de Marx, Engels, Lenine, Estaline, Mao Tsé-tung e outros autores

Segunda-feira, 15 de Agosto de 2011
O Estado e a Revolução - Cap. VI Aviltamento do Marxismo pelos Oportunistas

(início)

A questão das relações do Estado e da revolução social preocupou muito pouco os teóricos e os publicistas da II Internacional (1889-1914), como de resto a questão da revolução em geral. Mas, o que há de mais caracterís­tico no processo de crescimento do oportunismo, que redundou na falência da II Internacional em 1914, é que, mesmo quando esta questão se impunha directamente, tudo fez para a contornar ou ignorar.

Em geral, pode-se dizer que as evasivas sobre a questão da relação entre a revolução proletária e o Estado – um subterfúgio em proveito do oportunismo e que o alimentou – resultaram na deformação do marxismo e no seu rebaixamento completo.

Para caracterizar rapidamente esse lamentável processo, vejamos os teóricos mais em evidência do marxismo: Plekhanov e Kautsky.

 

  1.Polémica de Plekhanov com os Anarquistas

Plekhanov consagrou à questão das relações entre o anarquismo e o socialismo uma brochura especial: “Anarquismo e Socialismo”, publicada em alemão em1894.

Plekhanov conseguiu tratar desse tema, evitando completamente a questão mais actual, mais acesa e, politicamente, mais essencial na luta con­tra o anarquismo, ou seja, a relação da revolução com o Estado, e a questão do Estado em geral! Essa brochura compreende duas partes: uma parte his­tórico-literária, contendo materiais preciosos sobre a história das ideias de Stirner, Proudhon, etc.; a outra, uma dissertação filisteia sobre a impossibili­dade de se distinguir um anarquista de um bandido.

A combinação destes temas é extremamente curiosa e característica da actividade de Plekhanov, nas vésperas da revolução e durante todo o período revolucionário na Rússia: foi assim que Plekhanov se mostrou de 1905 a1917: semi-doutrinário, semi-filisteu, arrastando-se politicamente a reboque da burguesia.

Já vimos como Marx e Engels, em polémica com os anarquistas, puse­ram em relevo, com o maior cuidado, as suas ideias sobre a revolução e o Estado. Publicando, em 1891, na “Crítica do Programa de Gotha”, de Marx, Engels escrevia: ”nós (isto é, Engels e Marx) encontrávamo-nos, nesse mo­mento, apenas dois anos após o Congresso de Haia da I Internacional, em plena luta com Bakunine e os anarquistas.”

Os anarquistas empenharam-se em apropriar-se da Comuna de Paris, vendo nela uma confirmação da "sua" doutrina, mas nada compreenderam das lições da Comuna, nem da análise que Marx fez delas. Sobre estas duas questões de política concreta: é preciso demolir a velha máquina do Estado? E o que deve substituí-la? – o anarquismo nada trouxe nem se aproximou de dar qualquer resposta.

Mas, estudar o "anarquismo e o socialismo", descurando completamente a questão do Estado, sem perceber o desenvolvimento do marxismo antes e depois da Comuna, é escorregar inevitavelmente para o oportunismo. O oportunismo só tem a ganhar se essas duas questões nunca forem apresen­tadas. Para ele, isso é já uma vitória.

 

  2. Polémica de Kautsky com os Oportunistas

A literatura russa possui, sem dúvida alguma, infinitamente mais tradu­ções de Kautsky que qualquer outra no mundo. Não é por acaso que certos social-democratas alemães dizem, troçando, que Kautsky é muito mais lido na Rússia que na Alemanha. (Diga-se, entre parênteses, que há nesta piada um fundamento histórico muito mais profundo do que suspeitam aqueles que a fizeram: em 1905, houve, entre os operários russos, uma procura extraordi­nária, incrível, das melhores obras da melhor literatura social-democrata do mundo bem como traduções e edições numa quantidade inusitada noutros países, transplantando, por assim dizer, para o solo jovem do nosso movi­mento proletário, a experiência enorme num país vizinho mais adiantado).

Além da sua exposição popular do marxismo, Kautsky é conhecido, en­tre nós, principalmente pela sua polémica com os oportunistas, Bernstein à cabeça. Mas, há um facto quase ignorado e que não se pode evitar, querendo investigar como foi que Kautsky perdeu tão vergonhosamente a cabeça, a ponto de se tornar o advogado do social-chauvinismo durante a grande crise de 1914-1915. Esse facto consiste em que, antes de sua campanha contra os representantes do oportunismo em França (Millerand e Jaurès) e na Alema­nha (Bernstein), Kautsky manifestara grandes hesitações. A revista marxista “Zaria”, publicada em 1901-1902 em Estugarda, e que defendia as ideias proletárias revolucionárias, teve que travar polémica com Kautsky, classifi­cando de resolução de “borracha" a sua resolução mitigada, fugidia, concili­ante com os oportunistas, do congresso internacional socialista de Paris em 1900. Publicaram-se em alemão cartas de Kautsky, atestando as mesmas hesitações antes de entrar na sua campanha contra Bernstein.

Uma circunstância muito mais grave é que, até na sua polémica com os oportunistas, constatamos agora, ao estudar a história da recente traição de Kautsky ao marxismo, uma tendência sistemática para o oportunismo, preci­samente na questão do Estado.

Tomemos a primeira obra capital de Kautsky contra o oportunismo, seu livro sobre “Bernstein e o Programa Social-Democrata”, em que ele refuta minuciosamente Bernstein. E eis aqui o que é característico.

Nas suas “Premissas do Socialismo”, que lhe proporcionaram uma cele­bridade à maneira de Eróstrato, Bernstein acusa o marxismo de "blan­quismo" (acusação mil vezes repetida, desde então, pelos oportunistas e burgueses liberais da Rússia, contra os bolcheviques, os marxistas revolucio­nários). A esse respeito, Bernstein detém-se, particularmente, em “A Guerra Civil em França” de Marx, e tenta – muito mal, como já vimos – identificar o ponto de vista de Marx sobre as lições da Comuna, com o de Proudhon. Bernstein salienta, sobretudo, a conclusão que Marx reproduz no prefácio de 1872 ao “Manifesto do Partido Comunista” e que diz que a "classe operária não pode contentar-se com tomar tal qual a máquina estatal e fazê-la funcio­nar por sua própria conta".

Esta frase "agradou" tanto a Bernstein que ele repete-a nada menos do que três vezes no seu livro, comentando-a no sentido mais oportunista e mais desnaturado.

Como vimos, Marx quer dizer que a classe operária deve quebrar, de­molir, fazer explodir (Sprengung, explosão, a expressão é de Engels) toda a máquina do Estado. Ora, segundo Bernstein, Marx teria, com isso, pretendido pôr a classe operária de sobreaviso contra uma actividade demasiado revolu­cionária, por ocasião da tomada do poder.

Não se pode imaginar falsificação mais grosseira e mais monstruosa do pensamento de Marx.

Mas como procedeu Kautsky, na sua minuciosa refutação do bernstei-nismo?

Ele evitou analisar a falsificação profunda do marxismo pelos oportunis­tas sobre esse ponto. Reproduz a passagem, acima citada, do prefácio de Engels à Guerra Civil de Marx, dizendo que, segundo Marx, não basta que a classe operária se apodere simplesmente da máquina do Estado tal como ela é, mas que, de um modo geral ela pode apoderar-se dela, e é tudo. Que Bernstein atribua a Marx justamente o oposto ao seu verdadeiro pensamento, e que Marx tenha, desde 1852, atribuído à revolução proletária a função de “quebrar” a máquina do Estado, de tudo isto, Kautsky não diz uma palavra.

Em suma, aquilo que constitui a distinção essencial entre o marxismo e o oportunismo sobre as tarefas da revolução proletária é cuidadosamente oculto por Kautsky!

“Podemos, com toda a tranquilidade” – escreve Kautsky "contra" Berns­tein – “deixar para o futuro a solução do problema da ditadura do proletariado. (pág 172, edição alemã).

Isto não é uma polémica contra Bernstein mas, no fundo, uma conces­são a Bernstein, uma capitulação diante do oportunismo, pois o oportunismo não quer outra coisa senão "deixar para o futuro, com toda a tranquilidade” todas as questões capitais sobre as tarefas da revolução proletária.

De 1852 a 1891, durante quarenta anos, Marx e Engels ensinaram ao proletariado que deve quebrar a máquina do Estado. Ora, Kautsky, em 1899, em presença da traição dos oportunistas ao marxismo neste ponto, escamo­teia a questão de saber se é preciso destruir essa máquina, substituindo-a pela questão de quais as formas concretas dessa destruição e abrigando-se atrás da verdade filisteia, “incontestável” (e estéril) de que não podemos co­nhecer antecipadamente essas formas concretas!!

Entre Marx e Kautsky, há um abismo na concepção do papel do partido proletário na preparação da classe operária para a revolução.

Tomemos a obra seguinte, mais amadurecida, de Kautsky, consagrada também, em grande parte, à refutação dos erros do oportunismo: “A Revolu­ção Social”. O autor toma, aqui, como assunto, a "revolução proletária" e o "regime proletário". Ele traz muitas ideias de facto preciosas, mas é precisa­mente a questão do Estado que é ignorada. A brochura diz que basta con­quistar o poder do Estado e mais nada, ou seja, formula a questão de forma a fazer uma concessão aos oportunistas, na medida em que admite a conquista do poder, sem a destruição da máquina do Estado. O que em 1872 Marx declarava "envelhecido" no programa do “Manifesto do Partido Comunista”, Kautsky ressuscita-o em 1902.

A brochura consagra um capítulo às "formas e meios da revolução so­cial". Trata, aí, da greve política de massas, da guerra civil e dos "meios de dominação do grande Estado moderno, tais como a burocracia e o exército"; mas, sobre os ensinamentos da Comuna aos trabalhadores, nem uma pala­vra. Evidentemente, não foi sem razão que Engels alertou, principalmente os socialistas alemães, contra a "veneração supersticiosa" do Estado.

Kautsky expõe a questão assim: o proletariado vitorioso "realizará o pro­grama democrático" e apresenta os artigos desse programa. Sobre o que de novo trouxe o ano de 1871 no que concerne à substituição da democracia burguesa pela democracia proletária, nem uma palavra. Kautsky sai-se da dificuldade com banalidades “sólidas", do género destas:

É claro que não chegaremos ao poder nas condições de hoje. A própria revolução pressupõe lutas longas e profundas que, por si sós, já modificarão a nossa estrutura política e social actual.”

Isto "é claro" do mesmo modo que os cavalos comem a aveia e o Volga se lança no Mar Cáspio. Só é de lastimar que, com uma frase vazia e sonora sobre lutas "profundas", se evite a questão de importância vital para o proleta­riado revolucionário, de saber em que é que se traduz a "profundidade" da sua revolução em relação ao Estado, rumo à democracia, por oposição às revoluções não-proletárias.

Contornando esta questão capital, Kautsky faz, na prática, uma conces­são ao oportunismo, ao qual ele declara uma temível guerra de palavras, acentuando a importância das "ideias de revolução" (mas que valor podem ter essas "ideias", quando se tem medo de espalhar entre os operários as lições concretas da revolução?), dizendo que "o idealismo revolucionário deve estar acima de tudo", ou declarando que os operários ingleses "pouco mais são que uns pequeno-burgueses"

Na sociedade socialista – escreve Kautsky – podem existir lado a lado... as formas mais variadas de empresas: burocráticas (??), sindicais, coopera­tivistas, individuais...Há, por exemplo, explorações que não podem dispensar uma organização burocrática (??) – os caminhos de ferro. Eis aqui, nesse caso, qual poderá ser a organização democrática: os operários elegerão de­legados que constituirão uma espécie de Parlamento que estabelecerá as normas e fiscalizará a gestão do aparelho burocrático. Outras explorações podem ser confiadas aos sindicatos; outras, enfim, podem ser organizadas numa base de cooperação.”

Este argumento erróneo e marca um recuo em relação às lições que Marx e Engels tiravam, nos anos 70, da experiência da Comuna.

A propósito da organização "burocrática" pseudo-necessária, os cami­nhos de ferro em nada se distinguem de qualquer empresa da grande indús­tria mecânica, qualquer fábrica, qualquer grande armazém ou grande em­presa agrícola capitalista. Em todas essas empresas, a técnica prescreve a disciplina mais rigorosa, a maior pontualidade no cumprimento da parte de trabalho fixada a cada um, sob pena de fazer parar toda a empresa, de ruptu­ra do mecanismo, ou de deterioração da mercadoria. Evidentemente, em todas essas empresas, os operários "elegerão delegados que constituirão uma espécie de Parlamento".

Mas, aqui é que está o ponto importante: essa "espécie de Parlamento" não será um Parlamento no sentido burguês da palavra. O ponto principal é que essa "espécie de Parlamento" não se contentará em "estabelecer as normas e fiscalizar a gestão do aparelho burocrático", como o imagina Kau­tsky, pensamento que não vai além dos limites do parlamentarismo bur­guês. Na sociedade socialista, uma "espécie de Parlamento" de deputados operá­rios, evidentemente, “estabelecerá as normas e fiscalizará a gestão” do "apa­relho", mas esse aparelho não será "burocrático". Os operários, senhores do poder político, quebrarão o velho aparelho burocrático, demoli-lo-ão de alto a baixo, sem deixar pedra sobre pedra, substituindo-o por um novo apa­relho, composto pelos operários e empregados e, para impedir que estes se tornem burocratas, tomarão imediatamente as medidas propostas por Marx e Engels: 1) elegibilidade, e também amovibilidade em qualquer tempo; 2) salá­rio igual ao de um operário; 3) participação de todos no controlo e na fiscali­zação, de forma que todos sejam temporariamente "burocratas", mas que ninguém possa tornar-se "burocrata".

Kautsky não reflecte, nos seus escritos, as palavras de Marx: “A Co­muna devia ser, não uma corporação parlamentar, mais sim uma corpora­ção laboriosa, ao mesmo tempo legislativa e executiva”.

Kautsky não compreendeu, em absoluto, a diferença entre o parlamenta­rismo burguês, que une a democracia (não para o povo) à burocracia (contra o povo), e a democracia proletária, que tomará imediatamente medidas para extirpar a burocracia e terá força bastante para executá-las até ao fim, até à completa extirpação da burocracia, até ao estabelecimento de uma democra­cia completa para o povo.

Kautsky mostra aqui tanta "veneração supersticiosa" pelo Estado como "crença supersticiosa" na burocracia.

Passemos à última e melhor obra de Kautsky contra os oportunistas, o seu panfleto “O Caminho para o Poder” (não traduzido em russo, segundo parece, pois apareceu no auge da reacção czarista, em 1909). Essa obra marca um grande progresso, quando trata, não do programa revolucionário em geral, como a obra de 1899 contra Bernstein, não do papel da revolução social independentemente da época em que esta explodirá, como “A Revolu­ção Social”, de 1902, mas das condições concretas que nos obrigam a reco­nhecer que "a era das revoluções" se inaugura.

O autor indica nitidamente que o agravamento das contradições de classe em geral e do imperialismo, desempenha um papel considerável a esse respeito. Depois do "período revolucionário de 1789-1871" na Europa ocidental, o ano de 1905 inaugura um período análogo no Oriente. A Guerra Mundial aproxima-se com uma rapidez perigosa. “O proletariado já não po­derá falar de uma revolução prematura”. “Entramos num período revolucio-nário”. “A era revolucionária começa”.

Estas declarações são muito claras. Esta brochura de Kautsky permite-   -nos comparar o que prometia ser a social-democracia alemã antes da guerra imperialista e até onde caiu (e Kautsky com ela) no momento da guerra. “A situação actual – escrevia Kautsky nessa brochura – encerra o perigo de po­dermos facilmente ser tomados (nós, social-democratas alemães) por mais moderados do que na realidade somos”. Os factos demonstraram que o par­tido social-democrata alemão foi incomparavelmente mais moderado e mais oportunista do que parecia!

É tanto mais característico que, depois de ter tão categoricamente decla­rado aberta a era das revoluções, Kautsky, numa obra consagrada, segundo a sua própria expressão, à análise da "revolução política", deixa de novo completamente de parte a questão do Estado.

De todas estas omissões, de todos estes silêncios, de todas estas reti­cências, só podia resultar, no fim de contas, uma passagem completa para o oportunismo que discutiremos a seguir.

A social-democracia alemã, encarnada por Kautsky, parecia proclamar: conservo as minhas ideias revolucionárias (1889). Reconheço a inelutabili­dade da revolução social do proletariado (1902), Reconheço uma nova era de revoluções (1909). Mas apesar disso, recuo em relação ao que Marx, já em 1852, tinha dito, assim que se põe a questão das tarefas da revolução prole­tária em relação ao Estado (1912).

Foi assim, desta forma acentuada, que se pôs a questão na polémica de Kaustky com Pannekoek.

 

  3.Polémica de Kaustky com Pannekoek

Pannekoek representava contra Kautsky a tendência da “esquerda radi­cal”, que contava nas suas fileiras com Rosa Luxemburgo, Karl Radek e ou­tros, os quais, preconizando a táctica revolucionária, partilhavam a convic­ção de que Kautsky se dirigia para o "centro", oscilando, sem princípios, entre o marxismo e o oportunismo. A justeza dessa apreciação foi demonstrada na guerra, durante a qual a política do "centro" (falsamente chamada marxista) ou do "kautskysmo" se revelou com toda a sua repugnante indigência.

Num artigo sobre a questão do Estado: “A Acção de Massa e a Revolu­ção” (Neue Zeit, 1912, XXX, 2), Pannekoek caracteriza a posição de Kautsky como um "radicalismo passivo", uma "teoria da espera inactiva". "Kautsky não quer ver o processo da revolução"(pág. 616). Pondo assim a questão, Panne­koek abordava o assunto que nos interessa sobre as tarefas da revolu­ção proletária em relação ao Estado.

A luta do proletariado – escrevia ele – não é simplesmente uma luta contra a burguesia pelo poder do Estado, é também uma luta contra o poder do Estado... O conteúdo desta revolução é a destruição e dissolução do po­der do Estado (literalmente: dissolver, Auflösung) pelas forças do proletari­ado... A luta só terá fim uma vez atingido o resultado, uma vez que a organi­zação do Estado esteja completamente destruída. A organização da maioria atesta a sua superioridade aniquilando a organização da minoria dominante.” (pág. 548);

A formulação que Pannekoek empresta à sua ideia padece de defeitos graves. Mas ainda que o significado não seja claro, é interessante ver como Kautsky procura refutá-lo.

Até aqui – diz ele – a diferença entre os social-democratas e os anar­quistas consistia em que os primeiros queriam conquistar o poder estatal e os segundos destruí-lo. Pannekoek quer as duas coisas” (pág. 724)

Se à exposição de Pannekoek faltam clareza e carácter concreto (sem falar dos outros defeitos do seu artigo, que não se relacionam com o nosso assunto), Kautsky apreende bem o cerne da questão essencial em Panne­koek e, nessa questão fundamental de princípio, renuncia inteiramente ao marxismo, para atirar-se em cheio no oportunismo. A distinção que esta­be­lece entre social-democratas e anarquistas está completamente errada, e desnatura e empobrece completamente o marxismo.

A distinção entre os marxistas e os anarquistas é a seguinte, 1.º) os pri­meiros, visando a destruição completa do Estado, reconhecem que tal só é realizável após a destruição das classes pela revolução socialista, como re­sultado do advento do socialismo, e do consequente enfraquecimento do Estado; os segundos querem a supressão completa do Estado, de um dia para o outro, sem compreender as condições que a tornam possível. 2.º) os primeiros proclamam a necessidade de o proletariado se apoderar do poder político, destruir totalmente a velha máquina do Estado e substitui-la por uma nova, consistindo na organização dos operários armados, segundo o tipo da Comuna; os segundos, reclamando a destruição da máquina do Estado, não sabem claramente por que coisa o proletariado a substituirá nem como usará o poder revolucionário; os anarquistas repudiam mesmo qualquer uso do poder do Estado pelo proletariado revolucionário e negam a sua ditadura revolucionária; 3.º) os primeiros querem o proletariado a preparar-se para a revolução utilizando o Estado moderno; os anarquistas repelem essa maneira de agir.

Nesta disputa, não é Kautsky, mas Pannekoek que representa o mar­xismo, pois foi Marx que ensinou que o proletariado não pode apoderar-se do poder pura e simplesmente no sentido de uma transição para novas mãos do velho aparelho do Estado, mas que deve quebrar, demolir esse aparelho e substituí-lo por um novo.

Kautsky abandona o marxismo pelo oportunismo; de facto, para ele não se trata de destruir a máquina do Estado, coisa completamente inadmissível para os oportunistas, mas de abrir-lhes uma brecha que permita interpretar a "conquista" do poder como uma simples aquisição da maioria.

Para dissimular essa deformação do marxismo, Kautsky, como bom es­colástico, faz uma citação de Marx. Em 1850, Marx falava da necessidade de uma "forte centralização do poder nas mãos do Estado". E Kautsky triunfante pergunta: não quer Pannekoek destruir a "centralização"?

Eis o passe de mágica similar à identificação do marxismo ao proudho­nismo feita por Bernstein, a propósito do federalismo e do centralismo.

A "citação" de Kautsky vem como um cabelo na sopa. A centralização é possível tanto com a velha como com a nova máquina de Estado. Se os ope­rários unirem, voluntariamente, as suas forças armadas, isto será centralismo, mas assentando sobre a "destruição completa" do Estado centralista, do seu exército permanente, da polícia, da burocracia. Kautsky procede, na verdade, desonestamente, ignorando os argumentos bem conhecidos de Marx e de Engels sobre a Comuna, para ir buscar uma citação que nada tem a ver com a questão.

…”Será que ele quer suprimir as funções governamentais dos funcioná­rios? – continua Kautsky – Mas nós não dispensamos os funcionários nem no partido, nem nos sindicatos, sem falar das administrações. O nosso programa reclama, não a supressão dos funcionários de Estado, mas a sua eleição pelo povo”...”Trata-se agora, entre nós, não de saber que forma tomará o aparelho administrativo do "Estado futuro", mas de saber se a nossa luta política des­truirá (literalmente dissolver – auflöst) o poder do Estado antes de o con­quistarmos (salientado por Kaustky). Qual o ministério que, com os seus funcionários, poderia ser destruído?” Ele enumera os ministérios da Educa­ção, da Justiça, das Finanças, da Guerra. “Não, nenhum desses ministérios será suprimido pela nossa luta política contra o governo... Repito, para evitar mal entendidos: não se trata, de saber que forma dará ao "Estado futuro" a social-democracia vitoriosa, mas de saber como a nossa oposição transfor­mará o Estado actual”. (Pág. 725)

É um truque óbvio. Pannekoek tratava da revolução. O título do artigo e as passagens citadas diziam-no claramente. Ao saltar para a questão da "oposição", Kautsky substitui o ponto de vista revolucionário pelo ponto de vista oportunista. O seu raciocínio reduz-se a isto: agora somos oposição, o que seremos depois da conquista do poder, logo falaremos. A revolução de­saparece! E isto é exactamente o que precisavam os oportunistas.

Não se trata nem de oposição nem de luta política em geral, mas da revolução. A revolução consiste em que o proletariado destrói o "aparelho ad­ministrativo" e todo o aparelho de Estado, para substituí-lo por um novo, isto é, pelos operários armados. Kautsky demonstra uma "veneração supers­tici­osa" pelos "ministérios", mas por que razão não poderiam ser substituídos, por exemplo, por comissões de especialistas junto aos Sovietes soberanos e omnipotentes de deputados operários e soldados?

O essencial não é que os "ministérios" subsistam, ou que sejam substi­tuídos por "comissões de especialistas" ou de qualquer outro modo, pois isso é irrelevante. A questão essencial é saber se a velha máquina estatal (ligada à burguesia por milhares de fios, emperrada e rotineira) será conservada ou será destruída e substituída por uma nova. A revolução não consiste na nova classe dominante governar com a velha máquina de Estado, mas no facto de, após quebrar essa máquina, comandar e governar com uma nova máquina – eis a ideia básica do marxismo que Kautsky insulta ou que não compreendeu em absoluto.

A sua objecção a respeito dos funcionários prova, claramente, que não compreendeu nem as lições da Comuna nem a doutrina de Marx. "Nós não dispensamos os funcionários nem no partido, nem nos sindicatos”...

Nós não dispensamos os funcionários em regime capitalista, sob a do­minação da burguesia. O proletariado vive oprimido e as massas trabalha­doras são escravizadas pelo capitalismo. Sob o capitalismo a democracia é acanhada, truncada, desfigurada pelas condições de pobreza, pela escravi­dão assalariada e pela miséria das massas. Eis a única razão por que, nas nossas organizações políticas e sindicais, os funcionários são corrompidos (ou, mais precisamente, têm tendência a sê-lo) pelo meio capitalista e tendem a transformar-se em burocratas, isto é, em privilegiados separados do povo e colocando-se acima dele.

Eis a essência da burocratismo, e, enquanto os capitalistas não forem expropriados, enquanto a burguesia não for derrubada, será inevitável uma certa "burocratização" dos próprios funcionários do proletariado.

Segundo Kautsky, uma vez que funcionários eleitos permanecerão sob o socialismo, portanto, haverão funcionários, logo a burocracia subsistirá! Nada mais falso. Pelo exemplo da Comuna, Marx mostrou que, no regime socia­lista, os detentores de funções públicas deixam de ser "burocratas", "funcio­nários", e isto à medida que se estabelece, além da eleição, a sua amovibili­dade em qualquer momento, à medida que se reduzem os seus vencimentos ao nível do salário médio de um operário e até mesmo que se substitui a ins­tituição parlamentar por uma instituição “laboriosa, ao mesmo tempo legisla­tiva e executiva ".

No fundo, toda a argumentação de Kautsky contra Pannekoek, e parti­cularmente o seu admirável argumento sobre a necessidade de funcionários nas organizações sindicais e no Partido, se reduz a uma repetição dos velhos "argumentos" de Bernstein contra o marxismo. No seu livro renegado “As Premissas do Socialismo”, Bernstein declara guerra à ideia de democracia "primitiva", que ele chama de "democratismo doutrinário": mandatos imperati­vos, funcionários não remunerados, impotência da representação central, etc.. Para provar a inconsistência do democratismo "primitivo", Bernstein in­voca a experiência das trade-unions inglesas, interpretada pelo casal Webb. Setenta anos de desenvolvimento com "plena liberdade", diz ele (pág. 137, edição alemã), convenceram as trade-unions da ineficácia do democratismo primitivo e substituíram-no pelo usual, ou seja, pelo parlamentarismo combi­nado com a burocracia.

