negócio e portanto do capital. Daremos ulteriormente a formulação verdadeiramente científica deste erro de interpretação. Chega-se a considerações do mesmo género quando se comparam taxas de lucros realizados em ramos particulares, consoante esses negócios são submetidos ao regime da livre concorrência ou do monopólio. A representação que se alberga nos cérebros dos agentes da concorrência, encontramo-la em Roscher quando diz que a baixa da taxa de lucro é «mais inteligente e mais humana». A diminuição da taxa de lucro é uma consequência do aumento do capital e do cálculo dos capitalistas, corolário desse aumento. Sabe-se que a massa de lucro que metem ao bolso é mais elevada do que com uma taxa menor. O raciocínio (excepto em Smith, do qual falaremos mais tarde) assenta numa incapacidade total de compreender a própria natureza da taxa de lucro geral e na representação simplista de que os preços são na realidade determinados pela adição de uma certa quantidade mais ou menos arbitrária de lucro ao verdadeiro valor da mercadoria. Por muito ingénuas que sejam estas noções, nem por isso deixam de ter a sua origem na imagem invertida que dá a concorrência das leis imanentes da produção capitalista.
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A lei segundo a qual a baixa da taxa de lucro, provocada pelo desenvolvimento da força produtiva, é acompanhada de um aumento da massa de lucro, traduz-se também pelo seguinte facto: a baixa do preço das mercadorias produzidas pelo capital é acompanhada de um acréscimo relativo das massas de lucro que elas contêm e cuja venda permite realizar.
O desenvolvimento da força produtiva e a elevação correspondente da composição orgânica do capital permitem fazer funcionar uma quantidade cada vez maior de meios de produção com o auxílio de uma quantidade de trabalho cada vez menos, e qualquer parte alíquota do produto total, qualquer mercadoria considerada à parte, ou ainda qualquer porção determinada da massa total das mercadorias produzidas, absorve menos trabalho vivo e contem menos trabalho materializado, quer no desgaste do capital fixo utilizado, quer nas matérias-primas e auxiliares consumidas.
Toda e qualquer mercadoria contém pois uma soma menor, quer em trabalho materializado em meios de produção, quer em trabalho novamente acrescido durante a produção. Por consequência, baixa o preço de qualquer mercadoria considerada à parte.
No entanto, a massa de lucro contida em qualquer mercadoria pode aumentar, se a taxa da mais-valia absoluta ou relativa se eleva; contém menos trabalho novamente acrescido, mas a fracção de trabalho que não é paga aumenta com relação à que é paga. Mas isto só se dá dentro de certos limites. Com o desenvolvimento da produção, a soma de trabalho vivo, novamente acrescido a cada mercadoria, diminui absolutamente e esta baixa toma proporções tão consideráveis que faz baixar também, em valor absoluto, a massa de trabalho não pago contida na mercadoria, seja qual for o seu aumento com relação à fracção paga.
A massa de lucro por mercadoria reduz-se consideravelmente com o desenvolvimento da força produtiva do trabalho, apesar do aumento da taxa da mais-valia; e, como também sucede para a taxa de lucro, essa diminuição é apenas atenuada pela baixa de preço dos elementos do capital constante e pelas outras circunstâncias expostas na primeira secção deste Volume, que fazem subir a taxa de lucro para uma dada taxa de mais-valia ou mesmo que se verifique uma baixa desta.
Dizer que baixa o preço das mercadorias isoladas, cuja soma constitui o produto total do capital, quer dizer que uma dada quantidade de trabalho realiza-se em maior quantidade de mercadorias, portanto cada mercadoria contém menos trabalho que antes. O mesmo se dá quando aumenta o preço de um dos elementos do capital constante, como a matéria-prima, etc.. Com excepção de casos isolados (por exemplo, quando a produtividade do trabalho provoca uma baixa uniforme de todos os elementos do capital constante e variável), vamos dar as razões por que a taxa de lucro baixa, apesar da subida da taxa de mais-valia:
1) porque mesmo uma parte não paga maior, da quantidade total menor de trabalho recentemente adicionado, é menor do que uma alíquota menor porção não paga do antigo valor maior;
2) porque a composição superior do capital traduz-se da seguinte maneira: em qualquer mercadoria a porção de valor que representa, no fim de contas, trabalho novamente acrescentado, baixa com relação à porção que representa matéria-prima, matéria auxiliar e desgaste de capital fixo. Esta modificação da relação entre diferentes componentes do preço da matéria isolada – diminuição da fracção do preço que representa trabalho vivo novamente acrescentado e aumento dos elementos que exprimem trabalho materializado anteriormente – é, no preço da mercadoria, a expressão da baixa do capital variável relativamente ao capital constante.
Assim como esta diminuição é absoluta para uma dada unidade do capital, digamos 100, assim também o é para qualquer mercadoria tomada à parte, como fracção alíquota do capital reproduzido. Mas se a taxa de lucro for calculada simplesmente sobre os elementos do preço das mercadorias isoladas, apresenta-se de forma diferente à realidade. E isto pela seguinte razão:
A taxa de lucro é calculada sobre o capital total utilizado, mas durante um determinado tempo, por exemplo um ano. A relação entre a mais-valia (ou o lucro obtido e realizado durante um ano) e o capital total, calculado em percentagem, é a taxa de lucro. Esta não é necessariamente igual a outra taxa de lucro para cujo cálculo se tivesse tomado como base não o ano mas o período de rotação do capital: é só quando este capital efectua uma rotação num ano que os dois resultados coincidem.
Por outro lado, o lucro obtido no decorrer de um ano é apenas a soma dos lucros obtidos sobre as mercadorias produzidas e vendidas nesse ano. Se calcularmos o lucro com relação ao custo de produção de mercadorias, obteremos uma taxa de lucro p/pr (p é o lucro realizado no decorrer do ano e pr a soma dos custos de produção das mercadorias produzidas e vendidas no mesmo período). Torna-se evidente que esta taxa de lucro p/pr não pode coincidir com a taxa real de lucro p/C, massa de lucro dividida pelo capital total, a não ser que pr=C, isto é, que o capital efectue exactamente a rotação no ano.
Consideremos um capital industrial em três estados diferentes:
I. O capital de 8000 libras produz e vende por ano 5000 mercadorias a 30 xelins cada uma. Efectua portanto uma rotação anual de 7500 libras. Na mercadoria faz um lucro de 10 xelins por unidade, ou seja 2500 libras por ano. Em cada unidade de mercadoria há pois 20 xelins de adiantamento de capital e 10 xelins de lucro; a taxa de lucro por unidade é portanto 10/20=50%. Na soma das 7500 libras que efectuaram a rotação, há 5000 libras de capital adiantado e 2500 de lucro. A taxa de lucro com relação à soma em rotação p/pr também é igual a 50%. Pelo contrário, calculada sobre o capital total, a taxa de lucro é p/C=2500/8000=31,25%.
II. Admitamos que o capital passa para 10 000 libras e que devido a maior produtividade, é capaz de produzir por ano 10 000 mercadorias ao custo de produção de 20 xelins por unidade, as quais se vendem, com o lucro de 4, a 24 xelins cada unidade. O preço do produto anual será portanto de 12 000 libras, das quais 10 000 de capital adiantado e 2000 de lucro; p/pr é por unidade 4/20 e a rotação anual é de 2000:10 000=20%, valor igual nos dois casos. E como o capital total é igual à soma dos custos de produção, isto é, 10 000 libras, a taxa de lucro real é também desta vez, igual a 20%.
III. Suponhamos que, aumentando a força produtiva do trabalho, o capital se eleva a 15 000 libras e que produz agora 30 000 mercadorias ao custo de produção de 13 xelins por unidade, que são vendidas com o lucro de 2 xelins, a 15 xelins por unidade. A rotação anual é pois de 30 000X15 xelins=22 500 libras, 19500 das quais de capital adiantado e 3000 de lucro. Neste caso p/pr=2/13=3000/19500=15 5/13%. Pelo contrário, p/C é igual a 3000:15 000=20%.
Vemos portanto que só no caso II – valor-capital em rotação igual ao capital total – a taxa de lucro calculada por mercadoria isolada ou pela soma em rotação, é a mesma que a taxa de lucro calculada sobre o capital total. No caso I – soma em rotação inferior ao capital total – a taxa de lucro calculada sobre o custo de produção da mercadoria é mais elevada; no caso III – capital total inferior à soma em rotação – a taxa de lucro é mais baixa que a taxa de lucro real, calculada sobre o capital total. Geralmente, na prática comercial, não se calcula com exactidão a rotação. Admite-se que o capital efectuou uma rotação desde que a soma dos preços das mercadorias atinge a do capital total empregado. Mas o capital só pode ter realizado uma rotação completa quando a soma dos custos de produção das mercadorias realizadas iguala a soma do capital total.
Uma vez mais se verifica quão importante é, na produção capitalista, não estudar em si, isoladamente, como simples mercadoria, a mercadoria tomada à parte ou o produto-mercadoria de qualquer período, mas considera-las como produto do capital adiantado e com relação ao capital total que produz esta mercadoria.
Embora seja preciso calcular a taxa de lucro, comparando a massa da mais-valia produzida e realizada, não só com a porção consumida de capital que reaparece nas mercadorias, mas também com a porção não consumida de capital acrescida à consumida, sendo a não consumida utilizada e continuando a desempenhar a sua função na produção – a massa do lucro, por sua vez, só pode ser igual à massa de lucro (ou de mais-valia) contida nas próprias mercadorias e que será realizada pela sua venda.
Se a produtividade da indústria aumenta, o preço da mercadoria diminui, porque contém menos trabalho pago e não pago. Admitamos que o mesmo trabalho produz o triplo de produto; caberá portanto menos 2/3 de trabalho a cada produto considerado isoladamente. E como o lucro só pode constituir uma parte da quantidade de trabalho contida na mercadoria isolada, é consequência que diminua a massa do lucro por mercadoria; e isto acontece dentro de certos limites, mesmo que a taxa de mais-valia aumente.
Em caso algum, a massa de lucro relacionada com o produto total fica abaixo da massa de lucro primitiva, desde que o capital empregue a mesma quantidade anterior de operários e no mesmo grau de exploração. (Pode produzir-se o mesmo se se empregarem menos operários elevando o grau de exploração). A massa de lucro por produto diminui na mesma proporção em que aumenta o número de produtos. A massa do lucro permanece a mesma; simplesmente reparte-se de outro modo na soma das mercadorias; mas este facto nada altera quanto à distribuição, entre operários e capitalistas, da quantidade de valor criado pelo trabalho novamente acrescido.
Se se empregar a mesma quantidade de trabalho, a massa de lucro só pode aumentar quando aumentar o sobretrabalho não pago; ou (permanecendo o mesmo grau de exploração) quando for maior o número de operários; ou ainda, quando estes dois factores se conjugarem. Em todos estes casos – que, segundo a nossa hipótese, supõem que o capital constante aumenta com relação ao capital variável e que aumenta a grandeza do capital total utilizado – a mercadoria isolada contém menor quantidade de lucro e a taxa de lucro baixa. Uma quantidade de trabalho adicional traduz-se por maior quantidade de mercadorias. O preço de cada mercadoria diminui.
Teoricamente, quando baixa o preço das mercadorias, por causa do aumento da produtividade (e portanto da multiplicação simultânea das mercadorias obtidas a menor preço), a taxa de lucro pode ficar a mesma se, por exemplo, aquele aumento exerce uma acção simultânea e uniforme sobre todos os componentes das mercadorias, de modo que o preço total diminui na proporção em que aumenta a produtividade e, por outro lado, a relação recíproca dos diversos componentes do preço da mercadoria permanece a mesma. A taxa de lucro pode também elevar-se se a subida da taxa da mais-valia vai a par de uma importante diminuição do valor dos elementos do capital constante e, em particular, do capital fixo.
Na realidade, como já vimos, a taxa de lucro baixa com o decorrer do tempo. Em caso nenhum, a queda do preço da mercadoria permite, por si só, tirar uma conclusão quanto à taxa de lucro. Tudo depende da grandeza da soma total do capital empregado na produção da mercadoria. Suponhamos por exemplo que um metro de tecido baixa de 3 para 1 xelim e 2/3; se soubermos que, antes da baixa, havia 1 xelim 2/3 de capital constante, 2/3 de salário, 2/3 de lucro e, depois da baixa, 1 xelim de capital constante, 1/3 de salário, e 1/3 de lucro, nem por isso se fica a saber se a taxa de lucro continuou a mesma ou não. Isso depende de uma incógnita: é preciso saber se aumentou o capital total adiantado e quanto, e quantos metros a mais foram produzidos num determinado lapso de tempo.
Resulta da natureza do modo de produção capitalista que, quando a produtividade do trabalho aumenta, o preço de qualquer mercadoria considerada à parte ou de determinada quantidade de mercadoria diminui, o volume de mercadorias aumenta, a massa de lucro por mercadoria e a taxa de lucro com relação à soma das mercadorias diminuem, ao passo que aumenta a massa de lucro calculada sobre a soma total das mercadorias. Estes fenómenos manifestam-se superficialmente da maneira seguinte: baixa da massa de lucro por mercadoria, baixa do preço desta, acréscimo da massa de lucro calculada sobre o volume total aumentado das mercadorias. Destes factos deduz-se facilmente a ideia de que o capitalista reduz, porque esse é o seu prazer, a parte de lucro por mercadoria, mas desforra-se produzindo maior número de mercadorias. Esta concepção assenta na ideia do lucro na venda (profit upon alienation) que deriva do conceito do capital comercial.
Já vimos no Volume I, na quarta e sétima secções, que o acréscimo da massa de mercadorias e a produção mais barata da mercadoria isolada – resultados do aumento da produtividade do trabalho – não afectam directamente, apesar da baixa de preço, a relação entre o trabalho pago e o não pago na mercadoria (quando as mercadorias em causa não são um elemento determinante do preço da força de trabalho).
Na concorrência tudo se apresenta sob um falso aspecto, às avessas, e é por isso que ao capitalista lhe parece que:
1.º - diminui o lucro em cada mercadoria, baixando o preço desta, mas que faz um lucro mais elevado porque vende maior massa de mercadorias;
2.º - fixa o preço da mercadoria e determina o preço do produto total por multiplicação, quando a operação primitiva é uma divisão e a multiplicação só aparece em segundo lugar e só pode ser exacta sob condição de supor aquela divisão.
Na realidade, o economista vulgar só traduz em linguagem de aparência teórica, as representações bizarras do capitalista prisioneiro da concorrência; tenta generalizá-las e esforça-se por inventar provas sobre a correcção de tais ideias.
Mas, de facto, a baixa dos preços das mercadorias e a alta da soma de lucro, realizado sobre uma quantidade maior de mercadorias produzidas a custo mais barato, são apenas outra manifestação da lei da baixa da taxa de lucro que vai a par com o aumento da massa de lucro.
Não é ocasião para estudar agora até que ponto o abaixamento da taxa de lucro pode coincidir com a alta dos preços, assim como o ponto já examinado quando do estudo da mais-valia relativa. O capitalista que emprega métodos de produção mais aperfeiçoados, mas ainda não generalizados, vende abaixo do preço de mercado mas acima do seu preço pessoal de produção. Assim, a taxa de lucro aumenta para ele até que a concorrência compense esta vantagem; depois vem um período de equilíbrio durante o qual se produz o segundo fenómeno, o acréscimo do capital investido; consoante o grau desse acréscimo, o capitalista será então capaz de ocupar em novas condições uma parte dos operários que ocupava antes (até talvez a sua totalidade, ou ainda mais) e obter o mesmo lucro ou superior.
(Cap XIV)
Em princípio, a economia política procura manter uma confusão das mais cómodas entre dois tipos de propriedade privada, embora bem distintos: a propriedade privada fundada no trabalho pessoal e a propriedade privada fundada no trabalho alheio. E esquece propositadamente que esta não só forma a antítese daquela mas que só cresce sobre a sua sepultura.
Na Europa ocidental, pátria-mãe da economia política, a acumulação primitiva, isto é, a expropriação dos trabalhadores, está consumada, quer o regime capitalista tenha enfeudado directamente toda a produção nacional, quer dirija, pelo menos indirectamente, as camadas sociais que persistem ao lado dele e pouco a pouco declinam com o modo de produção caduco que elas comportam. Na sociedade capitalista já feita, o economista aplica as noções de direito e de propriedade legadas por uma sociedade pré-capitalista, com tanto mais zelo e unção quanto mais alto protestam os factos contra a sua ideologia. Nas colónias[1] o modo de produção e de apropriação capitalista choca por toda a parte contra a propriedade corolário do trabalho pessoal, contra o produtor que, dispondo das condições exteriores do trabalho, se enriquece a si mesmo em vez de enriquecer o capitalista. A antítese destes dois modos de apropriação diametralmente opostos afirma-se aqui de maneira concreta, pela luta. Se o capitalista se sentir apoiado pela potência da mãe-pátria, procura afastar violentamente do seu caminho a pedra de tropeço. O mesmo interesse que impele o economista a sustentar na sua pátria a identidade teórica da propriedade capitalista e da sua contrária, determina-o nas colónias a entrar na via das confissões, a proclamar bem alto a incompatibilidade destas duas ordens sociais. E então põe-se a demonstrar que é preciso renunciar ao desenvolvimento das potências colectivas do trabalho, à cooperação, à divisão manufactureira, ao emprego em grande escala das máquinas, etc., ou encontrar maneira de expropriar os trabalhadores e transformar os seus meios de produção em capital. No interesse do que lhe apraz chamar a riqueza da nação, procura artifícios para assegurar a pobreza do povo. Desde então, a sua couraça de sofismas apologéticos destaca-se aos bocados, como madeira podre.
Se Wakefield nada disse de novo sobre as colónias, não se pode disputar-lhe o mérito de ter descoberto com elas a verdade sobre as relações capitalistas na Europa. Assim como, originariamente, o sistema protector tendia a engendrar fabricantes na mãe-pátria, assim também a teoria da colonização de Wakefield que, durante anos, a Inglaterra se esforçou por pôr legalmente em prática, tinha por objectivo a fabricação de assalariados nas colónias. É o que se chama colonização sistemática.
Primeiramente, Wakefield descobriu nas colónias que a posse de dinheiro, de subsistências, de máquinas e de outros meios de produção não faz do homem um capitalista, a não ser que haja um certo complemento que é o assalariado, um outro homem forçado a vender-se voluntariamente. Descobriu assim que, em vez de ser uma coisa, o capital é uma relação social entre pessoas e que tal relação se estabelece por intermédio das coisas. Um homem leva com ele de Inglaterra para os Estados Unidos víveres e meios de produção no valor de 50 000 libras. Leva também 3000 operários, homens, mulheres e crianças. Uma vez chegado ao seu destino, ficou sem um criado para lhe fazer a cama ou ir buscar água ao rio[2]. Este homem previu tudo mas esqueceu-se de levar consigo as relações de produção inglesas.
Para a compreensão das descobertas ulteriores de Wakefield são necessárias duas notas preliminares. Sabe-se que meios de produção e de subsistência pertencentes ao imediato produtor, ao próprio trabalhador, não são capital. Só se tornam capital quando são meios de explorar e dominar o trabalho. Ora, tal propriedade confunde-se tão bem no espírito do economista com a substância material, que este os baptiza com o nome de capital em todas as circunstâncias, mesmo quando sejam precisamente o contrário. É assim que procede Wakefield. Além disso, ao parcelamento dos meios de produção constituídos em propriedade privada de um grande número de produtores, independentes entre si e trabalhando todos por sua própria conta, chama ele igual divisão do capital. Acontece ao economista político como ao legista da Idade Média que mascara de etiquetas feudais relações que são puramente pecuniárias. Diz Wakefield:
«Suponham o capital dividido em partes iguais entre todos os membros da sociedade e suponha-se que ninguém tem interesse em acumular mais capital do que aquele que as suas mãos poderiam empregar. É isto que, até certo grau, acontece actualmente nas novas colónias americanas onde a paixão pela propriedade de terras impede a existência de uma classe de assalariados».
Portanto, quando o trabalhador pode acumular para si próprio e de tal maneira que possa ficar proprietário dos seus meios de produção, a acumulação e a produção capitalistas são impossíveis. A classe assalariada, sem a qual não poderiam passar, faz-lhes falta. Segundo Wakefield, o operário foi expropriado dos seus meios de trabalho no antigo mundo e puderam estabelecer-se capitalismo e assalariado, graças a um contrato social de tipo completamente original: a humanidade «adoptou um método bem simples para activar a acumulação do capital», – e esta acumulação preocupava naturalmente a imaginação da dita humanidade desde Adão e Eva como fim único e supremo da sua existência – «dividiu-se em proprietários de capital e proprietários de trabalho. Esta divisão resultou de um entendimento e de uma combinação, feitos de boa vontade e de comum acordo».
Numa palavra a massa da humanidade expropriou-se a si mesma em honra da acumulação do capital! De facto, a inclinação da humanidade laboriosa para se expropriar para maior glória do capital é tão imaginária que, segundo o próprio Wakefield, a riqueza colonial só tem um único fundamento natural: a escravatura. A colonização sistemática é um simples último recurso, visto que é com homens livres e não com escravos que tem de tratar.
«Sem a escravatura, o capital teria sido perdido nos estabelecimentos espanhóis ou, pelo menos, ter-se-ia dividido em fracções mínimas, tal como um indivíduo pode empregar na sua pequena esfera. E foi o que aconteceu realmente nas últimas colónias fundadas pelos ingleses onde um grande capital em sementes, gado e instrumentos, foi perdido por falta de assalariados e onde cada colono possui mais capital do que pode manejar pessoalmente».
A primeira condição da produção capitalista é que a propriedade do solo esteja arrancada já das mãos da massa. Pelo contrário, a essência de qualquer colónia livre consiste em que a massa do solo seja ainda propriedade do povo e que cada colono esteja senhor de uma parte dela que lhe sirva de meio de produção individual, sem impedir por isso que novos colonos possam fazer o mesmo. É este o segredo da prosperidade dos colonos mas também é o seu mal: a resistência ao estabelecimento de capital entre eles.
«Onde a terra quase nada custa e onde os homens são livres, podendo cada um adquirir à vontade um pedaço de terreno, não só o trabalho é muito caro, considerada a parte que toca ao trabalhador no produto do seu trabalho, mas a dificuldade é obter a qualquer preço trabalho combinado».
Como nas colónias o trabalhador não está ainda divorciado das condições materiais do trabalho, nem da sua raiz (o solo) – ou está aqui e ali, mas em escala demasiado restrita – a agricultura também não se encontra separada da manufactura, nem a indústria doméstica dos campos está destruída. E então, onde encontrar mercado interno para o capital?
Nenhuma parte da população da América é exclusivamente agrícola, excepto os escravos e os seus patrões que combinam trabalho e capital em grandes empresas. Os americanos livres que cultivam o solo entregam-se ao mesmo tempo a outras ocupações. Confeccionam ordinariamente uma parte dos móveis e dos instrumentos que utilizam; edificam muitas vezes as suas próprias casas; levam o produto das suas indústrias aos mercados mais afastados; fiam e tecem; fabricam sabão e velas, sapatos e vestuário necessários ao seu consumo. Na América, o ferreiro, o lojista, o marceneiro, são muitas vezes ao mesmo tempo cultivadores. Não deixam campo ao capitalista.
O «óptimo» da produção capitalista é que reproduz constantemente o assalariado e ainda, proporcionalmente à acumulação do capital, faz sempre nascer assalariados supranumerários. A lei da oferta e da procura de trabalho é assim mantida em rotina conveniente, as oscilações do salário movem-se entre os limites mais favoráveis à exploração e, por fim, a indispensável subordinação do trabalhador ao capitalista está garantida; esta relação de dependência absoluta que na Europa o economista mentiroso mascara decorando-a enfaticamente com o nome de contrato livre entre dois negociantes igualmente independentes, um alienando a mercadoria-capital, o outro a mercadoria-trabalho, perpetua-se. Mas nas colónias este doce erro evapora-se. A cifra absoluta da população operária cresce aí muito mais rapidamente do que na metrópole, visto que lá os trabalhadores vêm ao mundo já feitos e, no entanto, o mercado de trabalho está sempre insuficientemente guarnecido. A lei da oferta e da procura vai sempre por água abaixo. Por um lado, o velho mundo importa sem cessar capitais ávidos de exploração e relutantes à abstinência e, por outro lado, a reprodução regular dos assalariados quebra-se de encontro a escolhos fatais. Por mais forte razão, muito mais é preciso que, proporcionalmente à acumulação de capital, se produzam trabalhadores supranumerários! O assalariado de hoje torna-se amanhã artífice ou cultivador independente; desaparece do mercado de trabalho e esta metamorfose incessante de assalariados em produtores livres, a trabalharem por sua própria conta e não por conta do capital, a enriquecerem-se em vez de enriquecer o capitalista, reage de maneira funesta sobre o estado do mercado e, portanto, sobre a taxa do salário. Não só baixa o grau de exploração mas ainda o assalariado perde, com a dependência real, todo o sentimento de sujeição ao capitalista. Daqui todos os inconvenientes de que Wakefield nos faz a pintura com emoção e eloquência:
«A oferta do trabalho assalariado não é constante, nem regular, nem suficiente. Não só é sempre demasiado fraca como ainda incerta. Embora seja considerável o produto a compartilhar entre capitalista e trabalhador, este fica com uma parte tão grande que em breve se torna capitalista. Pelo contrário, só há um pequeno número que pode acumular grandes riquezas mesmo quando a duração da vida ultrapasse muito a média.
Os trabalhadores não permitem ao capitalista que renuncie ao pagamento da maior parte do seu trabalho. E mesmo que este tenha a ideia de importar da Europa com o seu próprio capital os seus próprios assalariados, isso de nada lhe serve. Deixam em breve de ser assalariados e tornam-se camponeses independentes e até chegam a fazer concorrência aos seus antigos patrões tomando-lhes no mercado os braços que venham oferecer-se».
Poderá imaginar-se algo de mais revoltante? O bom capitalista importou da Europa, a preço do seu caro dinheiro, os seus próprios concorrentes em carne e osso! É o fim do mundo! Não admira que Wakefield se queixe da falta de disciplina entre os operários nas colónias e da ausência do sentimento de dependência. Diz o seu discípulo Mérivale: «Nas colónias a alta de salários fez nascer o desejo de um trabalhador menos caro e mais submisso, ao qual o capitalista pudesse ditar condições e não vê-las impostas. Nos países da velha civilização, o trabalhador é, embora livre, dependente do capitalista, em virtude de uma lei natural; nas colónias esta dependência tem de ser criada por meios artificiais; o resultado do sistema predominante de propriedade privada, fundada no próprio trabalho de cada um e não na exploração do trabalho alheio, é um sistema bárbaro que dispersa os produtores e fragmenta a riqueza nacional»[3].
A dispersão dos meios de produção nas mãos de inúmeros produtores-proprietários, a trabalharem por sua conta, aniquila ao mesmo tempo a concentração e a base capitalista de qualquer espécie de trabalho combinado.
Todas as empresas de grande amplitude que compreendam anos e necessitem de consideráveis adiantamentos de capital fixo, tornam-se problemáticas. Na Europa, o capital não hesita um instante em casos iguais porque a classe operária é sua pertença viva, sempre disponível, sempre abundante em excesso. Nos países coloniais… Wakefield conta-nos a propósito uma anedota comovente: conversava ele com alguns capitalistas do Canadá e do Estado de Nova Iorque, onde as vagas de emigração estagnam muitas vezes e depositam um sedimento de trabalhadores. Um dos interlocutores suspira: «O nosso capital estava já pronto para muitas operações cuja execução exigia grande período de tempo: mas o meio de operar consistia em recrutar esses operários que bem sabíamos nos virariam as costas em breve. Se estivéssemos certos de fixar esses emigrantes, tê-los-íamos logo recrutado e a salários elevados. Contudo, apesar da nossa certeza de os perder, mesmo assim os recrutaríamos se tivéssemos podido contar com substitutos à medida que deles carecêssemos».
Depois de ter feito sobressair pomposamente o contraste da agricultura capitalista inglesa de «trabalho combinado» e da exploração parcelar dos camponeses americanos, Wakefield, contrariado, deixa ver o reverso da medalha; pinta-nos a massa do povo americano como independente, abastado, empreendedor e relativamente culto, ao passo que «o operário rural inglês é um miserável esfarrapado, um pobretana… Em que país, exceptuando a América do Norte e algumas novas colónias, os salários do trabalho livre empregado na agricultura, ultrapassam por pouco que seja os meios de subsistência absolutamente indispensáveis ao trabalhador?... Em Inglaterra, os cavalos de tiro, que constituem para os seus donos uma propriedade de muito valor, são com certeza muito melhor alimentados do que os operários rurais».
Mas não importa! Mais uma vez são inseparáveis a riqueza da nação e a miséria do povo, isto pela natureza das coisas.
E agora qual o remédio para esta gangrena capitalista das colónias? Se quisessem converter ao mesmo tempo toda a terra colonial, de propriedade pública em propriedade privada, destruiriam na verdade o mal pela raiz, mas também ao mesmo tempo a colónia. Toda a arte está em matar dois coelhos com uma cajadada. O governo irá vender esta terra virgem a um preço artificial, oficialmente fixado por ele, sem respeito algum pela lei da oferta e da procura. O emigrante será assim forçado a trabalhar bastante tempo como assalariado até ganhar dinheiro suficiente para poder comprar um campo e tornar-se cultivador independente[4]. Os fundos realizados pela venda das terras a preço quase proibitivo para o trabalhador imigrante, estes fundos que se extraem do salário, à medida que crescem, serão utilizados pelo governo na importação de indigentes europeus para as colónias para que o capitalista possa encontrar o mercado do trabalho sempre copiosamente guarnecido de braços. Desde então, tudo se passará pelo melhor nas melhores colónias possíveis. Eis o grande segredo da «colonização sistemática»!
E Wakefield exclama triunfalmente: «Com este plano, a oferte de trabalho será necessariamente constante e regular: primeiro, nenhum trabalhador é capaz de obter terra antes de ter trabalhado por dinheiro e, por isso, todos os imigrantes vão render ao seu patrão um capital que o porá em condições de empregar ainda mais trabalhadores; segundo, todos os que mudaram a sua condição de assalariados para camponeses fornecem um fundo adicional destinado à importação de novos trabalhadores para as colónias. O preço do solo outorgado pelo Estado deverá ser suficiente, isto é, bastante elevado «para impedir que os trabalhadores se tornem em camponeses independentes antes que outros tenham vindo tomar o seu lugar no mercado do trabalho».
Este «preço suficiente do solo» não passa de um eufemismo que mascara o resgate pago pelo trabalhador ao capitalista para obter licença de se retirar do mercado do trabalho e partir para o campo. Primeiro é preciso produzir capital para o patrão, para que este possa explorar mais trabalhadores, depois fornecer-lhe, à sua custa, um substituto.
Um facto verdadeiramente característico é que, durante muitos anos, o governo inglês pôs em prática este método de acumulação primitiva, recomendado por Wakefield para uso especial das colónias. O fiasco foi completo porque a corrente emigratória desviou-se simplesmente das colónias inglesas para os Estados Unidos. Desde então, o progresso da produção capitalista na Europa, acompanhado de uma pressão governamental sempre crescente, tornou supérflua a panaceia de Wakefield. Por um lado, a corrente humana, que se precipita todos os anos, imensa e contínua, para a América, deixa depósitos estagnados no Leste dos Estados Unidos; cada vaga de emigração partida da Europa lança no mercado do trabalho mais homens do que a segunda vaga leva para o far West. Por outro lado, a guerra civil americana arrastou atrás de si uma enorme dívida nacional, a exacção fiscal, o aparecimento da mais vil aristocracia financeira, o enfeudamento de uma grande parte das terras públicas a sociedades de especuladores que exploram caminhos de ferro ou minas, em suma, a rápida centralização do capital. A grande República deixou de ser a terra prometida dos operários emigrantes, a produção capitalista marcha a passos de gigante, sobretudo nos Estados do Leste, embora a baixa de salários e a servidão estejam longe de atingir o nível normal europeu.
As doações de terras coloniais baldias, tão largamente prodigalizadas pelo governo inglês aos aristocratas e capitalistas, foram altamente denunciadas pelo próprio Wakefield: além da onda incessante de pesquisadores de oiro e da concorrência que fez a importação de mercadorias inglesas ao artífice colonial, a Austrália foi dotada de uma sobre população relativa, muito menos consolidada do que na Europa, mas bastante considerável: cada paquete traz a notícia desagradável do abarrotamento do mercado de trabalho australiano e da prostituição em certas localidades tão florescentes como no Haymarket de Londres[5].
O segredo que descobriu no novo mundo a economia política do antigo mundo e que divulgou pelas suas lucubrações sobre as colónias, é este: o modo de produção e acumulação capitalista e, portanto, a propriedade privada capitalista, pressupõe o aniquilamento da propriedade privada fundada no trabalho pessoal; a sua base é a expropriação do trabalhador.
Verifica-se portanto que, no fundo da acumulação primitiva do capital, no fundo da sua génese histórica, está a expropriação do imediato produtor, a dissolução da propriedade fundada no trabalho pessoal do seu possuidor.
A propriedade privada, como antítese da propriedade colectiva, só existe onde os instrumentos e as outras condições exteriores do trabalho pertençam a particulares. Mas, conforme estes sejam trabalhadores ou não-trabalhadores, a propriedade privada muda de aspecto: as formas infinitamente matizadas que esta propriedade afecta à primeira vista só reflectem os estados intermediários entre os dois extremos.