Na realidade, as trade-unions não se desenvolveram “em plena liber­dade", mas em plena escravidão capitalista sob a qual, evidentemente, “nada se pode fazer” sem fazer uma série de concessões ao mal prevalecente, à violência, à injustiça, à exclusão dos pobres da gestão “superior” dos assun­tos. Sob o socialismo, muitos aspectos da democracia "primitiva" hão-de ne­cessariamente reviver, pois que, pela primeira vez na história das socieda­des civilizadas, a massa da população elevar-se-á até à participação inde­pen­dente, não só nos votos e nas eleições, mas também na administração quoti­diana. Sob o socialismo, todos governarão por sua vez, e prontamente se habituarão a que ninguém governe.

Com o seu génio crítico e analítico, Marx viu, nas resoluções práticas da Comuna, a revolução que os oportunistas, por cobardia, tanto temem e se recusam a aceitar, porque lhes repugna romper definitivamente com a bur­guesia, e que os anarquistas se negam igualmente a ver, seja porque se apressam demais, seja porque não compreendem as condições das grandes mudanças sociais em geral. "Não se deve nem sonhar em demolir a velha máquina do Estado pois não se pode prescindir nem ministérios nem de fun­cionários" – eis como raciocina o oportunista, penetrado de espírito filisteu e que, longe de crer na revolução e no seu génio criador, tem dela um medo mortal (como os nossos mencheviques e socialistas-revolucionários).

" se deve pensar em destruir a velha máquina de Estado, é inútil que­rer sondar as lições concretas das revoluções proletárias passadas e analisar por quê e como substituir o que cai em ruínas" – assim raciocina o anarquista (claro, o melhor dos anarquistas, não um seguidor da burguesia partidário de Kropotkine & Cia.); consequentemente o anarquista chega à táctica do de­sespero em vez de chegar ao trabalho revolucionário concreto, ambicioso e inexorável, que tem em conta as condições práticas do movimento de massas.

Marx ensina-nos a evitar esses dois erros, ensina-nos a destruir ousa­damente toda a velha máquina do Estado e, ao mesmo tempo, a colocar a questão concreta: em poucas semanas, a Comuna iniciou a construção da nova máquina de Estado proletária de uma forma tal que as medidas toma­das realizaram uma democracia mais perfeita e suprimiram a burocracia. Aprendamos, pois, com os comunardos, a audácia revolucionária, vejamos nas suas medidas práticas um esboço das medidas realmente urgentes e imediatamente realizáveis, e, seguindo esse caminho, chegaremos à destrui­ção completa da burocracia.

A possibilidade de tal destruição é assegurada pelo facto de que o socia­lismo reduzirá o dia de trabalho, elevará as massas a uma nova vida e eleva­rá a maioria da população para condições que permitem que todos, sem excepção, desempenhem a "função pública", o que dará como resultado a extinção completa do Estado em geral.

…”O papel da greve geral – continua Kautsky – não pode consistir em destruir o poder do Estado, mas unicamente em levar o governo a conces­sões sobre uma determinada questão ou em substituir um governo hostil ao proletariado por outro disposto a fazer-lhe concessões (entgegenkom­mende)... Mas nunca, em caso algum, isso” (ou seja, a vitória do proletariado sobre um governo hostil) “pode levar à destruição do poder do Estado; mas apenas resultar num certo deslocamento (Verscbiebung) das relações de poder no interior do poder do Estado... O nosso objectivo continua a ser, como no passado, a conquista do poder do Estado, ganhando uma maioria no parlamento e fazendo do parlamento o dono do governo” (pág. 726, 727, 732).

Eis o oportunismo mais puro e mais vulgar, a renúncia de facto à revolu­ção embora aceitando-a em palavras. O pensamento de Kautsky não vai além de um "governo disposto a fazer concessões ao proletariado" – um grande passo atrás comparativamente a 1847, quando o “Manifesto do Par­tido Comunista” proclamava "a elevação do proletariado a classe dominante ".

Kautsky só vai atingir a sua amada "unidade" com os Scheidemann, os Plekhanov, os Vandervelde, todos unânimes em lutar por um governo “dis­posto a fazer concessões ao proletariado"

Quanto a nós, romperemos com esses traidores ao socialismo e lutare­mos pela destruição do velho aparelho de Estado, a fim de que o proletariado armado se torne, ele próprio, governo. Isto são “duas coisas muito distintas”.

Kautsky ficará na amável companhia de Legien e David, Plekhanov, Po­tressov, Tseretelli e Tchernov, todos partidários da "mudança das relações de poder no interior do Estado", e de "ganhar uma maioria no parlamento e fazer do parlamento o dono do governo",– nobre ideal perfeita­mente aceitável para oportunistas que se mantenham inteiramente no quadro da república parlamentar burguesa.

Quanto a nós, romperemos com os oportunistas; e o proletariado cons­ciente estará totalmente connosco na luta pela "mudança das relações de poder", mas pelo derrube da burguesia, pela destruição do parla­mentarismo burguês, para uma república democrática do tipo da Comuna ou da República dos Sovietes de deputados, operários e soldados, para uma dita­dura revolucionária do proletariado.

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O socialismo internacional contém correntes que se situam ainda mais à direita que a de Kautsky, como o “Mensário Socialista” alemão (Legien, David, Kolb e outros, incluindo os escandinavos Stauning e Branting), os jaurèsistas e Vandervelde na França e na Bélgica, Turati, Treves e os outros representantes da direita do Partido Socialista italiano, os fabianos e os “independentes” (o “Independent Labour Party”, que, na realidade, sempre de­pendeu dos liberais) na Inglaterra, etc. Estes cavalheiros, que desempe­nham um papel considerável e muitas vezes preponderante na acção parla­mentar e na imprensa de partido, rejeitam abertamente a ditadura do proleta­riado e não disfarçam o seu oportunismo. Para esses senhores, a “ditadura” do proletariado é o "contrário" de democracia!! Na essência, em nada de sério se distin­guem dos democratas pequeno-burgueses.

Tendo isto em conta, podemos concluir que a II Internacional, na imensa maioria de seus representantes oficiais, caiu completamente no oportunismo. Não só esqueceu a experiência da Comuna como a deturpou. Longe de su­gerir às massas operárias que se aproxima o mo­mento em que elas deverão quebrar a velha máquina do Estado, substituí-la por uma nova e fazer da sua dominação política a base da transformação socialista da sociedade, suge­rem-lhe precisamente o contrário, e a "con­quista do poder" têm-na apresen­tado de forma que mil brechas fiquem abertas ao oportunismo.

A deformação e o silenciamento da questão da atitude da revolução proletária em relação ao Estado não poderia deixar de desempenhar um pa­pel significativo, quando os Estados, fortalecendo o aparelho militar em re­sultado da rivalidade imperialista, se tornam monstros belicosos que exter­minam milhões de homens para decidir, entre a Inglaterra e a Alemanha, qual o capital financeiro que dominará o mundo.[1]

 

Epílogo da Primeira Edição

Esta brochura foi escrita em Agosto e Setembro de 1917. Eu traçara, também, o plano de um capítulo VII: "A experiência das revoluções russas de 1905 e 1917". Mas, para além do título, não tive tempo para escrever nem mais uma linha: fiquei "impedido" pela crise política que precipitou a revolu­ção de Outubro de 1917. Só temos que nos alegrar com um "impedimento" desta espécie. Mas a redacção da segunda parte deste opúsculo ("a experi­ência das revoluções russas de 1905 e 1917") provavelmente terá de ser adiada por muito tempo: é mais útil e mais agradável passar pela "experiência da revolução" do que escrever sobre ela.

O Autor.

Petrogrado, 30 de Novembro de 1917



[1] O manuscrito prossegue assim:</span>

CAPÍTULO VII

A EXPERIÊNCIA DAS REVOLUÇÕES RUSSAS DE 1905 E 1917

O tema indicado no título deste capítulo é tão vasto que se poderia e deveria escrever vários volumes sobre ele. Neste opúsculo ir-nos-emos limitar, evidentemente, a extrair as mais importantes lições da experiência do proletariado no que respeita directamente às tarefas, durante a Revolução, contra o poder do Estado”. (Aqui, o manuscrito interrompe-se).  


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Quinta-feira, 30 de Dezembro de 2010
O Estado e a Revolução - Cap. V Fundamentos Económicos do Desvanecimento do Estado

(início)

A explicação mais ampla desta questão é dada por Marx na “Crítica do Programa de Gotha” (carta a Wilhelm Bracke, de 5 de Maio de 1875, publicada apenas em 1891 na “Neue Zeit”, vol. lX, fasc. 1, e de que apareceu uma edição russa). A parte polémica dessa obra notável, que contém a crítica do lassallianismo, obscureceu a parte positiva, ou seja, a análise da relação entre o desenvolvimento do comunismo e o desvanecimento do Estado.

 

1. A Abordagem por Marx desta Questão

Comparando superficialmente a carta de Marx a Bracke, de 5 de Maio de 1875, com a carta de Engels a Bebel, de 28 de Março do mesmo ano, anteriormente examinada, poderia parecer que Marx era muito mais "estatista" que Engels e que a diferença de ideias entre os dois sobre o Estado seria muito importante.

Engels sugere a Bebel que deixe de tagarelar a respeito do Estado e que bana completamente do programa a palavra "Estado", para substituí-la pela palavra "Comuna"; Engels chega a dizer que a Comuna já não é um Estado no sentido próprio da palavra. Ao contrário, Marx fala do "Estado na sociedade comunista futura" parecendo admitir assim a necessidade do Estado, mesmo sob o comunismo.

Mas esta visão é um erro profundo. Um estudo mais atento mostra que as ideias de Marx e de Engels a respeito do Estado e do seu desvanecimento são absolutamente idênticas, e que Marx, nessa expressão, se refere precisamente a um Estado em desvanecimento.

Não se trata, evidentemente, de marcar um prazo para a conclusão futura desse "desvanecimento" tanto mais que constitui um processo de longa duração. A divergência aparente entre Marx e Engels explica-se pela diferença dos assuntos tratados e dos objectivos em mira. Engels propõe-se demonstrar a Bebel, de modo palpável e incisivo, em traços largos, todo o absurdo dos preconceitos correntes (partilhados em elevado grau por Lassalle) a respeito do Estado. Marx apenas toca de passagem nessa questão e interessa-se por outro assunto: o desenvolvimento da sociedade comunista.

Toda a teoria de Marx é a teoria da evolução – na sua forma mais lógica, mais completa, mais reflectida e mais substancial – aplicada ao capitalismo contemporâneo. Assim Marx tinha de considerar a aplicação dessa teoria tanto à falência iminente do capitalismo como ao futuro desenvolvimento do comunismo futuro.

Em que facto pode basear-se a colocação da problema do futuro desenvolvimento do comunismo futuro?

No facto de que o comunismo nasce do capitalismo por via do desenvolvimento histórico, de que é obra de uma força social engendrada pelo capitalismo. Marx não se deixa seduzir pela utopia, não procura inutilmente adivinhar o que não se pode saber. Põe a questão do comunismo como um naturalista poria a do desenvolvimento de uma nova espécie biológica, uma vez conhecidas a sua origem e a linha específica do seu desenvolvimento.

Marx começa por desfazer a confusão trazida pelo programa de Gotha na questão das relações entre o Estado e a sociedade.

…“A sociedade actual" – escreve ele – “é a sociedade capitalista, que existe em todos os países civilizados, mais ou menos expurgada de elementos medievais, mais ou menos modificada pela evolução histórica particular a cada país, mais ou menos desenvolvida. O ‘Estado actual’, pelo contrário, muda com cada fronteira. No império prusso-alemão, é diverso do que é na Suíça, e na Inglaterra, diverso do que é nos Estados Unidos. O "Estado actual" é, pois, uma ficção.

No entanto, a despeito da diversidade de formas, os diferentes Estados dos diferentes países civilizados têm todos, em comum, o facto de repousarem no campo da moderna sociedade burguesa, diferenciando-se apenas pelo seu maior ou menor desenvolvimento, do ponto de vista capitalista. Certos traços essenciais são-lhes por isso comuns. É nesse sentido que se pode falar em ‘Estado actual’ em contraste com o futuro, no qual a sociedade burguesa, que, actualmente, lhe serve de raiz, cessa de existir.

Vem em seguida a questão de saber que transformação sofrerá o Estado numa sociedade comunista. Por outras palavras: que funções sociais se manterão análogas às funções do Estado? Essa questão só pode ser resolvida pela ciência, e não é associando de mil maneiras diferentes a palavra ‘povo’ com a palavra ‘Estado’ que se fará avançar o problema uma polegada que seja”…

Ridicularizando, assim, toda a conversa sobre o "Estado popular", Marx precisa a questão e, de algum modo, previne que não é possível resolvê-la cientificamente senão sobre evidências científicas solidamente estabelecidas.

O primeiro ponto solidamente estabelecido pela teoria da evolução e, mais geralmente, pela ciência – ponto esquecido pelos utópicos e, nos nossos dias, pelos oportunistas que a revolução socialista amedronta – é que, entre o capitalismo e o comunismo, deverá intercalar-se, necessariamente, um período de transição histórica.

 

2. A Transição do Capitalismo para o Comunismo

…”Entre a sociedade capitalista e a sociedade comunista” – continua Marx – “situa-se o período de transformação revolucionária da primeira na segunda. Este período corresponde a um período de transição política, em que o Estado não pode ser outra coisa senão a ditadura revolucionária do proletariado...

Essa conclusão de Marx repousa sobre a análise do papel desempenhado pelo proletariado na sociedade capitalista, dos dados sobre a evolução dessa sociedade e da incompatibilidade de interesses entre o proletariado e a burguesia.

Antigamente, a questão era posta assim: para conseguir emancipar-se, o proletariado deve derrubar a burguesia, apoderar-se do poder político e estabelecer a sua ditadura revolucionária.

Agora, a questão põe-se de modo um pouco diferente: a passagem da sociedade capitalista para a sociedade comunista é impossível sem um "período de transição política" em que o Estado não pode ser outra coisa senão a ditadura revolucionária do proletariado.

Quais as relações dessa ditadura com a democracia? Já vimos que o “Manifesto do Partido Comunista” põe apenas lado a lado os conceitos, "organização do proletariado em classe dominante" e "conquista da democracia". Inspirando-nos em tudo o que precede, podemos determinar de forma mais precisa as transformações da democracia durante a transição do capitalismo para o comunismo.

Numa sociedade capitalista, no caso mais favorável do seu desenvolvimento, temos uma democracia mais ou menos completa na República democrática. Mas, essa democracia está sempre confinada aos estreitos limites da exploração capitalista e, consequentemente, ela nunca passa de uma democracia para uma minoria, para as classes possuidoras, para os ricos. A liberdade na sociedade capitalista permanece o que sempre foi desde as Repúblicas da Grécia antiga: a liberdade dos senhores de escravos. Os escravos assalariados de hoje, em consequência da exploração capitalista, vivem por tal forma esmagados pelas necessidades e pela miséria, que “não têm interesse na democracia" e “na política" e, no curso normal e pacífico das coisas, a maioria da população é excluída da vida política e social.

O exemplo da Alemanha confirma-o com rara evidência. Com efeito, a legalidade constitucional manteve-se com uma constância e uma duração surpreendentes durante perto de meio século (1871/1914), e a social-democracia, durante esse período, soube, muito mais que em qualquer outro lugar "tirar proveito dessa legalidade” e organizar em partido politico um número de trabalhadores muito mais considerável que em qualquer outra parte do mundo.

E qual é, nesse país, a proporção de escravos assalariados politicamente conscientes e activos, proporção que é a mais elevada numa sociedade capitalista? De quinze milhões de operários assalariados só um milhão pertence ao Partido social-democrata! De quinze milhões só três milhões são sindicalizados!

A democracia para uma ínfima minoria, a democracia para os ricos – tal é a democracia da sociedade capitalista. Se observarmos mais de perto o seu mecanismo, veremos em toda parte e nos "menores", aparentemente menores, detalhes da legislação eleitoral (censo domiciliário, exclusão das mulheres, etc.), assim como no funcionamento das assembleias representativas, nos obstáculos reais ao direito de reunião (os edifícios públicos não são para os "maltrapilhos"), na estrutura puramente capitalista da imprensa diária, etc., etc., restrições à democracia. Estas restrições, excepções, exclusões e obstáculos para os pobres, parecem insignificantes, principalmente para aqueles que nunca conheceram a necessidade e que nunca conviveram com as classes oprimidas nem conheceram de perto a sua vida (e neste caso estão nove décimos, senão noventa e nove centésimos dos publicistas e dos políticos burgueses); mas, totalizadas, essas restrições eliminam os pobres da política e da participação activa na democracia.

Marx captou magnificamente este traço essencial da democracia capitalista, ao dizer, na sua análise da experiência da Comuna: os oprimidos são autorizados, a decidir, uma vez a cada poucos anos, qual, entre os membros da classe dominante, será o que, no parlamento, os representará e esmagará!

Mas, a evolução progressiva desta democracia capitalista, – inevitavelmente mesquinha, sorrateira na exclusão dos pobres e, portanto, intrinsecamente hipócrita e enganosa, – não leva, de forma simples, directa e tranquila "a uma democracia cada vez mais perfeita", como nos querem fazer crer os professores liberais e os oportunistas pequeno-burgueses. Não; o progresso, isto é, a evolução para o comunismo, opera-se através da ditadura do proletariado, e não pode ser de outro modo, pois não há outro meio senão a ditadura, outro agente senão o proletariado para quebrar a resistência dos capitalistas exploradores.

Mas a ditadura do proletariado, isto é, a organização de vanguarda dos oprimidos em classe dominante para o esmagamento dos opressores, não pode limitar-se, pura e simplesmente, a um alargamento da democracia. Ao mesmo tempo que produz uma considerável ampliação da democracia, que se torna pela primeira vez a democracia dos pobres e do povo, e não apenas para os ricos, a ditadura do proletariado traz uma série de restrições à liberdade dos opressores, dos exploradores, dos capitalistas. A sua actividade deve ser reprimida para libertar a humanidade da escravidão assalariada e a sua resistência deve ser quebrada pela força; ora, é claro que onde há repressão e onde há violência, não há liberdade nem democracia.

Engels disse-o perfeitamente, na sua carta a Bebel, ao escrever, como o leitor se recorda: "o proletariado usa o Estado, não no interesse da liberdade, mas sim para triunfar sobre o adversário, momento em que se poderá falar em liberdade, pois o Estado como tal deixará de existir.”

Democracia para a imensa maioria do povo e repressão pela força da actividade dos exploradores, dos opressores do povo, por outras palavras, a sua exclusão da democracia – eis a mudança da democracia durante a transição do capitalismo ao comunismo.

Só na sociedade comunista, quando a resistência dos capitalistas estiver perfeitamente quebrada, quando os capitalistas tiverem desaparecido e já não houver classes, (isto é, quando não houver mais distinções entre os membros da sociedade em relação aos meios sociais de produção), então é que "o Estado deixará de existir e se poderá falar de liberdade". Só então se tornará possível e será realizada uma democracia verdadeiramente completa sem qualquer excepção. Só então a democracia começará a desvanecer pela simples circunstância de que, desembaraçados da escravidão capitalista, dos horrores, da selvajaria, da insânia, da ignomínia sem nome da exploração capitalista, os indivíduos se habituarão pouco a pouco a observar as regras elementares da vida social, de todos conhecidas, repetidas e há milénios reproduzidas, sem violência, sem constrangimento, sem subordinação, sem esse aparelho especial de coação que se chama Estado.

A expressão "o Estado desvanece" é muito feliz por que exprime ao mesmo tempo a lentidão do processo e a sua espontaneidade. Só a força do hábito pode produzir tal efeito, e sem dúvida há-de produzi-lo, como é provado pelos milhões de vezes que se pode observar a facilidade com que os homens se habituam a cumprir as regras indispensáveis da vida social, quando não há exploração, nem o que desperte indignação, evoque o protesto e a revolta, e crie a necessidade de repressão.

Em resumo: a sociedade capitalista não nos oferece senão uma democracia mutilada, miserável, falsificada, uma democracia só para os ricos, para a minoria. A ditadura do proletariado, o período de transição para o comunismo, instituirá pela primeira vez uma democracia para o povo, para a maioria, esmagando ao mesmo tempo, impiedosamente, a minoria de exploradores. Só o comunismo está em condições de realizar uma democracia realmente perfeita, e, quanto mais perfeita for, mais depressa se tornará supérflua e por si mesma definhará.

Por outras palavras: no capitalismo, temos o Estado no sentido próprio da palavra, isto é, uma máquina especialmente destinada ao esmagamento de uma classe por outra, da maioria pela minoria. É claro que tal só é possível com uma repressão sistemática, de crueldade e ferocidade extremas, da maioria de explorados por uma minoria de exploradores, o que exige o mar de sangue que a humanidade atravessa no seu caminhar em estado de escravidão, servidão e salariado.

Seguidamente, na transição do capitalismo para o comunismo, a repressão é ainda necessária, mas da minoria de exploradores pela maioria de explorados. Um aparelho especial de repressão, um "Estado", é ainda necessário, mas um Estado transitório, já não um Estado propriamente dito, visto que o esmagamento da minoria de exploradores pela maioria dos escravos assalariados de ontem é comparativamente tão fácil, simples e natural, que custará à humanidade muito menos sangue do que a repressão das revoltas de escravos, de servos e de operários assalariados. E é compatível com a expansão da democracia à maioria esmagadora da população que comece a desaparecer a necessidade de um aparelho especial de coação. Os exploradores não estão, naturalmente, em condições de oprimir o povo sem disporem de um aparelho especial, muito complexo, mas o povo pode coagir os exploradores sem “aparelho especial”, apenas com organizações de massas armadas (tais como os Sovietes de deputados operários e soldados – diremos nós, antecipando).

Finalmente, só o comunismo torna o Estado inteiramente supérfluo, porque não há ninguém a ser coagido – “ninguém” no sentido de classe, no sentido de luta sistemática contra uma certa parte da população. Não somos utópicos e não negamos a possibilidade e a fatalidade de excessos individuais, como não negamos a necessidade de reprimir esses excessos. Mas para isso, por um lado, não há necessidade de um aparelho especial de repressão; o povo armado, por si mesmo, se encarregará dessa tarefa, tão simplesmente, tão facilmente, como uma multidão civilizada, mesmo na sociedade actual, aparta uma briga ou evita um estupro. E por outro, sabemos que a principal causa dos excessos que constituem as infracções às regras da vida social é a exploração das massas, condenadas à miséria e às privações. Uma vez suprimida essa causa principal, os excessos começarão infalivelmente a "desvanecer". Não sabemos com que presteza, nem com que gradação, mas sabemos que irão desvanecer. E o Estado desvanecerá com eles.

Marx, sem cair na utopia, indicou mais detalhadamente o que, agora, é possível definir sobre esse futuro: a diferença entre as fases (níveis, etapas), uma inferior e outra superior, da sociedade comunista.

 

3. A Primeira Fase da Sociedade Comunista

Na “Crítica do Programa de Gotha”, Marx refuta detalhadamente a ideia de Lassalle, segundo a qual o operário, sob o regime socialista, receberá o produto "intacto", o "produto integral" do seu trabalho. Marx demonstra que, da totalidade do produto social, é preciso deduzir um fundo de reserva, financiar a ampliação da produção, compensar o “desgaste” das máquinas, etc., e, ainda, de um fundo de bens para os custos de administração, das escolas, dos hospitais, dos lares de velhos, etc.

Em lugar da fórmula imprecisa, obscura e geral de Lassalle ("dar ao operário o produto integral do seu trabalho"), Marx faz o cálculo sóbrio do que uma sociedade socialista terá exactamente de gerir. Ele faz a análise concreta das condições de vida numa sociedade liberta do capitalismo, e expressa-se assim:

“Do que se trata aqui” (quando se analisa o programa do Partido dos Trabalhadores) “ não é de uma sociedade comunista desenvolvida na base que lhe é própria, mas, ao contrário, da sociedade tal como surge da sociedade capitalista e que, por conseguinte, em todos os aspectos, económico, moral e intelectual, está ainda marcada pela antiga sociedade de cujo ventre emerge.”

É esta sociedade comunista, que acaba de nascer do ventre do capitalismo, marcada por todos os estigmas da velha sociedade, que constitui para Marx a "primeira" fase, a fase inferior do comunismo.

Os meios de produção deixam de ser, nesse momento, propriedade privada de indivíduos. Passam a pertencer à sociedade inteira. Cada membro da sociedade executa uma certa parte do trabalho socialmente necessário e recebe um certificado constatando que efectuou essa certa quantidade de trabalho. Com esse certificado, ele recebe, nos armazéns públicos, a quantidade correspondente de produtos. Feito o desconto da quantidade de trabalho destinada ao fundo social, cada operário recebe da sociedade tanto quanto lhe deu.

Reina uma "igualdade" aparente.

Mas, quando Lassalle se refere a esta ordem social (habitualmente chamada socialismo e que Marx chama de primeira fase do comunismo), e diz que há nela uma "justa distribuição" porque existe um "direito igual aos produtos do trabalho", ele engana-se e Marx explica porquê.

“Direito igual" – dizia Marx – é o que, realmente, temos aqui, mas é ainda um "direito burguês", o qual, como todo o direito, pressupõe desigualdade. O direito consiste na aplicação de uma regra única a diferentes pessoas, que, de facto, não são idênticas nem iguais e, por consequência, o "direito igual" equivale a uma violação da igualdade e a uma injustiça. Com efeito, cada um recebe, por uma parte igual de trabalho social, uma parte igual da produção social (fora as deduções acima mencionadas).

Ora, os indivíduos não são iguais: um é mais forte, outro mais fraco; um é casado, outro não; um tem mais filhos, outro menos, etc.

…”Com um desempenho igual no trabalho” – conclui Marx – “e, por consequência, com igualdade na repartição do fundo social de consumo, um recebe, efectivamente, mais do que os outros, um será mais rico do que os outros, etc. Para evitar todas essas dificuldades o direito deveria ser, não igual, mas desigual”…

A primeira fase do comunismo ainda não pode, pois, realizar a justiça e a igualdade: subsistem as diferenças de riqueza, diferenças injustas; mas, o que não será possível subsistir é a exploração do homem pelo homem, porque será impossível alguém apoderar-se dos meios de produção, das fábricas, das máquinas, da terra, ou outros, como propriedade privada. Destruindo a fórmula confusa e pequeno-burguesa de Lassalle, sobre a "igualdade" e a "justiça" em geral, Marx mostra o curso do desenvolvimento da sociedade comunista, forçada, no início, a destruir apenas a "injustiça" da apropriação privada dos meios de produção, mas incapaz de destruir, ao mesmo tempo, a injustiça que consiste na distribuição dos “bens de consumo conforme o trabalho” (e não conforme as necessidades).

Os economistas vulgares, e entre eles os professores burgueses, inclusive o "nosso" Tugan, acusam continuamente os socialistas de se esquecerem da desigualdade dos homens e "sonharem" com a supressão dessa desigualdade. Mas essas censuras, como se vê, só mostram a extrema ignorância dos ideólogos burgueses.

Não só Marx leva em conta, escrupulosamente, essa desigualdade inevitável, como ainda tem em conta o facto de a conversão dos meios de produção em propriedade comum da sociedade (o "socialismo", no sentido tradicional da palavra) não suprime, por si só, os vícios de distribuição e de desigualdade do "direito burguês", que continua a predominar enquanto os produtos forem distribuidos "conforme o trabalho".

…”Mas estes defeitos – continua Marx – são inevitáveis na primeira fase da sociedade comunista, tal como sai, depois de um longo e doloroso parto, da sociedade capitalista. O direito não pode nunca estar num nível mais elevado do que a estrutura económica e o associado desenvolvimento cultural da sociedade”...

Assim, na primeira fase da sociedade comunista (normalmente chamada socialismo), o "direito burguês" não é totalmente abolido, só o é parcialmente na medida em que a revolução económica foi realizada, isto é, apenas no que respeita aos meios de produção. O "direito burguês" reconhece a propriedade privada dos indivíduos. O socialismo faz dela propriedade comum. É nesta medida – e somente nesta medida – que o "direito burguês" é abolido.

No entanto, ele subsiste na outra sua função, subsiste como um regulador (determinante) da distribuição dos bens e do trabalho entre os membros da sociedade. "Quem não trabalha, não come", este princípio socialista está realizado; "para soma igual de trabalho, soma igual de produtos" – também este princípio socialista está realizado. Mas este ainda não é o comunismo que, ao contrário do "direito burguês", a pessoas desiguais e em troca de quantidades desiguais (realmente desiguais) de trabalho, atribui quantidades iguais de produtos.

Este é um "defeito", diz Marx, mas é inevitável na primeira fase do comunismo, pois, a não ser que se caia na utopia, não se pode pensar que, mal o capitalismo seja derrubado, os homens fiquem, de um dia para o outro, a saber trabalhar para a sociedade sem quaisquer normas jurídicas. A abolição do capitalismo não cria, imediatamente, as premissas económicas para tal mudança.

Ora, não há outras normas senão as do "direito burguês". É por isso que subsiste a necessidade de um Estado que, embora salvaguardando a propriedade comum dos meios de produção, conserva a igualdade do trabalho e a igualdade da distribuição de bens.

O Estado morre na medida em que não há mais capitalistas, em que não há classes e em que, por conseguinte, não há qualquer classe a reprimir.

Mas, o Estado ainda não sucumbiu, pois ainda resta o "direito burguês" que consagra a desigualdade de facto. Para que o Estado desvaneça completamente, é necessário o advento do comunismo completo.

 

4. A Fase Superior da Sociedade Comunista

Marx continua:

.,,”Numa fase superior da sociedade comunista, quando tiver desaparecido a escravizante subordinação dos indivíduos à divisão do trabalho; e, com ela, tiverem desaparecido os antagonismos entre o trabalho manual e o trabalho intelectual; quando o trabalho se tiver tornado não só um meio de vida, mas também a primeira necessidade da existência; quando, com o desenvolvimento dos indivíduos em todos os sentidos, as forças produtivas forem crescendo, e todas as fontes da riqueza pública jorrarem abundantemente, só então, o estreito horizonte do direito burguês será completamente ultrapassado e a sociedade poderá inscrever na sua bandeira: «De cada um conforme as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades» ”.

Agora é que podemos apreciar toda a justeza das observações de Engels quando cobre de impiedosos sarcasmos o absurdo emparelhamento das palavras "liberdade" e "Estado". Enquanto existir Estado, não há liberdade; quando reinar a liberdade, não haverá Estado.

A condição económica da extinção completa do Estado é o comunismo elevado a tal grau de desenvolvimento que toda oposição entre o trabalho intelectual e o trabalho físico desaparece, desaparecendo, portanto, uma das principais fontes de desigualdade social contemporânea, fonte que a simples conversão dos meios de produção em propriedade social, a simples expropriação dos capitalistas é incapaz de eliminar imediatamente.

Esta expropriação tornará possível um enorme desenvolvimento das forças produtivas. Vendo, desde já, quanto o capitalismo entrava esse desenvolvimento, e o progresso que se poderia alcançar com base nas tecnologias modernas já conhecidas, podemos dizer, com plena confiança, que a expropriação dos capitalistas originará inevitavelmente um prodigioso impulso às forças produtivas da sociedade humana. Mas, qual será o ritmo desse movimento, em que momento romperá ele com a divisão do trabalho, abolirá a oposição entre o trabalho intelectual e o trabalho físico e fará do trabalho "a primeira necessidade da existência", não sabemos nem podemos saber.

Assim, não temos o direito de falar senão da inevitabilidade do desvanecimento do Estado, acentuando que a duração desse processo depende do ritmo do desenvolvimento da fase superior do comunismo, deixando em aberto a questão do momento e das formas específicas desse desvanecimento pois não temos dados que nos permitam resolvê-la.

O Estado poderá desaparecer completamente quando a sociedade tiver realizado o princípio: "de cada um conforme as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades", isto é, quando se estiver tão habituado a observar as regras primordiais da vida social e o trabalho se tiver tornado tão produtivo, que toda a gente trabalhará voluntariamente, de acordo com as suas capacidades. "O estreito horizonte do direito burguês” com os seus cálculos à Shylock – "por acaso, não terei trabalhado mais meia hora que o meu vizinho? O meu vizinho não terá recebido salário maior do que o meu?" – esse estreito horizonte será então ultrapassado. Na distribuição dos produtos não será necessário que a sociedade regule a parte que cabe a cada um; cada um tomará livremente "de acordo com as suas necessidades ".

Do ponto de vista burguês, é fácil chamar de "pura utopia" a um tal regime social e escarnecer malignamente dos socialistas que prometem a cada um o direito de receber da sociedade, sem qualquer controlo  do seu trabalho, tanto quanto quiser de trufas, de automóveis, de pianos, etc. É com ironias desta espécie que ainda hoje sai de apuros a maioria dos "sábios" burgueses que, com isso, só demonstram a sua ignorância e a sua defesa interesseira do capitalismo.

A sua ignorância, sim, pois que nem um só socialista se lembrou de "profetizar" o advento da fase superior do comunismo e quando os grandes teóricos do comunismo a prevêem, supõem uma produtividade do trabalho muito diferente da de hoje, assim como um homem muito diferente do que hoje é capaz de – como os seminaristas de Pornialovski – “apenas por diversão”, desperdiçar a riqueza pública e exigir o impossível.

Até essa fase "superior" do comunismo, os socialistas reclamam, da sociedade e do Estado, o controlo rigoroso do trabalho fornecido e do consumo; mas, esse controlo deve começar pela expropriação dos capitalistas e ser exercido por um Estado de operários armados e não por um Estado de burocratas.

A defesa interesseira do capitalismo pelos ideólogos burgueses (e sua camarilha, género Tseretelli, Tchernov & Cia.) consiste precisamente em substituir, por discussões e frases sobre um futuro longínquo, a questão essencial da política de hoje: a expropriação dos capitalistas, a transformação de todos os cidadãos em trabalhadores, empregados de um grande "sindicato", ou seja, o Estado, e a inteira subordinação de todo o trabalho desse sindicato a um Estado verdadeiramente democrático, o Estado dos Sovietes de Deputados Operários e Soldados.

No fundo, quando um sábio professor, e atrás dele um filisteu, e com eles Tchernov e Tseretelli, denunciam as insensatas utopias e as promessas demagógicas dos bolcheviques, e declaram impossível a "instauração" do socialismo, o que eles têm em vista é precisamente essa fase superior do comunismo, “coisa” que ninguém nunca prometeu, nem sequer alguém sonhou em "instaurar", pela razão de que isso é impossível.

E aqui chegamos à questão da distinção científica entre o socialismo e o comunismo, questão tocada por Engels na passagem precedentemente citada sobre a incorrecção do nome de "social-democrata". Politicamente, a diferença entre a primeira e a segunda fase do comunismo tornar-se-á, com o tempo, sem dúvida, considerável, mas, actualmente, em regime capitalista, seria ridículo fazer caso dela, e só alguns anarquistas o fazem (se é que ainda existem, entre os anarquistas, pessoas a quem nada ensinou a metamorfose, "Plekhanoviana", dos Kropotkine, dos Grave, dos Cornelissen e outras “estrelas” do anarquismo em social-chauvinistas ou em anarco-trincheiristas, conforme os chamou Gue, um dos poucos anarquistas que conservaram a honra e a consciência).

Mas a distinção científica entre o socialismo e o comunismo é clara. Ao que se costuma chamar socialismo, Marx chamou a "primeira" fase ou fase inferior da sociedade comunista. Na medida em que os meios de produção se tornam propriedade comum, pode aplicar-se a palavra "comunismo", não esquecendo que não é um comunismo completo. O grande mérito da exposição de Marx está na fidelidade que mantém à dialéctica materialista, à teoria da evolução, considerando que o comunismo se desenvolve a partir do capitalismo. Em lugar de escolástica, “inventora” de definições e de estéreis questões de palavras (o que é o socialismo? o que é o comunismo?), Marx traz-nos a análise do que se poderia chamar graus da maturidade económica do comunismo. Na sua primeira fase, no seu primeiro estágio, o comunismo não pode estar maduro economicamente, completamente livre das tradições ou dos vestígios do capitalismo. Daí, o facto interessante de o comunismo, na sua primeira fase, manter o "estreito horizonte do direito burguês". É claro, o direito burguês, no que concerne à distribuição de bens de consumo, pressupõe, evidentemente, um Estado burguês, pois o direito não é nada sem um aparelho capaz de impor a observação de suas leis.

Acontece que, durante um certo tempo sob o comunismo, não só o direito burguês subsiste, como também subsiste o Estado burguês – sem burguesia!

Isto pode parecer um paradoxo ou, simplesmente, um enigma dialéctico, de que o marxismo é frequentemente acusado por pessoas que nunca se deram ao trabalho de estudar, por pouco que fosse, a sua substância extraordinariamente profunda.

Mas, a vida mostra a cada passo, na natureza e na sociedade, que os vestígios do velho subsistem no novo. Não foi arbitrariamente que Marx introduziu um pouco de "direito burguês" no comunismo; ele não fez mais do que constatar o que, económica e politicamente, é inevitável numa sociedade saída do ventre do capitalismo.

A democracia tem uma enorme importância na luta da classe operária pela sua emancipação. Mas a democracia não é o limite que não pode ser ultrapassado, e sim um passo no caminho do feudalismo ao capitalismo e do capitalismo ao comunismo.

Democracia significa igualdade. A grande importância da luta do proletariado pela igualdade e da igualdade como um lema, é evidente se interpretada no sentido da abolição das classes. Mas, democracia quer dizer apenas igualdade formal. E, logo após a realização da igualdade de todos os membros da sociedade em relação à propriedade dos meios de produção, isto é, a igualdade do trabalho e dos salários, erguer-se-á, fatalmente, perante a humanidade, o problema da passagem da igualdade formal à igualdade real baseada no princípio: "de cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades". Quais as etapas, quais as medidas concretas pelas quais a humanidade atingirá esse objectivo supremo, não sabemos nem podemos saber. Mas, o que importa é perceber a imensa mentira contida na ideia burguesa de que o socialismo é alguma coisa sem vida, rígida, estabelecida de uma vez por todas, quando, na realidade, o socialismo porá em marcha, em ritmo acelerado, primeiro a maioria, e depois, a população inteira, em todos os domínios da vida colectiva e da vida privada.

A democracia é uma das formas, uma das variantes do Estado. E, portanto, como todos os Estados, usa de forma organizada e sistemática a coação sobre os homens. Isto, por um lado. Mas, por outro, significa o reconhecimento formal da igualdade entre os cidadãos, do direito igual de todos de determinar a forma do Estado e de administrá-lo. Disto resulta que, em certa fase do desenvolvimento da democracia, a unidade da classe primeiramente obtida na luta pelo salário se transporta para a luta revolucionária contra o capitalismo – o que permite ao proletariado e lhe fornece os meios para quebrar, reduzir a migalhas, aniquilar a máquina burguesa do Estado, mesmo a máquina republicano-burguesa, o exército permanente, a polícia, o funcionalismo, e de a substituir por uma máquina mais democrática, mas que nem por isso é menos uma máquina de Estado, constituída pelas massas operárias armadas, preparando a organização de todo o povo em milícias.

Aqui, "a quantidade transforma-se em qualidade": chegada a tal grau, a democracia sai dos quadros da sociedade burguesa e começa a evoluir para o socialismo. Se todos os homens tomarem realmente parte na gestão do Estado, o capitalismo não poderá manter-se. Ora, o desenvolvimento do capitalismo cria as condições para que "todos” possam, de facto, tomar parte na gestão do Estado. Essas condições são, entre outras, a alfabetização universal, já realizada na maior parte dos países capitalistas avançados, e depois, "a educação e a disciplina" de milhões de operários pelo imenso aparelho, complexo e já socializado, dos correios, dos transportes ferroviários, das grandes fábricas, do grande comércio, dos bancos, etc., etc.

Nestas condições económicas, é perfeitamente possível, após derrubar os capitalistas e os funcionários, substituí-los, de um dia para o outro – no controlo da produção e da distribuição, na contabilização do trabalho e dos produtos – pelos operários armados, pelo povo inteiro em armas. (É preciso não confundir a questão do controlo e da contabilização com a questão do pessoal técnico, engenheiros, agrónomos, etc.: esses senhores trabalham, hoje, sob as ordens dos capitalistas; irão trabalhar melhor ainda, amanhã, sob as ordens dos operários armados).

Contabilização e controlo, eis o que é essencialmente necessário ao funcionamento “adequado” da sociedade comunista na sua primeira fase. Todos os cidadãos se transformam em empregados assalariados do Estado, que por sua vez, é os operários armados. Todos os cidadãos se tornam empregados e operários de um só “truste” estatal do país. A questão é que todos trabalhem e recebam igualmente. Essas operações de contabilização e controlo foram antecipadamente simplificadas ao extremo pelo capitalismo, que as reduziu a formalidades de fiscalização e registo, a operações de aritmética e à emissão de recibos, tudo tarefas acessíveis a quem saiba ler e escrever.

Quando a maioria do povo efectuar, por si só e em toda a parte, essa contabilização e esse controlo sobre os capitalistas (transformados então em empregados) e sobre a nobreza intelectual que conservar os seus hábitos capitalistas, esse controlo tornar-se-á verdadeiramente universal, geral, popular, e ninguém saberá "onde meter-se", para lhe escapar.

A sociedade inteira terá que se tornar um serviço único e uma única grande fábrica, com igualdade de trabalho e de remuneração.

Mas essa disciplina de "oficina", que, uma vez vencidos os capitalistas e derrubados os exploradores, o proletariado estenderá a toda a sociedade, não é, de forma alguma, o nosso ideal ou o nosso objectivo final, mas apenas uma etapa necessária para limpar radicalmente a sociedade das vilanias e das abominações da exploração capitalista e permitir-lhe o ulterior progresso.

A partir do momento em que todos os membros da sociedade, ou, pelo menos, a sua imensa maioria, se tenham educado na administração do Estado, tomado a direcção das coisas e organizado o controlo, tanto sobre a ínfima minoria de capitalistas como sobre os pequenos senhores desejosos de conservar os seus ares de capitalistas e trabalhadores corrompidos pelo capitalismo, a partir desse momento, começa a desaparecer a necessidade de qualquer administração. Quanto mais perfeita for a democracia, tanto mais próximo estará o dia em que se tornará supérflua. Quanto mais democrático for o “Estado”, constituído por operários armados e deixando, por isso mesmo, de ser "o Estado no sentido próprio da palavra", tanto mais rápido será também o desvanecimento de qualquer forma de Estado.

Quando todos já tiverem aprendido a administrar e administrar realmente, directamente, a produção social, quando todos procederem à contabilização e executarem o controlo sobre os parasitas, os filhos de ricos, os malandros e outros "guardiães das tradições capitalistas", será incrivelmente difícil, para não dizer impossível, escapar a essa contabilização e a esse controlo, e qualquer tentativa nesse sentido provocará, provavelmente, um castigo tão pronto e tão exemplar (pois os operários armados são gente prática e não intelectuais sentimentais, e não gostam que se brinque com eles), que a necessidade de observar as regras simples e fundamentais da sociedade humana se tornará, rapidamente, um hábito.

Então a porta se abrirá, de par em par, para a fase superior da sociedade comunista e, por conseguinte, para o desvanecimento completo do Estado.

(Cap. VI)


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Quarta-feira, 18 de Agosto de 2010
O Estado e a Revolução - Cap IV Esclarecimentos Complementares de Engels

(início)

Marx elucidou o princípio, o sentido da experiência da Comuna. Engels retomou várias vezes esse tema, esclarecendo a análise e as conclusões de Marx e iluminando, por vezes, outros aspectos da questão, com um tal vigor e vivacidade que devemos deter-nos sobre esses esclarecimentos.

 

1. O "Problema da habitação"

No seu Problema da Habitação (1872), Engels baseia-se já na experiência da Comuna, detendo-se várias vezes sobre as tarefas da revolução face ao Estado. Curiosamente, num ponto específico, ele explica, de uma forma precisa, por um lado, os traços de semelhança entre o Estado proletário e o Estado actual, traços que permitem falar-se em Estado, e, por outro, os traços que os contrapõem e que marcam a transição para a destruição do Estado.

Como resolver o problema da habitação? Na sociedade actual, ele resolve-se absolutamente da mesma maneira que qualquer outra questão social, isto é, pelo equilíbrio económico que pouco a pouco se estabelece entre a oferta e a procura, solução esta que adia perpetuamente o problema e é o contrário de uma solução. A maneira pela qual a revolução social resolverá essa questão não depende somente das circunstâncias de tempo e de lugar; liga-se, também, a questões que vão muito mais longe sendo uma das principais a supressão do antagonismo entre a cidade e o campo. Como não temos que fantasiar sistemas utópicos de organização da sociedade futura, seria pelo menos ocioso determo-nos sobre o assunto. Uma coisa é, incontestável: é que actualmente, nas grandes cidades, há imóveis bastantes para satisfazer as necessidades reais de todos, sob a condição de serem utilizados racionalmente. Essa medida só é realizável, bem entendido, sob a condição de expropriar os proprietários actuais e de instalar nos seus imóveis os trabalhadores sem habitação ou vivendo actualmente em habitações superlotadas. Conquistado o poder político pelo proletariado, essa medida, ditada pelo bem comum, será tão facilmente realizável como as expropriações e arrestos de imóveis levados a efeitos actualmente pelo Estado” (ed. alemã, 1887, pág. 22).

O que se encara aqui não é a mudança de forma do poder de Estado, mas o conteúdo da sua actividade. O Estado actual efectua expropriações e arrestos de casas. Do ponto de vista formal, o Estado proletário "efectuará", também, expropriações e arrestos de imóveis. Mas, é claro que o antigo aparelho executivo, por outras palavras, a burocracia associada à burguesia, seria inteiramente incapaz de executar as decisões do Estado proletário.

…”É preciso salientar que a apropriação, pelos trabalhadores, de todos os instrumentos de trabalho e de toda a indústria está em completa oposição à "redenção" proudhoniana. Neste caso, seria cada operário que se tornaria o proprietário da sua habitação, do seu palmo de terra e das suas ferramentas, no primeiro, são as “pessoas que trabalham, em bloco,” que ficam proprietárias do conjunto das casas, das fábricas e dos instrumentos de trabalho. O usufruto dessas casas, fábricas, etc., pelo menos num período transitório, dificilmente poderá ser atribuído a indivíduos ou a sociedades privadas, sem a contrapartida de uma renda. Da mesma forma, a supressão da propriedade fundiária não é a abolição da renda fundiária, mas a transferência da mesma, ainda que de forma modificada, para a sociedade. Por consequência, a posse real de todos os instrumentos de trabalho pelos trabalhadores, não exclui a permanência do arrendamento” (pág. 68)

No capítulo seguinte, examinaremos a questão, aqui apenas tocada, das bases económicas do desvanecimento do Estado. Engels exprime-se com uma prudência extrema quando diz que o Estado proletário "dificilmente" poderá distribuir as habitações sem arrendamento, "pelo menos num período transitório". O arrendamento de habitações, propriedade de todo o povo, a famílias individuais, pressupõe a cobrança das rendas, um dado controlo e o estabelecimento de determinadas normas de distribuição das habitações. Tudo isso exige uma determinada forma de Estado, mas não precisa de um aparelho militar e burocrático especial, com funcionários privilegiados. Assim, a passagem para uma situação em que seja possível alocar habitações sem renda está ligada ao "desvanecimento" total do Estado.

Falando de como os blanquistas, depois da Comuna e pelas lições que extraíram dela, adoptaram os princípios marxistas, Engels enuncia de passagem esses princípios, da seguinte forma:

…”A necessidade da acção política e da ditadura do proletariado, como transição para a abolição das classes e, ao mesmo tempo, do Estado”... (pág 55).

É possível que certos amadores de crítica literária, certos burgueses, "devoradores de marxismo", vejam uma contradição entre esta afirmação da "abolição do Estado" e a negação dessa mesma fórmula, considerada anarquista, na citação que fizemos do Anti-Dühring. Não seria de admirar que os oportunistas também enfileirassem Engels no número dos "anarquistas". Nos nossos tempos, é hábito cada vez mais espalhado entre os social-chauvinistas acusar de anarquismo os internacionalistas.

Que, com a abolição das classes, também será abolido o Estado sempre foi um ensinamento do marxismo. A célebre passagem do Anti-Dühring sobre o “desvanecimento do Estado” não acusa os anarquistas de quererem a abolição do Estado, mas, sim, de pretenderem que ela se realize "de um dia para outro".

Tendo os doutrinários da "social-democracia" falseado completamente as relações entre o marxismo e o anarquismo no que respeita à questão da abolição do Estado, é conveniente recordar uma polémica de Marx e Engels com os anarquistas.

 

2. Polémica com os Anarquistas

Esta polémica teve lugar em 1873. Marx e Engels participaram com um artigo, contra os prudhonianos "autonomistas" ou "anti-autoritários", publicado em almanaque socialista italiano, mas só em 1913 é que esse artigo foi publicado em alemão na Neue Zeit.

…”Quando a luta política da classe operária – escrevia Marx ridicularizando os anarquistas pela sua negação da política – adquire formas revolucionárias, se os operários, em lugar da ditadura da burguesia, estabelecem a sua ditadura revolucionária, cometem o terrível crime de lesa-princípios, porque, para satisfazerem a necessidade lamentável e profana do momento de quebrar a resistência da burguesia, dão ao Estado uma forma revolucionária e transitória, em vez de deporem as armas e abolirem o Estado”… (Neue Zeit, 1913-1914, ano 32, vol. 1, pág. 40).

Foi só contra esta "abolição" do Estado que Marx lutou ao refutar a posição dos anarquistas! Não foi contra a ideia de o Estado desaparecer com o desaparecimento das classes ou da abolição simultânea do Estado e das classes, mas contra a renúncia dos operários a utilizarem armas, a usarem a violência organizada, isto é, a usarem o Estado, para "quebrar a resistência da burguesia", que se insurgiu Marx.

Marx sublinhou propositadamente – a fim do verdadeiro sentido da sua luta contra o anarquismo não ser distorcido – que “uma forma revolucionária e transitória" do Estado é necessária ao proletariado. O proletariado só precisa do Estado temporariamente. Na questão da abolição do Estado, como objectivo, não nos separamos dos anarquistas. O que afirmamos é que, para atingir esse objectivo, é indispensável o uso temporário, as armas, os meios e os processos do poder do Estado contra os exploradores, e para suprimir as classes, é indispensável uma ditadura temporária da classe oprimida. Marx escolhe a forma mais incisiva e clara de colocar a questão contra os anarquistas: os operários, após derrubarem o "jugo dos capitalistas", devem "renunciar às armas", ou, pelo contrário, usá-las a fim de quebrar a resistência dos capitalistas? Ora, se uma classe faz uso sistemático de armas contra outra classe, que é isso senão uma "forma transitória" de Estado?

Que cada social-democrata pergunte a si mesmo: foi a questão do Estado bem colocada na polémica com os anarquistas? Foi essa questão bem colocada pela imensa maioria dos partidos socialistas oficiais da II Internacional?

Engels apresenta a mesma ideia de forma muito mais detalhada e popular. Em primeiro lugar, põe a ridículo o erro dos prudhonianos, que se intitulam "anti-autoritários", isto é, inimigos de toda autoridade, de toda subordinação, de todo poder. Tomemos uma fábrica, um caminho-de-ferro ou um navio no alto-mar – pergunta Engels – não será evidente que, sem uma certa subordinação e, por consequência, sem uma certa autoridade ou um certo poder, é impossível fazer funcionar qualquer desses aparelhos técnicos complexos baseados no emprego de máquinas e na colaboração metódica de um grande número de pessoas?

…”Se eu apresentar estes argumentos – escreve Engels – aos mais raivosos anti-autoritários, não podem responder mais do que isto: "Sim, é verdade, mas não se trata, no caso, de uma autoridade conferida aos nossos delegados, mas sim de uma missão". Essa gente imagina que pode mudar uma coisa modificando-lhe o nome”...

Tendo assim demonstrado que autoridade e autonomia são termos relativas, que o seu emprego varia segundo as fases do desenvolvimento social e que é absurdo considerá-las como absolutas; depois de ter acrescentado que o papel das máquinas e da grande indústria vai aumentando constantemente, Engels passa, das considerações gerais sobre a autoridade, para a questão do Estado.

…“Se os autonomistas se contentassem em dizer que a organização social do futuro não admitirá a autoridade senão nos limites que lhe são traçados pelas condições da produção, poderíamos entender-nos com eles. Mas permanecem cegos para todos os factos que tomam indispensável a autoridade, e declaram guerra a esta palavra.

Por que é que os anti-autoritários não se limitam a gritar contra a autoridade política, contra o Estado? Todos os socialistas concordam que o Estado e, com ele, a autoridade política desaparecerão em consequência de uma próxima revolução social; isso significa que as funções públicas perderão o seu carácter político e transformar-se-ão em simples funções administrativas que zelarão pelos interesses sociais. Mas, os anti-autoritários exigem que o Estado político seja abolido de um só golpe, ainda antes que sejam abolidas as relações sociais que o geraram. Exigem que o primeiro acto de uma revolução social seja a abolição da autoridade.