A propriedade privada do trabalhador sobre os meios da sua actividade produtiva é o corolário da pequena indústria, agrícola ou manufactureira, e esta constitui o viveiro da produção social, a escola onde se elaboram a habilidade manual, a destreza engenhosa e a livre individualidade do trabalhador. Por certo, este modo de produção encontra-se no meio da escravatura, da servidão e de outros estados de dependência. Mas só prospera, só desenvolve toda a sua energia e só reveste a sua forma integral e clássica onde o trabalhador é o proprietário livre das condições de trabalho que ele mesmo põe em acção; o camponês, do solo que ele cultiva – o artífice, da aparelhagem que ele maneja – como o artista, do seu instrumento.
Este regime industrial de pequenos produtores independentes que trabalham por sua conta, pressupõe a divisão do solo e a dispersão dos outros meios de produção: como exclui a concentração, exclui também a cooperação em grande escala, a subdivisão da tarefa na oficina e nos campos, o maquinismo, o domínio sábio do homem sobre a natureza, o livre desenvolvimento das potências sociais do trabalho, o concerto e a unidade para fins, meios e esforços da actividade colectiva; só é compatível com um estado da produção e da sociedade estreitamente limitado. Eternizá-lo seria, como muito a propósito disse Pecqueur, «decretar a mediocridade em tudo»[1]. Mas, chegado a certo grau, engendra por si mesmo os agentes materiais da sua dissolução. A partir deste momento, forças e paixões que ele comprime começam a agitar-se no meio da sociedade. Tem de ser e é aniquilado. O seu movimento de eliminação, que transforma os meios individuais de produção, esparsos, em meios de produção socialmente concentrados, que faz da pequena propriedade do grande número a propriedade colossal de alguns, esta dolorosa e pavorosa expropriação do povo trabalhador, eis a origem, eis a génese do capital. Abarca toda uma série de processos violentos, dos quais só passámos em revista os mais salientes sob o título de métodos de acumulação primitiva.
A expropriação dos produtores imediatos executa-se com um vandalismo implacável, aguilhoado pelos mais infames objectivos, pelas mais sórdidas paixões, mais odiosas ainda pela sua tacanhez. A propriedade privada, fundada no trabalho pessoal, essa propriedade que, por assim dizer, solda o trabalhador isolado e autónomo às condições exteriores do trabalho, vai ser suplantada pela propriedade privada capitalista, fundada na exploração do trabalho alheio, fundada no assalariado[2].
Desde que um processo de transformação decompôs suficientemente e dos pés à cabeça a velha sociedade, que os produtores se transformaram em proletários, e as suas condições de trabalho em capital, que, por fim, o regime capitalista se sustenta apenas pela força económica das coisas, então a socialização ulterior do trabalho, bem como a metamorfose progressiva do solo e dos outros meios de produção em instrumentos socialmente explorados (comuns, numa palavra), a eliminação ulterior das propriedades privadas vai revestir uma nova forma. O que irá ser depois expropriado já não é o trabalhador independente mas o capitalista, o chefe de um exército ou de um grupo de assalariados.
Esta expropriação realiza-se pelo jogo das leis imanentes da produção capitalista que vão dar à concentração de capitais. Paralelamente a esta centralização, à expropriação de grande número de capitalistas pelo pequeno número, desenvolvem-se em escala sempre crescente a aplicação da ciência à técnica, a exploração da terra com método e em conjunto, a transformação da ferramenta em instrumentos poderosos apenas pelo uso comum, produzindo a economia dos meios de produção, o entrelaçamento de todos os povos na rede do mercado universal; daqui, o carácter internacional imprimido ao regime capitalista.
À medida que diminui o número de potentados do capital que usurpam e monopolizam todas as vantagens deste período de evolução social, aumentam a miséria, a opressão, a escravatura, a degradação, a exploração, mas também a resistência da classe operária crescendo sem cessar, e cada vez mais disciplinada, unida e organizada pelo próprio mecanismo da produção capitalista. O monopólio do capital torna-se um entrave para o modo de produção que com ele cresceu e prosperou, sob os seus auspícios. A socialização do trabalho e a centralização dos seus recursos materiais chegam a um ponto em que já não podem conter-se no invólucro capitalista. Este invólucro rebenta em estilhaços. A hora da propriedade capitalista soou. Os expropriadores são por sua vez expropriados.
A apropriação capitalista, conformada ao modo de produção capitalista, constitui a primeira negação da propriedade privada que é apenas o corolário do trabalho independente e individual. Mas a produção capitalista engendra ela mesma a sua própria negação com a fatalidade que preside às metamorfoses da natureza. É a negação da negação. Restabelece não a propriedade privada do trabalhador, mas a propriedade individual, fundada nas aquisições da era capitalista, na cooperação e posse comum de todos os meios de produção, incluindo o solo.
Para transformar a propriedade privada e dividida, objecto do trabalho individual, em propriedade capitalista, foi naturalmente preciso mais tempo, mais esforços e mais dores do que exigiu a metamorfose em propriedade social da propriedade capitalista, que, de facto, se baseia já num modo de produção colectiva. Além, tratava-se da expropriação da massa por alguns usurpadores; aqui trata-se da expropriação de alguns usurpadores pela massa.
A génese do capitalista industrial[1] não se realizou pouco a pouco como a do agricultor ou fazendeiro. Não há dúvida que muitos chefes de corporação, muitos artífices independentes e até operários assalariados se tornaram a princípio capitalistas embrionários e que, pouco a pouco, graças a uma exploração sempre mais extensa do trabalho assalariado, seguida de uma correspondente acumulação, saíram por fim da casca como capitalistas dos pés à cabeça. A infância da produção capitalista oferece, sob vários aspectos, as mesmas fases que a infância da cidade na Idade Média: a questão de saber qual dos servos evadidos seria patrão ou servo, era em grande parte decidida pela data mais ou menos antiga da respectiva fuga. Contudo, esta marcha a passo de tartaruga, não respondia de modo nenhum às necessidades comerciais do novo mercado universal, criado pelas grandes descobertas do fim do século XV. Mas a Idade Média tinha transmitido duas espécies de capital que brotam sob os mais variados regimes de economia social e até, antes da Era moderna, monopolizam só para eles o nível de capital. Essas espécies são o capital usurário e o capital comercial.
Disse um escritor inglês que, de resto, não dá atenção ao papel representado pelo capital comercial:
«Agora toda a riqueza da sociedade passa em primeiro lugar pelas mãos do capitalista. Ele paga ao proprietário das terras a renda, ao trabalhador o salário, ao fisco os impostos e os dízimos, e retém para si uma grande porção do produto anual do trabalho, de facto a parte maior e que cresce sempre de dia para dia. Hoje o capitalista pode ser considerado como proprietário em primeira mão de toda a riqueza social, embora nenhuma lei lhe tenha conferido o direito a esta propriedade. Esta mudança de propriedade foi operada pela usura, e o curioso é que os legisladores de toda a Europa quiseram impedi-lo por leis próprias. O poder do capitalismo sobre toda a riqueza nacional produziu uma revolução radical no direito de propriedade; por que lei ou por que série de leis foi operada?»[2].
O autor citado deveria ter dito que as revoluções não se fazem por meio de leis.
A constituição feudal dos campos e a organização corporativa das cidades impediam o capital-dinheiro, formado pela dupla via da usura e do comércio, de se converter em capital industrial. Estas barreiras caíram com o despedimento dos séquitos senhoriais, com a expropriação e expulsão parcial dos cultivadores, mas pode avaliar-se a resistência que encontraram os comerciantes quando se transformaram em comerciantes produtores, porque pequenos fabricantes de tecidos, ainda em 1794, mandaram uma comissão ao Parlamento para pedir uma lei que proibisse ao comerciante tornar-se fabricante[3]. Por isso, as novas manufacturas estabeleceram-se de preferência nos portos marítimos, centros de exploração, e nos lugares do interior, situados fora do «controlo» do regime municipal e das corporações de ofícios. Daí, na Inglaterra, a luta encarniçada entre as velhas cidades privilegiadas (Corporate towns) e os novos alfobres da indústria. Noutros países, em França por exemplo, estas foram colocadas sob protecção especial dos reis.
A descoberta das regiões auríferas e argentíferas da América, a redução dos autóctones à escravatura, o seu duro trabalho nas minas ou o seu extermínio, os indícios da conquista e pilhagem nas Índias Orientais, a transformação da África numa espécie de coutada comercial para a caça aos infelizes de pele preta, eis os processos idílicos de acumulação primitiva que assinalam a era capitalista na sua aurora. Logo a seguir rebenta a guerra mercantil que tem por teatro o mundo inteiro. Iniciada pela revolta da Holanda contra a Espanha, assume proporções gigantescas na cruzada da Inglaterra contra a Revolução Francesa e prolonga-se até aos nossos dias com expedições de piratas, como as Guerras do Ópio contra a China.
Os diferentes métodos de acumulação primitiva que a era capitalista fez surgir, entram primeiro, por ordem mais ou menos cronológica, em Portugal, Espanha, Holanda, França e Inglaterra. Esta combina-os a todos, no último terço do século XVII, num conjunto sistemático, compreendendo ao mesmo tempo o regime colonial, o crédito público, a finança moderna e o sistema proteccionista. Alguns destes métodos baseiam-se no emprego da força bruta, mas todos, sem excepção, exploram o poder do Estado, a força concentrada e organizada da sociedade, para precipitar com violência a passagem da ordem económica feudal à ordem económica capitalista e abreviar as fases de transição. E, com efeito, a força é a parteira de toda a velha sociedade. A força é um agente económico.
Um homem, cujo fervor cristão lhe deu fama, W. Howitt, exprime-se assim sobre a colonização cristã:
«As barbaridades e atrocidades execráveis perpetradas pelas raças pretensamente cristãs em todas as regiões do mundo e contra todos os povos que puderam subjugar, não têm paralelo em nenhuma outra era da história universal e em nenhuma raça por mais grosseira, selvagem, impiedosa e desavergonhada que pudesse ter sido»[4].
A história da administração colonial dos holandeses – e a Holanda foi no século XVII a nação capitalista por excelência – «desenrola-se num quadro de assassínios, traições, corrupção e baixeza que nunca será igualado»[5].
Nada mais característico do que o rapto dos autóctones das Celebes com o fim de obter escravos para Java. Tinham um pessoal adestrado para esse rapto de novo tipo. Os principais agentes deste comércio eram o raptor, o intérprete e o vendedor, e os principais vendedores eram os príncipes nativos. A juventude raptada era aferrolhada nos calabouços secretos das Celebes até a encafuarem nos navios de escravos. Diz um relatório oficial: «Só a cidade de Macassar está cheia de prisões secretas, todas elas horríveis, cheias de desgraçados, vítimas da avidez e da tirania, carregados de grilhões, violentamente arrancados às suas famílias».
Para se apoderarem de Malaca, os holandeses corromperam o governador português que os deixou entrar na cidade em 1641. Os holandeses correram logo a casa do governador e assassinaram-no, evitando assim pagar-lhe a soma de 21 875 libras, preço da sua traição. Por todo o lado onde punham pé, a sua passagem era assinalada por devastação e despovoamento. Uma província de Java, Banjuwangi, contava em 1750 mais de 80 000 habitantes, em 1811, já só tinha 8000. Eis o doce comércio!
A Companhia Inglesa das Índias Orientais obteve, além do poder político, o monopólio exclusivo do comércio do chá e do comércio chinês em geral, assim como do transporte das mercadorias da Europa para a Ásia e vice-versa. Mas a cabotagem e a navegação entre ilhas, assim como o comércio no interior da Índia, foram concedidos exclusivamente aos empregados superiores dessa Companhia. Os monopólios do sal e do ópio, do bétele e de outros artigos, eram minas inesgotáveis de riqueza. Os empregados fixavam os preços e assim arrancavam à vontade a pele dos desgraçados indianos. O governo-geral participava deste comércio privado. Os seus favoritos obtinham tais adjudicações que, mais fortes do que os alquimistas, faziam oiro de nada. Grandes fortunas surgiam em vinte e quatro horas como cogumelos; a acumulação primitiva operava-se sem um centavo de adiantamento. O processo de Warren Hastings está cheio de exemplos deste tipo. Citemos apenas um: um certo Sullivan arranjou um contrato para uma entrega de ópio, no momento em que partia em missão oficial para certa região da Índia muito distante dos distritos produtores; Sullivan cedeu o seu contrato por 40 000 libras a um certo Binn; este revendeu-o no mesmo dia por 60 000 libras, e o comprador definitivo, pondo-o em acção, declarou que fez um ganho enorme. Segundo uma lista apresentada ao Parlamento, a Companhia e os seus empregados extorquiram aos indianos, desde 1757 a 1760, sob a única rubrica de dádivas voluntárias, uma quantia de seis milhões de libras! De 1769 a 1770, os ingleses provocaram uma fome artificial comprando todo o arroz; e só consentiram em o vender a preços fabulosos[6].
A sorte dos nativos era naturalmente a mais pavorosa nas plantações destinadas ao comércio de exportação, como nas Índias Ocidentais e nos países ricos e populosos das Índias Orientais e do México, caídos nas mãos de aventureiros europeus, ávidos de lucros. No entanto, até mesmo nas colónias propriamente ditas, o carácter «cristão» da acumulação primitiva nunca foi desmentido: os puritanos, os austeros intrigantes do protestantismo, concederam em 1703 por decreto da sua assembleia um prémio de 40 libras por cada crânio de índio e outro prémio igual por cada pele-vermelha feito prisioneiro; em 1720, um prémio de 100 libras; em 1744, Massachusetts-Bay declarou rebelde certa tribo e ofereceu os seguintes prémios: 100 libras por crânio de indivíduo masculino de doze ou mais anos; 105 libras por cada prisioneiro masculino; 55 libras por cada mulher ou criança apanhada e 50 libras por cada crânio das mesmas! Trinta anos depois, as atrocidades do regime colonial recaíram sobre os descendentes destes piedosos colonialistas que por sua vez se tornaram rebeldes. Os cães treinados na caça aos colonos revoltosos e os índios pagos pela entrega dos respectivos crânios foram proclamados pelo Parlamento «meios divinos e naturais postos à mão».
O regime colonial deu grande impulso à navegação e ao comércio; criou sociedades mercantis, dotadas pelos governos de monopólios e de privilégios, servindo de poderosas alavancas à concentração de capitais; assegurou mercados às manufacturas nascentes, cuja facilidade de acumulação redobrou, graças ao monopólio do comércio colonial. Os tesouros directamente extorquidos fora da Europa pelo trabalho forçado dos nativos reduzidos à escravatura, pela concussão, pela pilhagem e pelo assassínio, refluíam para a mãe-pátria e aqui funcionavam como capital. A Holanda, a verdadeira iniciadora deste porquíssimo regime colonial, atingira em 1648 o apogeu da sua grandeza. Estava de posse quase exclusiva do comércio das Índias Orientais e das comunicações entre o sudoeste e o nordeste da Europa. As suas pescarias, a sua marinha, as suas manufacturas, ultrapassavam as dos outros países. Os seus capitais eram talvez mais importantes do que todos os do resto da Europa reunidos.
Nos nossos dias, a supremacia industrial implica a supremacia comercial. Mas, na época manufactureira propriamente dita, a supremacia comercial é que dava a supremacia industrial. Daí o papel preponderante que representou então o regime colonial. Foi ele o Deus colocado no altar ao lado dos velhos ídolos europeus; um belo dia acotovelou os seus camaradas e catrapus, todos os ídolos foram a terra!
O sistema de crédito público, isto é, da dívida pública, cujos primeiros marcos foram colocados, na Idade Média, por Veneza e Génova, invadiu a Europa definitivamente durante a época manufactureira. O regime colonial, com o seu comércio marítimo e as suas guerras comerciais a servir-lhe de estufa quente, instalou-se primeiro na Holanda. A dívida pública, por outros termos, a alienação do Estado (quer seja despótico, ou constitucional, ou republicano), marca com o seu selo a era capitalista. A única parte da pretensa riqueza nacional que entra realmente na posse colectiva dos povos modernos é a dívida pública[7]. Não há que admirar que quanto mais um povo se endivida mais enriquece, segundo a doutrina moderna. O crédito público, eis o credo do capital. Por isso a falta de fé na dívida pública, desde a incubação desta, tomou o lugar do pecado contra o Espírito Santo, outrora imperdoável[8].
A dívida pública opera como um dos agentes mais enérgicos da acumulação primitiva. Por artes mágicas, a dívida pública dota o dinheiro improdutivo com a virtude reprodutora e converte-o assim em capital, sem que para isso tenha que correr riscos ou perturbações, inseparáveis do seu emprego industrial, ou até da usura privada. Os credores públicos, em boa verdade, não dão nada porque o seu dinheiro metamorfoseado em fundos públicos de fácil transferência continua a funcionar nas suas mãos como outro tanto numerário. Mas, exceptuando a classe dos capitalistas ociosos, assim criada, exceptuando a fortuna improvisada dos financeiros intermediários entre o governo e a nação – como os traficantes, os comerciantes, os manufactureiros particulares, a quem uma boa parte de qualquer empréstimo é capital caído do céu – a dívida pública deu um empurrão às sociedades por acções, ao comércio de qualquer tipo de «papéis» negociáveis, às operações aleatórias, à agiotagem, em suma aos jogos de bolsa e à bancocracia moderna.
Desde o seu aparecimento, os grandes bancos, cheios de títulos nacionais, passaram a ser associações de especuladores estabelecidos ao lado dos governos e, graças aos privilégios que deles obtêm, capazes de lhes emprestar o dinheiro público. Por isso a acumulação da dívida pública não tem graduador mais infalível do que a alta sucessiva das acções dos bancos, cujo desenvolvimento integral data da fundação do Banco de Inglaterra em 1694. Este começou por emprestar todo o seu capital-dinheiro ao governo ao juro de 8 por cento; ao mesmo tempo foi autorizado pelo Parlamento a cunhar moeda do mesmo capital. E de novo emprestou a moeda ao público sob a forma de notas que lhe foi permitido pôr em circulação; descontou com elas as letras de câmbio; adiantou-as sobre mercadorias; empregou-as na compra de metais preciosos. Pouco depois, este dinheiro de crédito, do próprio fabrico do Banco de Inglaterra, torna-se o dinheiro com que o mesmo banco efectua os seus empréstimos ao Estado e paga pelo Estado os juros da dívida pública. Deu por um lado, não só para receber mais, como ainda, ao receber, ficou credor perpétuo da nação até ao pagamento do último cêntimo. E, pouco a pouco, tornou-se necessariamente no receptáculo dos tesouros metálicos do país e o grande centro em torno do qual gravita o crédito comercial. E ainda, ao mesmo tempo que deixaram de queimar bruxas, começaram a enforcar os falsificadores de notas.
É preciso ter lido os escritos daquele tempo, os de Bolingbroke por exemplo, para se compreender todo o efeito que produziu sobre os contemporâneos a súbita aparição desta engenhoca de bancocratas, financeiros, capitalistas, intermediários, agentes de câmbio, homens de negócios, linces, GATUNOS[9].
Com a dívida pública nasceu um sistema de crédito internacional que esconde muitas vezes uma das fontes da acumulação primitiva neste ou naquele povo. É assim que as rapinas e violências venezianas formaram uma das bases da riqueza da Holanda, a quem Veneza emprestou somas consideráveis. Por sua vez, a Holanda, decaída nos fins do século XVII da sua supremacia industrial e comercial, viu-se obrigada a fazer valer capitais enormes emprestando-os ao estrangeiro e, de 1701 a 1776, especialmente à Inglaterra, sua vitoriosa rival.
É o mesmo que se está a dar agora com a Inglaterra e os Estados Unidos: muito capital que aparece hoje nos Estados Unidos sem certificado de nascimento é o sangue das crianças das fábricas, capitalizado outrora na Inglaterra.
Como a dívida pública está baseada no rendimento público, o moderno sistema de impostos foi o corolário obrigatório dos empréstimos nacionais. Estes empréstimos, que dão ao Estado a possibilidade de despesas extraordinárias sem que os contribuintes se dêem conta delas imediatamente, arrastam atrás de si um aumento de impostos; por outro lado, a sobrecarga de impostos, causada pela acumulação de dívidas sucessivas contraídas, obriga os governos, em caso de novas despesas extraordinárias, a recorrer a novos empréstimos. O fisco moderno, cujos impostos sobre objectos de primeira necessidade acarretam o encarecimento destes, formava a princípio o eixo; hoje encerra em si um germe de progressão automática. A sobrecarga das taxas não é um incidente dessa progressão, mas o princípio. Assim, na Holanda, onde este sistema foi inaugurado, Witt exaltou-o nas suas Maximes como o mais próprio para tornar o salário submisso, frugal e industrioso. Mas a influência deletéria que exerce na classe operária ocupar-nos-á menos agora do que a expropriação forçada do camponês, dos artífices e de outros elementos da pequena classe média. Sobre isto não há duas opiniões, até mesmo entre os economistas burgueses. E essa acção expropriadora é ainda reforçada pelo sistema proteccionista que constitui uma das suas partes integrantes.
A grande parte que toca à dívida pública e ao sistema correspondente do fisco, na capitalização da riqueza e na expropriação das massas, induziu muitos escritores, como William Cobbett, Doubleday e outros, a procurar aqui (erradamente), a primeira causa da miséria dos povos modernos.
O sistema proteccionista foi um meio artificial de fabricar fabricantes, de expropriar trabalhadores independentes, de converter em capital os instrumentos e condições materiais do trabalho, de abreviar à viva força a transição do modo tradicional da produção para o modo moderno. Os Estados europeus disputaram a palma do proteccionismo e, uma vez postos ao serviço dos fabricantes de mais-valia, não se contentaram em sangrar a frio os seus próprios povos, indirectamente pelos direitos protectores, directamente pelos prémios de exportação, pelos monopólios de venda interna, etc.. Nos países vizinhos colocados sobre a sua dependência, extirparam violentamente toda a espécie de indústria; foi assim que a Inglaterra matou a manufactura de lãs na Irlanda por meio de «ukases»[10] parlamentares. O processo de fabrico foi ainda simplificado no continente, onde Colbert fez escola. A fonte encantada, de onde o capital primitivo chegava direitinho aos fabricantes, sob a forma de adiantamentos e até de dádiva gratuita, foi muitas vezes o erário público. Disse Mirabeau: «Mas porquê ir procurar mais longe a causa da população e do brilho manufactureiro do Saxe antes da guerra? – Cento e oitenta milhões de dívidas feitas pelos reis»[11].
Regime colonial, dívida pública, exacções fiscais, protecção industrial, guerras comerciais – tudo rebentos do período manufactureiro propriamente dito, que tomaram um desenvolvimento gigantesco durante a primeira juventude da grande indústria. Quanto ao nascimento desse período, pode explicar-se perfeitamente por uma espécie de massacre dos inocentes: o roubo de crianças executado à grande. O recrutamento para as novas fábricas foi feito como na marinha real: por meio de recrutamento forçado.
Por mais encantado que Eden se mostrasse a respeito da expropriação do cultivador, cujo horror enche três séculos, fosse qual fosse o seu ar de complacência em face deste drama histórico, só «necessário» para estabelecer a agricultura capitalista e a «verdadeira proporção entre terras de cultivo e pastagens», falha a serena inteligência das fatalidades económicas quando se trata de roubo de crianças, de necessidade de as escravizar, para se poder transformar a exploração manufactureira em exploração mecânica e estabelecer a verdadeira relação entre capital e força operária.
«Talvez o público fizesse bem em examinar estas manufacturas, cujo êxito exige que se arranquem às choupanas e aos asilos, pobres crianças que, revezando-se por grupos, sofrerão a maior parte da noite e serão privadas de repouso; as quais, além disto, aglomeram indivíduos diferentes no sexo, na idade e nas inclinações, de modo que o contágio do exemplo conduz necessariamente à depravação e à libertinagem. Poderá dizer-se que aumenta a felicidade individual e nacional?»[12].
«As máquinas recentemente inventadas foram empregadas nas suas grandes fábricas, muito perto de cursos de água bastante fortes para moverem a roda hidráulica. De repente foram precisos milhares de braços nestes lugares afastados das cidades e houve necessidade de população. Dedos pequenos e ágeis, tal era o grito geral, e logo nasceu o costume de procurar pseudo-aprendizes nos asilos pertencentes às diversas paróquias de Londres, de Birmingham e de outras localidades. Milhares destes pobres pequenos abandonados, de sete a treze e catorze anos, foram assi expedidos para o Norte. O patrão (ladrão de crianças) encarregava-se de vestir, alimentar e alojar os seus aprendizes numa casa ad hoc muito perto da fábrica. Durante o trabalho, estavam sob as vistas dos vigilantes. O interesse destes guarda-chusmas era fazer andar as crianças a todo o transe porque, consoante a quantidade de produtos que soubessem tirar, aumentaria ou diminuiria a sua paga. Maus-tratos, tal era a consequência natural. Estes seres inocentes, sem abrigo nem amparo, que tinham sido entregues aos patrões como coisas, foram submetidos às mais pavorosas torturas. Cansados pelo excesso de trabalho, foram chibatados, agrilhoados, atormentados com os mais bem estudados refinamentos. Muitas vezes, quando a fome os torcia mais fortemente, o chicote mantinha-os a trabalhar. O desespero levou-os em alguns casos ao suicídio! Cometeram-se impunemente atrocidades sem nome e até assassínios! Os ganhos enormes arrecadados pelos fabricantes só lhes aguçavam os dentes. Imaginaram a prática do trabalho nocturno, isto é, depois de terem esgotado um grupo de trabalhadores na tarefa diurna, tinham outro grupo preparado para a tarefa nocturna. Os primeiros lançavam-se nas camas que os segundos acabavam de deixar no mesmo instante e vice-versa. Era tradição popular que as camas nunca arrefeciam!»[13].
Com o desenvolvimento da produção capitalista durante o período manufactureiro, a opinião pública europeia perdeu o seu último farrapo de consciência e de pudor. As nações gloriavam-se cinicamente de todas as infâmias apropriadas para acelerar a acumulação de capital. Leiam-se por exemplo os ingénuos Annales du Commerce do honesto A. Anderson. Este bom homem admira-se do rasgo de génio da política inglesa: quando da Paz de Utrecht, a Inglaterra arrancou à Espanha, pelo tratado de Amiens, o privilégio de fazer, entre a África e a América espanhola, o mercado de escravos pretos, que, até então, só tinha feito entre a África e as suas possessões da Índia Oriental. A Inglaterra conseguiu assim, até 1743, trazer quatro mil e oitocentos pretos por ano da América espanhola. Isto serviu-lhe ao mesmo tempo para cobrir com um véu oficial as proezas do seu contrabando. Foi o mercado de escravos pretos que fez os alicerces da grandeza de Liverpool; para esta cidade, o tráfico de carne humana constituiu o método de acumulação primitiva. As notabilidades de Liverpool cantaram as virtudes do comércio de escravos «que desenvolve o espírito de empreendimento até à paixão, faz marinheiros sem igual, e rende dinheiro à farta»[14] . Liverpool empregava no comércio da escravatura 15 navios em 1730, 53 em 1751, 74 em 1760, 96 em 1770 e 132 em 1792.
Ao mesmo tempo que a indústria introduzia na Inglaterra a escravatura das crianças, os Estados Unidos transformavam o tratamento mais ou menos patriarcal dos pretos em sistema de exploração mercantil. Criou-se, par pedestal da escravatura dissimulada dos assalariados na Europa, a escravatura desenfreada no novo mundo[15].
Tantœ molis erat! (tão difícil foi!). Eis o preço por que temos pago as nossas conquistas; eis o que custou libertar as «leis naturais e eternas» da produção capitalista, consumar o divórcio entre o trabalhador e as condições de trabalho, transformar estas em capital, a massa do povo em assalariados, em labouring poor – obra-prima de arte, criação sublime da história moderna[16]. Se, como diz Augier, foi «com manchas de sangue numa das faces que o dinheiro veio ao mundo»[17], o capital chegou até nós suando sangue e lama por todos os poros[18].
[5] THOMAS STAMFORD RAFFLES, último governador de Java: The History of Javaand its dependences. Compilação de Charles Comte: Traité de Législation («é preciso estudar o que faz o burguês por toda a parte onde pode modelar o mundo à sua imagem»).
[7] WILLIAM COBBETT nota muito bem que todas as coisas públicas são reais (do Rei), mas a dívida é nacional.
[9] «Se ao tártaros inundassem hoje a Europa, seria o cabo dos trabalhos fazê-los compreender o que é um financeiro de agora», MONTESQUIEU: Esprit des lois, t. IV.
[13] JOHN FIELDEN: The curse of the factory system. DR. AIKIN: Description of the Country. GISBORNE: Enquiry into the Duties of Men.
[16] A expressão labouring poor foi mesmo uma expressão legal. E das leis passou à economia política (Culpeper, J. Child, Adam Smith, Eden). «As leis do comércio são leis da natureza e consequentemente de Deus», EDMOND BURKE: Thoughts and Details on Scarcity.
[18] «O capital evita o tumulto e é por natureza tímido. Isto é verdade mas não é toda a verdade. Aborrece a falta de lucro ou um lucro mínimo, como a natureza tem horror ao vácuo. Faça-se o lucro conveniente, e o capital ganha coragem: 10% garantidos e empregam-no por toda a parte; 20% e ele aquece; 50%, mostra uma temeridade louca; 100%, pisa a pés todas as leis humanas; 300%, não há crime que não ouse cometer, até com risco da forca. Se a desordem e a discórdia derem lucro, anima-as, como se prova pelo contrabando e a escravatura dos pretos»… F. J. DUNNING, Trades’ Unions and Strikes: their Philosophy and Intention, Londres 1860, pp. 35, 36.
Como vimos, a expropriação e a expulsão dos cultivadores por empurrões sempre renovados forneceu à indústria das cidades massas proletárias, recrutadas inteiramente fora do meio corporativo, circunstância que fez crer o velho Anderson (não o confundam com o James Anderson), na sua Histoire du Commerce, numa intervenção directa da Providência. Precisamos ainda de nos deter por momentos neste elemento da acumulação primitiva.
A rarefacção da população rural (composta de camponeses independentes que cultivavam os seus próprios campos) não arrastou só a condensação do proletariado industrial (também, segundo Geoffroy Saint-Hilaire, a rarefacção da matéria cósmica num ponto arrasta a condensação num outro ponto)[1]. Apesar do número decrescente dos cultivadores, o solo continuou a produzir tantos ou mais produtos como dantes, porque a revolução nas condições de propriedade foi acompanhada pelo aperfeiçoamento dos métodos de cultura, pela cooperação em maior escala, pela concentração dos meios de produção, etc.. Além disso, os assalariados agrícolas ficaram adstritos a um trabalho mais intenso, visto que o campo outrora explorado por sua própria conta e para seu benefício pessoal, era bem diferente dos campos expropriados. Foi assim que os meios de subsistência de uma grande parte da população rural se tornaram disponíveis, ao mesmo tempo que todos passaram a figurar, no futuro, como elemento material do capital variável. Daqui por diante, o camponês despojado teve de comprar o valor, sob forma de salário, ao seu novo patrão, o capitalista manufactureiro. E aconteceu às matérias-primas da indústria, provenientes da agricultura, o mesmo que às subsistências: transformaram-se em elemento do capital constante.
Vejamos por exemplo os camponeses que fiavam linho, uns bruscamente expropriados do solo, outros convertidos em jornaleiros das grandes herdades. Passam a estabelecer-se fábricas de fiação e de tecelagem, de dimensões mais ou menos consideráveis, onde os mesmos camponeses são alistados como assalariados.
O linho não é diferente de outrora, nenhuma das suas fibras mudou, mas uma nova alma social se introduziu, por assim dizer, no seu corpo: o linho, daqui por diante, faz parte do capital constante do patrão manufactureiro; antigamente repartido entre muitos pequenos produtores que o cultivavam e fiavam em família, por pequenas fracções, vai concentrar-se nas mãos de um capitalista para quem outros fiam e tecem. O trabalho suplementar despendido na fiação convertia-se outrora num suplemento de rendimento para inúmeras famílias de camponeses; agora converte-se em lucro para um pequeno número de capitalistas. As dobadoiras e os teares, há pouco dispersos pelo país, passam a estar reunidos em algumas oficinas-casernas, assim como os operários e as matérias-primas. E dobadoiras, teares e matérias-primas, tendo deixado de servir de meio de existência independente àqueles que as manobravam, são metamorfoseados em meios de comandar fiandeiros e tecelões e de absorver trabalho gratuito[2].
As grandes manufacturas não traem à primeira vista a sua origem como as grandes herdades. Não deixam rasto aparente, nem a concentração das pequenas oficinas de onde saíram, nem o grande número de pequenos produtores independentes que foi preciso expropriar para as formar.
Contudo, a intuição popular não se deixa enganar. No tempo de Mirabeau, o leão revolucionário, as grandes manufacturas tinham ainda o nome de «manufacturas reunidas», como agora se fala de «terras reunidas».
«Só se presta atenção às grandes manufacturas onde centenas de homens trabalham sob um dirigente e que têm o nome de «manufacturas reunidas». Aquelas onde um grande número de operários trabalha, cada um em separado, cada um por sua própria conta, mal são consideradas; põem-nas a uma distância infinita das outras. É um grande erro; porque estas constituem um objecto de prosperidade nacional verdadeiramente importante. As fábricas reunidas enriquecerão prodigiosamente um ou dois empreiteiros, mas os operários serão apenas jornaleiros pagos (mais ou menos) e em nada participarão do bem da empresa. Na fábrica separada, pelo contrário, ninguém se tornará rico, mas muitos operários viverão bem; os económicos e os industriosos poderão amontoar um pequeno capital, juntar alguns recursos para o nascimento de um filho, para uma doença, para eles mesmos ou para algum dos seus. E o número de operários económicos e industriosos aumentará, porque verão na sua boa conduta e na sua actividade, um meio de melhorar essencialmente a sua situação, e não de obter um pequeno aumento de salário que nunca pode ser um factor importante para o futuro, e cujo único resultado é pôr os homens em estado de viver um pouco melhor, mas só dia a dia. As manufacturas reunidas, as empresas de alguns particulares que assalariam operários à jorna para trabalharem por conta deles, podem pôr esses particulares na abastança mas nunca deverão ser um objecto digno da atenção governamental»[3].