Será que estes senhores nunca viram uma revolução? Uma revolução é, certamente, a coisa mais autoritária que existe. É um acto pelo qual uma parte da população impõe a sua vontade à outra, com espingardas, baionetas e canhões, meios por excelência autoritários. E o partido que triunfou tem de manter a sua autoridade pelo terror que as suas armas inspiram aos reaccionários. Se a Comuna de Paris não tivesse utilizado, contra a burguesia, a autoridade do povo em armas, teria podido viver mais que um dia? Não deveríamos, pelo contrário, censurá-la por ter recorrido tão pouco a essa autoridade? Das duas, uma: ou os anti-autoritários não sabem o que dizem, e nesse caso só criam confusão, ou sabem-no, e nesse caso traem a causa do proletariado. Em qualquer dos casos não fazem senão servir a reacção.” (pág. 39).

Esta argumentação toca em questões que devem ser consideradas no âmbito das relações da política com a economia quando o Estado desvanece (assunto ao qual o capítulo seguinte é dedicado). São elas a questão da transformação das funções públicas políticas em simples funções administrativas, e a questão do "Estado político". Esta última expressão, susceptível, aliás, de provocar mal-entendidos, evoca o processo do desvanecimento do Estado: um momento há em que o Estado em vias de desvanecer pode ser chamado de não-político.

O que há de mais notável nesta argumentação de Engels é a forma como ele coloca a questão contra os anarquistas. Há social-democratas, pretendendo ser discípulos de Engels, que, desde 1873, já entraram milhões de vezes em polémica com os anarquistas, mas fizeram-no precisamente como os marxistas não podem nem devem fazê-lo. A ideia anarquista da abolição do Estado é confusa e não-revolucionária – foi como Engels pôs a questão. É precisamente na revolução, no seu início e no seu desenvolvimento, que os anarquistas se recusam a ver tarefas específicas em matéria de violência, autoridade, poder e Estado,

A crítica do anarquismo, feita pelos social-democratas contemporâneos, reduz-se a esta pura banalidade pequeno-burguesa: "Nós reconhecemos o Estado, os anarquistas não!". Compreende-se que uma tal posição não deixe de provocar a aversão dos operários, por menos reflectidos e revolucionários que sejam. Engels diz o contrário: sublinha que todos os socialistas admitem o desaparecimento do Estado como uma consequência da revolução socialista. Em seguida, ele formula especificamente a questão da revolução, precisamente a questão que os social-democratas oportunistas deixam habitualmente de lado, abandonando, por assim dizer, aos anarquistas o monopólio desse "desenvolvimento". Ao formular essa questão, Engels pega o boi pelos cornos: não deveria a Comuna ter feito maior uso do poder revolucionário do Estado, ou seja, do proletariado armado e organizado como classe dominante?

A social-democracia oficial dominante tem sempre evitado a questão da de saber o que deve ser feito pelo proletariado na revolução, ora simplesmente com um sarcasmo farisaico, ora, quando muito, com um sofisma evasivo: "Mais tarde se verá!". Desta forma os anarquistas ficaram com o direito de dizer que esta social-democracia atraiçoava o dever da educação revolucionária dos operários. Quanto a Engels, ele aproveita a experiência da última revolução proletária para estudar o que e como deve ser feito pelo proletariado no que respeita aos bancos e ao Estado.

 

3. Carta a Bebel

Uma das mais notáveis, senão a mais notável, das passagens de Marx e Engels, a propósito do Estado, é o seguinte trecho de uma carta de Engels a Bebel, de 18-28 de Março de 1875. Notaremos, entre parênteses, que essa carta foi impressa, pela primeira vez, se não nos falha a memória, em 1911, no tomo 11 das Memórias de Minha Vida, de Bebel, isto é, trinta e seis anos depois de redigida e enviada. Criticando o projecto do programa de Gotha, igualmente criticado por Marx na sua célebre carta a W. Bracke, Engels trata especialmente da questão do Estado, e escreve a Bebel:

…”transformou o livre Estado popular em Estado livre. Do ponto de vista gramatical, um Estado livre é aquele que é livre em relação aos seus cidadãos e, por conseguinte, um Estado com um governo despótico. É preciso abandonar toda essa tagarelice sobre Estado, sobretudo depois da Comuna, que já não era um Estado no sentido próprio da palavra. Os anarquistas já nos lançaram bastantes vezes à cara o "Estado popular", embora a obra de Marx contra Proudhon e, depois, o “Manifesto do Partido Comunista” digam expressamente que, com a instauração do regime socialista, o Estado dissolve-se por si próprio (sich auflöst) e acaba por desaparecer.

Não sendo o Estado mais que uma instituição transitória de que nos servimos na luta durante a revolução para reprimir violentamente os adversários, é perfeitamente absurdo falar em Estado livre popular. Com efeito, se o proletariado tem necessidade do Estado, não é de modo nenhum para instaurar a liberdade, mas sim para reprimir os seus adversários, e assim que se puder falar em liberdade, o Estado terá deixado de existir enquanto tal. Por conseguinte nós propomos que se ponha em toda parte em vez da palavra Estado a palavra “comunidade” (Gemeinweisen), excelente antiga palavra alemã que corresponde bastante bem à palavra francesa “Comuna””. (pág. 321-22 do original alemão).

É preciso notar que esta carta se refere ao programa do partido, criticado por Marx numa carta escrita apenas algumas semanas depois daquela (a carta de Marx é de 5 de Maio de 1875), e que Engels vivia então com Marx em Londres. Não há dúvida, portanto, de que Engels, que diz "nós", na última frase, fala em seu próprio nome e no de Marx, quando propõe ao chefe do Partido dos Operários Alemães que se ponha em toda a parte no programa em vez da palavra "Estado", a palavra "comunidade".

Que clamor contra o “anarquismo” não seria levantado pelos chefes actuais do "marxismo", temperado ao sabor dos oportunistas, se fosse proposta uma tal emenda ao seu programa!

Pois que berrem. A burguesia os louvará.

Quanto a nós, cumpriremos a nossa tarefa. Ao rever o programa do nosso partido, devemos ter absolutamente em conta o conselho de Engels e de Marx, para nos aproximarmos da verdade, restaurarmos o verdadeiro marxismo livrando-o de todas as distorções, e melhor orientarmos a luta da classe operária pela sua libertação. É pouco provável que a recomendação de Engels e Marx encontre adversários entre os bolcheviques. A dificuldade estará, talvez, apenas no termo. Em alemão, há duas palavras para significar "Comuna"; e Engels escolheu, não a que designa uma comunidade determinada, mas a que exprime um conjunto, um sistema de comunidades. Em russo, não existe o termo equivalente, e teremos que recorrer talvez ao francês "Comuna", apesar de oferecer também os seus inconvenientes.

"A Comuna já não era um Estado, no sentido próprio da palavra" – esta a afirmação de Engels mais importante sob o ponto de vista teórico. Depois do exposto acima, esta afirmação é perfeitamente clara. A Comuna deixara de ser um Estado, pois não tinha que oprimir a maioria da população, mas sim uma minoria (os exploradores); quebrara a máquina de Estado burguesa; e, em lugar de uma força especial de opressão, era o próprio povo que entrava em cena. Tudo isto já não corresponde à definição de Estado no sentido próprio da palavra. Se a Comuna se tivesse consolidado, os vestígios do Estado teriam "desvanecido" automaticamente; ela não teria tido a necessidade de "abolir" as suas instituições: elas deixariam de funcionar à medida que deixassem de ter alguma coisa para fazer.

"Os anarquistas já nos lançaram bastantes vezes à cara o "Estado popular"”; ao dizer isto, Engels tem em vista principalmente Bakunine e seus ataques contra a social-democracia alemã. Engels reconhece a justeza desses ataques na medida em que o "Estado popular" é um contra-senso e uma concepção estranha ao socialismo, tão condenável como o "Estado livre popular". Engels tenta rectificar a luta dos social-democratas alemães contra os anarquistas, baseando a luta em princípios justos, e libertando-a de preconceitos oportunistas a respeito do "Estado". Mas, ai! A carta de Engels dormiu trinta e seis anos no fundo de uma gaveta. Veremos a seguir que, mesmo depois da publicação dessa carta, Kautsky persiste em repetir, praticamente, os mesmos erros contra os quais Engels preveniu.

Bebel respondeu a Engels em 21 de Setembro de 1875, na qual, entre outras coisas, declara estar "inteiramente de acordo" com ele a respeito do projecto de programa e que censurou Liebknecht pelo seu espírito conciliador (pág. 334, ed. p. das Memórias de Bebel, v. II). Mas se abrirmos a brochura de Bebel, intitulada “Nossos Objectivos”, iremos lá encontrar, pontos de vista sobre o Estado inteiramente errados:

"O Estado baseado na dominação de uma classe deve ser transformado em Estado popular". (Unsere Ziele, ed. alemã, 1886, pág. 14).

Eis o que está impresso na 9.ª (nona!) edição da brochura de Bebel. Com tão insistente repetição de pontos de vista oportunistas sobre o Estado, não é de admirar que a social-democracia alemã os tenha absorvido, tanto mais quanto os comentários revolucionários de Engels ficavam na gaveta e a vida os "desmamava" por muito tempo da acção revolucionária.

 

4. A Crítica do Projecto de Programa de Erfurt

A crítica do projecto de programa de Erfurt, enviada por Engels a Kautsky, em 29 de Junho de 1891, e publicada somente dez anos mais tarde no “Neue Zeit”, não pode ser desprezada numa análise da doutrina marxista sobre o Estado, porque é consagrada precisamente à crítica das concepções oportunistas da social-democracia sobre a organização do Estado.

Note-se de passagem, que Engels faz, também, sobre as questões económicas, uma observação extremamente preciosa, que demonstra o cuidado e ponderação com que seguia as transformações do capitalismo moderno e como antecipou, assim e até certo ponto, o problema da nossa presente época imperialista. Ei-la: referindo-se à expressão "falta de planeamento" (PIanlosigkeit), empregue no projecto de programa, para caracterizar o capitalismo, Engels escreveu:

…”Se, das sociedades por acções, passarmos aos trusts que comandam e monopolizam ramos inteiros da indústria, veremos cessar não só a produção privada como também a falta de planeamento” (Neue Zeit, ano 20, 1901-1902, vol. 1, p. 8).

Temos aqui a base para compreender na teoria o capitalismo moderno, ou seja, o imperialismo, nomeadamente que o capitalismo se transforma em capitalismo monopolista. Isto convém ser acentuado, pois um dos erros mais espalhados é o dos reformistas burgueses, para quem o capitalismo dos monopólios, privado ou de Estado, já não é capitalismo, e poderá ser chamado de "socialismo de Estado", etc.. Os trusts nunca chegaram até hoje e nunca chegarão a uma organização da produção inteiramente planeada. Mas, por mais que introduzam uma certa planificação, por mais que os magnatas do capital antecipem o volume da produção à escala nacional e mesmo internacional, por mais que controlem essa produção por planos, não se deixa, por isso, de estar sob o capitalismo, ainda que numa nova fase, mas certamente sob o capitalismo. A "analogia" desse capitalismo com o socialismo deve ser, para os verdadeiros representantes do proletariado, um argumento em favor da proximidade, da facilidade, da viabilidade, da urgência da revolução socialista, e não um argumento para tolerar a negação dessa revolução e embelezar o capitalismo como fazem todos os reformistas.

Mas, voltemos à questão do Estado. Na carta, Engels faz três sugestões particularmente valiosas: a primeira, sobre a República; a segunda, sobre a relação entre a questão nacional e a organização do Estado; e a terceira, sobre a autonomia local.

Engels centra a sua crítica ao projecto de programa de Erfurt na questão da República. Se nos lembrarmos da importância que o programa de Erfurt adquiriu na social-democracia e de que serviu de modelo a toda a II Internacional, poderemos dizer sem exagero que Engels critica, aqui, o oportunismo da II Internacional.

As reivindicações políticas do projecto – escreve ele – têm um grande defeito. Falta-lhe (sublinhado por Engels) o que deveria ter sido dito”.

Engels, mais adiante, demonstra que a constituição alemã é uma cópia da constituição ultra-reaccionária de 1850; que o Reichtag não é, como disse Wilhelm Liebknecht, senão a "folha de parra do absolutismo", e que pretender realizar, na base de uma constituição que consagra a existência de pequenos Estados alemães e a sua confederação, a "transformação dos meios de produção em propriedade comum", é "manifestamente absurdo".

"É perigoso tocar nisso", acrescenta Engels, sabendo muito bem que, na Alemanha, a República não pode ser reivindicada legalmente em programa. Mas, em vez de se conformar com esta consideração com que "todos " se contentam, continua: “mas, no entanto, é preciso, de um modo ou de outro, atacar a questão. E a prova de quanto é necessário fazê-lo está no facto do oportunismo estar agora a propagar-se [einreissende] através de grande parte da imprensa social-democrata. Pelo temor do restabelecimento da lei anti-socialista, ou da recolha de todos os pronunciamentos imprudentes ocorridos durante a vigência dessa lei, quer-se que, agora, o Partido reconheça a ordem legal actual na Alemanha, como suficiente para realizar todas as suas reivindicações pela via pacifica”...

Que os social-democratas alemães tenham agido sob o receio do restabelecimento da lei de excepção, tal é um facto essencial que Engels faz ressaltar e que, explicitamente, classifica de oportunismo, acrescentando que é precisamente por não existir nem República nem liberdade na Alemanha que são totalmente absurdos os sonhos de uma via "pacífica". Engels tem o cuidado de não atar as mãos. Concede que, nos países de República ou de grande liberdade, "pode-se imaginar" (apenas "imaginar"!) uma evolução pacífica para o socialismo; mas, na Alemanha, repete:

…”na Alemanha, onde o governo é quase omnipotente e onde o Reichtag e todos os outros corpos representativos são desprovidos de poder real, defender uma coisa dessas, onde nem sequer existe necessidade de fazê-lo, significa utilizar a folha de parra ao absolutismo para com ela cobrir a própria nudez”...

E quem, realmente, utilizou a folha de parra do absolutismo, foi a grande maioria dos chefes oficiais da social-democracia alemã, ao “arquivarem” as seguintes instruções.

…”a prazo, uma tal política só pode levar o próprio partido à ilusão. Põem-se no primeiro plano as questões políticas gerais e abstractas, e ocultam-se com questões concretas mais urgentes, as questões cruciais que perante os primeiros acontecimentos importantes, na primeira crise política, surgem por si mesmas na ordem do dia. Daqui resulta que, ao chegar o momento decisivo, o partido só se possa sentir irresoluto devido ao facto das questões cruciais estarem dominadas pela confusão e por divergências, pela razão de nunca terem sido discutidas...

Esse esquecimento das questões principais face aos interesses momentâneos do dia, essa busca do sucesso efémero sem a preocupação das consequências ulteriores, esse abandono do futuro movimento em favor do presente, pode ter a sua origem em motivos "honestos". Mas é e será sempre oportunismo, e o oportunismo "honesto" é, talvez, o mais perigoso de todos...

O que é absolutamente certo é que o nosso partido e a classe operária só podem chegar ao poder sob a forma da república democrática. É mesmo esta a forma específica da ditadura do proletariado, como já o demonstrou a grande Revolução francesa”...

Engels retoma aqui, de forma particularmente viva, a ideia fundamental que trespassa toda a obra de Marx, ou seja que a república democrática é o caminho que conduz mais rapidamente à ditadura do proletariado. Não é essa república, de facto, que porá termo à dominação do Capital nem, por conseguinte, à opressão das massas e à luta de classes, mas, dará a essa luta uma profundidade, uma extensão, uma rudeza tais que, uma vez surgida a possibilidade de satisfazer os interesses essenciais das massas oprimidas, essa possibilidade se realizará fatal e unicamente na ditadura do proletariado com as massas sob a direcção do proletariado. Para toda a II Internacional, estas são também "palavras esquecidas" do marxismo, e esse esquecimento manifestou-se de forma flagrante na história do Partido menchevique durante os primeiros seis meses da revolução russa de 1917.

A respeito do problema da república federativa na sua relação com as nacionalidades, Engels escreveu:

"O que é que deve substituir a Alemanha actual?" (com a sua constituição monárquica reaccionária e a sua subdivisão, não menos reaccionária, em pequenos Estados, subdivisão que perpetua o "prussianismo", em vez de dissolvê-lo na Alemanha como um todo). “Na minha opinião, o proletariado só pode utilizar a forma una e indivisível de República. No território imenso dos Estados Unidos, a República Federal é, ainda hoje e no geral, uma necessidade, embora já comece a ser um entrave no Leste. Ela seria um passo em frente na Inglaterra, onde as duas ilhas são habitadas por quatro nações e onde, apesar do Parlamento único, existem, lado a lado, já hoje, três sistemas diferentes de leis. Na pequena Suíça, tornou-se, há muito, num obstáculo, suportável unicamente porque a Suíça se contenta com um papel de membro puramente passivo no sistema de Estados europeu. Para a Alemanha, uma organização federalista à moda suíça seria um enorme reprocesso. Dois traços distinguem um Estado federativo de um Estado unitário: primeiramente, é que cada Estado federado tem os seus próprios códigos, civil e penal, e a sua própria organização judiciária; em seguida, é que, a par de uma câmara popular, existe uma câmara federal, na qual cada cantão, pequeno ou grande, vota como cantão”. Na Alemanha o Estado federal não passa de uma transição para um Estado totalmente unificado, e a "revolução a partir de cima" de 1866 e 1870 não deve ser revertida, antes deve ser completada por um “movimento a partir de baixo”.

Longe de ser indiferente às formas de Estado, Engels, pelo contrário, esforça-se por analisar, com a maior atenção, as formas de transição, para determinar, de acordo com as especificidades históricas de cada caso concreto, de onde vêm e para onde vão.

Engels, da mesma forma que Marx, defende, a partir do ponto de vista do proletariado e da revolução proletária, o centralismo democrático, a república una e indivisível. Ele considera a república federal, seja como uma excepção e um obstáculo ao desenvolvimento, seja como uma transição entre a monarquia e a república centralizada, seja como um "passo em frente" em certas condições especiais. De entre estas condições especiais ele coloca em primeiro plano a questão nacional.

Apesar de criticarem impiedosamente a essência reaccionária dos pequenos Estados e a utilização, nalguns casos concretos, da questão nacional para dissimular essa essência reaccionária, nem Engels nem Marx procuraram, alguma vez, evitar essa questão – falta esta que os marxistas holandeses e polacos, empenhados na luta, inteiramente legítima, contra o nacionalismo estreitamente filistino dos "seus" pequenos Estados, frequentemente cometeram.

Mesmo em relação à Inglaterra, onde as condições geográficas, a comunidade de língua e uma história comum de muitos séculos parecem que “mataram” a questão nacional no que respeita às subdivisões do país, Engels tem em conta o facto da questão nacional ainda não ter sido superada, razão pela qual reconhece que a república federal constituiria um "passo em frente". Bem entendido, ele está longe de renunciar à crítica dos defeitos da república federal e à propaganda mais determinada em favor de um sistema unificado, de uma república democrática centralizada.

Mas o centralismo democrático de Engels, não tem o sentido burocrático que lhe é atribuído habitualmente pelos ideólogos burgueses e pequeno-burgueses, entre os quais os anarquistas. Para Engels, o centralismo não exclui uma ampla autonomia local, na qual as “comunas” e os concelhos ao  mesmo tempo que defendem espontaneamente a unidade do Estado, eliminam todos os "comandos" burocráticos exercidos de cima.

…”Desta forma, república unitária” – escreve, Engels, desenvolvendo o programa marxista sobre a questão do Estado – “mas, não no sentido da República francesa actual, que não é outra coisa senão o império fundado em 1798, mas sem imperador. De 1792 a 1798, cada departamento francês, cada comunidade (Gemeinde) teve uma autonomia completa, segundo o modelo norte-americano, e é isso o que nós também devemos ter. Como organizar um governo sem burocracia, foi o que nos mostraram a América e a primeira República francesa; é o que nos mostram ainda hoje a Austrália, o Canadá e as outras colónias inglesas. Uma tal autonomia concelhia e comunal é muito mais livre que, por exemplo, o federalismo suíço, onde, sem dúvida, o cantão é muito independente em face ao Bund (ou seja, face ao Estado federal no seu conjunto), mas onde também há independência do bairro (Bezírk) em relação à comunidade. São os governos cantonais que nomeiam os governadores de bairro (Bezirksstatthalter) e os chefes da polícia, que não se conhecem nos países de língua inglesa e que, no futuro, queremos abolir, resolutamente, da mesma forma que os Landrat e Regierungsrat (todos os funcionários de nomeação política) prussianos”. Assim, Engels propõe que se redija da seguinte forma o artigo do programa relativo ao auto-governo: “«Os funcionários do auto-governo pleno provincial (províncias ou territórios), local e comunitário serão eleitos por sufrágio universal; serão abolidas todas as nomeações pelo Estado de autoridades locais e provinciais».”

No proibido, pelo governo de Kerensky e de outros ministros ditos "socialistas", Pravda, (n.º 68 de 28 de Maio de 1917) já tive ocasião de mostrar que, nesse ponto – mas não só –, os pseudo-representantes socialistas da nossa pseudo-revolucionária pseudo-democracia, se afastam indignamente do princípio democrático. Claro está que essa gente, ligada por "coligação" à burguesia imperialista, se manteve surda às minhas palavras.

É muito importante notar que Engels, servindo-se de factos, desmente, com exemplos precisos, o preconceito extraordinariamente propagado – principalmente na democracia pequeno-burguesa –, de que uma república federal significa necessariamente a existência de mais liberdade do que numa república centralizada. É errado: os factos citados por Engels relativos ao centralismo da República francesa de 1792 a 1799 e à República federal suíça provam-no. Com efeito, a República verdadeiramente democrática centralizada deu mais liberdade que a República federal. Por outras palavras: o máximo de liberdade local, regional ou qualquer outra, conhecido na história, foi atingido pela República centralizada e não pela República federal.

A nossa propaganda partidária sempre teve e continua a ter muito pouco em conta este facto, como em geral tudo o que diz respeito ao federalismo, à centralização e à autonomia local.

 

5. O Prefácio de 1891 À "Guerra Civil em França" de Marx

No prefácio da terceira edição da “Guerra Civil em França” – datado de 18 de Março de 1891 e publicado originalmente na Neue Zeit –, a par de reflexões episódicas do mais alto interesse sobre o Estado, Engels dá um notável resumo das lições da Comuna. Este resumo, enriquecido com toda a experiência dos vinte anos decorridos desde a Comuna, e que é especialmente dirigido contra a "crença supersticiosa no Estado" tão espalhada na Alemanha, pode, com justiça ser considerado a última palavra do marxismo sobre a questão.

Em França, depois de cada revolução, observa Engels, os operários continuavam armados: “e o primeiro cuidado dos burgueses chegados ao poder era desarmá-los. Assim, após cada revolução ganha pelos operários, uma nova batalha rebentava, a qual terminava com o esmagamento dos mesmos”...

Este resumo da experiência das revoluções burguesas é tão sucinto quanto expressivo. A essência do problema – incluindo a questão do Estado (se a classe oprimida possui armas) – está aqui admiravelmente bem focada. É este precisamente o ponto que os professores influenciados pela ideologia burguesa e os democratas pequeno-burgueses silenciam. Na revolução russa de 1917, o “menchevique” e pseudo-marxista” Tseretelli teve a honra (a honra de um Cavaignac) de trair, por descuido, esse segredo das revoluções burguesas. No seu discurso "histórico" de 11 de Junho, Tseretelli teve a imprudência de anunciar que a burguesia estava resolvida a desarmar os operários de Petrogrado, resolução que ele apresentava como sendo sua e, mais geralmente, como uma necessidade "do Estado"!

O discurso histórico de Tseretelli de 11 de Junho será, para qualquer historiador da revolução de 1917, uma das melhores provas de que o bloco dos socialistas-revolucionários e dos mencheviques, dirigido por Tseretelli, tinha abraçado a causa da burguesia contra o proletariado revolucionário.

De passagem, Engels faz outra observação ligada igualmente à questão do Estado e relativa à religião. Como se sabe, a social-democracia alemã, à medida que se afundava no pântano do oportunismo, caía cada vez mais numa interpretação filistina da célebre fórmula: "a religião é questão privada". Isto é: a interpretação da fórmula foi distorcida ao ponto de se considerar que, em relação ao partido do proletariado revolucionário, a religião também é uma questão privada!! Contra essa traição formal ao programa revolucionário do proletariado, insurgiu-se Engels, que, em 1891, ainda não podendo observar, no seu partido, senão germes muito fracos do oportunismo, se exprime com grande prudência:

Como na Comuna só haviam operários ou representantes reconhecidos da classe operária, os seus decretos foram marcados por um cunho nitidamente proletário. A sua obra consistiu ou em reformas que a burguesia republicana abandonara por cobardia desprezível e que constituíam a necessária base para uma actividade livre do proletariado como, por exemplo, as medidas inspiradas no princípio de que, em relação ao Estado, a religião é questão privada; ou em decretos promulgados no interesse directo da classe operária e que, em parte, abriram profundas brechas na velha ordem social”...

Foi intencionalmente que Engels sublinhou as palavras "em relação ao Estado", atacando, de frente, o oportunismo alemão, que declarava a religião uma questão privada em relação ao partido e que rebaixava assim o partido do proletariado revolucionário ao nível da pequena burguesia mais "livre pensadora", pronta a admitir a neutralidade em matéria religiosa, mas renunciando à luta do partido contra a religião, o ópio do povo.

O futuro historiador da social-democracia alemã, aprofundando as causas da vergonhosa bancarrota desse partido em 1914, encontrará sobre a questão muito material interessante, desde o indescritível oportunismo das declarações evasivas do líder ideológico do partido, Kautsky, até à atitude do partido face ao Los-von-der-Kirche-Bewegung (movimento de abandono da Igreja) em 1913.

Mas, vejamos como, vinte anos depois da Comuna, Engels resumia os ensinamentos extraídos dela para o combate proletário.

Eis os ensinamentos que Engels coloca em primeiro plano:

…”Era precisamente o poder opressor do antigo governo centralizado: o exército, a polícia política e a burocracia, que Napoleão criara em 1798 e que, desde então, cada novo governo acolhia como precioso instrumento contra os adversários, era este poder que devia ser derrubado por toda a parte, como já havia sido em Paris!

A Comuna teve, desde o início, de reconhecer que a classe operária, ao chegar ao poder, não podia servir-se da antiga máquina estatal; que, para não perder de novo a sua dominação recém-conquistada, a classe operária devia, por um lado, abolir toda a máquina de opressão anteriormente usada contra ela, e, por outro, precaver-se contra os seus próprios deputados e funcionários, declarando-os todos, sem excepção, amovíveis em qualquer momento”...