Mirabeau designa as manufacturas separadas, na maioria combinadas com a pequena cultura, como as «únicas livres».
Os acontecimentos que transformam os cultivadores em assalariados e os meios de subsistência e trabalho em elementos materiais do capital, criam para este o seu mercado interno. Outrora a mesma família camponesa produzia primeiro e consumia depois – pelo menos em grande parte – os víveres e as matérias brutas, frutos do seu trabalho. Transformados agora em mercadorias, são vendidos por junto pelo fazendeiro a quem as manufacturas fornecem o mercado. Por outro lado, os artefactos como fios, tecidos, etc., cujos materiais comuns se encontravam ao alcance de qualquer família camponesa, até então produtos camponeses, convertem-se daqui em diante em artigos de manufactura que encontram mercado nos campos, ao passo que os clientes dispersos, cujo aprovisionamento se fazia ao retalho, de numerosos pequenos produtores a trabalhar por sua própria conta, concentram-se agora e constituem apenas um grande mercado para o capital industrial[4]. Foi assim que a expropriação dos camponeses e a sua transformação em assalariados, provocou o aniquilamento da indústria doméstica dos campos, o divórcio entre a agricultura e qualquer espécie de manufactura. E, com efeito, este aniquilamento da indústria doméstica do camponês é a única coisa que pode dar ao mercado interno de um país a extensão e a constituição exigidas pelas necessidades da produção capitalista.
Contudo, o período manufactureiro propriamente dito não consegue de modo nenhum tornar radical esta revolução: ela só se apodera da indústria nacional, de maneira fragmentária, esporádica, tendo sempre como base principal os teares das cidades e a indústria doméstica dos campos. Se esta foi destruída sob certas formas, em certos ramos particulares e em certos pontos, fê-la nascer noutros, porque não podia passar sem ela para a primeira fase das matérias brutas. Dá assim ocasião à formação de uma nova classe de pequenos agricultores para a qual a cultura do solo se torna acessória, sendo o trabalho industrial, cujo produto se vende às manufacturas, directamente ou por intermédio do comerciante, a sua ocupação principal. Foi o que se deu com a cultura do linho nos fins do reinado de Isabel, uma das circunstâncias desconcertantes quando se estuda de perto a história de Inglaterra: com efeito, no último terço do século XV, as queixas contra a extensão crescente da agricultura capitalista e a destruição progressiva dos camponeses independentes não deixam de ecoar, com excepção de curtos intervalos, e ao mesmo tempo encontram-se constantemente estes camponeses, embora em número sempre menor e em condições cada vez piores. Há uma excepção nos tempos de Cromwell: durante a República, todas as camadas sociais inglesas se levantaram da degradação em que tinham caído sob o reinado dos Tudors.
Esta reaparição dos pequenos lavradores é, em parte, como acabámos de ver, o efeito do regime manufactureiro, mas a razão básica é que a Inglaterra se entrega de preferência, ora à cultura dos cereais, ora à criação de gado, e que os seus períodos de alternativa abarcam para uma, meio século, e para a outra apenas uns vinte anos; o número de pequenos lavradores a trabalhar por conta própria varia também conforme estas flutuações.
Só a grande indústria, por meio das máquinas, funda a exploração agrícola capitalista em base permanente, expropria radicalmente a imensa maioria da população rural e consuma a separação entre a agricultura e a indústria doméstica dos campos, extirpando as raízes respectivas – a fiação e a tecelagem: «manufacturas propriamente ditas e destruição das manufacturas rurais ou domésticas produzem, à chegada das máquinas, a grande indústria dos lanifícios»[5].
«A charrua e o jugo foram invenção de deuses e trabalho de heróis: o tear, o fuso, a dobadoira, tiveram acaso origem menos elevada? Separai a dobadoira da charrua, o fuso do jugo, e obtereis fábricas e casas de trabalho, crédito e pânico, duas nações hostis, uma agrícola e outra comercial»[6].
Desta separação fatal datam o desenvolvimento necessário dos poderes colectivos do trabalho e a transformação da produção fragmentária e rotineira em produção combinada e científica. A indústria mecânica consumou esta separação e foi também ela que primeiro conquistou para o capital todo o mercado interno.
Os filantropos da economia inglesa, como J. Stuart Mill, Rogers, Goldwin Smith, Fawcett, etc., os fabricantes liberais, os John Bright e consortes, interpelam os proprietários das terras em Inglaterra como Deus interpelou Caim acerca de Abel. Que é feito desses milhares de rendeiros livres? E vós, donde vindes? Não será da destruição daqueles? E porque não perguntar também o que foi feito dos tecelões, dos fiandeiros, e de todos os artífices independentes?
Depois de termos considerado a criação violenta de um proletariado sem eira nem beira, com a disciplina sanguinária que o transforma em classe assalariada, a intervenção vergonhosa do Estado que favorece a exploração do trabalho – e portanto a acumulação do capital – mais o reforço da sua polícia, não sabemos ainda donde vêm originariamente os capitalistas. Pois é claro que a expropriação da população camponesa só engendra directamente proprietários latifundiários.
Quanto à génese do fazendeiro capitalista, quase não a podemos apontar a dedo, porque é um movimento que se desenrola lentamente e abarca séculos. Os servos, assim como os proprietários livres, grandes o pequenos, ocupavam as suas terras sob diversos títulos de propriedade: encontraram-se portanto, depois da sua emancipação, em circunstâncias económicas muito diferentes.
Na Inglaterra, o fazendeiro aparece primeiro sob a forma de bailio, ele mesmo servo. A sua posição parece-se com a do villicus da antiga Roma, mas numa esfera de acção mais restrita. Durante a segunda metade do século XIV, foi substituído pelo fazendeiro livre a quem o proprietário fornece todo o capital necessário, sementes, gado e instrumentos de trabalho. A condição de fazendeiro livre difere pouco da dos camponeses, a não ser em que explora mais jornaleiros. Em breve se torna rendeiro, colono parceiro. E depois, já uma parte do fundo de cultura é adiantada por ele e a outra pelo proprietário; ambos compartilham o produto total segundo uma proporção determinada pelo contrato. Este modo de renda, que se manteve muito tempo em França, na Itália, etc., desaparece rapidamente em Inglaterra e é substituído pela renda propriamente dita em que o fazendeiro adianta o capital e o faz valer, empregando assalariados, e paga ao proprietário, a título de renda do terreno, uma parte do produto líquido anual, em géneros ou dinheiro, segundo as estipulações do arrendamento.
Enquanto o camponês independente e o jornaleiro, cultivando por sua conta, enriquecem pelo seu trabalho pessoal, a condição do fazendeiro e o seu campo de produção permanecem igualmente medíocres. A revolução agrícola dos últimos trinta anos do século XV, prolongada até ao último quartel do século XVI, enriqueceu-o tão depressa como empobreceu a população camponesa[1]. A usurpação das pastagens comunais, etc., permitiu-lhe aumentar rapidamente e quase sem gastos o seu gado, do qual tira desde então grandes lucros, quer pela sua venda, quer pelo seu emprego como animais de trabalho, quer por estrumação mais abundante do solo.
No século XVI produziu-se um acontecimento considerável que deu searas de oiro aos fazendeiros como aos outros capitalistas empreendedores. Foi a depreciação progressiva dos metais preciosos e, por consequência, do dinheiro; essa depreciação fez baixar na cidade e no campo as taxas de salários cujo movimento não segue de perto a alta de todas as outras mercadorias. Uma porção do salário dos operários rurais entra desde então nos ganhos da herdade. O encarecimento contínuo do trigo, da lã, da carne, numa palavra, de todos os produtos agrícolas, aumentou o capital (dinheiro) do fazendeiro, sem que este nada fizesse para tal, ao passo que a renda do terreno diminuiu na proporção da depreciação do dinheiro surgida durante o tempo do arrendamento. É preciso notar que, no século XVI, os arrendamentos das herdades eram ainda a longo prazo, muitas vezes por noventa e nove anos. O fazendeiro enriqueceu portanto, ao mesmo tempo, à custa dos assalariados e à custa dos proprietários.
Desde então, não ficaremos admirados que a Inglaterra possuísse no fim do século XVI uma classe de fazendeiros capitalistas muito ricos para a época.
A criação de um proletariado sem eira nem beira – através dos despedidos pelos grandes senhores feudais, vítimas de expropriações violentas e repetidas – marchou necessariamente mais depressa do que a sua absorção pelas manufacturas nascentes. Por outro lado, estes homens bruscamente arrancados às suas condições habituais de vida não puderam subitamente habituar-se à disciplina da nova ordem social. De tudo isto surgiram portanto multidões de mendigos, de ladrões, de vagabundos. Por isso, pelos fins do século XV e durante todo o século XVI, no Ocidente da Europa, apareceu uma legislação sanguinária contra a vadiagem.
Os pais da actual classe proletária foram castigados por terem sido reduzidos ao estado de vagabundos e de pobretões. A legislação tratou-os como criminosos voluntários e admitiu que dependia do livre arbítrio desses infelizes continuarem a trabalhar como no passado e como se não tivesse surgido nenhuma mudança nas suas condições. Na Inglaterra, esta legislação começou no reinado de Henrique VII. E, no reinado de Henrique VIII (1530), os mendigos idosos e incapazes de trabalho obtiveram licença para pedir esmola. E os vagabundos robustos foram condenados ao chicote e à cadeia. Atados atrás de uma carroça, sofreram a fustigação até que o sangue lhes corresse pelo corpo; depois tiveram de se comprometer sob juramento a voltar à terra da sua naturalidade ou ao local que habitavam nos últimos três anos, e a regressar ao trabalho. Cruel ironia. Ainda acharam demasiado suave este mesmo estatuto no 27.º ano do reinado de Henrique VIII. O Parlamento agravou as penas por meio de cláusulas adicionais. Em caso de primeira reincidência, o vagabundo deveria ser fustigado de novo e teria uma orelha cortada; à segunda reincidência, deveria ser tratado como traidor e executado como inimigo do Estado.
No seu livro Utopie, o chanceler Thomas More pinta a situação dos desgraçados atingidos por estas leis atrozes:
«Assim acontece que um glutão ávido e insaciável, um verdadeiro flagelo para o seu país natal, pode apoderar-se de milhares de jeiras de terra, cercando-as de estacas e de sabes, ou atormentando os seus proprietários com injustiças que os obrigam a vender tudo. De uma ou outra maneira, por consentimento ou à força, todos têm de se esgueirar (essa pobre gente, homens, mulheres, órfãos, viúvas, mães com os seus bebés, e com todos os seus haveres). Poucos recursos mas muitas cabeças porque a agricultura carecia de muitos braços. É preciso que arrastem os seus passos para longe dos seus antigos lares, sem encontrarem um lugar de repouso. Noutras circunstâncias, a venda do seu mobiliário e dos seus utensílios domésticos teria podido ajudá-los, por pouco que valessem; mas lançados subitamente no vácuo, são forçados a dá-los por uma bagatela. E quando tiverem errado por aqui e por ali, e comido até ao último chavo, poderão fazer mais alguma coisa que não seja roubar? Depois – meu Deus – passarão a mendigar, depois serão enforcados com todas as formas legais».
Destes infelizes fugitivos, que foram forçados à vagabundagem e ao roubo, «72 000 foram executados no reinado de Henrique VIII»[1].
Um estatuto do primeiro ano do reinado de Eduardo VI (1547) ordena que todo o indivíduo refractário ao trabalho seja dado como escravo à pessoa que o tenha denunciado como vadio. O patrão alimenta esse escravo a pão e água, dá-lhe de tempos a tempos alguma bebida fraca e os restos de carne que achar conveniente. Tem o direito de o obrigar às tarefas mais nojentas servindo-se do chicote e da corrente. Se o escravo se ausentar durante quinze dias, será condenado perpetuamente à escravatura e será marcado a ferro ao rubro com a letra S (slave=escravo) na face e na testa; se fugir três vezes será executado como traidor. O patrão pode vendê-lo, deixá-lo em testamento, aluga-lo a outrem, como um móvel ou uma cabeça de gado. Se os escravos maquinarem algo contra os patrões devem ser punidos de morte. Os juízes de paz, sob informação, são obrigados a seguir a pistas desses homens. Quando seja agarrado um desses pés-descalços será marcado no peito com ferro ao rubro com um V (vagabundo) e reconduzido à terra natal onde, carregado de ferros, terá de trabalhar nas praças públicas. Se o vagabundo indicar um falso lugar de nascimento, deverá tornar-se por toda a vida escravo dessa localidade, dos seus habitantes, e da sua corporação; marcá-lo-ão com um S. qualquer pessoa tem o direito de se apoderar dos filhos do vagabundo e de os reter como aprendizes, os rapazes até aos 24 anos e as raparigas até aos 20. Se tentarem fugir, tornam-se até àquela idade os escravos dos patrões que têm o direito de os acorrentar e chibatar, à sua vontade. Qualquer patrão pode meter um anel de ferro no pescoço, ou no braço, ou na perna do seu escravo, para o reconhecer melhor e ficar mais seguro a respeito dele. A última parte do estatuto prevê o caso de certos pobres poderem ser empregados por pessoas ou localidades que queiram dar-lhes de beber e de comer e metê-los no trabalho. Este tipo de escravos de paróquia conservou-se em Inglaterra até aos meados do século XIX sob o nome de roundsmen.
Continuaria no reinado de Isabel (1572) a formação do futuro proletariado. Os mendigos sem licença e com mais de catorze anos devem ser chicoteados severamente e marcados a ferro ao rubro na orelha esquerda, se ninguém os quiser tomar ao serviço durante dois anos. Em caso de reincidência, os maiores de dezoito anos devem ser executados se ninguém os quiser empregar durante dois anos. Os que sejam apanhados uma terceira vez, devem ser mortos sem misericórdia como traidores. Há outros estatutos semelhantes (Isabel, 1597). Num reinado tão maternal como o da rainha Bess, enforcaram-se vagabundos às fornadas, postos em longas filas. Não se passava um ano que não houvesse trezentos ou quatrocentos dependurados na forca em um ou outro local, diz Strype nos seus Annals[2].
Os estatutos de Jaime I só foram revogados em 1714. Todos os indivíduos que percorram o país e mendiguem são declarados vagabundos, ou valdevinos. Podem ser açoitados publicamente e sofrer seis meses de cadeia na primeira reincidência, dois anos na segunda. Durante o tempo de cadeia, podem ser açoitados tão frequentemente e tão fortemente como se entender. Os vagabundos intratáveis e perigosos devem ser marcados com um R (primeira letra da palavra inglesa rogue equivalente a malandro e vagabundo) no ombro esquerdo e, se são apanhados a mendigar, executados sem misericórdia e privados de assistência do sacerdote.
Em França, nos meados do século XVII, os vadios tinham estabelecido o seu reino e feito de Paris a sua capital. Aí encontram-se leis semelhantes. Atá ao começo do reinado de Luís XVI (ordenança de 13 de Julho de 1777), todo o homem saudável e forte entre os dezasseis e os sessenta anos, encontrado sem meio de existência e sem profissão, deve ser enviado às galés. O mesmo se dá com o estatuto de Carlos V, para os Países Baixos.
Foi assim que a população dos campos, violentamente expropriada e reduzida à vagabundagem, foi dominada por uma disciplina exigida pelo sistema do assalariado, por leis de um terrorismo grotesco, pelo azorrague, pelas marcas de ferro ao rubro, pela tortura, pela escravatura.
Não basta que de um lado se apresentem as condições materiais do trabalho sob forma de capital, e do outro homens que nada têm para vender além da sua potência de trabalho. Também não basta que os constranjam pela força a venderem-se voluntariamente.
No progresso da produção capitalista, forma-se uma classe cada vez mais numerosa de operários que, graças à educação, à tradição, ao hábito, sofrem as exigências do regime tão espontaneamente como sofrem as mudanças das estações. Logo que este modo de produção adquiriu um certo desenvolvimento, o seu mecanismo quebra todas as resistências; a presença constante de uma sobrepopulação relativa, mantém a lei da oferta e da procura do trabalho e mantém o salário dentro dos limites conformes às necessidades do capital. E a surda pressão das relações económicas estabelece o despotismo do capitalista sobre o operário. Às vezes ainda se recorre ao constrangimento, ao emprego da força brutal, mas são meras excepções. No decurso vulgar das coisas, o operário passa a ser abandonado à acção das «leis naturais» da sociedade, isto é, à dependência do capital, engendrada, garantida, perpetuada, pelo próprio mecanismo da produção.
Outro aspecto diferente se apresenta durante a génese histórica da produção capitalista. A burguesia nascente não pode passar sem a constante intervenção do Estado; serve-se dela para regular o salário, isto é, para o deprimir a nível conveniente, para prolongar o dia de trabalho, para manter o operário no grau de dependência que se pretende. Eis o momento essencial da acumulação primitiva.
A classe assalariada que surgiu na última metade do século XIV não formava então, como no século seguinte, mais que uma pequena parte da população. A sua posição estava fortemente protegida, nos campos pelos camponeses independentes, na cidade pelo regime corporativo dos ofícios; nos campos como nas cidades, patrões e operários estavam socialmente aproximados. O modo de produção técnico não possuía ainda nenhum carácter especificamente capitalista. A subordinação do trabalho ao capital só existia na forma. O elemento variável do capital era muito superior ao seu elemento constante. A procura de trabalho assalariado crescia rapidamente a cada nova acumulação do capital, ao passo que a oferta de operários apenas a seguia lentamente. Uma grande parte do produto nacional, transformada mais tarde em fundo de acumulação capitalista, entrava ainda então no fundo de consumo do trabalhador.
A legislação sobre o trabalho assalariado, marcada desde a origem com o cunho da exploração do operário e daqui por diante sempre dirigida contra ele[3] foi inaugurada na Inglaterra em 1349 pelo Estatuto dos Operários de Eduardo III. Este estatuto tem de semelhante em França na ordenança de 1350, promulgada em nome do rei João. A legislação inglesa e a francesa seguem caminhos paralelos e o seu conteúdo é idêntico. Não tenho de voltar a estes estatutos no que digam respeito ao prolongamento forçado do dia de trabalho, porque este ponto já foi tratado anteriormente.
O Estatuto dos Operários foi promulgado a instâncias prementes da Câmara dos Comuns, isto é, dos compradores de trabalho. Um tory dizia ingenuamente: «Outrora os pobres pediam um salário tão elevado que era uma ameaça para a indústria e para a riqueza. Hoje, o salário é tão que ameaça igualmente a indústria e a riqueza e talvez mais perigosamente do que no passado».
Uma tarifa legal dos salários foi estabelecida para a cidade e para o campo, para o trabalho de empreitada e à jorna. Os operários rurais alugavam-se ao ano, os das cidades faziam as suas condições no mercado público. Foi proibido, sob pena de cadeia, pagar mais do que o salário legalmente fixado; mas quem recebesse um salário superior incorreria em penalidade mais severa do que aquele que o pagasse. Além disso, as secções 18 e 19 do estatuto de aprendizagem da Rainha Isabel castigavam com dez dias de cadeia o patrão que pagasse um salário demasiado elevado e em vinte e um dias o operário que o aceitasse. Não se impunham aos patrões mais do que restrições propícias à sua vantagem colectiva, tratava-se o patrão como compadre e o operário como rebelde.
As coligações de operários foram postas no nível dos maiores crimes e assim ficaram desde o século XIV até 1825.
O espírito que vem desde 1349 e dos séculos seguintes, que o tomaram como modelo, acentua-se sobretudo porque fixa um máximo acima do qual o salário não deve subir.
No século XVI a situação dos operários piorou muito. O salário nominal tinha-se elevado, mas nada em proporção à depreciação do dinheiro e à alta correspondente do preço das mercadorias. Portanto, baixara. Mas continuava-se a cortar a orelha e a marcar com ferro ao rubro os que «ninguém queria tomar ao seu serviço». Pelo estatuto da Rainha Isabel, os juízes de paz (proprietários de terrenos, manufactureiros, pastores e outros membros da classe abastada que exerciam as funções de juízes) foram autorizados a fixar certos salários e a modifica-los consoante as estações e o preço das mercadorias. Jaime I estendeu esta regulamentação aos tecelões, aos operários de fiação e a muitas outras categorias operárias. Jorge II estendeu as leis contra as coligações operárias a todas as manufacturas.
Durante o período manufactureiro propriamente dito, o modo de produção capitalista cresceu bastante para tornar a regulamentação legal do salário impraticável e supérflua; mas continuava à mão, para casos imprevistos, o velho arsenal de ucases. Sob Jorge II, o Parlamento adoptou um decreto a proibir aos companheiros alfaiates de Londres e seus arredores que recebessem salário diário superior a 2 xelins e 7,5 dinheiros, salvo em caso de luto geral; sob Jorge III, os juízes de paz são autorizados a regular o salário dos tecelões de seda. Em 1796, foram precisas duas sentenças dos tribunais superiores para decidir se as ordenanças dos juízes de paz sobre salários se aplicavam igualmente aos trabalhadores não agrícolas; em 1799, um decreto parlamentar declara ainda que o salário dos mineiros da Escócia deve ser regulado pelo estatuto de Isabel e por dois decretos escoceses de 1661 e 1671. Entretanto, as circunstâncias económicas tinham sofrido uma revolução tão radical que se produziu um facto nunca ouvido na Câmara dos Comuns. Neste recinto, onde havia mais de quatrocentos anos se fabricavam leis para fixar ao movimento dos salários um máximo que em caso algum deveria ser ultrapassado, Whitbread veio propor, em 1796, que se estabelecesse um mínimo legal para os operários rurais. Embora combatendo esta medida, Pitt concordou que «os pobres estavam em cruel situação». Enfim, em 1813, aboliram-se as leis sobre a fixação de salários que já não passavam de uma anomalia ridícula, na época em que o fabricante regia os seus operários com a sua autoridade privada, por éditos qualificados como regulamentos de fábrica, em que o fazendeiro completava, com o auxílio da taxa dos pobres, o mínimo de salário necessário à manutenção dos seus homens sofredores. As disposições dos estatutos sobre contractos entre patrões e assalariados, segundo os quais em caso de ruptura a acção cível só é recebida contra os primeiros, ao passo que a acção criminal é admitida contra os segundos, estão ainda hoje em vigor.
As leis atrozes contra as coligações de trabalhadores foram abolidas em 1825 perante a atitude ameaçadora do proletariado. Contudo, não cessaram em absoluto e foi só pela lei de 29 de Junho de 1871 que se pretendeu apagar os últimos vestígios dessa legislação e se reconheceu a existência legal das trade-unions (sociedades operárias de resistência).
Todavia, por lei suplementar da mesma data (Decreto de emenda à Lei Penal sobre violência, ameaças e molestações), as leis contra as coligações foram de facto restabelecidas sob nova forma. Os meios a que, em caso de greve ou de lock-out (greve dos patrões que se ligam para fechar ao mesmo tempo as suas fábricas), os operários podem recorrer no decurso da luta, foram abrangidos pelo direito comum e caíram sob uma legislação penal de excepção, interpretada pelos patrões na sua qualidade de juízes de paz. Dois anos antes a mesma Câmara dos Comuns e o mesmo Gladstone que, pelo édito suplementar de 1871, inventaram novos delitos próprios dos operários, tinham aprovado um decreto para pôr fim a todas as leis de excepção contra a classe operária; mas, por aliança com os tories, fizeram meia volta contra o proletariado que os tinha levado ao poder; e, não contente com esta traição, o grande partido liberal, sempre sob os auspícios do seu chefe Gladstone, permitiu aos juízes ingleses, sempre prontos a servir as classes dominadoras, que exumassem as leis antigas sobre conspiração para serem aplicadas a actos de coligação.
Só contra vontade e sob a pressão ameaçadora das massas, o parlamento inglês renunciou às leis contra as coligações e uniões operárias, depois de ter feito durante cinco séculos o ofício de uma trade-union permanente de capitalistas contra os operários.
Também em França, desde o início da tormenta revolucionária, a burguesia francesa ousou despojar a classe operária do direito de associação que esta acabava de conquistar. Por uma lei orgânica de 14 de Junho de 1791, qualquer combinação entre trabalhadores para defesa dos seus interesses comuns foi estigmatizada de atentado «contra a liberdade e a declaração dos direitos do homem», punível com multa de 500 libras, acrescida da perda de direitos civis durante um ano[4]. Este decreto, com o auxílio do Código Penal e da polícia, traçou à concorrência entre o capital e o trabalho limites agradáveis aos capitalistas e conseguiu sobreviver às resoluções e mudanças de dinastias. O regime do próprio Terror não lhe tocou. Só recentemente foi apagado do Código Penal[5] e com que luxo de precauções!
Segundo o mesmo decreto, é necessário reprimir as coligações que os operários possam formar para fazer aumentar o preço do dia de trabalho, porque eles atacam assim a liberdade dos patrões, empreiteiros do trabalho, e, «interferindo assim, procuram voltar a criar corporações aniquiladas pela revolução»[6]
Na Inglaterra a servidão desapareceu de facto pelos fins do século XIV. A grande maioria da população[1] compunha-se então, e ainda mais no séc. XV, de camponeses livres, que cultivavam as suas próprias terras, quaisquer que fossem os títulos feudais que lhes davam direito à posse. Nos grandes domínios senhoriais, o antigo bailio, que não passava de servo, fora substituído pelo fazendeiro independente. Os assalariados rurais eram em parte camponeses – que, durante o tempo livre deixado pela cultura dos seus campos, alugavam os seus serviços aos grandes proprietários – e, noutra parte, formavam uma classe particular e pouco numerosa de jornaleiros. Até mesmo estes eram também, em certa medida, cultivadores por sua alta recriação, porque, além do salário, lhes concediam campos pelo menos de quatro acres[2], com cabanas; além disso, participavam com os camponeses propriamente ditos do usufruto dos bens comunais, onde apascentavam os seus gados e se forneciam de lenha ou turfa para aquecimento.
Notaremos de passagem que o servo era não só possuidor, tributário, de facto, das parcelas junto das suas casas, mas também co-proprietário dos bens comunais. Quando Mirabeau publicou o seu livro De la monarchie prussienne, a servidão ainda existia na maioria das províncias prussianas, como na Silésia, e, contudo, os servos possuíam ali bens comunais: «Não fora ainda possível levar os silesianos à partilha das comunas, ao passo que noutros locais quase não há aldeia em que esta partilha não esteja executada com o maior êxito».
O aspecto mais característico da produção feudal, em todos os países da Europa ocidental, é a partilha do solo entre o maior número possível de cidadãos. Passava-se com o senhor feudal o mesmo que com qualquer outro soberano: o seu poderio dependia menos da grandeza da sua bolsa que do número dos seus vassalos, isto é, do número de camponeses estabelecidos nos seus domínios. O Japão, com a sua organização da propriedade puramente feudal, com a sua pequena cultura, oferece sob muitos aspectos, uma imagem mais fiel da Idade Média europeia do que os nossos livros de história, impregnados de preconceitos burgueses. É muitíssimo cómodo ser-se «liberal» à custa da Idade Média.
Embora a conquista normanda tivesse constituído toda a Inglaterra em baronias gigantescas – só uma delas compreendia muitas vezes mais de novecentas senhorias anglo-saxónicas – o solo estava enxameado de pequenas propriedades rurais, intercaladas aqui e ali por grandes domínios senhoriais. Assim, desde que desapareceu a servidão e que no século XV a prosperidade das cidades tomou grandes proporções, o povo inglês atingiu o estado de abastança eloquentemente pintado pelo Chanceler Fortescue no seu De Laudibus Legum Angline. Mas esta riqueza do povo excluía a riqueza capitalista.
A revolução que ia lançar os primeiros fundamentos do regime capitalista teve o seu prelúdio no último terço do século XV e começos do século XVI. Nessa altura, o despedimento de numerosos séquitos senhoriais – Sir James Steuart diz, muito a propósito, que «atravancavam castelos e palácios» – lançou de repente no mercado do trabalho uma quantidade de proletários sem eira nem beira. E não foi só o poder real, saído do desenvolvimento burguês, o causador deste movimento de despedida por medidas violentas, na sua tendência para a soberania absoluta. Em guerra aberta contra a realeza e Parlamento, os grandes senhores criaram um proletariado também considerável, usurpando os bens comunais dos camponeses e expulsando-os do solo que possuíam com o mesmo direito feudal dos seus patrões. Na Inglaterra, o que sobretudo deu causa a actos de violência foi o desenvolvimento das manufacturas da lã na Flandres e a alta dos preços da lã, resultante deste facto. A prolongada guerra das Duas Rosas, tendo devorado a antiga nobreza, fez com que a nova nobreza, filha da sua época considerasse o dinheiro como a potência das potências. Transformação das terras aráveis em pastagens, tal foi o seu grito de guerra.
No seu Descriptions of England, prefixed to Holinsded’s Chronicles, Harrison descreve como a expropriação dos camponeses desolou o país:
«Mas que importa aos nossos grandes usurpadores! As casas dos camponeses e as cabanas dos operários foram violentamente arrasadas ou condenadas a cair em ruínas. Se quiserem comparar os antigos inventários de cada solar senhorial, verão que inúmeras casas desapareceram com os pequenos cultivadores que as habitavam, que o país alimenta muito menos gente, que muitas cidades decaíram, embora algumas de nova fundação prosperem. A propósito das cidades e aldeias destruídas para se fazerem pastagens de carneiros e onde nada se vê de pé, exceptuando os castelos senhoriais, muito teria eu que dizer».
As queixas destes velhos cronistas pintam de maneira exacta a impressão produzida nos contemporâneos pela revolução surgida na ordem económica da sociedade. Comparem-se os escritos do Chanceler Fortescue com os do Chanceler Thomas More e teremos uma ideia do abismo que separa o século XV do século XVI. Na Inglaterra, a classe trabalhadora – como diz muito justamente Thornton – foi precipitada sem transição da sua idade de oiro para a sua idade de ferro.
Esta desordem meteu medo ao Parlamento. Ainda não tinha sido atingido o elevado grau de civilização em que a riqueza nacional (isto é, a riqueza dos capitalistas, o empobrecimento e a exploração sem vergonha da massa do povo) passa o último limite da sabedoria do Estado. Bacon, na sua História de Henrique VII, diz:
«Por esta época (1489), as queixas a propósito da conversão das terras aráveis em pastagens, que só exigiam a vigilância de alguns pastores, tornaram-se cada vez mais numerosas, e herdades arrendadas por toda a vida, por largo prazo ou ao ano, de que viviam em grande parte os yeomen, foram anexadas às terras da coroa. Daqui resultou um declínio da população, seguida pela decadência de muitas vilas, igrejas, diminuição de dízimos, etc.. Os remédios aplicados a esta funesta situação testemunham uma sabedoria admirável por parte do Rei e do Parlamento. Estes tomaram medidas contra a usurpação despovoadora dos terrenos comunais e contra a extensão das pastagens despovoadas que seguiu aquela de perto».
Uma lei de Henrique VII, em 1489, cap.19, interdiz a demolição de todas as casas de camponeses que têm anexados pelo menos vinte acres de terreno. Esta interdição é renovada por uma lei do 25.º ano do reinado de Henrique VIII onde, entre outras coisas, se diz que «muitas herdades e grandes rebanhos de carneiros se amontoam em poucas mãos, de onde resulta que as rendas do solo aumentam mas diminui a mão-de-obra, que igrejas são demolidas e enormes massas de povo se encontram na impossibilidade de satisfazer a sua manutenção e das suas famílias».
A lei ordena por isso a reconstrução das casas demolidas nas herdades e fixa a proporção entre terras de trigo e pastagens. Uma lei de 1533 verifica que certos proprietários possuem 24 000 carneiros e impõe- lhes por limite 2000, etc.[3].
As queixas do povo, assim como as leis promulgadas desde Henrique VII, durante cento e cinquenta anos, contra a expropriação dos camponeses e dos pequenos fazendeiros, ficaram igualmente sem efeito. Nos seus Essays, civil e moral, no Ensaio XXIX, Bacon denuncia o segredo da ineficácia dessas leis: «A lei de Henrique VII foi profunda e admirável no sentido de ter criado estabelecimentos agrícolas e casas rurais de uma grandeza normal determinada, isto é, assegurou aos cultivadores uma porção suficiente de terra para os pôr em condições de criar indivíduos no gozo de uma honesta abastança, em condição não servil, e para manter a charrua nas mãos dos proprietários e não de mercenários».
O que era preciso à ordem de produção capitalista, era pelo contrário a condição servil das massas, a sua transformação em mercenários e a conversão dos seus meios de trabalho em capital.
Nesta época de transição, a legislação procurou também manter os quatro acres de terreno pegados à cabana do assalariado agrícola e a proibição de tomar sublocatários. Em 1627, no reinado de Jaime I, Roger Crocker de Frontmill foi condenado por ter construído uma cabana no domínio senhorial deste nome sem lhe ter anexado quatro acres de terreno perpetuamente; em 1638, no reinado de Carlos I, nomeou-se uma comissão real para dar execução às antigas leis, sobretudo a dos quatro acres. Também Cromwell interdisse a construção perto de Londres, no perímetro de seis quilómetros, de qualquer casa que não fosse dotada de um campo com quatro acres pelo menos. Enfim, na primeira metade do século XVIII, queixavam-se ainda de não haver um ou dois acres de terreno anexados à cabana do operário agrícola. Hoje este sente-se muito feliz quando tem um pequeno quintal ou quando pode arrendar, a distância considerável, um campo com alguns metros quadrados. Diz o Dr. Hunter: «Os proprietários de terras e os fazendeiros colaboram fortemente. Alguns acres acrescentados à sua cabana tornariam o trabalhador demasiado independente»[4].