Engels acentua, mais  uma vez, que, tanto em monarquia como em república democrática, o Estado continua a ser Estado, isto é, continua a conservar o seu carácter distintivo fundamental, que é o de se transformar, e aos seus órgãos, de "servidor da sociedade" em senhor da sociedade.

…”Para evitar essa transformação do Estado e das suas instituições, até então inevitável em quaisquer regimes, de servidor em senhor da sociedade, a Comuna empregou dois meios infalíveis. Primeiro, ela submeteu todos os lugares, na administração, na justiça e no ensino, à eleição, por sufrágio universal, dos interessados. Depois, retribuiu todos os serviços, superiores e inferiores, com salários iguais aos que recebem os outros trabalhadores. O maior salário pago foi de 6.000 francos[1]. Desta forma, foi posto um freio à caça aos cargos e ao arrivismo, além de que a Comuna impôs mandatos imperativos aos delegados às assembleias representativas”…

Engels aborda o limite interessante em que a democracia, quando é consequente, por um lado, transforma-se em socialismo e, por outro, reclama o socialismo. De facto, para aniquilar o Estado, é preciso transformar as funções do Estado em operações de controlo e registo tão simples que estejam ao alcance da enorme maioria da população e, em seguida, de toda a população, sem excepção. Ora, para suprimir completamente o arrivismo, é preciso impedir, que os cargos "honoríficos" possam servir de trampolim para atingir empregos altamente rendosos em bancos e sociedades por acções como sucede, constantemente, em todos os países capitalistas, mesmo nos mais livres.

Mas Engels tem o cuidado de evitar o erro que cometem, por exemplo, certos marxistas, a respeito do direito das nações à autodeterminação: em regime capitalista, dizem eles, esse direito é irrealizável; em regime socialista torna-se supérfluo. Este raciocínio, aparentemente inteligente, mas realmente incorrecto, poderia aplicar-se a qualquer instituição democrática e, mesmo, ao modesto vencimento dos funcionários, pois que uma democracia verdadeiramente consequente é impossível sob o capitalismo e, em socialismo, qualquer democracia desaparece.

Este é um sofisma igual ao da velha piada sobre um homem tornar-se careca por perder um cabelo. [Piada com os dois sentidos da palavra cabelo= cabeleira e cabelo=pelo]

Desenvolver a democracia até ao fim, encontrar as formas desse desenvolvimento, submetê-las à prova da prática, etc., eis um dos componentes fundamentais da luta pela revolução social. Considerada isoladamente, nenhuma democracia originará o socialismo, mas, na vida real, a democracia nunca poderá ser "considerada isoladamente", mas sim "tomada em conjunto" com outras coisas, e exercerá a sua influência sobre a economia, cuja transformação precipitará, sofrendo por sua vez a influência dessa transformação económica, etc. Tal é a dialéctica da história viva. E Engels continua:

…”Essa destruição do poder estatal existente e a sua substituição por um novo poder, verdadeiramente democrática é o que está descrito com profundidade no terceiro capítulo da «Guerra Civil». Mas, é necessário acentuar brevemente, aqui, alguns dos seus traços, porque, particularmente na Alemanha, a crença supersticiosa no Estado passou da filosofia para a consciência de toda a burguesia e mesmo de muitos operários. Segundo a filosofia, o Estado é "a realização da Ideia", o que, traduzindo da linguagem filosófica, é a concretização do reino de Deus na Terra, o domínio em que se realizaram ou devem realizar-se a verdade e a justiça eternas. Daí, este respeito supersticioso pelo Estado e por tudo que toca ao Estado, respeito que tanto mais facilmente se instala nos espíritos quanto se está habituado, desde o berço, a pensar que os negócios e os interesses gerais da sociedade inteira não poderiam ser regulados diferentemente do que se tem feito até aqui, isto é, pelo Estado e pelos seus bem instalados funcionários. E já se pensa ter feito um progresso extraordinariamente audacioso, emancipando-se da crença na monarquia hereditária para jurar pela república democrática. Porém, na realidade, o Estado não é outra coisa senão uma máquina de opressão de uma classe por outra, e isso tanto numa república democrática como numa monarquia. E na melhor das hipótese é um flagelo herdado pelo proletariado triunfante da sua luta pela dominação de classe, mas cujos piores efeitos ele deverá atenuar, o mais rapidamente possível, como fez a Comuna, até ao dia em que uma geração, educada nas novas e livres condições sociais, puder livrar-se de toda a geringonça estatal”.

Engels prevenia os alemães contra o esquecimento dos princípios socialistas, a respeito do Estado, na conexão com a substituição da monarquia pela república. As suas advertências, hoje, parecem dirigir-se especialmente aos Srs. Tseretelli e Chernov, que, na sua "coligação", mostraram na prática as suas crença e veneração supersticiosas pelo Estado!

Ainda duas observações:

1.ª) Quando Engels diz que numa república democrática, "tanto como" numa monarquia, o Estado continua a ser "uma máquina de opressão de uma classe por outra", não quer dizer que a forma de opressão seja indiferente ao proletariado, como "professam" certos anarquistas. Uma forma de opressão e de luta de classes mais ampla, mais livre, mais franca, facilita enormemente a missão do proletariado na sua luta pela abolição das classes em geral.

2.ª) A questão de saber por que só uma nova geração estará em condições de se livrar da geringonça estatal liga-se à questão da superação da democracia, que passamos, agora, a examinar.

 

6. Engels Sobre a Superação da Democracia

Engels pronunciou-se sobre esse ponto ao tratar da designação cientificamente incorrecta de "social-democrata".

No prefácio de uma colectânea dos seus artigos de 1870-1879, sobre vários assuntos, mas principalmente, sobre temas "internacionais" (Internationales aus dem Volksstaat), datado de 3 de Janeiro de 1894, isto é, um ano e meio antes da sua morte, Engels explica que, nesses artigos, emprega a palavra "comunista" e não "social-democrata", porque naquela época os prudhonianos na França, e os lassallianos na Alemanha intitulavam-se, a si próprios, social-democratas

…”Para Marx e para mim”, continua Engels, “havia, portanto, absoluta impossibilidade de empregar, para exprimir o nosso ponto de vista próprio, uma designação tão elástica. Actualmente, o caso é outro, e o emprego dessa designação ("social-democrata") pode acontecer (mag passieren), se bem que, em rigor, continue inadequada (unpassend) para um partido cujo programa económico não é apenas socialista, mas comunista, para quem o objectivo político final é a superação total do Estado, e, por conseguinte, também da democracia. Os partidos políticos reais (sublinhado por Engels) nunca têm uma denominação completamente adequada; o partido desenvolve-se enquanto a denominação fica”.

O dialéctico Engels, no fim de sua vida, mantém-se fiel à dialéctica. Marx e eu, diz ele, tínhamos um nome excelente, cientificamente exacto, para o nosso partido, mas então não havia um verdadeiro partido, isto é, um partido que unisse as massas proletárias. Agora (final do século XIX), possuímos um partido verdadeiro, mas a sua denominação é cientificamente imprecisa. Não interessa; "pode acontecer", desde que o partido se desenvolva e desde que a inexactidão científica do seu nome não o impeça de caminhar na direcção certa!

Talvez, com perspicácia, nós, bolcheviques, nos possamos rever em Engels: temos um verdadeiro partido que se desenvolve magnificamente; "pode acontecer" um nome absurdo e monstruoso como "bolchevique", que não exprime absolutamente nada, a não ser a circunstância puramente acidental de termos tido a maioria no Congresso de Bruxelas/Londres, em 1903... Se fosse agora, depois que a perseguição ao nosso partido, pelos republicanos e pela democracia burguesa "revolucionária", em Julho/Agosto de 1917, tornou tão popular e honroso o nome de "bolchevique", confirmando, além disso, o imenso progresso histórico realizado pelo nosso partido no seu desenvolvimento real, talvez eu mesmo hesitasse em propor, como fiz em Abril, a mudança de denominação do Partido. Talvez propusesse aos camaradas um "compromisso": chamarmo-nos Partido Comunista, conservando entre parênteses a palavra "bolchevique"...

Mas a questão do nome do partido é infinitamente menos grave que a questão de atitude do proletariado revolucionário perante o Estado.

Nos argumentos habituais sobre o Estado, repete-se constantemente o erro contra o qual Engels nos põe de sobreaviso e que, de passagem, indicámos mais atrás. Ou seja: esquece-se que a destruição do Estado é igualmente a destruição da democracia e que o desvanecimento do Estado é também o desvanecimento da democracia.

À primeira vista, esta afirmação parece estranha e ininteligível; talvez atá, alguém com medo do advento de um sistema social que não respeitasse o princípio da submissão da minoria â maioria, questionasse: democracia não significa o respeito desse princípio?

Não. A democracia não se identifica com a submissão da minoria à maioria. Democracia é o reconhecimento da subordinação da minoria ao Estado da maioria, ou seja, é a violência organizada e sistemática de uma classe sobre a outra, de uma parte da população contra a outra.

O nosso objectivo final é a abolição do Estado, isto é, de toda a violência, organizada e sistemática, de toda a coacção sobre os homens em geral. Não desejamos o advento de uma ordem social em que não se respeitasse o princípio da regra da maioria. Mas, na luta pelo socialismo, temos a convicção de que ele irá evoluir para o comunismo e que, em consequência, desaparecerá completamente qualquer necessidade de violência contra os homens, de subordinação de um homem a outro, de uma parte da população à outra, uma vez que as pessoas se acostumaram a observar as condições elementares da vida social sem violência e sem subordinação.

Para salientar esse elemento de adaptação, Engels fala de uma nova geração "educada nas novas e livres condições sociais " e do dia em que "puder livrar-se de toda a geringonça estatal", de qualquer forma de Estado, inclusive a república democrática.

Para esclarecer esse ponto, temos de analisar as condições económicas do desvanecimento do Estado.

(cap V)

[1] Nota de Lenine – Nominalmente, cerca de 2400 rublos equivalentes actualmente [1917] a cerca de 6000 rublos. É imperdoável que bolcheviques proponham salários de 9000 rublos para os cargos municipais, ao invés de exigirem 6000 rublos para os cargos de todo o Estado – quantia suficiente.


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Sexta-feira, 6 de Agosto de 2010
O Estado e a Revolução - Cap III A Experiência da Comuna de Paris, a Análise de Marx

(Início)

 

1. Onde Reside o Heroísmo da Tentativa dos Comunardos

Como se sabe, alguns meses antes da Comuna, no Outono de 1870, Marx, pondo de sobreaviso os operários parisienses contra o perigo, demonstrava-lhes que qualquer tentativa para derrubar o governo era uma tolice ditada pelo desespero. Mas quando, em Março de 1871, a batalha decisiva foi imposta aos operários e estes a aceitaram, quando a insurreição se tornou um facto consumado, Marx saudou com entusiasmo a revolução proletária. Apesar dos seus sinistros prognósticos, Marx não teimou em condenar por pedantismo um movimento "prematuro", como o fez o renegado russo do marxismo Plekhanov, de triste memória, cujos escritos instigadores, encorajavam à luta os operários e camponeses em Novembro de 1905, e que, após Dezembro de 1905, gritava como os liberais: " Não era necessário pegar em armas!"

Marx não se contentou em entusiasmar-se com o heroísmo dos comunardos no “assalto aos céus”, segundo a sua expressão. Muito embora o movimento revolucionário das massas falhasse o objectivo, Marx viu nele uma experiência histórica de enorme importância, um passo para a frente na revolução proletária universal, uma tentativa prática mais importante do que centenas de programas e argumentos. Analisar essa experiência, colher nela lições de táctica e submeter à prova a sua teoria, eis a tarefa a que Marx se impôs.

A única "correcção" que Marx julgou necessário introduzir no “Manifesto do Partido Comunista”, fê-la segundo a experiência revolucionária dos comunardos de Paris.

O último prefácio do “Manifesto do Partido Comunista”, assinado conjuntamente pelos dois autores, data de 24 de Junho de 1872. Nele, Karl Marx e Friedrich Engels dizem que o programa do Manifesto “envelheceu em alguns dos seus pontos”, continuando:

A Comuna demonstrou, nomeadamente, que a «classe operária não pode contentar-se com tomar tal qual a máquina estatal e fazê-la funcionar por sua própria conta».

As últimas palavras entre aspas dessa citação foram tiradas da obra de Marx “A Guerra Civil em França”.

Assim, Marx e Engels atribuíram tão grande importância a esta lição fundamental da Comuna de Paris, que a introduziram, como correcção essencial, no “Manifesto do Partido Comunista”.

É bastante característico que seja justamente essa correcção essencial o que os oportunistas deturpam, a tal ponto que sem dúvida para nove décimos, senão para noventa e nove centésimos dos leitores do Manifesto, o seu significado é desconhecido. Desta distorção falaremos num dos capítulos seguintes, consagrado especialmente às distorções. Aqui, bastará salientar que segundo a "interpretação" corrente, vulgar, da famosa fórmula de Marx por nós citada, ele teria destacado a ideia do desenvolvimento lento em oposição à conquista do poder, etc.

Na realidade, é justamente o contrário. A ideia de Marx é que a classe operária deve quebrar, destruir a "máquina estatal", não se limitando apenas a assenhorear-se dela.

Em 12 de Abril de 1871, isto é, precisamente durante a Comuna, Marx escrevia a Kugelmann:

"Se olhares o último capítulo do meu 18 de Brumário, verás que exponho a forma como a próxima tentativa da revolução em França não consistirá em passar de umas mãos para outras a máquina burocrática e militar – como tem feito até aqui – mas em quebrá-la (zerbrechen: a palavra é sublinhada por Marx no original). Eis a condição prévia de qualquer revolução verdadeiramente popular no continente. Eis também o que tentaram os nossos heróicos camaradas de Paris” (Neue Zeit, XX, 1, 1901-1902, p. 709). (Há pelo menos duas edições em russo das cartas de Marx a Kugelmann, uma das quais editada e prefaciada por mim.)

Essas palavras – "quebrar a máquina burocrática e militar do Estado" – condensam a grande lição do marxismo sobre a tarefa do proletariado relativa ao Estado durante a revolução. E é precisamente esta lição que se esquece completamente e que a "interpretação" dominante do marxismo, devido a Kautsky, distorce completamente!

Quanto à passagem do “18 de Brumário” à qual se refere Marx e que anteriormente citamos por extenso, há, principalmente, dois pontos a assinalar.

Primeiro, ele torna extensiva a sua conclusão apenas ao continente. Isso compreendia-se em 1871, quando a Inglaterra era ainda um modelo de país puramente capitalista, mas sem militarismo e, até certo ponto, sem burocracia. Essa a razão pela qual Marx excluiu a Inglaterra, onde a revolução, e mesmo a revolução popular, parecia possível, e o era, sem a destruição prévia da "máquina do Estado".

Em 1917, na época da primeira guerra imperialista, essa restrição de Marx cai: a Inglaterra e os Estados Unidos, os maiores e últimos representantes no mundo da "liberdade" anglo-saxónica, sem militarismo e sem burocracia, atolam-se completamente no pântano infecto e sangrento das instituições burocráticas e militares à europeia, onde tudo é oprimido, tudo é esmagado. Actualmente, tanto na Inglaterra como na América, "a condição prévia para qualquer revolução verdadeiramente popular" é igualmente a desmontagem, a destruição da "máquina do Estado" (levada, de 1914 a 1917, a uma perfeição europeia, imperialista).

Em segundo lugar, o que merece uma atenção especial é essa profunda observação de Marx de que a destruição da máquina burocrática e militar do Estado é a "condição prévia de qualquer revolução verdadeiramente popular". Essa expressão – "revolução popular" – parece surpreendente na boca de Marx, e os adeptos de Plekhanov na Rússia, assim como os mencheviques, esses discípulos de Struve, desejosos de se passarem por marxistas, poderiam tomá-la por um "engano". Reduziram o marxismo a uma doutrina tão mesquinhamente liberal que, excluindo a antítese – revolução burguesa e revolução proletária – nada existe para eles, e, ainda assim, só concebem essa antítese como uma coisa já morta.

Se tomarmos como exemplo as revoluções do século XX, temos de reconhecer que as revoluções portuguesa e turca foram revoluções burguesas. Mas, nem uma nem outra foram "populares". De facto, a massa do povo, a grande maioria, com as suas exigências económicas e políticas próprias, não fez sentir a sua influência nem numa nem noutra. Em compensação, a revolução burguesa na Rússia em 1905-1907, sem ter tido os "brilhantes" resultados da portuguesa e da turca, foi, sem contestação, uma revolução "verdadeiramente popular"; aqui, a massa do povo, a sua maioria, as suas camadas sociais "inferiores", esmagadas sob o jugo da exploração, sublevaram-se espontaneamente e imprimiram a todo o curso da revolução o cunho das suas exigências, das suas tentativas para reconstruir à sua maneira uma nova sociedade no lugar da antiga em vias de destruição.

Em nenhum dos países da Europa continental de 1871, a maioria do povo era constituída pelo proletariado. A revolução capaz de arrastar a maioria do movimento só poderia ser "popular" com a condição de englobar o proletariado e os camponeses, Essas duas classes constituíam, então, "o povo". Essas duas classes são solidárias, visto que a "máquina burocrática e militar do Estado" as oprime, as esmaga e as explora. Quebrar essa máquina, demoli-la, tal é o objectivo prático do "povo", da sua maioria, dos operários e dos camponeses; tal é a "condição prévia" da aliança livre dos camponeses mais pobres e do proletariado. Sem essa aliança, não há democracia sólida nem transformação social possível.

Era para essa aliança, como se sabe, que tendia a Comuna de Paris, que falhou por uma série de razões de ordem interna e externa.

Ao falar de uma "revolução verdadeiramente popular", sem esquecer as particularidades da pequena burguesia, a que muitas vezes e largamente se referiu, Marx media rigorosamente as relações de forças sociais na maioria dos Estados continentais da Europa, em 1871. Por outro lado, constatava que os operários e camponeses são igualmente interessados em quebrar a máquina do Estado e em coligarem-se para o objectivo comum de suprimir o "parasita" e de o substituir por alguma coisa de novo.

Exactamente, por qual coisa?

 

 

2. A Máquina do Estado, uma vez Destruída, por qual Coisa Deve Ser Substituída?

No “Manifesto do Partido Comunista”, em 1847, Marx ainda não dava a esta pergunta senão uma resposta completamente abstracta; ou melhor, limitava-se a enunciar o problema sem precisar os meios de o resolver. Substituir a máquina do Estado pela "elevação do proletariado a classe dominante", pela "conquista da democracia", tal era a resposta.

Para não cair na utopia, Marx esperava da experiência do movimento de massas a resposta à questão de saber que formas concretas tomaria essa elevação do proletariado a classe dominante e de que modo essa elevação se conciliaria com uma inteira e metódica "conquista da democracia".

Na Guerra Civil em França, Marx submete a uma análise das mais atentas a experiência da Comuna, malgrado a debilidade desta. Citaremos os pontos principais dessa obra:

No século XIX desenvolveu-se, originado na Idade Média, "o poder centralizado do Estado, com os seus órgãos omnipresentes: exército permanente, policia, burocracia, clero, magistratura". Graças ao desenvolvimento do antagonismo de classes entre o Capital e o Trabalho, "o poder do Estado assumiu cada vez mais o carácter de uma força pública organizada para a opressão dos trabalhadores, de um instrumento de dominação de classe. Qualquer revolução que marque uma etapa da luta de classes faz destacar, com um relevo cada vez maior, o carácter repressivo do poder do Estado". Depois da revolução de 1848-49, o poder do Estado torna-se "o grande instrumento nacional da guerra do Capital contra o Trabalho". O segundo Império não fez mais senão consolidá-lo.

"O oposto do Império foi a Comuna". “Foi a forma específica”, de uma "República que devia suprimir não só a forma monárquica da dominação de classe, mas a própria dominação de classe"…

Em que consistia essa “forma específica" de República proletária socialista? Que espécie de Estado começou a Comuna a criar?

…“O primeiro decreto da Comuna suprimiu o exército permanente e substituiu-o pelo povo armado”…

Essa reivindicação encontra-se, hoje, no programa de todos os partidos que se dizem socialistas. Mas, vê-se o que valem os programas dos nossos socialistas-revolucionários e mencheviques, que, após a revolução de 27 de Fevereiro, se recusaram precisamente a satisfazer essa reivindicação!

…”A Comuna foi constituída por conselheiros municipais eleitos por sufrágio universal nos diferentes bairros de Paris. Eram responsáveis e, a todo o tempo, amovíveis. A maioria compunha-se, muito naturalmente, de operários ou de representantes reconhecidos da classe operária”...

…”A polícia, até então agente do governo central, foi imediatamente despojada das suas atribuições políticas, tornando-se um agente responsável e sempre amovível da Comuna... O mesmo princípio foi aplicado a todos os funcionários da administração… Dos membros da Comuna até baixo, o serviço público tinha de ser feito com salário de operário. Os privilégios e os subsídios de representação dos altos titulares do Estado desapareceram com esses mesmos títulos...Suprimidos o exército permanente e a polícia, elementos da força material do antigo governo, a Comuna decidiu destruir a força espiritual da repressão, o poder dos padres...Os magistrados perderam a sua independência fictícia... e, como os demais servidores do povo, passaram a ser eleitos, responsáveis e amovíveis”...

Assim, a Comuna "contentava-se” por assim dizer, em substituir a máquina do Estado quebrada por uma democracia mais completa: supressão do exército permanente, elegibilidade e amovibilidade de todos os funcionários. Na verdade, ela "contentava-se" em substituir – obra gigantesca – certas instituições por outras instituições essencialmente diferentes. É este, exactamente, um caso de "transformação de quantidade em qualidade": a democracia, realizada tão plenamente e tão metodicamente quanto é possível sonhar-se, tornou-se proletária, de burguesa que era; o Estado (= força especial para suprimir socialmente uma classe em particular) transformou-se numa coisa que já não é, propriamente falando, um Estado.

Não é por essa razão que deixa de ser necessário reprimir e quebrar a resistência da burguesia. Para a Comuna, isso era particularmente necessário, e uma das causas da sua derrota foi não se ter lançado a fundo nessa tarefa. Mas, na Comuna, o órgão de repressão era a esmagadora maioria da população e não uma minoria, como foi sempre o caso sob escravidão, servidão e salariado. Ora, uma vez que é a própria maioria do povo que oprime os seus opressores, já não há necessidade de uma "força especial" de repressão! É nesse sentido que o Estado começa a desvanecer. Em lugar de instituições especiais de uma minoria privilegiada (burocracia privilegiada, chefes do exército permanente), a própria maioria pode desempenhar directamente as funções do poder estatal, e, quanto mais o próprio povo assumir essas funções, tanto menos se fará sentir a necessidade desse poder.

A esse respeito, é particularmente notável uma das medidas tomadas pela Comuna salientada por Marx: supressão de todas as despesas de representação, supressão dos privilégios pecuniários dos funcionários, redução de todos os ordenados dos servidores do Estado ao nível do "salário de operário". É nisto que mais se faz sentir a passagem brusca da democracia burguesa para a democracia proletária, a passagem da democracia dos opressores para a democracia dos oprimidos, a passagem da dominação de uma "força especial" de repressão de determinada classe para o esmagamento dos opressores pelas forças combinadas da maioria do povo, dos operários e dos camponeses. E é precisamente neste ponto, talvez o mais importante porque é a questão do Estado que está em causa, que as ideias de Marx foram mais completamente ignoradas! Os inúmeros comentários dos vulgarizadores nunca tocam nele! O silêncio é mantido como se o assunto fosse uma "ingenuidade" antiquada, exactamente como os cristãos fizeram, uma vez o seu culto tornado religião de Estado, "esquecendo-se" das "ingenuidades" do cristianismo primitivo e do seu espírito democrático revolucionário.

A redução geral dos vencimentos dos altos funcionários parece a "simples" exigência de um democratismo ingénuo e primitivo. Um dos “fundadores” do oportunismo moderno, o ex-social-democrata Eduardo Bernstein, não se limita a repetir as medíocres zombarias burguesas contra o democratismo "primitivo". Como todos os oportunistas e como os kautskistas do nosso tempo, Bernstein não compreendeu em absoluto que a passagem do capitalismo ao socialismo é impossível sem um certo "regresso" ao democratismo "primitivo" (como poderiam ser desempenhadas, de outro modo, as funções do Estado pela maioria da população e depois por toda a população?) e que, por outro lado, este "democratismo primitivo", baseado no capitalismo e na civilização capitalista, não é o democratismo primitivo das épocas antigas ou pré-capitalistas. A cultura capitalista criou a produção em grande escala, as fábricas, os caminhos-de-ferro, o correio, o telefone, etc.; ora, nessa base, a grande maioria das funções do velho "poder do Estado" tem-se por tal forma simplificado e pode ser reduzida a operações tão simples de registo, inscrição e fiscalização, que essas funções se tornarão inteiramente acessíveis a qualquer cidadão com instrução primária, mediante um "salário de operário", e podem (e devem) perder, até ao último vestígio, o carácter privilegiado e "hierárquico".

Elegibilidade absoluta, amovibilidade, em qualquer tempo, de todos os empregos sem excepção, redução dos vencimentos ao nível do “salário de operário”: estas medidas democráticas, simples e “evidentes por si mesmas”, ao mesmo tempo que solidarizam os interesses dos operários aos da maioria dos camponeses, servem como uma ponte que conduz do capitalismo ao socialismo. Essas medidas referem-se ao Estado, a uma reconstrução puramente política da sociedade, e, naturalmente, só atingem todo o significado e todo o alcance com a preparada ou realizada "expropriação dos expropriadores", isto é, com a socialização da propriedade privada capitalista dos meios de produção.

A Comuna – escreveu Marx – converteu o lema de todas as revoluções burguesas, o governo barato, numa realidade, ao suprimir as duas maiores fontes de despesas, o exército e a burocracia”.

Entre os camponeses, como nas outras camadas da pequena burguesia, só uma ínfima minoria consegue "subir" e "vencer", no sentido burguês da palavra – isto é, só poucos indivíduos chegam a uma situação abastada, de burgueses ou funcionários garantidos e privilegiados. Em todos os países capitalistas onde há camponeses (e há-os na maioria dos países capitalistas), a grande 'maioria dos camponeses é oprimida pelo governo e aspira a derrubá-lo para instalar, enfim, um "governo barato". Esta é uma tarefa que só o proletariado pode realizar, a ao realizá-la dá, ao mesmo tempo, um passo no sentido da transformação socialista do Estado.

 

3. A Supressão do Parlamento

A Comuna, disse Marx, devia ser, não uma corporação parlamentar, mais sim uma corporação laboriosa, ao mesmo tempo legislativa e executiva”...

…”Em lugar de resolver, de três em três ou de seis em seis anos, qual o membro da classe dominante que deverá representar e esmagar [ver-und zertreten] o povo no parlamento, o sufrágio universal devia servir ao povo constituído em comunas, da mesma forma que o sufrágio individual serve qualquer outro patrão, na procura de operários, contramestres e guarda-livros para o seu negócio”.

Esta crítica notável do parlamentarismo, feita em 1871, deve à hegemonia do social-chauvinismo e do oportunismo a sua inclusão nas "páginas esquecidas" do marxismo. Ministros e parlamentares de profissão, os renegados do proletariado e “mercadores” socialistas contemporâneos deixaram aos anarquistas o monopólio da crítica do parlamentarismo e, nessa base surpreendentemente criteriosa, classificaram de "anarquista" qualquer crítica do parlamentarismo!! Não é, pois, de admirar que o proletariado dos países parlamentares "avançados", enjoado de socialistas como Scheidemann, David, Legien, Sembat, Renaudel, Henderson, Vandervelde, Stauning, Branting, Bissolati e Cia., tenha reservado cada vez mais as suas simpatias para o anarco-sindicalismo, apesar de este ser irmão do oportunismo.

A dialéctica revolucionária nunca foi para Marx a fraseologia da moda, a coisa enfadonha que dela fizeram Plekhanov, Kautsky e outros. Marx soube romper impiedosamente com o anarquismo, pela incapacidade deste em utilizar o verdadeiro "estábulo" que é o parlamento burguês, principalmente quando a situação não é, de forma alguma, revolucionária; mas, ao mesmo tempo, soube fazer uma crítica verdadeiramente revolucionária e proletária do parlamentarismo.

Decidir periodicamente, para um certo número de anos, qual o membro da classe dominante que há-de oprimir e esmagar o povo no parlamento, eis a própria essência do parlamentarismo burguês, não somente nas monarquias parlamentares constitucionais, como também nas repúblicas mais democráticas.

Entretanto, pondo-se a questão do Estado e considerando o sistema parlamentar como uma das 'instituições' do Estado, qual é a saída do parlamentarismo, do ponto de vista das tarefas do proletariado neste domínio? E como dispensá-lo?

Devemos repeti-lo ainda outra vez: os ensinamentos de Marx baseados no estudo da Comuna estão tão bem esquecidos que o “social-democrata” contemporâneo (leia-se: o renegado contemporâneo do socialismo) é incapaz de conceber outra crítica do parlamentarismo que não seja a critica anarquista ou reaccionária.

O meio de sair do parlamentarismo não é, certamente, anular as instituições representativas e as eleições, mas sim transformar esses moinhos de palavras que são as assembleias representativas em assembleias capazes de "trabalhar" verdadeiramente. “A Comuna, devia ser, não uma corporação parlamentar, mais sim uma corporação laboriosa, ao mesmo tempo legislativa e executiva”.

Uma “corporação não parlamentar, mais sim laboriosa”, escutem bem, seus "cães de regaço" parlamentares da social-democracia moderna! Reparem em qualquer país de parlamentarismo, desde a América à Suíça, desde a França à Noruega, etc.: a verdadeira tarefa "estatal" é feita por detrás dos bastidores, e são os ministérios, as secretarias, os estados-maiores que a fazem. Nos parlamentos, só se faz tagarelar, com o único intuito de enganar a "plebe". Isso é tão verdadeiro que, mesmo na república russa, república democrática burguesa, ainda antes de ter conseguido criar um verdadeiro parlamento já todos estes pecados do parlamentarismo se fazem sentir. Os heróis da pequena burguesia apodrecida, os Skobelev e os Tseretelli, os Tchernov e os Avksentiev, conseguiram gangrenar até os Sovietes, à maneira do mais repugnante parlamentarismo burguês, fazendo deles moinhos de palavras. Nos Sovietes, os srs. ministros "socialistas" enganam os mujiques de boa fé com a sua fraseologia e as suas resoluções. O governo é uma quadrilha permanente para, por um lado, distribuir à vez pelo maior número possível de socialistas-revolucionários e de mencheviques, "as fatias do bolo" dos empregos lucrativos e honoríficos, e, por outro, para "tomar conta da atenção" do povo. Enquanto isso, as secretarias e os estados-maiores vão “tratando” dos negócios do "Estado"!

O Dielo Naroda, órgão do Partido “Socialista-Revolucionário” no poder, num editorial ultimamente publicado, confessa, – com a incomparável franqueza de gente da "boa sociedade", “totalmente” caída na prostituição política –, que, mesmo nos ministérios pertencentes aos "socialistas" (desculpem a expressão!), todo o aparelho administrativo funciona como antigamente, que nada ali mudou e que as reformas revolucionárias são sabotadas com plena "liberdade"! Mas, mesmo sem essa confissão, acaso a história da participação dos socialistas-revolucionários e dos mencheviques no governo não é a melhor prova disso? E o que é característico é que, ocupando os ministérios ao lado dos cadetes, os srs. Tchernov, Russanov, Zenzinov e outros redactores do Dielo Naroda levam a imprudência ao ponto de contar publicamente e sem corar, como se fosse uma coisa sem consequências, que nos seus ministérios nada mudou!! Fraseologia revolucionário-democrática para enganar o ingénuo camponês, burocracia e paramentos para "seduzir" o capitalista, eis o fundo da "confusa" Aliança.

Este parlamentarismo venal e putrefacto da sociedade burguesa, substitui-o a Comuna por instituições onde a liberdade de discussão e de exame não degenera em intrujice; os próprios mandatários trabalham e fazem executar as suas leis, verificam os resultados obtidos e respondem directamente perante os seus eleitores. As instituições representativas são mantidas, mas já não há parlamentarismo como sistema especial, como divisão do trabalho legislativo e executivo e como situação privilegiada para os deputados. Não podemos imaginar uma democracia, mesmo proletária, sem instituições representativas, mas podemos e devemos realizá-la sem parlamentarismo, se a crítica da sociedade burguesa não é, pelo menos para nós, uma palavra vã, se o nosso esforço para derrubar a dominação da burguesia é um esforço honesto e sincero e não uma expressão "eleitoral", destinada simplesmente a surripiar os votos dos operários, como sucede com os mencheviques e sr.s como Scheidemann e Legien, Samba e Vandervelde.

É extremamente instrutivo ver que Marx, falando do género de administração que é necessário à Comuna e à democracia proletária, toma como termo de comparação o pessoal de "qualquer outro patrão", isto é, de uma empresa capitalista comum, com os seus “operários, contramestres e guarda-livros".

Em Marx não há nem rasto de utopia, pois não in­venta, nem tira da sua imaginação, uma "nova sociedade”. Não, Marx estuda, como um pro­cesso histórico-natural, como nasce a nova sociedade da velha, estuda as formas de transição da segunda para a primeira. Toma a experiência real do movi­mento proletário de massas e esforça-se por tirar os ensinamentos práticos dele. "Aprende" da Comuna como todos os grandes pensadores revolucionários, que não temeram aprender co a experiência dos grandes movimentos da classe oprimida nem nunca lhe dirigiram "sermões" pedantescos (no estilo de: "não se devia ter empunhado as armas" de Plekhanov, ou de "uma classe deve saber moderar-se" de Tseretelli).

Não se trata de aniquilar o funcionalismo de um golpe, totalmente e por toda parte. Isso seria utopia. Mas destruir sem demora a velha máquina administrativa, para começar imediatamente a construir uma nova, que permita suprimir gradualmente o funcionalismo, isso não é utopia, é a experiência da Comuna, a tarefa evidente e imediata do proletariado revolucionário.

A simplificação das funções do "Estado" capitalista permite que se suprima a "hierarquia", reduzindo tudo a uma organização dos proletários (como classe dominante), que emprega, por conta do conjunto da sociedade, “operários, contramestres e guarda-livros”.

Nós não somos utópicos. Nós não "sonhamos" com dispensar bruscamente, de um dia para o outro, todo e qualquer governo, toda e qualquer subordinação; isso são sonhos anarquistas resultantes da incompreensão do papel da ditadura do proletariado, sonhos que nada têm de comum com o marxismo e que, na realidade, só servem para adiar a revolução socialista até que os homens sejam de outra essência. Não, nós queremos a revolução socialista com os homens tais como são hoje, não podendo dispensar nem a subordinação, nem o controle, nem os "contramestres e guarda-livros".

Mas a subordinação deve fazer-se à vanguarda armada de todos os explorados e trabalhadores – ao proletariado. Por onde se pode e deve começar, imediatamente, de um dia para o outro, é pela substituição da "hierarquia" específica dos funcionários por simples cargos de "contramestres e guarda-livros", cargos já agora inteiramente acessíveis à população urbana, dado o grau do seu desenvolvimento geral, e que podem muito bem ser pagos por "salários de operário".

Organizar, nós mesmos, os operários, a produção em larga escala segundo os modelos que o capitalismo criou, com base na nossa experiência de produção, impondo uma disciplina rigorosa, uma disciplina de ferro, mantida pelo poder político dos operários armados; reduzir os funcionários do Estado ao papel de simples executores da nossa vontade, responsáveis e amovíveis, ao papel de "contramestres e guarda-livros" modestamente pagos (conservando, evidentemente, os técnicos e especialistas de toda espécie e categoria): tal é a nossa tarefa proletária, tal é o modo por que deve começar a revolução proletária. Esse programa, aplicado na base da produção em larga escala, acarreta por si mesmo o "desvanecimento" progressivo de todo o funcionalismo, o estabelecimento gradual de um regime inteiramente diferente da escravidão do assalariado, um regime onde as funções, cada vez mais simplificadas, de fiscalização e contabilidade, serão desempenhadas por todos, cada qual por seu turno, tornando-se depois um reflexo para, finalmente, desaparecerem como funções especiais de uma categoria especial de indivíduos.

Mais ou menos em 1870, um espirituoso social-democrata alemão considerava o correio como exemplo de sistema económico socialista. Nada mais justo. Actualmente, o correio é uma empresa organizada, segundo um modelo de monopólio capitalista de Estado. O imperialismo transforma, a pouco e pouco, todos os trusts em organizações deste tipo. Os "simples" trabalhadores, famintos e sobrecarregados de trabalho, continuam submetidos à mesma burocracia burguesa. Mas, o mecanismo da gestão social está pronto. Uma vez derrubados os capitalistas, uma vez quebrada, pela mão de ferro dos operários armados, a resistência dos seus exploradores, uma vez demolida a máquina burocrática do Estado actual, estaremos diante de um mecanismo admiravelmente aperfeiçoado, livre do "parasita", e que os próprios trabalhadores, unidos, podem muito bem pôr em funcionamento, contratando técnicos, contramestres e guarda-livros e pagando-lhes, a todos, pelo seu trabalho, como a todos os funcionários "públicos" em geral, um salário de operário. Eis uma tarefa concreta, prática, imediatamente realizável em relação a todos os trusts, destinada a libertar da exploração os trabalhadores tendo em conta a experiência já iniciada na prática pela Comuna (sobretudo no domínio da organização do Estado).

Toda a economia nacional organizada à maneira dos correios, na qual todos os técnicos, fiscais e guarda-livros, todos os funcionários, recebem um vencimento que não exceda o salário de operário, sob a direcção e o controle do proletariado armado – eis o nosso objectivo imediato. Eis o Estado, eis a base económica de que necessitamos. Eis o que aniquilará o parlamentarismo, mantendo, no entanto, as instituições representativas; eis o que livrará as classes laboriosas da prostituição das instituições burguesas.

 

4. Organização da Unidade da Nação

…”Num breve esboço sobre a organização nacional, que a Comuna não teve tempo de desenvolver, afirma-se explicitamente que a Comuna deveria ser… a forma política de todas as aldeias, mesmo as menores”... Seriam as comunas a eleger a "delegação nacional" a Paris.

…”As funções, pouco numerosas, mas muito importantes, que ainda restariam para um governo central, não seriam suprimidas – como se disse erroneamente de forma deliberada – mas, sim, confiadas a agentes comunais e, por conseguinte, rigorosamente responsáveis”…

…”A unidade da nação não devia ser destruída, mas, ao contrário, organizada, segundo a constituição comunal. Tornar-se-ia uma realidade pela destruição do poder do Estado, que pretende ser a encarnação dessa unidade, mas independente da nação e colocado acima dela. De facto não passa de uma excrescência parasitária dessa mesma nação”... “Ao mesmo tempo, os órgãos puramente repressivos do velho poder estatal seriam amputados, as funções úteis seriam arrancadas a uma autoridade que usurpava a preeminência e se colocava acima da sociedade, e entregues a agentes responsáveis da própria sociedade”.

Ao ponto a que chegaram os oportunistas da social-democracia contemporânea na não compreensão – melhor dizendo, na falta de vontade de compreender – desta argumentação de Marx, não há prova melhor do que o livro do renegado Bernstein, “Socialismo Teórico e Social-Democracia Prática”, com que ele adquiriu uma celebridade do mesmo quilate que a de Eróstrato. Precisamente a propósito dessa passagem de Marx, escreve Bernstein que aí se encontra "a exposição de um programa que, em suas tendências políticas, se assemelha de modo notável ao federalismo". E mais adiante: "Enfim, apesar de todas as outras dissemelhanças entre Marx e o "pequeno-burguês" Proudhon – Bernstein escreve "pequeno-burguês" entre aspas, por ironia – a maneira de ver de ambos, a esse respeito, é quase idêntica". Sem dúvida, continua Bernstein, a importância das municipalidades aumenta, mas "parece-me duvidoso que o primeiro objectivo da democracia seja a dissolução (Auflosung) dos Estados modernos e uma metamorfose (Umwandlung) tão completa da sua estrutura como imaginam Marx e Proudhon: formação de uma assembleia nacional de delegados das assembleias estaduais ou municipais, que, por sua vez, se comporiam de delegados das comunas, de maneira que as representações nacionais, na sua forma actual, desapareciam por completo". (Bernstein, Premissas, ed. alemã, 1899, pág.134 e 136)

Simplesmente monstruoso: assimilar as ideias de Marx sobre “o aniquilamento do poder do Estado – parasita" ao federalismo de Proudhon! Mas, não se trata de um acidente, porque nem sequer passa pela cabeça do oportunista que Marx trata aqui, não do federalismo em oposição ao centralismo, mas sim da demolição da velha máquina de Estado burguesa existente em todos os países burgueses.

Ao oportunista só vem à mente o que vê em torno de si, no seu meio pequeno-burguês de estagnação "reformista", ou sejam as "municipalidades"! Quanto à revolução do proletariado, já nem sequer pensa nisso.

É ridículo. Mas, o mais curioso é que, nesse ponto, ninguém contraditou Bernstein. Muitos o refutaram, entre outros Plekhanov na Rússia e Kautsky na Europa ocidental, mas nem um nem outro referiu essa deformação de Marx por Bernstein.

O oportunista anda tão esquecido de pensar revolucionariamente e de pensar na revolução, que vê "federalismo" em Marx, assim confundindo-o com o fundador do anarquismo, Proudhon. E Kautsky, e Plekhanov, que pretendem ser marxistas ortodoxos e defender o marxismo revolucionário, calam-se! Eis uma das razões dessa extrema degradação de pontos de vista, comum aos kautskistas e oportunistas, sobre a diferença entre o marxismo e o anarquismo. Mas voltaremos ao assunto.

Nos comentários já citados de Marx sobre a experiência da Comuna, não há nem sombra de federalismo. Marx está de acordo com Proudhon precisamente num ponto que o oportunista Bernstein não vê; Marx afasta-se de Proudhon justamente ali onde Bernstein os vê de acordo.

Marx está de acordo com Proudhon no facto de ambos serem pela "demolição" da máquina do Estado moderno. Essa analogia entre o marxismo e o anarquismo (o de Proudhon e de Bakunine) nem os oportunistas nem os kautskistas a querem ver, pois que, nesse ponto, eles mesmos se desviaram do marxismo.

Marx afasta-se, ao mesmo tempo, de Proudhon e de Bakunine precisamente na questão do federalismo (não falando na questão da ditadura do proletariado). O federalismo, como principio, deriva logicamente do ponto de vista pequeno-burguês do anarquismo. Marx é centralista, e, em todas as passagens dele citadas, não se pode encontrar a menor infidelidade ao centralismo. Só as pessoas imbuídas de uma "fé supersticiosa" no Estado é que podem tomar a destruição da máquina burguesa como destruição do centralismo!

Ora, se o proletariado e os camponeses pobres se apossam do poder do Estado, organizando-se livremente em comunas e coordenando a acção de todas as comunas para ferir o Capital, destruir a resistência dos capitalistas, restituir a toda a nação, à sociedade inteira, a propriedade privada dos caminhos-de-ferro, das fábricas, da terra, etc., não será isso centralismo? Não será isso o centralismo democrático mais consequente? Para além disso, não será um centralismo proletário?

Bernstein não concebe um centralismo voluntário, uma união voluntária das comunas em nação, uma fusão voluntária das comunas proletárias com o fito de destruir a dominação burguesa e a máquina de Estado burguesa. Bernstein, como bom filisteu, imagina o centralismo como qualquer coisa que, vinda de cima, só pode ser imposta e mantida pelo funcionalismo e o militarismo.

Como que prevendo que poderiam deturpar a sua doutrina, Marx acentua que é cometer uma fraude deliberada acusar a Comuna de ter querido destruir a unidade da nação para abolir o poder central. Marx emprega intencionalmente a expressão: "organizar a unidade da nação", para opor o centralismo proletário, consciente, democrático, ao centralismo burguês, militar, burocrático.

Mas… não há pior surdo do que o que não quer ouvir. Os oportunistas da social-democracia contemporânea não querem ouvir falar nem de destruir o poder do Estado nem de amputar o parasita.

 

5. Destruição do Estado Parasita

Já citamos Marx a este respeito. Só resta completar as citações.

…”É sina, em geral, das criações históricas inteiramente novas serem tomadas, erradamente, por cópias de outras formas mais antigas e até extintas da vida social, com as quais podem ter certas semelhanças. Assim, nesta nova Comuna que quebra (bricht) o poder do Estado, quis-se ver a reprodução das comunas da Idade Média,.. uma federação de pequenos Estados (Montesquieu, Girondinos),.. uma forma exagerada da antiga luta contra os abusos da centralização”...

…“Na realidade, a constituição comunal teria restituído ao corpo social todas as forças até então absorvidas pelo Estado, parasita que se nutre da substância da sociedade e paralisa o seu livre movimento. Esse facto bastaria, por si só, para torná-la um ponto de partida para a regeneração da França”...

…”Na realidade, a constituição comunal, colocava os produtores rurais sob a direcção intelectual das cidades de cada região, onde ela lhes daria, na pessoa dos operários, os guardiães naturais de seus interesses. A própria existência da Comuna implicava naturalmente o auto-governo local; mas não como contrapeso ao poder do Estado, agora redundante”.

"Destruição do poder do Estado", uma "excrescência parasitária", a sua "amputação", a sua “quebra”, um "poder do Estado que agora passa a redundante" – eis os termos com os quais Marx fala do Estado, julgando e analisando a experiência da Comuna.

Foi há cerca de cinquenta anos que tudo isto foi escrito, e agora é quase necessário proceder a escavações para redescobrir e apresentar à consciência das massas um marxismo não distorcido. As conclusões tiradas por Marx da última grande revolução de seu tempo foram esquecidas justamente no momento das grandes revoluções modernas do proletariado.

…”A multiplicidade de interpretações a que a Comuna deu lugar, a multiplicidade de interesses que nela encontraram expressão provam que foi uma forma política comunicativa no mais alto grau enquanto as formas anteriores foram essencialmente repressivas. Eis o verdadeiro segredo: era ela, acima de tudo, um governo da classe operária; o resultado da luta entre a classe que produz e a classe que se apropria dos produtos; a forma política, enfim encontrada, sob a qual a emancipação económica do trabalho poderia ser realizada”….

“Sem esta última condição, a constituição comunal teria sido uma impossibilidade e uma decepção”

Alguns utópicos têm-se preocupado em "pesquisar" as formas políticas sob as quais deverá produzir-se a transformação socialista da sociedade. Os anarquistas afastaram a questão das formas políticas em geral. Os oportunistas da social-democracia contemporânea aceitaram as formas políticas burguesas do Estado democrático parlamentar como um limite intransponível; quebraram a cabeça de tanto se prostrarem diante desse "paradigma" e taxaram de anarquismo todas as tentativas de destrui-lo.

De toda a história do socialismo e da luta política, Marx concluiu que o Estado está condenado a desaparecer, e que a forma transitória do Estado em vias de desaparecimento (a transição do Estado para a ausência do Estado), será o "proletariado organizado como classe dominante". Mas Marx nunca se propôs a descobrir as formas políticas do futuro. Limitou-se à observação exacta, à análise da história francesa e à conclusão que sobressaía do ano de 1851, isto é, que caminhamos para a destruição da máquina do Estado burguês.

Quando o movimento revolucionário do proletariado surgiu em grande escala, apesar do seu insucesso, da sua brevidade e fragilidade patente, Marx pôs-se a estudar as formas políticas que se tinham revelado.

A Comuna, tal é a forma, "enfim encontrada" pela revolução proletária, sob a qual se efectuará a emancipação económica do trabalho.

A Comuna é a primeira tentativa da revolução proletária para demolir a máquina do Estado burguês; é a forma política, "enfim encontrada", que pode e deve substituir a máquina do Estado esmagada.

Mais adiante, veremos que as revoluções russas de 1905 e 1917, num quadro diferente e noutras condições, não fazem senão continuar a obra da Comuna, confirmando a genial análise histórica de Marx.

(Cap IV)


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Terça-feira, 3 de Agosto de 2010
O Estado e a Revolução - Cap II A Experiência de 1848-1851

(Início)

 

1. As Vésperas da Revolução

As primeiras obras do marxismo adulto, A Miséria da Filosofia e o “Manifesto do Partido Comunista”, aparecem nas vésperas da revolução de 1848. Em consequência desta circunstância, além da exposição dos princípios gerais do marxismo, temos nelas, até certo ponto, um reflexo da situação revolucionária de então; assim, creio que será mais acertado estudar o que os nossos autores dizem do Estado, antes de examinarmos as suas conclusões da experiência dos anos de 1848-1851.

Em lugar da velha sociedade civil – escreve Marx na Miséria da Filosofia – a classe laboriosa, no curso do seu desenvolvimento, instituirá uma associação onde não existirão nem classes nem os seus antagonismos; e, a partir daí, deixará de haver poder político propriamente dito, pois o poder político é precisamente a expressão oficial do antagonismo existente na sociedade civil”.(Pág 182 da edição alemã de 1885)

É instrutivo aproximar esta exposição geral da ideia do desaparecimento do Estado exposta no “Manifesto do Partido Comunista”, escrito por Marx e Engels alguns meses mais tarde, em Novembro de 1847:

Ao esboçar em traços gerais as fases do desenvolvimento do proletariado, descrevemos a história da guerra civil, mais ou menos oculta, que se desenvolve no seio da sociedade existente, até ao momento em que esta guerra se transforma numa revolução aberta e o proletariado, derrubando pela violência a burguesia, implanta a sua dominação.

Como já vimos mais acima, o primeiro passo da revolução operária é a elevação do proletariado a classe dominante, a conquista da democracia.

O proletariado servir-se-á da sua supremacia política para arrancar pouco a pouco à burguesia todo o capital, para centralizar todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado, quer dizer, do proletariado organizado como classe dominante, e para aumentar com a maior rapidez possível a quantidade das forças produtivas.” (Pág.s 31 e 37 da 7.ª edição alemã)

Vemos aqui formulada uma das mais notáveis e importantes ideias do marxismo a propósito do Estado, a saber a ideia da "ditadura do proletariado" (como Marx e Engels, depois da Comuna de Paris, iriam chamá-la); encontramos, depois, uma definição altamente interessante do Estado, que também faz parte das "palavras esquecidas" do marxismo: "o Estado, quer dizer, o proletariado organizado como classe dominante".

Essa definição do Estado nunca foi comentada na literatura de propaganda e de agitação dos partidos social-democratas oficiais. Ainda mais: foi esquecida precisamente por ser inconciliável com o reformismo e absolutamente contrária aos preconceitos oportunistas habituais e às ilusões pequeno-burguesas sobre o "evolução pacífica da democracia".

O proletariado tem necessidade de um Estado, repisam todos os oportunistas, os social-chauvinistas e os kautskistas, afirmando ser essa a doutrina de Marx, mas "esquecem-se" de acrescentar: primeiro, que o proletariado, segundo Marx, só tem necessidade de um Estado em desvanecimento, isto é, constituído de tal forma que comece sem demora a desvanecer e que não possa deixar de desvanecer; depois, que o Estado de que os trabalhadores precisam não é outra coisa se não "o proletariado organizado como classe dominante".

O Estado é a organização especial de uma força, da força destinada a subjugar determinada classe. Qual é, pois, a classe que o proletariado deve subjugar? Evidentemente, só a classe dos exploradores, a burguesia. Os trabalhadores só têm necessidade do Estado para quebrar a resistência dos exploradores, e só o proletariado tem envergadura para quebrá-la, porque o proletariado é a única classe revolucionária até ao fim e capaz de unir todos os trabalhadores e todos os explorados na luta contra a burguesia, a fim de a remover definitivamente.

As classes exploradoras precisam da dominação política para a manutenção da exploração, no interesse egoísta de uma ínfima minoria contra a imensa maioria do povo. As classes exploradas precisam da dominação política para o completo aniquilamento de qualquer exploração, no interesse da imensa maioria do povo contra a ínfima minoria dos esclavagistas modernos – os proprietários fundiários e os capitalistas.

Os democratas pequeno-burgueses, esses pseudo-socialistas que substituíram a luta de classes por fantasias de harmonia entre classes, fizeram da transformação socialista uma espécie de sonho: para eles, não se trata de derrubar a dominação da classe exploradora, mas de submeter paulatinamente a minoria à maioria consciente dos seus direitos. O único resultado desta utopia pequeno-burguesa, indissoluvelmente ligada à ideia de um Estado acima das classes, foi a traição aos interesses das classes laboriosas, como o provou a história das revoluções francesas de 1848 e de 1871, como o provou a experiência da participação "socialista" nos ministérios burgueses em Inglaterra, França, Itália e outros países, no fim do século XIX e começo do XX.

Marx lutou, durante toda a sua vida, contra o socialismo burguês, ressuscitado actualmente, na Rússia, pelos partidos socialista-revolucionário e menchevique. Marx desenvolveu, consistentemente, a doutrina da luta de classes até estabelecer a doutrina sobre o poder político, sobre o Estado.

A derrocada da dominação da burguesia só é possível pelo proletariado, única classe cujas condições económicas de existência a tornam capaz de preparar e realizar essa derrocada. O regime burguês, ao mesmo tempo que fracciona e dissemina os camponeses e todas as camadas da pequena burguesia, concentra, une e organiza o proletariado. Em virtude do seu papel económico na grande produção, só o proletariado é capaz de ser o guia de todos os trabalhadores e de todas as massas que, embora tão exploradas, escravizadas e esmagadas quanto ele, e mesmo mais do que ele, são incapazes de travar uma luta independente pela sua própria emancipação.