A Reforma e a espoliação dos bens da igreja, que foi o seu resultado, vieram dar um impulso novo e terrível à expropriação violenta do povo no seculo XVI. A Igreja Católica era nessa época a proprietária feudal da maior parte do território inglês. A supressão dos conventos lançou os respectivos habitantes no proletariado. Os próprios bens do clero caíram nas garras dos favoritos reais ou foram vendidos por baixo preço a cidadãos e a fazendeiros especuladores que começaram por expulsar em massa os antigos rendeiros hereditários. O direito de propriedade dos pobres sobre uma parte dos dízimos eclesiásticos foi tacitamente confiscado[5].
«Há pobres por toda a parte», exclamava a Rainha Isabel, depois de ter feito uma viagem à roda da Inglaterra.
No 43.º ano do seu reinado, viram-se forçados a reconhecer o pauperismo como instituição nacional e a estabelecer a taxa dos pobres. Os autores desta lei tiveram vergonha de reconhecer os motivos e publicaram-na sem qualquer preâmbulo, contra o uso tradicional[6]. No reinado de Carlos I, o Parlamento declarou essa taxa perpétua e só veio a ser modificada em 1834. Então, do que lhes tinha sido originariamente concedido como indemnização pela expropriação sofrida, estabeleceram um castigo para os pobres.
O protestantismo é essencialmente uma religião burguesa. Para fazer sobressair o seu espírito bastará um exemplo. Era ainda no tempo de Isabel: alguns proprietários latifundiários e alguns ricos fazendeiros da Inglaterra meridional reuniram-se para aprofundar a recente lei dos pobres. Depois resumiram tudo num escrito, contendo dez questões que, em seguida, submeteram a um célebre jurisconsulto da época, o sargento Snigge, elevado ao nível de juiz no reinado de Jaime I. Eis um extracto:
«Alguns ricos fazendeiros da paróquia projectaram um plano muito inteligente por meio do qual se poderá evitar toda a espécie de perturbação na execução desta lei. Propõem que se construa na paróquia uma cadeia. Todo o pobre que não quiser deixar-se prender não receberá assistência. Em seguida, far-se-á saber nos arredores que, se algum indivíduo desejar alugar os pobres desta paróquia, terá de entregar, dentro do prazo a fixar antecipadamente, propostas seladas indicando o mais baixo preço por que quer desembaraçar-nos deles. Os autores deste plano supõem que há indivíduos que não têm a mínima vontade de trabalhar e que não têm fortuna nem crédito para obter quinta ou navio, para que possam viver sem trabalhar. Estas pessoas estariam dispostas a fazer à paróquia propostas muito vantajosas. Se aqui e ali os pobres viessem a morrer sob a guarda dos contratantes, a falta recairia sobre estes, e a paróquia teria cumprido todos os seus deveres para com os pobres. Tememos que a lei de que se trata não permita medidas de prudência deste género. Mas precisai de saber que os livres arrendatários se unirão a nós para levar os seus representantes na Câmara dos Comuns a proporem uma lei que permita meter na cadeia os pobres e obrigá-los a trabalhar, para que todo o indivíduo que se recuse à prisão perca o seu direito à assistência. Isto, temos esperança, irá impedir os miseráveis de terem necessidade de ser assistidos»[7].
No entanto, estas consequências imediatas da Reforma não foram as mais importantes. A propriedade eclesiástica criou para a ordem tradicional da propriedade dos terrenos uma avenida sagrada. Uma vez aquela tomada de assalto, a outra já não se poderia manter[8].
Nos últimos anos do século XVII, a yeomanry, classe de camponeses independentes, a orgulhosa classe camponesa (proud peasantry) de Shakespeare, ultrapassava ainda em número o estado dos fazendeiros; ela tinha constituído a principal força da República Inglesa. Os seus costumes e os seus hábitos formavam, conforme confessa Macaulay, o mais chocante contraste com os dos morgados contemporâneos, grotescos Nemrods, estúpidos, bêbados, e dos seus criados, os curas das aldeias, amantes solícitos das criadas favoritas dos nobres camponeses. Em 1750, a yeomanry tinha desaparecido.
Pondo de lado as influências puramente económicas que preparavam a expropriação dos cultivadores, só nos ocuparemos aqui das alavancas aplicadas para precipitar violentamente a sua marcha.
Sob a restauração dos Stuart, os proprietários latifundiários conseguiram cometer legalmente uma usurpação, realizada depois no continente sem a menor interferência parlamentar. Aboliram a constituição feudal do solo, isto é, descarregaram-no das servidões que o oneravam, indemnizando o Estado por impostos sobre os camponeses e o resto do povo, reivindicaram o título de propriedade privada, no sentido moderno, bens possuídos em virtude de títulos feudais, e coroaram a obra promulgando leis sobre o domicílio legal que faziam dos trabalhadores rurais uma pertença da paróquia, justamente como o famoso édito do tártaro Boris Godounov fizera dos camponeses russos uma pertença da gleba. A gloriosa revolução levou ao poder, com Guilherme III, príncipe de Orange[9], fabricantes de dinheiro, nobres possuidores de grandes terras, capitalistas plebeus, que inauguraram a Nova Era por meio de um esbanjamento verdadeiramente colossal do tesouro público. Os domínios do Estado, que até ali só tinham sido pilhados com modéstia, dentro de limites conformes com uma certa decência, foram extorquidos ao Rei à viva força, como gratificações devidas a cúmplices, ou vendidos por preços irrisórios, ou, sem nenhuma formalidade, simplesmente anexados às propriedades privadas[10]. E tudo isto a descoberto, ruidosamente, descaradamente, até com desprezo por uma fingida legalidade.
Esta apropriação fraudulenta do domínio público e a pilhagem dos bens eclesiásticos, sem contar os bens que a revolução republicana lançou na circulação, eis a base sobre a qual assenta o poderio relativo aos bens da coroa da oligarquia inglesa actual. Os burgueses capitalistas favoreceram a operação, com o fim de fazerem da terra um artigo de comércio, de aumentarem o seu aprovisionamento de proletários campesinos, de estenderem o campo da grande agricultura, etc.. De resto, a nova aristocracia latifundiária é a aliada natural da nova bancocracia, da alta finança há pouco nascida e dos gordos manufactureiros, fautores do sistema proteccionista. A burguesia inglesa agia conforme os seus interesses, como fez a burguesia sueca quando se ligou aos camponeses, para ajudar os reis a retomar por medidas terroristas as terras da coroa escamoteadas pela aristocracia.
A propriedade comunal, completamente distinta da propriedade pública de que acabamos de falar, era uma velha instituição germânica que permanecia em vigor no meio da sociedade feudal. Vimos que as usurpações violentas sobre as comunas, quase sempre seguidas da conversão das terras aráveis em pastagens, começaram no último terço do século XV e prolongaram-se para além do século XVI. Mas então estes actos de rapina só constituíam atentados individuais combatidos em vão durante cento e cinquenta anos pelo Parlamento. Mas no século XVIII – vejam que progresso! – as próprias leis tornaram-se o instrumento da espoliação, o que aliás não impediu os grandes fazendeiros de recorrerem também a pequenas práticas particulares e, por assim dizer, extralegais.
A forma parlamentar do roubo cometido sobre as comunas é a de «leis para encerramento das terras comunais». São decretos por meio dos quais os proprietários latifundiários oferecem presentes a si mesmos, são decretos de expropriação do povo. Numa defesa de advogado espertalhão, Sir F. M. Eden procura apresentar a propriedade comunal como propriedade privada, embora ainda indivisa, os modernos senhores da terra vêm ocupar o lugar dos seus predecessores (os senhores feudais) mas nega-se a si próprio pedindo que o Parlamento vote um estatuto geral que sancione de uma vez para sempre todos os terrenos das comunas. E, não contente por ter confessado que seria preciso um golpe de Estado parlamentar para legalizar a transferência de bens comunais para os senhores da terra, consuma a sua derrota insistindo, para descanso de consciência, sobre a indemnização aos pobres cultivadores[11]. Se não houvesse expropriados, não haveria evidentemente ninguém a indemnizar.
Ao mesmo tempo que a classe independente dos yeomen era suplantada pela dos pequenos fazendeiros cujo contrato podia ser rescindido todos os anos, raça tímida, servil, à mercê do bom prazer senhorial – o roubo sistemático das terras comunais, junto à pilhagem dos domínios do Estado, contribuía para engrossar as grandes herdades chamadas no século XVIII «herdades do capital» ou «herdades dos comerciantes», isto é, para transformar a população dos campos em proletariado «disponível» para a indústria.
No entanto, o século XVIII não compreendeu tão bem como o século XIX a identidade destes dois termos: riqueza da nação, pobreza do povo. Daí a polémica virulenta sobre o terreno das comunas que se encontra na literatura económica desta época. Do vasto material que nos foi legado sobre este assunto, bastará extrair algumas passagens que farão sobressair fortemente a situação desses tempos.
«Num grande número de locais, vinte e quatro herdades, cada uma com, pelo menos, 50 a 150 acres em média, ficaram reunidas em três.
Procedeu-se em grande medida ao encerramento dos terrenos comunais; e a maior parte dos novos senhorios saídos desta operação foi convertida em pastagens, de modo que onde se trabalhavam 1500 acres de terra já só se trabalham 50. Ruínas de casa, de granjas, de estábulos, eis os únicos traços que deixaram os seus antigos habitantes. Em muitos lugares, centenas de habitações e de famílias foram reduzidas a oito ou dez. Na maior parte das paróquias onde o encerramento data de há quinze ou vinte anos só passa a existir um pequeno número de proprietários, comparado ao grande número que cultivava o solo quando os campos eram abertos. Não é raro ver quatro ou cinco ricos criadores de gado usurparem domínios, ainda há pouco fechados, que antes se encontravam nas mãos de vinte ou trinta fazendeiros e de um grande número de pequenos proprietários e de vilões. Todos estes últimos e suas famílias foram expulsos com muitas outras famílias que empregavam e mantinham.
Não foram só as terras maninhas mas até as cultivadas, quer em comum quer pagando uma certa renda à comuna, que os proprietários limítrofes anexaram sob o pretexto de inclusão.
Refiro-me ao emparcelamento de terrenos e campos já cultivados. Até os escritores que defendem o emparcelamento concordam que, em certos casos, reduz a cultura, faz elevar os preços das subsistências e produz o despovoamento. E mesmo que se trate de terras incultas, a operação, tal como hoje se pratica, tira ao pobre uma parte dos seus meios de subsistência e activa o desenvolvimento de herdades que já são demasiado grandes»[12].
«Quando o solo – diz o Dr. Price – cai nas mãos de um pequeno número de grandes fazendeiros, os pequenos fazendeiros vão ser transformados em pessoas forçadas a ganhar as suas subsistências, a trabalhar para outrem e a ir ao mercado comprar o que lhes é necessário. Talvez se produza mais trabalho, porque haverá maior constrangimento. As cidades e as manufacturas crescerão porque nelas se encontrarão mais pessoas expulsas à procura de trabalho. É neste sentido que a concentração das herdades opera desde há muitos anos neste reino»[13].
A situação das classes inferiores piorou sob todos os aspectos: os pequenos proprietários e os fazendeiros ficaram reduzidos ao estado de jornaleiros e de mercenários e, ao mesmo tempo, tornou-se mais difícil ganhar a vida nestas condições[14].
De facto, a usurpação dos bens comunais e a revolução agrícola que se seguiu fizeram-se sentir duramente entre os trabalhadores dos campos; e a tal ponto que, segundo o próprio Eden, de 1765 a 1780, o salário começou a descer abaixo do mínimo e teve de ser completado por meio do socorro oficial. «O salário já não chegava para as primeiras necessidades da vida».
Escutemos ainda por instantes um apologista dos emparcelamentos, adversário do Dr. Price:
«Estaríamos absolutamente enganados se concluíssemos que o país se despovoa porque já não se vêem nos campos tantas pessoas a perder o seu tempo e o seu labor. Se há menos nos campos, há mais nas cidades. Se, depois da conversão dos pequenos camponeses em jornaleiros, obrigados a trabalhar para outrem, se faz mais trabalho, é uma vantagem que a nação só tem a desejar. O produto será mais considerável, se empregarem numa só herdade o trabalho combinado: formar-se-á assim um excedente de produto para as manufacturas, e estas, verdadeiras minas de ouro do nosso país, aumentarão proporcionalmente à quantidade de cereais fornecida»[15].
Quanto à serenidade de espírito e ao estoicismo imperturbável com os quais o economista encara a profanação mais desavergonhada do «direito sagrado da propriedade» e os atentados mais escandalosos contra as pessoas, desde que ajudem a estabelecer o modo de produção capitalista, poderemos julgar pelo exemplo de Sir F. M. Eden, tory e filantropo. Os actos de rapina, as atrocidades e sofrimentos que, desde o último terço do século XV até ao fim do século XVIII, formam o cortejo da expropriação violenta dos cultivadores, conduzem-no simplesmente a esta conclusão reconfortante:
«Era preciso estabelecer uma proporção justa entre as terras de cultivo e as pastagens. Durante todo o século XIV e a maior parte do século XV, havia ainda dois, três e até quatro acres de terreno arável por cada acre de pastagem. Nos meados do século XVI, esta proporção alterou-se: primeiro, três acres de pastagem por dois de solo cultivado, depois dois por um, até que por fim se chegou à justa proporção de três acres de terra de pastagem por cada acre de terra arada».
No século XIX chegou a perder-se a lembrança do íntimo laço que ligava o cultivador ao solo comunal. O povo dos campos, por exemplo, nunca obteve um chavo de indemnização pelos 3 511 770 acres que lhe foram arrancados de 1801 a 1831 e que os senhores latifundiários ofereceram uns aos outros por meio de decretos de emparcelamento.
O último processo de alcance histórico que se emprega para expropriar os cultivadores chama-se clearing of estates ou, literalmente, «limpeza dos bens de raiz». Em francês diz-se «limpar uma floresta», mas «limpar bens de raiz», no sentido inglês, não significa uma operação técnica de agronomia; é o conjunto de actos de violência por meio dos quais se desembaraçam dos cultivadores e das suas habitações, quando estão de posse de bens de raiz destinados a passar ao regime da grande cultura ou ao estado de pastagens. E foi a este estado que chegaram os métodos de expropriação: onde já não há camponeses a suprimir, arrasam as cabanas dos assalariados agrícolas cuja presença desfeia o solo. Mas o clearing of estates que vamos abordar tem por teatro a região predilecta dos romancistas modernos, as Highlands da Escócia.
A operação distingue-se pelo seu carácter sistemático e pela grandeza da escala em que se executa – na Irlanda, muitas vezes um proprietário de terras arrasa frequentemente algumas aldeias de uma só vez; mas na Escócia, trata-se de superfícies ainda mais extensas.
O povo das Highlands compunha-se de tribos cada uma das quais possuía como propriedade o solo no qual se estabelecera. O representante da tribo, o seu chefe (ou «grande homem») era apenas o proprietário titular do solo, como a rainha de Inglaterra é proprietária titular do solo nacional. Quando o governo inglês conseguiu suprimir definitivamente as guerras intestinas entre estes «grandes homens» e as suas contínuas incursões nas planícies limítrofes da baixa Escócia, eles não abandonaram o seu antigo mister de salteadores; só mudaram a respectiva forma. Baseados na sua própria autoridade, convertiam o direito de propriedade titular em direito de propriedade autêntica e, quando encontravam obstáculos aos seus projectos de enriquecimento, expulsavam à viva força.
«Um rei de Inglaterra pretenderia da mesma forma possuir o direito de expulsar os seus súbditos para o mar»[16].
Podem-se seguir as primeiras fases desta revolução nas obras de James Anderson[17] e de James Steuart. Este informa-nos que, na sua época, no último terço do século XVIII, a alta Escócia apresentava ainda um quadro da Europa de há quatrocentos anos.
«A renda (é assim que ele chama erradamente ao tributo pago ao chefe da tribo) é muito pequena em relação à extensão mas, se considerardes relativamente ao número de bocas que a herdade alimenta, vereis que uma terra nas montanhas da Escócia alimenta talvez duas vezes mais pessoas que uma terra do mesmo valor numa outra província. Passa-se com certas terras como com certos conventos de frades: quanto mais bocas há para alimentar, melhor vivem»[18].
No último terço do século XVIII, quando começaram a expulsar os gaélicos, proibiram-lhes ao mesmo tempo a emigração para o estrangeiro para os forçarem a afluir a Glasgow e a outras cidades manufactureiras.
Nas suas Observatios sur la «Richesse des Nations» de Adam Smith, publicadas em 1814, David Buchanan dá-nos uma ideia dos progressos feitos pelo clearing of estates:
«Nas Highlands o proprietário latifundiário, sem consideração pelos rendeiros hereditários (ele aplica erradamente esta palavra às pessoas da tribo que possuíam o solo em conjunto), oferece a terra a quem mais lhe der por ela. O solo, anteriormente enxameado de pequenos camponeses, era muito povoado em relação ao seu rendimento. O novo sistema de cultura aperfeiçoada e de rendas sempre em aumento faz obter o maior produto líquido com o menor dispêndio possível e, com este objectivo, desembaraçam-se dos colonos daqui em diante inúteis. Assim repelidos do solo natal, vão procurar a sua subsistência nas cidades manufactureiras».
George Ensor diz num livro publicado em 1818.
«Os grandes da Escócia expropriaram famílias como se fossem ervas más; trataram aldeias e habitantes como os índios ébrios de vingança tratam os animais ferozes e as suas tocas. Vende-se um homem por lã de ovelha, por uma perna de carneiro e até por menos… quando se deu a invasão da China setentrional, o Grande Conselho dos Mongóis discutiu se não seria bom extirpar do país todos os habitantes e convertê-lo numa vasta pastagem. E grande número de proprietários escoceses pôs em prática este desígnio no seu próprio país, contra os seus próprios compatriotas»[19].
A iniciativa mais completa pertence à duquesa de Sutherland, a qual, logo que tomou as rédeas da administração, resolveu recorrer aos grandes meios e converter tudo em pastagens, expulsando 15 000 habitantes de 1814 a 1820 (cerca de três mil famílias). Todas as aldeias foram destruídas e queimadas e os campos convertidos em pastagens. Soldados ingleses requisitados entraram em combate. Uma velha que se recusou a abandonar a sua choupana morreu nas chamas. Foi assim que a nobre dama açambarcou 794 000 acres de terras que pertenciam à tribo desde tempos imemoriais.
Uma parte dos espoliados foi absolutamente expulsa; à outra, concederam-lhe uns 6000 acres nas praias do mar, terras até agora incultas e que nunca tinham produzido um chavo. A duquesa levou a sua grandeza de alma até ao ponto de as arrendar pela média de 2 xelins e 6 dinheiros por acre, àqueles membros da tribo que durante séculos tinham derramado o seu sangue ao serviço dos senhores Sutherland. O terreno que ela assim conquistou, dividiu-o em vinte e nove grandes herdades de carneiros, estabelecendo em cada uma delas uma só família, composta quase sempre de criados ingleses de lavoura. Em 1825, os quinze mil proscritos já tinham sido substituídos por 131 000 carneiros. Os que foram lançados para a costa marítima entregaram-se à pesca e tornaram-se, segundo a expressão de um escritor inglês, verdadeiros anfíbios, vivendo metade do tempo em terra e a outra metade na água mas, com tudo isso, vivendo apenas por metade[20].
Mas estava escrito que os gaélicos[21] teriam de sofrer ainda mais: o cheiro do peixe incomodou o nariz do capital, que farejou novos lucros, e não tardou a arrendar a costa aos peixeiros de Londres. Mais outra vez foram expulsos os gaélicos.
Por fim, realizou-se uma última metamorfose: uma porção das terras convertidas em pastagens foi convertida em reservas de caça.
Sabe-se que a Inglaterra já não tem florestas de verdade. A caça criada nos parques é uma espécie de caça doméstica e constitucional, gorda como os ricaços de Londres. A Escócia é portanto o último asilo da nobre paixão venatória. Diz Robert Somers:
«Nas Highlands, em 1848, alargaram-se muito as florestas reservadas aos animais selvagens. A conversão dos campos em pastagens expulsou os gaélicos para as terras menos férteis; agora que a caça selvagem começa a substituir o carneiro, a miséria torna-se-lhes ainda mais esmagadora. Este tipo de florestas improvisadas e o povo não podem coexistir; é preciso que um deles ceda o lugar ao outro. À medida que vai aumentar o número e a extensão das reservas de caça no próximo quarto de século, como se fez no último, não se encontrará um só gaélico na sua terra natal. Por um lado, a devastação artificial das Highlands é assunto que de certo modo lisonjeia o orgulho aristocrático dos proprietários latifundiários e a sua paixão pela caça, mas por outro lado, entregam-se ao comércio da caça para fins exclusivamente mercantis. Não há dúvida que o espaço pode render muito menos como pastagem do que como reserva de caça. O amador à procura de caça, em geral, não põe outro limite às suas ofertas que não seja a sua possibilidade monetária. As Highlands tiveram sofrimentos tão cruéis como aqueles com que a política dos reis normandos feriu a Inglaterra. Os animais selvagens tiveram campo cada vez mais livre, ao passo que os homens foram empurrados para um círculo cada vez mais apertado. O povo viu que lhe arrebatavam todas as suas liberdades, uma após outra. Aos olhos dos senhores das terras, é princípio fixo, necessidade agronómica, o expurgo do solo quanto aos seus habitantes, como se abatem árvores e mato nas regiões selvagens da América ou da Austrália, e a operação segue tranquilamente o seu caminho com toda a regularidade»[22] .
O livro de Robert Somers apareceu primeiro nas colunas do Times em forma de cartas sobre a fome que os gaélicos tiveram de passar em 1847, vencidos perante a concorrência da caça. Sábios economistas tiraram a conclusão de que havia demasiados gaélicos, o que fazia exercer pressão sobre os meios de subsistência.
Vinte anos depois, este estado de coisas tinha piorado muito, como pôde verificar o professor Leone Levi num discurso pronunciado em Abril de 1866, perante a Sociedade das Artes.
«Despovoar o país, converter terras aráveis em pastagens, foi, em primeiro lugar, o meio mais cómodo de ter rendimento sem ter gastos. Depois, a substituição das pastagens pelas florestas de caça tornou-se um acontecimento vulgar. O gamo expulsou o carneiro como este tinha expulsado o homem. A raposa, o gato selvagem, a marta, a doninha, a fuinha, a lontra, a lebre dos Alpes, já se naturalizaram há muito tempo; o coelho vulgar, o esquilo e o rato encontraram recentemente o mesmo caminho. Enormes distritos que figuravam como pradarias de fertilidade e extensão excepcionais são agora rigorosamente excluídas de qualquer tipo de cultura e consagrados aos prazeres de um punhado de caçadores e só durante alguns meses do ano».
Nos fins de Maio de 1866, um jornal escocês anunciou o facto seguinte nas suas notícias do dia: «Uma das melhores herdades de carneiros, pela qual, ao findar o arrendamento corrente, ofereceram um milhão e duzentas mil libras, vai ser convertida em floresta de caça». E o Economist de Londres, de 2 de Junho de 1866, escreve: «Os instintos feudais dão-se livre curso hoje, como no tempo em que o conquistador normando destruía trinta e seis aldeias para criar a Nova Floresta. Dois milhões de acres, compreendendo as terras mais férteis da Escócia, estão totalmente devastados. O solo sacrificado ao prazer da caça estende-se por uma superfície enorme. A perda em fontes de produção que esta devastação causou ao país pode apreciar-se pelo facto de todo esse terreno se tornar improdutivo. Equivaleu a mergulhá-lo no Mar do Norte. É preciso que o braço da lei intervenha para dar o golpe de graça a estas solidões, a estes desertos improvisados».
A espoliação dos bens da igreja, a alienação fraudulenta dos domínios do Estado, a pilhagem dos terrenos comunais, a transformação usurpadora e terrorista da propriedade feudal, ou até patriarcal, em moderna propriedade privada, a guerra às choupanas, foram estes os processos idílicos de acumulação primitiva. Conquistaram a terra para a agricultura capitalista, incorporaram o solo no capital e entregaram à indústria das cidades os braços dóceis de um proletariado sem eira nem beira.
[1] Vide Macaulay, The History of England.
[2] O acre corresponde, em Portugal, à jeira ou jorna (terreno que uma junta de bois pode lavrar num dia). Em Inglaterra eram aproximadamente 40 ares.
[3] No seu Utopie, Thomas More refere-se ao estranho país onde os carneiros comem os homens.
[4] Dr. HUNTER: Public Health, 7th Report, 1865.
[5] J. D. TUCKETT: A History of the past and present state of the labouring population.
[6] WILLI COBBET: A History of the protestant reformation.
[7] R. BLAKEY: The History of political literature from the earliest times.
[8] M. ROGERS: Histoire de l’agriculture.
[9] Fez grandes concessões de terras a Lady Orkney por causa dos seus serviços: faeda labiorum ministeria (sórdido serviço dos lábios).
[10] F. W. NEWMAN: Lectures on political econ.
[11] EDEN: The State of the Poor.
[12] RÉV. ADDINGTON: Inquiry into the Reasons for and against enclosing open fields.
[13] DR. R. PRICE: Observations on reversionary Payments.
[14] APPIEN: Les Guerres civiles romaines.
[15] K. B. SEELEY: The Perils of the Nation.
[16] F. W. NEWMAN: Lectures on polit. Economy.
[17] JAMES ANDERSON: Observation on the means of exciting a spirit of national industry.
[18] JAMES STEUART: Works
[19] GEORGE ENSOR: An Inquiry concerning the Population of Nations.
[20] New York Daily Tribune, 9-2-1853 (Artigo: The Duches of Sutherland and Slavery)
[21] Descendentes dos normandos, antigos habitantes da Gália.
[22] ROBRT SOMERS: Letters from The Highlands: or the Famine of 1847.
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Vimos como o dinheiro se transforma em capital, o capital em fonte de mais-valia, e a mais-valia em fonte de capital adicional. A acumulação capitalista pressupõe a presença de mais-valia e esta a produção capitalista que, por sua vez, só entra em cena no momento em que massas de capitais e de forças operárias bastante consideráveis se encontram já acumuladas. Todo este movimento gira um círculo vicioso, do qual não se pode sair sem admitir uma acumulação primitiva (previous accumulation, disse Adam Smith) anterior à acumulação capitalista e que serve de ponto de partida para a produção capitalista, em vez de provir desta.
A acumulação primitiva representa na economia política quase o mesmo que o pecado original em teologia. Adão mordeu a maçã e aí está o pecado a dar entrada no mundo e explicam-nos a origem do pecado por uma aventura que se teria passado poucos dias depois da criação.
Pois também outrora, há muito tempo, a sociedade dividia-se em dois campos: de um lado, pessoas da elite, laboriosas, inteligentes, dotadas de hábitos domésticos; do outro lado, um montão de patifes, em festança da manhã à noite e de noite até pela manhã. Em seguida, uns amontoaram tesouro sobre tesouro, ao passo que os outros em breve se encontraram despidos de tudo. Daí a pobreza da grande massa que, apesar de um trabalho sem fim nem tréguas, pagou sempre com a sua pessoa; e a riqueza de um pequeno número que colhe todos os frutos do trabalho sem ter de mexer os dedos.
A historieta do pecado mostra-nos, é verdade, como foi o homem condenado pelo Senhor a ganhar o seu pão com o suor da testa; mas quanto ao pecado económico, há uma lacuna lamentável e não se sabe como foi que homens escaparam a esta ordem do Senhor.
E estas insípidas infantilidades não se cansam de as repisar. Thiers[1] dá brindes aos franceses, outrora tão espirituosos, e pretende ter reduzido a nada os ataques sacrílegos do socialismo contra a propriedade. É verdade que, posto sobre a mesa o problema da propriedade, todos devem considerar seu dever sagrado manter-se na sabedoria do abecedário, a única em uso e ao alcance dos estudantes de todas as idades[2].
Nos anais da história, foi sempre a conquista, a escravidão, a rapina à mão armada, o reino da força brutal, que empalmaram a propriedade. Pelos manuais beatos da economia política foi só o idílio que em todos os tempos reinou. Segundo os seus dizeres, nunca houve outros meios de enriquecer senão o trabalho e o direito. Mas, de facto, os métodos da acumulação primitiva são tudo o que quiserem, excepto matéria de idílio.
A relação oficial entre o capitalista e o assalariado é de carácter puramente mercantil. Se o primeiro representa o papel de patrão e o último o de servidor, é graças a um contrato pelo qual este não só se pôs ao serviço daquele e portanto sob a sua dependência, mas pelo qual renunciou a todo o tipo de propriedade sobre o seu próprio produto. Mas porque é que o assalariado faz este comércio? Porque nada mais possui além da sua força pessoal – o trabalho no estado de potência – ao passo que todas as condições exteriores requeridas para dar corpo a esta potência, a matéria e os instrumentos necessários ao exercício útil do trabalho, o poder de dispor das subsistências indispensáveis à manutenção da força operária e à sua conservação em movimento produtivo, tudo isso se encontra do outro lado.
No fundo do sistema capitalista há portanto a separação radical entre o produtor e os meios de produção. Esta separação produz-se em escala progressiva desde que o sistema capitalista se estabeleceu; mas como aquela separação forma a base deste sistema, este não pode estabelecer-se sem aquela. Para que viesse ao mundo, foi preciso que, pelo menos parcialmente, os meios de produção tivessem sido arrancados aos produtores, que os empregavam para realizar o seu próprio trabalho, e que tais meios se encontrassem já detidos por produtores comerciantes que os empregavam a especular sobre o trabalho alheio. O movimento histórico que faz divorciar o trabalho das suas condições exteriores, eis portanto a fina palavra da acumulação chamada «primitiva» porque pertence à idade histórica do mundo burguês.
A ordem económica capitalista saiu das entranhas da ordem económica feudal. A dissolução de uma libertou os elementos constitutivos da outra.
Quanto ao operário, produtor imediato, para poder dispor da sua própria pessoa, precisa em primeiro lugar de deixar de estar ligado à gleba ou de estar enfeudado a outra pessoa (também não podia tornar-se livre vendedor de trabalho, sem ter escapado ao regime das corporações, com o seu patronato, os seus jurados, as suas leis de aprendizagem, etc.). O movimento histórico que converteu os produtores em assalariados apresenta-se portanto como a alforria, a libertação da escravidão e da hierarquia industrial. Por outro lado, estes alforriados só se tornam vendedores de si mesmos depois de terem sido despojados de todos os seus meios de produção e de todas as garantias de existência oferecidas pela antiga ordem das coisas. A história dessa expropriação não é assunto de conjectura: está escrita nos anais da humanidade a letras de sangue e de fogo indeléveis.
Quanto aos capitalistas empreendedores, estes novos potentados tiveram não só que deslocar os mestres dos ofícios, mas também os detentores feudais das fontes de riqueza. Assim, o aparecimento do capitalista apresenta-se como resultado de uma luta vitoriosa contra o poder senhorial com as suas prerrogativas revoltantes, e contra o regime corporativo com os entraves que punha ao livre desenvolvimento da produção e à livre exploração do homem pelo homem. Mas os cavaleiros da indústria não suplantaram os cavaleiros da espada a não ser pela exploração de acontecimentos que não eram feitura sua. Chegaram por meios tão vis como aqueles de que se serviu o alforriado romano para se tornar patrão do seu patrão.
O conjunto do desenvolvimento, compreendendo ao mesmo tempo a génese do assalariado e a do capitalista, tem por ponto de partida a servidão dos trabalhadores; o progresso consiste em mudar a forma de servidão, em transformar por metamorfose a exploração feudal em exploração capitalista. Para fazer compreender a marcha desta metamorfose precisamos de subir muito alto. Embora os primeiros esboços da produção capitalista tenham sido feitos bastante cedo em algumas cidades do Mediterrâneo, a era capitalista só data do século XVI. Por toda a parte onde nasceu, a abolição da servidão é de há muito tempo um facto consumado, e o regime das cidades soberanas, essa glória da Idade Média, está já em plena decadência.
Na história da acumulação primitiva, fazem época todas as revoluções que servem de alavanca ao avanço da classe capitalista em via de formação, sobretudo aquelas que, despojando grandes massa dos seus meios de produção e de existência tradicionais, as lançam de improviso no mercado de trabalho. Mas a base de toda esta evolução é a expropriação dos cultivadores.
Em Inglaterra realizou-se de maneira radical: este país representará pois o primeiro papel no nosso bosquejo. Mas todos os outros países da Europa Ocidental percorrem idêntico movimento, embora mude de cor local, ou se apertem em círculo mais acanhado, ou apresente um carácter menos fortemente pronunciado, ou siga uma ordem diferente de sucessão.
[1] Thiers, De la propriété.
[2] Goethe, Gesammelte Werke:
«O mestre-escola: donde veio a fortuna do teu pai?
O aluno: do avô.
E ao teu avô?
Do bisavô.
E ao teu bisavô?
Agarrou-a».
"esquerdismo" - a doença infantil do com
a catastrofe iminente e os meios de a co
a classe operária e o neo-malthusianismo
as possibilidades de êxito da guerra
as tarefas dos destacamentos do exército
carta ao comité de combate junto do comi
chile: lição para os revolucionários de
discurso radiodifundido em 3 de julho de
do socialismo utópico ao socialismo cien
editorial do bandeira vermelha nº1
imperialismo - estádio supremo do capita
jornadas sangrentas em moscovo
karl marx (breve esboço biográfico...
manifesto do partido comunista
mensagem do comité central à liga dos co
o exército revolucionário e o governo re
o materialismo dialéctico e o materialis
os ensinamentos da insurreição de moscov
para uma linha política revolucionária
pensar agir e viver como revolucionários
reorganizar o partido revolucionário do
sobre o que aconteceu com o rei de portu