A doutrina da luta de classes, aplicada por Marx ao Estado e à revolução socialista, conduz fatalmente a reconhecer a supremacia política, a ditadura do proletariado, isto é, um poder proletário exercido sem partilha e apoiado directamente na força das massas em armas. O derrubamento da burguesia só é realizável pela transformação do proletariado em classe dominante, capaz de dominar a resistência inevitável e desesperada da burguesia e de organizar todas as massas laboriosas exploradas para um novo regime económico.

O proletariado precisa do poder político, da organização centralizada da força, da organização da violência, para reprimir a resistência dos exploradores e dirigir a massa enorme da população – os camponeses, a pequena burguesia, os semi-proletários – na edificação da economia socialista.

Educando o partido operário, o marxismo molda a vanguarda de um proletariado capaz de tomar o poder e de conduzir todo o povo ao socialismo, capaz de dirigir e de organizar um novo regime, de ser o instrutor, o chefe e o guia de todos os trabalhadores e de todos os explorados na obra de construir a sua própria vida social sem burguesia e contra a burguesia. O oportunismo reinante, em contrapartida, educa os membros do partido operário para serem os representantes dos trabalhadores melhor pagos, se demarcarem das massas, "conviverem" o melhor possível com o capitalismo e venderem por um prato de lentilhas o seu património, isto é, renunciarem ao papel de guias revolucionários do povo contra a burguesia.

"O Estado, quer dizer, o proletariado organizado como classe dominante" – esta teoria de Marx está indissoluvelmente ligada a toda a sua doutrina sobre o papel revolucionário do proletariado na história. Esse papel tem como ponto culminante a ditadura proletária, a dominação política do proletariado.

Mas, se o proletariado precisa do Estado enquanto força especial de repressão contra a burguesia, então uma questão impõe-se: uma tal organização é realizável sem o prévio aniquilamento, a prévia destruição da máquina governamental que a burguesia criou para o seu próprio uso? È à resposta a esta questão que nos conduz “O “Manifesto do Partido Comunista””, e é dela que se ocupa Marx quando resume as lições da revolução de 1848-1851.

 

2. A Experiência de uma Revolução

A propósito da questão do Estado, e estudando os resultados da revolução de 1848-1851, Marx faz, sobre o ponto que nos interessa, o seguinte raciocínio n’"O 18 de Brumário de Luís Bonaparte”:

Mas, a revolução vai ao fundo dos problemas. Por agora pena no purgatório. Mas faz o seu trabalho metodicamente. Até 2 de Dezembro de 1851 [dia do golpe de Estado de Luís Bonaparte], só havia executado metade do trabalho preparatório; ocupa-se, agora, da outra metade. Começou por aperfeiçoar o poder parlamentar, para que fosse possível derrubá-lo. Atingido esse objectivo, passa a aperfeiçoar o poder executivo, reduzindo-o à expressão mais simples, dirigindo-lhe todas as acusações para poder concentrar contra ele todas as suas forças de destruição. E, quando tiver concluído a segunda metade da sua obra preparatória, a Europa erguer-se-á para gritar-lhe com entusiasmo: "bem cavado, velha toupeira!".

Esse poder executivo, com a sua imensa organização burocrática e militar, com o seu mecanismo complicado e artificial, esse exército de mais de meio milhão de funcionários, esse espantoso parasita que, como uma rede, envolve o corpo da sociedade francesa e lhe tapa todos os poros, nasceu na época da monarquia absoluta, no declínio do feudalismo que ele ajudou a precipitar. A primeira revolução francesa desenvolveu a centralização. Mas, ao mesmo tempo, precisou aumentar a extensão, as atribuições e o número de agentes do poder governamental. Napoleão completou esse mecanismo. A monarquia legítima e a monarquia de Julho nada lhe acrescentaram de novo, salvo uma maior divisão do trabalho...

…Por fim, a república parlamentar, na sua luta contra a revolução, viu-se obrigada, juntamente com a tomada de medidas repressivas, a reforçar os recursos e a centralização do poder governamentais. Todos os levantamentos aperfeiçoaram essa máquina, em vez de a despedaçarem. Os partidos que, cada qual por seu turno, lutavam pela supremacia, viam no acto de posse desse enorme edifício o espólio principal do vencedor.” (Pág. 98-99 da 4.ª edição alemã)

Neste notável raciocínio, o marxismo realiza um progresso considerável em relação ao “Manifesto do Partido Comunista”. A questão do Estado era ainda posta, no Manifesto, de uma forma muito abstracta, nos termos e expressões mais gerais. Aqui, a questão põe-se concretamente e a dedução é inteiramente precisa, bem definida, praticamente tangível: todas as revoluções anteriores não fizeram senão aperfeiçoar a máquina governamental, quando o necessário é quebrá-la, esmagá-la.

Esta conclusão constitui o próprio fundo, o essencial da doutrina marxista sobre o Estado. E é precisamente este ponto essencial que foi não só esquecido pelos partidos social-democratas oficiais dominantes, mas também fortemente distorcido (como veremos adiante) pelo mais eminente teórico da II Internacional, Karl Kautsky.

O “Manifesto do Partido Comunista” tira as lições gerais da história; essas lições fazem-nos ver no Estado o órgão de dominação de uma classe e levam-nos necessariamente à conclusão de que o proletariado não pode derrubar a burguesia sem começar por conquistar o poder político, sem alcançar a supremacia política e sem se ter erigido em Estado, isto é, em "proletariado organizado como classe dominante", que começará a desvanecer logo a seguir à vitória, porque, numa sociedade onde não existam antagonismos de classes, o Estado é inútil e impossível. A questão de saber em que consiste, do ponto de vista do desenvolvimento histórico, a substituição do Estado burguês pelo Estado proletário, não é levantada no Manifesto.

Essa questão, colocou-a e resolveu-a Marx em 1852. Fiel à sua filosofia do materialismo dialéctico, toma como base a experiência histórica dos grandes anos revolucionários: 1848-1851. Como sempre, a doutrina de Marx é aqui um resumo das lições da experiência, iluminada por uma concepção filosófica profunda e um conhecimento precioso da história.

A questão do Estado põe-se concretamente: como nasceram, historicamente, o Estado burguês e a máquina estatal necessária à dominação burguesa? Quais têm sido as suas transformações no curso das revoluções burguesas e na presença dos movimentos independentes das classes oprimidas? Qual é o papel do proletariado em relação a essa máquina estatal?

O poder centralizado do Estado, característico da sociedade burguesa, nasceu na época da queda do absolutismo. As duas instituições mais típicas dessa máquina governamental são a burocracia e o exército permanente. Marx e Engels falam várias vezes, nas suas obras, das inúmeras ligações dessas instituições com a burguesia. A experiência de cada trabalhador esclarece essa ligação de forma extremamente viva e perturbante. A classe operária aprende a conhecê-la à sua própria custa. É por isso que compreende tão facilmente e assimila tão bem a ciência que proclama a inevitabilidade desses laços, ciência que os democratas pequeno-burgueses renegam por ignorância e por irreflexão, quando não têm a leviandade ainda maior de a reconhecer "em geral", esquecendo-se de deduzir as consequências práticas.

A burocracia e o exército permanente são "parasitas" da sociedade burguesa, parasitas engendrados pelos antagonismos internos que fraccionam essa sociedade, parasitas que “sufocam” todos os poros vitais. O oportunismo de Kautsky, que predomina, actualmente, na social-democracia oficial, considera essa teoria do Estado parasitário como própria e exclusiva dos anarquistas. Evidentemente, esta deformação do marxismo é de grande vantagem para os filisteus, que levaram o socialismo à vergonha sem precedentes de justificar a guerra imperialista com o conceito da "defesa nacional"; mas, nem por isso deixa de ser uma deformação indiscutível.

Esse aparelho burocrático e militar desenvolve-se, aperfeiçoa-se e consolida-se através das numerosas revoluções burguesas de que a Europa tem sido teatro desde a queda do feudalismo. Em particular, é precisamente a pequena-burguesia quem se deixa seduzir pela grande burguesia e a quem se subordina através desse aparelho, que abastece as camadas superiores do campesinato, dos pequenos artesãos, dos comerciantes, etc., com empregos relativamente cómodos, tranquilos e honoríficos, que colocam os seus titulares acima do povo. Veja-se o que se passou na Rússia, durante seis meses, depois de 27 de Fevereiro de 1917: os empregos públicos, outrora reservados para os ultra-reacionários, tornaram-se presa dos cadetes, dos mencheviques e dos socialistas-revolucionários. No fundo, não se pensava em nenhuma reforma séria; tudo se fazia por adiar as reformas "até à Assembleia Constituinte”, e essa própria Assembleia Constituinte para depois da guerra! Mas, para repartir o despojo, para ocupar as sinecuras ministeriais, os subsecretariados de Estado, os postos de governadores-gerais, etc., etc., não se perdia tempo nem se esperava por nenhuma Assembleia Constituinte!... O jogo das combinações ministeriais não era senão uma expressão da partilha do "espólio" que se propagava de alto a baixo, por todo o país, em toda a administração central ou local. O resultado objectivo de tudo isso em seis meses – de 27 de Fevereiro a 27 de Agosto de 1917 – é incontestável: as reformas adiadas, a partilha das sinecuras realizada, e os "erros" dessa partilha corrigidos por novas partilhas.

Mas, quanto mais se reparte o aparelho administrativo entre os partidos burgueses e pequeno-burgueses (cadetes, socialistas-revolucionários e mencheviques, para tomar como exemplo a Rússia), tanto mais as classes oprimidas, com o proletariado à frente, se tornam cientes da sua hostilidade inflexível a toda a sociedade burguesa. Daí a necessidade de todos os partidos burgueses, mesmo o mais democrático e o mais "revolucionário-democrata" entre eles, intensificarem a repressão contra o proletariado revolucionário, reforçarem o aparelho de coerção, ou seja, precisamente a máquina estatal. O curso dos acontecimentos obriga a revolução a "concentrar todas as suas forças de destruição" contra o poder do Estado; impõe-lhe, não o melhoramento da máquina estatal, mas a tarefa de a esmagar e destruir.

Não são deduções lógicas, mas o curso real dos acontecimentos, a rude experiência de 1848-1851 que fazem colocar assim o problema. Até que ponto e com que rigor Marx se apoia na experiência histórica, vê-se bem no facto de ele, ainda em 1852, não levantar concretamente a questão de saber o que viria substituir a máquina estatal que é preciso aniquilar. A experiência ainda não havia respondido a essa pergunta, que a história só mais tarde, em 1871, pôs na ordem do dia. Em 1852, Marx podia apenas constatar, com a precisão da observação científica aplicada à história, que a revolução proletária, iniciara a tarefa de "concentrar todas as suas forças de destruição" contra o poder do Estado, na tarefa de "quebrar" a máquina do Estado.

Poderá perguntar-se se estamos no direito de generalizar a experiência, as observações e as conclusões de Marx e aplicá-las a um período mais largo do que a história da França de 1848 a 1851. Recordemos primeiro, a esse respeito, uma observação de Engels e, de seguida, passemos aos factos.

A França – escrevia Engels no prefácio da terceira edição do 18 de Brumário – é o país onde, historicamente, as lutas de classe, mais do que em qualquer outro país, têm tido combates decisivos e onde, consequentemente, as formas políticas assumem sucessivamente o aspecto mais característico, cujos contornos se produzem naqueles combates, e espelham os resultados dos mesmos. Centro do feudalismo na Idade Média, país clássico da monarquia unitária, desde a época da Renascença, a França, na época da sua grande revolução, destruiu o feudalismo e deu à dominação burguesa um carácter de pureza classista que nenhum país atingiu na Europa. Do mesmo modo, a luta do proletariado, no seu despertar, contra a burguesia dominante, adquire uma acuidade desconhecida nos outros países” (pág. 4, ed. de 1907).

Essa última observação envelheceu, pois que, depois de 1871, houve uma interrupção na luta revolucionária do proletariado francês; contudo, essa interrupção, por longa que tenha sido, não exclui a possibilidade de a França, no curso de uma futura revolução proletária, vir a revelar-se novamente como o país que serve de exemplo aos outros na luta de classes final.

Lancemos um olhar de conjunto sobre a história dos países civilizados nos fins do século XIX e começo do século XX.

Veremos que, mais lentamente, com modalidades mais variadas e num teatro mais amplo, se operam, de um lado, o mesmo processo de elaboração do "poder parlamentar", tanto nos países republicanos (França, América, Suíça), como nas monarquias (Inglaterra, Alemanha até um certo ponto, Itália, os países escandinavos, etc.); de outro, o processo de luta pelo poder, dos diferentes partidos burgueses e pequeno-burgueses, que dividem entre si os empregos públicos, como um despojo, enquanto os fundamentos do regime burguês se mantêm imutáveis; por fim, o processo de aperfeiçoamento e consolidação do "poder executivo" com o seu aparelho burocrático e militar.

Sem dúvida, são esses os traços comuns de toda a evolução moderna dos Estados capitalistas. Em três anos, de 1848 a 1851, a França mostrou, sob uma forma nítida e concentrada, todos os processos característicos do mundo capitalista em rápida sucessão.

Especialmente o imperialismo – época do capital bancário, dos gigantescos monopólios capitalistas, em que o capitalismo dos monopólios se transforma, por via do crescimento, em capitalismo de monopólios de Estado – mostra a extraordinária consolidação da "máquina do Estado", o inaudito crescimento do seu aparelho administrativo e militar, ao mesmo tempo que se multiplicam as repressões contra o proletariado, tanto nos países monárquicos como nos mais livres países republicanos.

A história universal leva-nos, indubitavelmente e numa escala incomparavelmente mais vasta que em 1852, à "concentração de todas as forças" da revolução proletária, com o objectivo da "destruição" da máquina do Estado.

Por que coisa o proletariado a substituirá? A Comuna de Paris forneceu-nos a esse respeito os elementos mais instrutivos.

 

3. Como Marx Punha a Questão em 1852

Mehring publicava, em 1907, na Neue Zeit (XXV, 2, 164), extractos de uma carta de Marx a Weidemeyer, de 5 de Março de 1852. Essa carta encerra, entre outras, a notável passagem seguinte:

No que me concerne, eu não tenho o mérito de ter descoberto a existência das classes na sociedade contemporânea, nem o de ter descoberto a luta dessas classes entre si. Os historiadores burgueses expuseram, muito antes de mim, o desenvolvimento histórico dessa luta de classes, e os economistas burgueses a anatomia económica das classes. O que eu fiz de novo consiste na demonstração seguinte: 1º) que a existência das classes só se prende a certas batalhas históricas relacionadas com o desenvolvimento da produção (historische Entwickelungskampfe der Produktion); 2º) que a luta de classes conduz necessariamente à ditadura do proletariado; 3º) que essa própria ditadura é apenas a transição para a supressão de todas as classes e para a formação de uma sociedade sem classes.“

Marx conseguiu exprimir nestas linhas, com surpreendente relevo, primeiro, o que distingue radicalmente a sua doutrina da dos pensadores mais avançados e mais profundos da burguesia e, segundo, a essência da sua teoria do Estado.

O fundamental na doutrina de Marx é a luta de classes. É, pelo menos, o que se escreve e o que se diz frequentemente. Mas, é inexacto. Deformações oportunistas do marxismo, falsificações do marxismo tendentes a adaptá-lo às necessidades da burguesia, derivam frequentemente dessa inexactidão. A doutrina da luta de classes foi concebida não por Marx, mas pela burguesia antes de Marx, e, de maneira geral, é aceitável para a burguesia. Quem reconhece unicamente a luta de classes não é ainda marxista, pode manter-se no quadro do pensamento burguês e da política burguesa. Limitar o mar­xismo à doutrina da luta de classes é truncá-lo, deformá-lo, reduzi-lo ao que é aceitável para a bur­guesia. Só é marxista quem estende o reconhecimento da luta de clas­ses ao reconhecimento da ditadura do proletariado. É isto que distingue, fundamentalmente, o marxista do vulgar pequeno (e também do grande) burguês. É com esta pedra de toque que devem comprovar-se a compreensão e o reconhecimento efec­tivo do marxismo. Não é de espantar que, quando a história da Europa levou a classe operária a abordar praticamente esta questão, todos os oportunistas e reformistas, e todos os "kautskistas" também (hesitantes entre o reformismo e o marxismo) se tenham revelado pobres filisteus e democratas pequeno-burgueses, negadores da ditadura do proletariado.

A brochura de Kautsky “A Ditadura do Proletariado”, aparecida em Agosto de 1918, isto é, muito tempo depois da primeira edição da presente obra, oferece-nos um modelo da deformação pequeno-burguesa do marxismo que, na realidade, repudia completamente essa doutrina, ao mesmo tempo que, hipocritamente, a reconhece da boca para fora (ver a brochura: “A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky”, 1918).

O oportunismo contemporâneo, encarnado pelo seu principal representante, o ex-marxista K. Kautsky, cai inteiramente na caracterização da posição burguesa formulada por Marx, porque circunscreve o reconhecimento da luta de classes à esfera das relações burguesas. (E dentro desses limites, não há liberal instruído que não consinta em admitir "em principio" a luta de classes!). O oportunismo não leva o reconhecimento da luta de classes até ao essencial, até ao período de transição do capitalismo ao comunismo, até ao período de derrubamento da burguesia e do seu completo aniquilamento. Na realidade, esse período é, inevitavelmente, o de uma luta de classes extremamente encarniçada, revestindo-se de uma acuidade ainda desconhecida. O Estado dessa época deve ser, pois, um Estado democrático (para os proletários e os não-possuidores em geral) inovador e um Estado ditatorial (contra a burguesia) igualmente inovador.

Ainda mais. O fundo da doutrina de Marx sobre o Estado só foi assimilado pelos que compreenderam que a ditadura de uma classe é necessária, não só a toda sociedade dividida em classes, em geral, não só ao proletariado vitorioso sobre a burguesia, mas ainda em todo o período histórico que separa o capitalismo da "sociedade sem classes", do comunismo. As formas dos Estados burgueses são as mais variadas; mas a sua natureza fundamental é invariável: todos esses Estados se reduzem, de um modo ou de outro, mas obrigatoriamente, afinal de contas, à ditadura da burguesia. A passagem do capitalismo para o comunismo não pode deixar, naturalmente, de suscitar um grande número de formas políticas variadas, cuja natureza fundamental, porém, será igualmente inevitável: a ditadura do proletariado.

(Cap. III)


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Domingo, 25 de Julho de 2010
O Estado e a Revolução - Cap I As Classes Sociais e o Estado

(Início)

 

1. O Estado é um Produto do Antagonismo Inconciliável entre Classes

Dá-se com a doutrina de Marx, neste momento, aquilo que, muitas vezes, através da História, tem acontecido com as doutrinas dos pensadores revolucionários e dos dirigentes do movimento libertador das classes oprimidas. Os grandes revolucionários foram sempre perseguidos durante a vida; a sua doutrina foi sempre alvo do ódio mais feroz, das mais furiosas campanhas de mentiras e difamação por parte das classes dominantes. Mas, depois da sua morte, tenta-se convertê-los em ídolos inofensivos, canonizá-los, por assim dizer cercar o seu nome de uma auréola de glória, para "consolo" das classes oprimidas e para as enganar, enquanto se castra a substância dos seus ensinamentos revolucionários, embotando-lhes o gume e aviltando-os. É para um tal "tratamento" do marxismo que, presentemente, a burguesia e os oportunistas dentro do movimento operário se unem. Esquece-se, esbate-se, desvirtua-se o lado revolucionário, a essência revolucionária da doutrina, a sua alma revolucionária. Exalta-se e coloca-se em primeiro plano o que é ou parece aceitável para a burguesia. Todos os social-chauvinistas (não riam!) são, agora, "marxistas". Os sábios burgueses, que ainda ontem, na Alemanha, se especializavam em refutar o marxismo, falam cada vez mais de um Marx "nacional-alemão", que, a dar-lhes ouvidos, teria educado os sindicatos operários, tão magnificamente organizados, para executarem a guerra de rapina!

Em tais circunstâncias, e perante tão ampla divulgação de deformações do marxismo, a nossa missão é, antes de mais nada, restabelecer a verdadeira doutrina de Marx sobre o Estado. Para isso, teremos de fazer longas citações das obras de Marx e de Engels. Essas longas citações tornarão pesada e exposição e não contribuirão para torná-la popular; mas, é absolutamente impossível dispensá-las. Todas as passagens de Marx e Engels, pelo menos as passagens essenciais que tratam do Estado, devem ser reproduzidas sob a forma mais completa possível, para que o leitor possa fazer uma ideia pessoal do conjunto e do desenvolvimento das concepções dos fundadores do socialismo científico. Assim, apoiados em provas, demonstraremos, à evidência, que o "kautskysmo", hoje predominante, as deturpou.

Comecemos pela mais vulgarizada das obras de Engels: “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”, cuja sexta edição foi publicada em Estugarda, em 1894. Traduziremos os nossos extractos do original em alemão, porque as traduções russas, embora numerosas, são, na sua maioria, incompletas ou muito defeituosas.

"O Estado – diz Engels, concluindo da sua análise histórica – não é, de forma alguma, uma força imposta, a partir do exterior, à sociedade. Muito menos é "a realidade da ideia moral", "a imagem e a realidade da razão” como afirma Hegel. O Estado é, antes, um produto da sociedade num determinado estádio do seu desenvolvimento; é a confissão de que essa sociedade se enredou numa insolúvel contradição interna, se dividiu em antagonismos inconciliáveis dos quais é impotente para desenvencilhar-se. Mas, para que os antagonistas, as classes com interesses económicos opostos, não se consumam a si próprios e à sociedade numa luta estéril, torna-se necessário um poder, colocado aparentemente acima da sociedade, a fim de enevoar o conflito, de contê-lo nos limites da "ordem". Esse poder, nascido da sociedade, mas que se coloca acima dela e da qual se torna cada vez mais estranho, é o Estado".

Eis, expressa com toda a clareza, a ideia fundamental do marxismo no que concerne ao papel histórico e à significação do Estado. O Estado é o produto e a manifestação do facto de as contradições de classes serem inconciliáveis. O Estado aparece onde, no momento e na medida em que as contradições de classes não podem objectivamente ser conciliadas. E, reciprocamente, a existência do Estado prova que as contradições de classes são inconciliáveis.

É precisamente sobre esse ponto essencial e capital que começa a deformação do marxismo, seguindo duas linhas principais.

De um lado, os ideólogos burgueses e, sobretudo, pequeno-burgueses obrigados, sob a pressão de factos históricos incontestáveis, a reconhecer que o Estado não existe senão onde existem as contradições de classes e a luta de classes, "corrigem" Marx de maneira que o Estado aparece como um órgão de conciliação das classes. Para Marx, o Estado não poderia surgir nem subsistir se a conciliação das classes fosse possível. Para os professores e publicistas pequeno-burgueses e filisteus – que citam abundante e condescendentemente Marx – o Estado tem por papel, exactamente, a conciliação das classes. Para Marx, o Estado é um órgão de dominação de classe, um órgão de opressão de uma classe por outra; é a criação de uma "ordem" que legaliza e consolida essa opressão, contendo os conflitos entre classes. Para os políticos pequeno-burgueses, ao contrário, a ordem é precisamente a conciliação das classes e não a opressão de uma classe por outra; para eles conter os conflitos é conciliar, não é arrancar os meios e processos de combate às classes oprimidas em luta para derrubar os opressores.

Assim, na revolução de 1917, quando a questão do significado do papel do Estado foi posta em toda a sua magnitude na prática, como uma questão de acção imediata, ainda mais, de acção das massas, todos os socialistas-revolucionários e todos os mencheviques, sem excepção, caíram, imediata e completamente, na teoria pequeno-burguesa da "conciliação" das classes pelo "Estado". Inúmeras resoluções e artigos de políticos desses dois partidos estão profundamente impregnados dessa teoria pequeno-burguesa e oportunista da "conciliação". Que o Estado seja o órgão de dominação de uma dada classe que não pode conciliar-se com a sua antípoda (a classe adversa), é o que a democracia pequeno-burguesa é incapaz de compreender. A posição perante o Estado é uma das provas mais evidentes de que os nossos socialistas-revolucionários e os nossos mencheviques não são socialistas, como nós, os bolcheviques, sempre demonstramos, mas democratas pequeno-burgueses com fraseologia pseudo-socialista.

Já em Kautsky, a deformação do marxismo é muito mais subtil. "Teoricamente", não nega que o Estado seja o órgão de dominação de classe, nem que as contradições de classe sejam inconciliáveis. Mas, omite ou obscurece o seguinte: se o Estado é o produto da inconciliabilidade das contradições de classe, se é um poder colocado acima da sociedade e “da qual se torna cada vez mais estranho", é claro que a libertação da classe oprimida é impossível sem uma revolução violenta e sem a supressão do aparelho de poder do Estado, criado pela classe dominante e no qual se materializa o seu carácter de "estranheza". Esta conclusão teoricamente clara por si mesma, tirou-a Marx, com inteira precisão, como adiante veremos, da análise histórica concreta das tarefas da revolução. E é precisamente esta conclusão que Kautsky "esqueceu" e desvirtuou, como demonstraremos detalhadamente no decurso da nossa exposição.

 

2. Destacamentos especiais de homens armados, prisões, etc.

...“Em contraposição à ancestral organização em clãs – continua Engels – o Estado difere, em primeiro lugar, pelos termos em que os cidadãos são organizados por territórios”...

Esta organização parece-nos "natural", mas precisou de uma luta de grande fôlego contra a antiga organização em clãs ou tribal.

..."O segundo traço característico do Estado é a instituição de um poder público que já não corresponde directamente à população e que se organiza como força armada. Esse poder público separado é indispensável, porque a organização espontânea da população em armas se tornou impossível desde que a sociedade se dividiu em classes... Esse poder público existe em todos os Estados. Compreende não só homens armados, como também elementos materiais, prisões e instituições coercivas de toda espécie, que a sociedade patriarcal (clã) não conheceu".

Engels desenvolve a noção dessa "força" que se chama Estado, força proveniente da sociedade, mas superior a ela e que dela se afasta cada vez mais. Em que consiste, principalmente, essa força? Em destacamentos de homens armados que dispõem de prisões, etc.

Temos o direito de falar em destacamentos de homens armados, porque o poder público próprio a cada Estado "já não corresponde directamente" à população armada, isto é, à sua "organização espontânea em armas".

Como todos os grandes pensadores revolucionários, Engels esforça-se por atrair a atenção dos trabalhadores conscientes para o que a medíocre pequena burguesia dominante considera menos digno de atenção, mais banal, consagrado por preconceitos não apenas resistentes, mas, pode-se dizer, petrificados. O exército permanente e a polícia são os principais instrumentos do poder governamental. Mas, poderia ser de outra forma?

Para a grande maioria dos europeus do fim do século XIX, aos quais Engels se dirige e que não viveram nem observaram de perto nenhuma grande revolução, não poderia ser de outra forma. Para eles era completamente incompreensível o que fosse uma "organização espontânea da população em armas". À questão de saber de onde vem a necessidade de corpos especiais de homens armados (polícia, exército permanente), separados da sociedade e superiores a ela, os filisteus da Europa ocidental e da Rússia respondem, muito naturalmente, a essa pergunta, com uma ou duas frases colhidas em Spencer ou em Mikhailovsky, sobre a complexidade crescente da vida social, a diferenciação das funções sociais, etc.

Essas alegações parecem "científicas" e tranquilizam admiravelmente o bom público, obscurecendo o principal, o essencial: a cisão da sociedade em classes irreconciliavelmente inimigas.

Se essa cisão não existisse, a "organização espontânea da população em armas" distinguir-se-ia, certamente, pela complexidade, pela elevada técnica, etc., da organização primitiva de um bando de macacos armados de cacetes, da dos homens primitivos ou da dos homens associados em clãs, mas seria possível.

É, porém, impossível, porque a sociedade civilizada está dividida em classes hostis e irreconciliáveis cujo armamento "espontâneo" provocaria a luta armada. Forma-se o Estado; cria-se uma força especial, criam-se corpos armados, e cada revolução, destruindo o aparelho governamental, põe em evidência como a classe dominante se empenha em reconstituir, ao seu serviço, corpos de homens armados, e como a classe oprimida se empenha em criar uma nova organização do mesmo género, para pô-la ao serviço, não dos exploradores, mas dos explorados.

Na passagem citada, Engels coloca teoricamente a questão que, na prática, qualquer grande revolução põe diante de nós concretamente e na escala da acção de massas, ou seja a questão das relações entre os destacamentos "especiais" de homens armados e a "organização espontânea da população em armas". Veremos como esta questão é ilustrada concretamente pelas experiências das revoluções europeias e russas.

Mas, voltemos à exposição de Engels.

Ele mostra que, por vezes, o poder público enfraquece, por exemplo, em certas regiões da América do Norte (trata-se – excepção bem rara na sociedade capitalista – das regiões da América do Norte nas quais, antes do período imperialista, predominava o colono livre) mas, em geral, o poder público aumenta: …”Este poder público reforça-se na medida em que se agravam internamente os antagonismos de classe e os Estados contíguos se tornam mais fortes e mais populosos. Basta considerar a Europa actual, onde a luta de classes e a competição por conquistas têm aumentado o poder público a um tal grau que este ameaça absorver toda a sociedade e até o próprio Estado”.

Essas linhas foram escritas, quando muito, pouco depois de 1890. O último prefácio de Engels tem a data de 16 de Junho de 1891. A evolução para o imperialismo, caracterizada pela dominação absoluta dos trusts, pela omnipotência dos grandes bancos, pela política colonial em grande escala, etc., mal começava na França e era ainda mais fraca na América e na Alemanha. Desde então, a "competição por conquistas" deu um passo gigantesco, a ponto de o globo terrestre, mais ou menos em 1910, achar-se definitivamente partilhado entre os "conquistadores rivais", isto é, entre as grandes potências espoliadoras. Os armamentos terrestres e marítimos aumentaram em enormes proporções e a guerra de rapina de 1914-1917, que devia acarretar a hegemonia universal da Inglaterra ou da Alemanha, para repartir o despojo, levou ao limiar da catástrofe devido à "absorção" de todas as forças sociais pela voracidade do poder Estatal.

Engels soube, já em 1891, denunciar a "competição por conquistas" como um dos principais traços, características da política externa das grandes potências, ao passo que os malandrins do social-chauvinismo, em 1914-1917, depois dessa rivalidade ter centuplicado e gerado a guerra imperialista, disfarçam a defesa dos interesses espoliadores da "sua" burguesia com frases sobre a "defesa nacional", a "defesa da República e da Revolução", etc.!

 

3. O Estado, Instrumento de Exploração da Classe Oprimida

Para manter um poder público particular colocado acima da sociedade, são necessários impostos e dívida pública.

Investidos do poder público e do direito de cobrança dos impostos – escreve Engels – os funcionários, considerados como órgãos da sociedade, são colocados acima da sociedade. O respeito livre, voluntário, de que eram cercados os órgãos da sociedade patriarcal (do clã) já não lhes bastaria, mesmo que pudessem adquiri-lo”... Fazem-se leis sobre a "santidade" e "inviolabilidade" dos funcionários. "O mais insignificante agente de polícia" tem mais "autoridade" que os representantes do clã; mas em contrapartida o chefe militar de um país civilizado só pode invejar o mais velho do clã pelo “respeito voluntário” que o cercava na sociedade patriarcal.

Surge, assim colocada, a questão da situação privilegiada dos funcionários como órgãos do poder do Estado. O ponto essencial é este: o que é que os coloca acima da sociedade? Veremos como esta questão teórica foi resolvida praticamente pela Comuna de Paris em 1871, e obscurecida por Kautsky, em 1912, de um ponto de vista reaccionário.

Como o Estado nasceu da necessidade de refrear os antagonismos de classes, resulta, em princípio, que, no próprio conflito, o Estado é sempre o Estado da classe mais poderosa e que, de classe economicamente dominante, se torna, também graças a ele, na classe politicamente dominante e adquire, desse modo, novos meios de oprimir e explorar a classe dominada…”

Não só o Estado antigo e o Estado feudal foram órgãos de exploração dos escravos e dos servos: também …”o Estado representativo moderno é um instrumento de exploração do trabalho assalariado pelo capital. Há, no entanto, períodos excepcionais em que as classes em luta atingem tal equilíbrio de forças, que o poder público adquire momentaneamente certa independência em relação às mesmas e se torna uma espécie de árbitro entre elas…”

Tais foram a monarquia absoluta dos séculos XVII e XVIII, o bonapartismo do primeiro e do segundo Império na França, e Bismarck na Alemanha.

Tal é, acrescentamos nós, o governo de Kerensky na Rússia republicana, após iniciar a perseguição ao proletariado revolucionário, no momento em que, devido à liderança dos democratas pequeno-burgueses, os Sovietes tornaram-se já impotentes enquanto a burguesia ainda não é suficientemente forte para os dissolver sem cerimónia.

"Na República democrática" – continua Engels – "a riqueza exerce o poder indirectamente, mas com maior segurança", primeiro pela "corrupção pura e simples dos funcionários" (América), depois pela "aliança entre o Governo e a Bolsa" (França e América).

Actualmente, o imperialismo e a dominância dos Bancos têm "desenvolvido", com uma arte requintada, em todas as repúblicas democráticas, esses dois meios de manter e exercer a omnipotência da riqueza. Se, por exemplo, nos primeiros meses da República democrática na Rússia, em plena lua-de-mel, por assim dizer, do casamento dos socialistas – socialistas-revolucionários e mencheviques – com a burguesia dentro do governo de coligação, o sr. Paltchinski sabotou todas as medidas propostas para parar os capitalistas e para restringir os seus abusos, na sua fixação na pilhagem do tesouro público através dos fornecimentos militares; se, em seguida, o sr. Paltchinski, saído do ministério (e substituído, naturalmente, por outro Paltchinski igualzinho a si), se vê "gratificado" pelos capitalistas com uma boa sinecura rendendo cento e vinte mil rublos por ano, que significa isso? Corrupção directa ou indirecta? Aliança do governo com os sindicatos patronais ou "apenas" relações de amizade? Qual é o papel desempenhado pelos Tchernov, Tseretelli, Avksentiev e Skobelev? São aliados "directos" ou apenas indirectos dos milionários dilapidadores dos dinheiros públicos?

Outra razão pela qual a omnipotência da "riqueza" é melhor assegurada numa república democrática, é, nesse regime, não depender de defeitos dos mecanismos políticos ou de invólucros políticos defeituosos do capitalismo. A república democrática é a melhor forma política possível do capitalismo e, por conseguinte, uma vez apreendida essa forma ideal (através dos Paltchinski, Tchernov, Tseretelli e C.ª), consolida o poder de maneira tão sólida, tão segura, que nenhuma mudança de pessoas, instituições ou partidos, na república democrática burguesa, é susceptível de abalar esse poder.

É preciso notar ainda, que Engels chama ao sufrágio universal arma de dominação da burguesia. O sufrágio universal, diz ele, considerando, manifestamente, a longa experiência da social-democracia alemã, é: ”…o índice que permite medir a maturidade da classe operária. Não pode ser e não será mais que isso no Estado actual.”

Os democratas pequeno-burgueses, do género dos nossos socialistas-revolucionários e mencheviques, e os seus irmãos, os social-chauvinistas e oportunistas da Europa ocidental, esperam, precisamente, "mais alguma coisa" do sufrágio universal. Partilham e fazem o povo partilhar da falsa concepção de que o sufrágio universal, "no Estado actual", é capaz de manifestar verdadeiramente a vontade da maioria dos trabalhadores e garantir-lhe a concretização.

Não podemos senão notar aqui essa falsa concepção e salientar que a declaração clara, precisa e concreta de Engels é desvirtuada a cada passo na propaganda e na agitação dos partidos socialistas "oficiais", isto é, oportunistas. Demonstraremos mais amplamente toda a falsidade da ideia que Engels aqui repudia, desenvolvendo mais adiante as teorias de Marx e Engels sobre o Estado "actual".

Na sua obra mais popular, Engels resume nestes termos a sua teoria:

"O Estado, por conseguinte, não existiu sempre. Houve sociedades que passaram sem ele e que não tinham a menor noção do Estado nem do poder do Estado. Num certo grau do desenvolvimento económico, ligado necessariamente à divisão da sociedade em classes, essa divisão fez do Estado uma necessidade. Presentemente, marchamos a passos largos para um tal desenvolvimento da produção, que a existência dessas classes não só deixa de ser uma necessidade, como se toma mesmo um obstáculo à produção. As classes desaparecerão tão inelutavelmente como apareceram. Ao mesmo tempo que as classes desaparecerem, desaparecerá, inevitavelmente, o Estado. A sociedade reorganizando a produção sobre a base da associação livre e igual de todos os produtores, enviará a máquina do Estado para o lugar que lhe convém: o museu de antiguidades, ao lado da roda de fiar e do machado de bronze".

Não se encontra, com frequência, esta citação na literatura de propaganda da social-democracia contemporânea. E quando alguém reproduz este trecho, fá-lo, em geral, como quem se curva diante de um ídolo, como quem faz um acto de veneração oficial a Engels, sem a menor intenção de reflectir sobre o amplo e profundo significado revolucionário de "enviar a máquina do Estado para o museu de antiguidades". A maior parte das vezes, parece que nem sequer se compreende o que Engels entende por máquina do Estado.

 

4. O "Desvanecimento" do Estado e a Revolução Violenta

As palavras de Engels sobre o "desvanecimento" do Estado gozam de tal celebridade, são tão frequentemente citadas, põem tão bem em relevo o fundo da falsificação oportunista do marxismo, que é necessário examiná-las detalhadamente. Citaremos toda a passagem de onde são extraídas:

O proletariado apodera-se da força do Estado e começa por converter os meios de produção em propriedade do Estado. Mas, por esse meio, ele próprio se destrói como proletariado, abole todas as distinções e antagonismos de classes e, simultaneamente, também o Estado, enquanto tal. A antiga sociedade, que se movia através dos antagonismos de classe, tinha necessidade do Estado, isto é, de uma organização da classe exploradora, em cada época, para manter as condições exteriores de produção e, principalmente, para manter pela força a classe explorada nas condições de opressão exigidas pelo modo de produção existente (escravidão, servidão, trabalho assalariado). O Estado era o representante oficial de toda a sociedade, a sua síntese num corpo visível, mas só o era como Estado da própria classe que representava, em cada época, toda a sociedade: Estado dos cidadãos proprietários de escravos, na antiguidade; Estado da nobreza feudal, na Idade Média; e Estado da burguesia, nos nossos dias. Mas, quando o Estado se torna, finalmente, representante efectivo da sociedade inteira, torna-se supérfluo. Uma vez que não haja nenhuma classe social a oprimir; uma vez que desapareçam, juntamente com a dominação de classe e com a luta pela existência individual, engendradas pela actual anarquia da produção, as colisões e os excessos que daí resultam, não haverá mais nada a reprimir, e uma força especial de repressão, um Estado, deixa de ser necessária.

O primeiro acto pelo qual o Estado se manifesta realmente como representante de toda a sociedade – a posse dos meios de produção em nome da sociedade – é, ao mesmo tempo, o último acto próprio do Estado. A intervenção do Estado nas relações sociais vai-se tornando supérflua domínio a domínio e entra em letargia. O governo das pessoas é substituído pela administração das coisas e pela direcção do processo de produção. O Estado não é "abolido”, desvanece. É desse ponto de vista que se deve apreciar a palavra de ordem de "Estado livre do povo", tanto no seu interesse passageiro para a agitação, como na sua definitiva insuficiência científica; é, igualmente, desse ponto de vista que se deve apreciar a reivindicação dos chamados anarquistas, pretendendo que o Estado seja abolido de um dia para o outro.” (Anti-Düring, A Subversão da Ciência do Senhor Eugen Düring, pp 301-03, 3.ª ed. alemã)

Sem receio de erro, pode-se dizer que, de todo esse raciocínio de Engels de uma notável riqueza de pensamento, só resta, nos partidos socialistas de hoje, como verdadeira aquisição do pensamento socialista a tese de que o Estado, segundo Marx, "desvanece", contrariamente à doutrina anarquista da "abolição" do Estado. Amputar assim o marxismo é reduzi-lo ao oportunismo, pois que, depois de uma tal "interpretação" não fica senão a concepção de uma transformação lenta, equilibrada, progressiva, sem sobressalto nem tempestade, sem revolução. Falar de "desvanecimento" do Estado desta forma, na concepção corrente, vulgarizada no seio das massas, equivale, indubitavelmente, a obscurecer, senão mesmo a repudiar, a revolução.

No entanto, tal "interpretação" não passa da mais grosseira deformação do marxismo em proveito exclusivo da burguesia, deformação baseada teoricamente na omissão das principais circunstâncias e considerações indicadas, nas conclusões de Engels, que acabámos de citar por inteiro.

1.º Logo no início do seu raciocínio, Engels diz que, ao tomar o poder, o proletariado, "por esse meio, abole o Estado, enquanto tal". "Não se costuma" aprofundar o que isso significa. Em geral, despreza-se inteiramente esse pensamento ou vê-se nele uma espécie de "fraqueza hegeliana" de Engels. Na realidade, essas palavras significam, em síntese, a experiência de uma das maiores revoluções proletárias, a experiência da Comuna de Paris de 1871, de que falaremos mais detalhadamente no lugar que lhe compete. De facto, Engels fala da "abolição" do Estado burguês pela revolução proletária, ao passo que as suas palavras sobre o "desvanecimento" até à extinção do Estado se referem aos vestígios do Estado proletário que subsistem depois da revolução socialista. Segundo Engels, o Estado burguês não "desvanece"; é "aniquilado" pelo proletariado na revolução. O que se vai extinguindo, depois dessa revolução, é o Estado proletário ou semi-Estado.

2.º O Estado é "uma força especial de repressão". Esta notável e profunda definição de Engels é de absoluta clareza. Dela resulta que essa "força especial de repressão" do proletariado pela burguesia, de milhões de trabalhadores por um punhado de ricos, deve ser substituída por uma "força especial de repressão" da burguesia pelo proletariado (a ditadura do proletariado). É nisso que consiste a "abolição do Estado, enquanto tal". É nisso que consiste o "acto" de posse dos meios de produção em nome da sociedade. Consequentemente, essa substituição de uma "força especial" (a da burguesia) por outra "força especial" (a do proletariado) não pode equivaler a um "desvanecimento" da primeira.

3.º Esse "desvanecimento" ou, para empregar a expressão com mais relevo e cor, essa "letargia", coloca-a Engels, claramente, no período posterior ao "acto de posse dos meios de produção pelo Estado, em nome da sociedade", posterior, portanto, à revolução socialista. Todos nós sabemos que a forma política do "Estado" é, então, a plena democracia. Mas, nenhum dos oportunistas, que impudentemente desvirtuam o marxismo, concebe que Engels se refira à "letargia" e ao " desvanecimento " da democracia. À primeira vista, parece estranho; mas, só é incompreensível para quem não reflecte que a democracia é também Estado e, por conseguinte, desaparecerá quando o Estado desaparecer. Só a Revolução pode "abolir" o Estado burguês. O Estado em geral, isto é, a plena democracia, só pode "desvanecer".

4.º Ao enunciar a sua famosa tese: "O Estado desvanece", Engels apressou-se a precisar que essa fórmula é dirigida contra os oportunistas e contra os anarquistas. E coloca em primeiro plano o corolário que atinge os oportunistas.

Pode-se apostar que, em dez mil pessoas que leram essas linhas ou ouviram falar do "desvanecimento" do Estado, nove mil e novecentos e noventa ignoram absolutamente ou esquecem que Engels não dirigia as conclusões da sua tese apenas contra os anarquistas. E, nas dez restantes, há seguramente nove que não sabem o que é o "Estado livre do povo" e a razão porque, atacando-o, Engels ataca os oportunistas. É assim que se escreve a história! É assim que se acomoda paulatinamente a grande doutrina revolucionária ao filistinismo reinante. A conclusão contra os anarquistas foi mil vezes repetida, vulgarizada e inculcada nos cérebros da forma mais simplificada, adquirindo a tenacidade de um preconceito. Mas a conclusão contra os oportunistas foi deixada na sombra e "esquecida"!

O "Estado livre do povo" foi uma exigência do programa e uma palavra de ordem corrente dos social-democratas alemães nos anos setenta. Essa palavra de ordem não tem qualquer conteúdo político, excepto descrever de forma pomposa e filistina o conceito de democracia. Para Engels "justificava-se momentaneamente" o seu emprego na agitação, na medida em que essa palavra de ordem aludia de forma legalmente admissível à república democrática. Mas era uma palavra de ordem oportunista, pois não só embelezava a democracia burguesa, como também levava à incompreensão da crítica socialista ao Estado em geral. Nós somos partidários de que a república democrática é a melhor forma de governo para o proletariado sob o regime capitalista, mas andaríamos mal esquecendo que a escravidão assalariada é o quinhão do povo mesmo na república burguesa mais democrática.

Além do mais qualquer Estado é uma "força especial de repressão" da classe oprimida. Consequentemente um Estado, seja ele qual for, não poderá ser nem livre nem do povo. Marx e Engels explicaram isso repetidamente aos seus camaradas de partido nos anos setenta.

5.º A mesma obra de Engels, cujo raciocínio sobre o desvanecimento do Estado todos recordam, contém também um outro sobre a importância da revolução violenta. A apreciação do seu papel histórico torna-se, na obra de Engels, uma verdadeira apologia da revolução violenta. Disso ninguém "se lembra". É moda, nos partidos socialistas contemporâneos, não falar nem pensar nunca no assunto; na propaganda e na agitação quotidianas entre as massas, essa ideia não desempenha qualquer papel. E, no entanto, está indissoluvelmente ligada à ideia do "desvanecimento" do Estado, com a qual forma um todo harmonioso.

Eis a argumentação de Engels:

"…que a violência desempenha ainda outro papel na história [diferente de ser uma fonte do mal], um papel revolucionário; que é, segundo Marx, a parteira de toda velha sociedade, grávida de uma sociedade nova; que é a arma com a qual as forças do movimento social quebram as formas políticas petrificadas e mortas – sobre isso nem uma palavra do sr. Dühring.

Que só no meio de suspiros e gemidos admite ser possível a necessidade da violência para inverter o regime económico da exploração – infelizmente! Pois a violência, diz ele, desmoraliza os que a ela recorrem!

E isso, a despeito do grande surto moral e intelectual que nasce de qualquer revolução vitoriosa!

E isso na Alemanha, onde o choque violento, ao qual o povo poderia ser constrangido, teria, ao menos, a vantagem de destruir o servilismo que penetrou na consciência nacional na sequência das humilhações da Guerra dos Trinta Anos!

E é essa mentalidade de pregador, sem arrojo, sem sabor e sem força, que pretendia impor ao partido mais revolucionário que a história conhece!".(Anti-Dühring , p. 193 da 3.ª edição. alemã, fim do cap. IV, 2ª parte.)

Como conciliar na mesma doutrina esta apologia da revolução violenta, insistentemente repetida por Engels aos social-democratas alemães de 1878 a 1895, isto é, até à sua morte, com a teoria do "desvanecimento" do Estado?

Normalmente as duas são conciliadas ecleticamente por processos empíricos ou sofísticos, tomando arbitrariamente (ou para agradar aos poderosos do dia) ora a ideia da revolução violenta, ora a do desvanecimento; e em noventa e nove por cento das vezes, senão mais, é colocada em primeiro plano justamente esta última. A dialéctica cede lugar ao ecletismo: com relação ao marxismo, é a coisa mais frequente e mais espalhada na literatura social-democrata oficial dos nossos dias. Não é uma novidade, certamente, pois o ecletismo já substituiu a dialéctica na história da filosofia clássica grega. Na falsificação oportunista do marxismo, a falsificação eclética da dialéctica engana as massas com mais facilidade, dá-lhes aparente satisfação, parecendo ter em conta todas as faces do processo, todas as formas de desenvolvimento, todas as influências contraditórias, etc., quando, de facto, não tem qualquer ideia coerente e revolucionária do desenvolvimento da sociedade.

Já dissemos acima, e demonstraremos mais detalhadamente a seguir, que a doutrina de Marx e Engels sobre o carácter inevitável da revolução violenta se refere ao Estado burguês. Este só pode, em geral, ceder lugar ao Estado proletário (ditadura do proletariado) por meio de uma revolução violenta e não por meio de um "desvanecimento". A apologia que Engels faz da revolução violenta está plenamente de acordo com as numerosas declarações de Marx (lembremo-nos da conclusão de’”A Miséria da Filosofia” e do “Manifesto do Partido Comunista” proclamando orgulhosamente e abertamente, que a revolução violenta é inelutável; lembremo-nos da crítica ao programa de Gotha de 1875, quase trinta anos mais tarde, em que Marx flagela desapiedadamente o oportunismo desse programa). Esta apologia não tem nada de "entusiasmo", nada de declamatório, nem é um movimento de espírito polémico. A essência de toda a doutrina de Marx e de Engels está na necessidade de inocular sistematicamente as massas com esta ideia de revolução violenta. É a omissão dessa propaganda, dessa agitação, que marca com mais relevo a traição doutrinária das tendências social-chauvinistas e kautskistas hoje predominantes.

A substituição do Estado burguês pelo Estado proletário não é possível sem revolução violenta. A eliminação do Estado proletário, isto é, a eliminação de todo e qualquer Estado, só é possível pelo "desvanecimento".

Marx e Engels desenvolveram estas ideias de forma detalhada e concreta, estudando separadamente cada situação revolucionária e analisando as lições fornecidas pela experiência de cada revolução em particular. É esta parte da sua doutrina, evidentemente, a parte mais importante, que passamos a analisar.

(Cap II)


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Sábado, 8 de Novembro de 2008
O Estado e a Revolução - prefácios à 1ª e 2ª edições

 

Prefácio à 1ª Edição

A questão do Estado assume, actualmente, particular importância, tanto do ponto de vista teórico como do ponto de vista político prático. A guerra imperialista acelerou e agudizou ao mais alto grau o processo de transformação do capitalismo monopolista em capitalismo monopolista de Estado. A monstruosa opressão dos trabalhadores pelo Estado, que se une cada vez mais estreitamente às omnipotentes associações dos capitalistas, atinge proporções cada vez maiores. Os países mais adiantados transformam-se (referimo-nos à "retaguarda" desses países) em presídios militares para os trabalhadores. Os inauditos horrores e o flagelo de uma guerra interminável tornam intolerável a situação das massas e aumentam a sua indignação. A revolução proletária universal está em maturação e a questão da sua atitude em face do Estado adquire importância prática.

Os elementos de oportunismo, acumulados durante dezenas de anos de relativa paz, criaram a corrente do social-chauvinismo que predomina nos partidos socialistas oficiais do mundo inteiro. Essa corrente (Plekhanov, Pótressov, Brechkóvskaia, Rubanovitch e, depois, sob uma forma ligeiramente velada, os srs. Tsereteli, Tchernov & Cia., na Rússia; Scheidemann, Legien, David e outros, na Alemanha; Renaudel, Guesde, Vandervelde, na França e na Bélgica, Hyndman e os fabianos, na Inglaterra, etc., etc.), socialista nas palavras, mas chauvinista de facto, caracteriza-se por uma baixa e servil adaptação dos "chefes socialistas" aos interesses não só da ''sua" própria burguesia nacional, como também, mais precisamente, do "seu" Estado, pois a maior parte das chamadas grandes potências exploram e escravizam, há muito tempo, muitas nacionalidades pequenas e fracas. Ora, a guerra imperialista não tem outra coisa em vista senão o fraccionamento e a distribuição dessa espécie de despojo. A luta para arrancar as massas trabalhadoras da influência da burguesia em geral e da burguesia imperialista em particular, é impossível sem uma luta contra os preconceitos oportunistas relativos ao "Estado''.

Primeiro, passaremos em revista a doutrina de Marx e Engels sobre o Estado, detendo-nos mais minuciosamente nos pontos esquecidos ou distorcidos pelo oportunismo. Em seguida, analisaremos especialmente a posição do principal representante dessas distorções, Karl Kautsky, o chefe mais conhecido da II Internacional (1889-1914) que tão tristemente faliu durante a guerra actual. Finalmente, faremos o balanço da experiência da revolução russa de 1905, e, principalmente, da de 1917. Esta última, no momento presente (princípios de Agosto de 1917), entra visivelmente no fim de sua primeira fase; mas, toda esta revolução só se pode compreender como um anel na cadeia de revoluções proletárias socialistas provocadas pela guerra imperialista. Assim, a questão da posição da revolução socialista do proletariado perante o Estado não adquire somente uma importância política prática; ela reveste-se de um carácter candente porque esclarece as massas sobre o que devem fazer para se libertarem, num futuro muito próximo, do jugo do capital.

O Autor.

Agosto de 1917.

Prefácio à 2ª Edição

Esta segunda edição está quase inteiramente conforme a primeira edição. Só foi feita a adição do ponto 3 ao capítulo II

O Autor.

 

Moscovo, 17 de Dezembro de 1918.

(Cap 1)


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